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Leandro Rennó: A necessidade da resolução extrajudicial de disputas

Em tempos de pandemia, tem proliferado o número de eventos e artigos ressaltando a importância da negociação e da renegociação de contratos, a relevância do uso de métodos consensuais para se buscar soluções mais adequadas para os conflitos que estão surgindo neste momento, entre várias iniciativas voluntárias de empresas e pessoas que oferecem alternativas para as situações atípicas e imprevisíveis que muitos estão tendo que enfrentar neste momento. Diante desse cenário, ressurge com força o debate acerca da mudança cultural que se torna ainda mais urgente em nosso país. Os movimentos nacionais pelo uso dos métodos consensuais de resolução de disputas, entre eles a conciliação e a mediação, já haviam recebido a adesão do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, entre vários outros órgãos. Porém, esse não é um debate que tem se efetivado da forma como deveria ser para, de fato, gerar os resultados qualitativos que a nossa sociedade tanto anseia.

Inicialmente, cabe fazer uma viagem no tempo e relembrar a todos que esse movimento não é novo. Já fomos brindados na nossa história com normas que estabeleciam, inclusive, quase uma obrigatoriedade do uso de formas consensuais de resolução de conflitos como requisito preliminar para o exercício do tão amado e idolatrado, salve, salve, “direito de ação” Na época em que o Brasil ainda era colônia de Portugal, aplicavam-se em nosso país as chamadas Ordenações Filipinas de 1595, que, no Livro 3º, T. 20, §1º, faziam a seguinte previsão: “E no começo da demanda dirá o Juiz a ambas as partes, que antes que façam despezas, e se sigam entre elles os ódios e dissensões, se devem concordar, e não gastar suas fazendas por seguirem suas vontades, porque o vencimento da causa sempre he duvidoso (…)”. E mais. Ao se tornar um país independente, foi determinado na nossa primeira Constituição, em 1824, no seu artigo 161, que “sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum”.

Porém, é importante compreender também algumas das razões pelas quais o uso e a indicação desses métodos ainda sofrem tanta resistência em nosso país. Primeiro, pelo fato de que essas normas acima transcritas parecem ter sido simplesmente ignoradas pela nossa sociedade. Em algum momento da evolução do Direito em nosso país, foi feita a opção (voluntária ou não) pela adesão ao princípio do “monopólio da jurisdição pelo Estado”. Decidimos, por alguma razão, elevar o “direito de ação” ao patamar de 11º mandamento divino e todos aqueles que levantassem suas vozes contra a divindade desse direito estariam condenados às chamas do inferno.

Dentro dessa lógica, ao trazer o tema para o debate social, todas as iniciativas e movimentos feitos por profissionais de excelência e que construíram a história desses institutos no Brasil, especialmente da mediação, não receberam o acolhimento amplo e efetivo da nossa sociedade, até que o próprio Estado tivesse decidido chamar para si essa tarefa. E, neste aspecto, talvez apenas neste, o movimento pela solução consensual dos conflitos encabeçado pelo Conselho Nacional de Justiça, e que se formalizou em 2010 com a Resolução nº 125, foi necessário para promover a tão esperada difusão dos institutos da conciliação e da mediação. Mas, de novo, não foi o CNJ e nem a Resolução nº 125 que iniciaram esse movimento.

Além do que estava disposto nas Ordenações Filipinas de 1595 e da Constituição de 1824, a tentativa de se estimular o uso de formas consensuais sempre fez parte da nossa legislação. E não se tratam apenas de resquícios históricos do nosso período colonial. Se avançarmos no tempo, basta analisar o conteúdo do preâmbulo da nossa atual Constituição de 1988, que afirma que a nossa sociedade está “fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. E essa lógica foi mantida em diversas leis que se seguiram no nosso país. Porém, sempre com o foco no uso desses métodos consensuais, especificamente a conciliação, dentro da estrutura disponibilizada pelo próprio Poder Judiciário. Assim, por exemplo, temos o texto do artigo 125 do Código de Processo Civil de 1973, que estabelece como dever do magistrado “tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes”. No mesmo sentido, vieram os Juizados de Pequenas Causas de 1984 e os Juizados Especiais em 1995, dando ênfase ao uso da conciliação, “sempre que possível”. Não é sequer necessário comentar aqui a baixa qualidade daquilo que se tem chamado de “conciliação” nesses ambientes judiciais.

Portanto, o que se percebe é que o nosso legislador já havia entendido que a conciliação e o uso de quaisquer formas de resolução de conflitos deveria ser estimulados, mas manteve sempre o foco no Poder Judiciário. E essa lógica foi replicada na estrutura proposta pelo CNJ na elaboração da sua tão festejada Resolução nº 125, em 2010. E seguiu no mesmo caminho o nosso Código de Processo Civil de 2015 ao incentivar o uso da mediação e da conciliação judiciais. A ordem era estimular as soluções amigáveis e a busca do consenso, mas sem abrir mão do controle e do poder de fiscalizar o que a sociedade está fazendo, do que está sendo negociado. Com isso, fortalecia-se a ideia do “monopólio da jurisdição pelo Estado”. Sequer a Lei Brasileira de Mediação, Lei nº 13.140 de 2015, conseguiu se afastar do Poder Judiciário, e viu-se também obrigada a tratar da “mediação judicial”.

Importante deixar claro que não há aqui um posicionamento contrário a qualquer iniciativa ou movimento que seja (ou tenha sido) feito pelo Poder Judiciário de também oferecer seu espaço para a realização de procedimentos consensuais de resolução de disputas. Isso é válido e, para muitos, algo necessário. Porém, ao longo da história, o Estado brasileiro, especialmente os Poderes Legislativo e Judiciário, tem constantemente perdido a oportunidade de estimular e permitir que os cidadãos assumam suas responsabilidades e chamem para si o dever e a obrigação de resolverem por si próprios os seus conflitos. A cultura paternalista e a ideia do Estado máximo continuam imperando em nosso país também nesse tema. Algo prejudicial para o desenvolvimento de uma sociedade adulta, responsável e senhora das suas escolhas. Aliás, para aqueles que realmente entendem de mediação, esses são pressupostos essenciais e que deveriam estar na base de qualquer forma de solução consensual de conflitos: empoderamento e responsabilização dos sujeitos.

Com isso, a realidade que se tem enfrentado na prática desses métodos é desestimulante. O Poder Judiciário não tem conseguido atender de forma adequada e satisfatória ao que está proposto nas normas indicadas. Apesar de bem redigidas, tanto a Resolução nº 125 de 2010 como o Código de Processo Civil de 2015 e também a Lei Brasileira de Mediação têm sido constantemente desconsideradas e desrespeitadas. Não se tem aplicado as regras ali previstas para uma efetiva capacitação de mediadores e conciliadores. Não têm tido os Tribunais de Justiça condições de estruturar com a qualidade necessária seus Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs) de forma a atender a todas as comarcas do nosso país com a qualidade devida. Continuam até hoje os mediadores e conciliadores trabalhando sem receberem a devida remuneração e isso, inclusive, pelo fato de que o Poder Judiciário desrespeita a previsão legal de que os serviços prestados nos Cejuscs devem ser pagos pelas partes e a Justiça gratuita é algo excepcional. Magistrados têm constantemente ignorado as regras legais a respeito da realização e agendamento das tais “audiências de conciliação ou mediação” (nome este que, por si só, já mereceria um artigo inteiro, tamanha sua imprecisão). Enfim, são inúmeras as dificuldades enfrentadas.

Mas nada disso precisaria estar acontecendo se o Estado tivesse dado conta de confiar na sociedade e no cidadão brasileiro. Tudo poderia ser diferente se a mensagem passada pelos portugueses tivesse sido ouvida. Não se deve iniciar qualquer demanda judicial sem que todas as possibilidades de solução amigável tenham se esgotado. Algo que parece lógico para pessoas de bom senso, mas que não se aplica, por não termos aprendido a fazer dessa forma. Nossas faculdades de Direito replicam até hoje a cultura da sentença e do litígio, apesar de um lento e gradativo movimento de mudança. O nosso legislador e o nosso Poder Judiciário perderam e continuam perdendo oportunidades de estimular o uso desses métodos no ambiente privado, extrajudicial.

Seria tão mais positivo se as normas criadas pelo nosso legislador e pelo próprio CNJ tivessem seguido em outra direção. Os institutos da conciliação e da mediação talvez tivessem tido uma outra história se os usuários da Justiça tivessem sido estimulados a utilizar esses institutos fora do Judiciário, com mediadores e conciliadores devidamente preparados e capacitados, utilizando os serviços das melhores e mais qualificadas câmaras privadas de mediação e conciliação. Se tivéssemos seguido a mesma história e o mesmo caminho que a arbitragem seguiu após a Lei nº 9.307 de 1996, talvez tivéssemos conseguido resultados melhores, inclusive com a capacidade que esses métodos consensuais têm de atingir um número ainda maior de pessoas e conflitos.

Mas não é tarde. É possível repensar o nosso Direito. Partir para um sistema mais lógico e que estimule a própria sociedade a dar conta dos seus conflitos e se responsabilizar por eles. Muitos dirão que não temos maturidade para isso. Dirão que não fomos educados para ter essa liberdade. Mas não se está dizendo aqui que se trata de tarefa fácil. Educar demanda paciência e cuidado. Mudar uma cultura leva anos, décadas. Mas é possível, se houver confiança e vontade.

E o momento é propício. O retorno ao “novo normal” que virá depois dessa pandemia é uma oportunidade para que a nossa sociedade reveja seus conceitos. Podemos começar uma nova história. E a proposta é simples. Vamos voltar a 1595. Vamos festejar a Constituição de 1824. E vamos, sobretudo, entender que o Poder Judiciário não deve ser o único caminho. Boas e melhores experiências nos esperam do lado de fora. Vamos negociar! Vamos conciliar! Vamos mediar! Somos todos capazes!

 é sócio e head da área de Arbitragem e Mediação do escritório Sion Advogados, doutor em Direito pela Université de Versailles (França), mestre em Direito pela PUC-Minas e professor da PUC-Minas.

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A “descoberta” da mediação no Brasil

O último relatório estatístico anual — “Justiça em Números 2019″ [1] — publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que foi o 15º da série, inovou ao englobar a fase pré-processual no índice de conciliação total. O CNJ, desde que implantou o Movimento pela Conciliação, em agosto de 2006: I) vem proporcionando as Semanas pela Conciliação, com o intuito de estimular acordos, nas fases pré-processual e processual; II) criou os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs), que se tornaram Unidades Judiciárias por força da Resolução CNJ 219/2016, e os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemecs  — Resolução CNJ 125/2010); III) fortificou o Programa Resolve, que incentiva a autocomposição de litígios — conciliação e mediação — em questões previdenciárias, bancárias, habitacionais, consumeristas e trabalhistas, além de execuções fiscais; e IV) estabeleceu o índice de conciliação (percentual de sentenças e decisões resolvidas por homologação de acordo em relação ao total de sentenças e decisões terminativas exaradas).

Os Cejuscs alcançaram o número de 1.088 nas Justiças Estaduais ao final do ano de 2018.

Naquele ano, o percentual de sentenças homologatórias de acordo, em comparação com o total de sentenças e decisões terminativas exaradas, foi de 11,5%, índice esse em queda se comparado com o ano anterior. No mesmo ano, as sentenças homologatórias de acordo, na fase de execução, corresponderam a 6%, enquanto na de conhecimento, a 16,7%.

Se o índice de conciliação total levar em conta os procedimentos pré-processuais e as classes processuais como inquéritos, reclamações pré-processuais, termos circunstanciados, cartas precatórias, precatórios, requisições de pequeno valor, etc., o índice de conciliação sobe de 11,5% para 12,3% [2].

Em matéria de solução de litígios, o Brasil, ao independizar-se politicamente de Portugal, herdou a tradição lusa de solução judiciária. Realizada por juízes em nome do Estado, tal espécie de solução era, praticamente, a única que seria ensinada, por largo tempo, nas escolas de direito do país, que seguiam a tradição conimbricense. Tardiamente, por ocasião do quarto ordenamento processual [3] — o Código de Processo Civil de 1973 (artigos 447 e 448) — seria instituída a conciliação prévia obrigatória (hoje regida pelos artigos 165 a 175 do CPC/2015). Em 1996, acolheríamos a arbitragem pela Lei 9.307 (que, profundamente alterada pela Lei 13.129/2015, continua regendo o instituto). Unicamente por meio da Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, aderiríamos à mediação [4], que continua sendo regida por essa lei.

Os três institutos — arbitragem, conciliação e mediação — possuem duas características em comum: não fazer parte da jurisdição estatal e contar com a participação de um terceiro. Na arbitragem o terceiro é escolhido pelas partes, a quem compete exarar uma decisão (heterocomposição). Na conciliação, o terceiro aproxima os litigantes, cabendo-lhe sugerir decisões (autocomposição). Na mediação, auxilia os contendores a chegar a um acordo, sem apontar solução (autocomposição). Portanto, a diferença entre conciliação e mediação é somente de grau [5].

A Lei 13.140/2015 (Lei da Mediação) é aplicável à solução de conflitos, tanto no âmbito particular quanto na esfera da administração pública; desde que referentes a direitos disponíveis ou a direitos indisponíveis que admitam transação (artigos 1º, caput, e artigo 3º, caput). Esse diploma legal conceitua mediação como sendo a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia” (artigo 1º, parágrafo único).

Logo no início da lei, são explicitados os princípios que devem presidir a mediação e, por conseguinte, servir de guia para a interpretação de todo o seu articulado: imparcialidade do mediador, isonomia entre as partes, oralidade, informalidade, autonomia da vontade das partes, busca do consenso, confidencialidade [6] e boa-fé (artigo 2º, caput).

O mediador será designado pelo tribunal ou escolhido pelas partes (artigo 4º, caput), devendo conduzir o procedimento na busca do entendimento, do consenso e facilitando a resolução do conflito (artigo 4º, § 1º), sendo a ele aplicáveis as hipóteses legais de impedimento e suspeição do juiz (artigo 5º, caput), além de ser equiparado a servidor público com relação aos efeitos da legislação penal (artigo 8º).

A Lei versa sobre mediação judicial e extrajudicial, sendo disposições comuns ao procedimento de mediação: I) poderá haver mais de um mediador (artigo 15); II) em havendo processo arbitral ou judicial em curso, deverá ser requerido ao juiz ou ao árbitro a suspensão do processo pelo prazo suficiente, sendo irrecorrível tal decisão (artigo 16, § 1º); III) mesmo suspenso o processo, o juiz ou o árbitro poderá conceder medidas de urgência (artigo 16, § 2º); IV) ficará suspenso o prazo prescricional durante o transcurso do procedimento de mediação (artigo 17, parágrafo único); V) a primeira reunião da mediação marca a data de sua instituição (artigo 17, caput), que se encerra com a lavratura do termo final (artigo 20, caput); e VI) na hipótese de acordo, o termo final possui a força de título executivo extrajudicial e, após homologação judicial, de título executivo judicial (artigo 20, parágrafo único).

As principais regras sobre a mediação extrajudicial encontram-se a seguir. Os únicos pressupostos para atuar como mediador extrajudicial são possuir capacidade e deter a confiança das partes (artigo 9º). As partes poderão ser assistidas por advogados ou defensores públicos (artigo 10º). O convite à outra parte para iniciar procedimento de mediação, feito por qualquer meio de comunicação, conterá objetivo da negociação, data e local da primeira reunião (artigo 21), convite esse que será tido por rejeitado se não houver resposta até o trigésimo dia do recebimento (artigo 21, parágrafo único). Se a parte convidada não comparecer à primeira reunião de mediação e, posteriormente, vier a vencer procedimento arbitral ou judicial com escopo idêntico ao da mediação proposta, deverá pagar 50% de custas e honorários sucumbenciais (artigo 22, § 2º, inciso IV). A previsão contratual deverá conter os itens seguintes: prazo mínimo e máximo para a realização da primeira reunião de mediação, local da primeira reunião, critérios de escolha do mediador e penalidade para o não comparecimento da parte convidada à primeira reunião (artigo 22 e incisos de I a IV). Entretanto, essa exigência poderá ser substituída pela adesão a regulamento, publicado, de instituição idônea prestadora de serviços de mediação. (artigo 22, § 1º).

Regras mais relevantes sobre mediação judicial: o mediador judicial deverá ser graduado, ao menos há dois anos, por instituição de ensino superior e capacitada por escola de formação de mediadores, ambas reconhecidas, além de cumprir requisitos do CNJ e do Ministério da Justiça (artigo 11); os tribunais regulamentarão a inscrição e o desligamento de seus mediadores, mantendo cadastro dos habilitados, assim como fixarão a respectiva remuneração, a ser paga pelas partes (artigo 12, caput e §§ 2º e 3º e artigo 13); cabe aos tribunais criar centros judiciários de solução consensual de conflitos e desenvolver programas que facilitem a autocomposição, em consonância com normas do CNJ (artigo 24 e parágrafo único); a aceitação dos mediadores pelas partes não é pressuposto (artigo 25); é regra geral as partes serem assistidas por advogados ou defensores públicos (artigo 26); sendo apta a petição inicial, o juiz designará audiência de mediação (artigo 27), devendo o procedimento ser concluído, em princípio, em até 60 dias da primeira audiência (artigo 28); em havendo acordo, o juiz determinará o arquivamento do processo e, a requerimento das partes, homologará por sentença o acordo, bem como o termo final da mediação e arquivará o processo (artigo 28, parágrafo único); e se antes da citação do réu o conflito for resolvido por mediação, não serão devidas custas (artigo 29).

O capítulo II da lei (artigos 32/40) refere-se detalhadamente à autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público. Abre-se a possibilidade para que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios criem câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos junto aos seus órgãos da Advocacia Pública,  desde que competentes para: dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública; avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, em controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público; e promover celebração de termo de ajustamento de conduta (artigo 32 e incisos). A prescrição ficará suspensa caso instaurado procedimento administrativo (artigo 34). Poderão ser objeto de transação por adesão as controvérsias jurídicas que envolvam a Administração Pública Federal direta, suas autarquias e fundações, uma vez cumpridos certos pressupostos (artigo 35 e incisos). 

Com claro intuito de dar maior abrangência à lei, ressaltem-se as regras inseridas na Disposições Finais. No que couber, ela é aplicável nas áreas de competência de outras formas de resolução conflitual (mediações comunitárias, escolares e em serventias judiciais), muito embora não o seja no âmbito trabalhista (artigo 42 e parágrafo único). Havendo acordo das partes, poderá ser feita mediação por meios que permitam transação à distância (internet, etc.). facultando-se aos domiciliados no exterior submeterem-se à mediação nos termos dessa lei (artigo 46 e parágrafo único).

A contar da entrada em vigor da Lei 13.140/2015, a mediação tem-se revelado bastante hábil como meio de solução não judicial de controvérsias. O fato de agora ser dotada de quadro legislativo descomplicado, adaptável e ao mesmo tempo abrangente, fez com que a mediação despontasse. Se o Judiciário já se encontrava assoberbado, mais o estará em razão da desarrumação que a pandemia vem causando no mundo jurídico. Urge ser a mediação mais conhecida e utilizada, tanto no setor privado, quanto no público. Por essa razão, o Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) oferecerá, gratuitamente, online, palestra do especialista professor Rubens Tilkian, no dia 13 de maio, das 8h30 às 10h. Ele exporá as dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário e os benefícios proporcionados pela mediação às empresas e às pessoas físicas. Abordará, em detalhe, as diferenças entre mediação judicial e privada; em quais áreas a mediação é cabível; e os caminhos possíveis para iniciá-la e levá-la a bom termo. Ao final, apresentará case de sucesso, além de reflexões sobre o futuro do instituto no Brasil. Inscrições gratuitas: cursos@cedes.org.br.  

Com toda a certeza, a mediação fará com que o índice anual de conciliação apresentado pela “Justiça em Números”, atualmente em 11,5%, avançará de modo célere. Tanto questões de baixo valor econômico entre pessoas físicas quanto milhares de ações repetitivas entre pessoas jurídicas de grande porte, prestadoras de serviço, e pessoas físicas serão resolvidas.

 

[6] A Seção IV do Capítulo I da Lei intitula-se “Da Confidencialidade e suas Exceções”, possuindo dois artigos.

 é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

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Opinião: Reflexos da supressio e da surrectio nos acordos judiciais

Nos últimos anos, as formas consensuais de resolução de persecuções criminais ganharam espaço no ordenamento jurídico brasileiro e no debate público. Para além dos já tradicionais institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, viu-se a colaboração premiada ser largamente utilizada em diversas investigações, principalmente a partir do detalhamento do instituto na Lei n. 12.850/13.

Sua natureza de negócio jurídico processual foi inicialmente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no bojo do habeas corpus n. 127.483 e posteriormente positivada pela Lei n. 13.964/19, que incluiu o artigo 3-A na Lei n. 12.850/13.

Por sua vez, a crescente preocupação com a morosidade do Poder Judiciário e com a quantidade de processos levados a julgamento por cada magistrado fomentou discussões sobre a introdução de espécies de plea bargain no Brasil. O argumento central dos defensores desses mecanismos é a suposta racionalização do sistema de justiça criminal.

Dessa forma, em 2019, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, apresentou anteprojeto de lei denominado “anticrime”, propondo duas alterações legislativas com intuito de disciplinar novas hipóteses de negócios jurídicos no âmbito processual penal, quais sejam, o acordo de não persecução penal e a avença para aplicação imediata da pena após o recebimento de denúncia, o que alegadamente descongestionaria os serviços judiciários.

Após o indispensável trâmite no Congresso Nacional, foi aprovada pelas casas legislativas e depois sancionada pelo Presidente da República a Lei n. 13.964/19, que implementou o acordo de não persecução penal, com a inclusão do artigo 28-A e parágrafos no Código de Processo Penal. Conforme Mauro Fonseca Andrade e Rodrigo Brandalise, essa hipótese de avença situa-se no momento posterior à finalização de determinada investigação criminal, consistindo na possibilidade de o membro do Ministério Público não oferecer a ação penal pública mediante a formalização de um acordo com a pessoa investigada.

Em contrapartida, nos termos do novo artigo 28-A do CPP, o investigado fica sujeito ao cumprimento das seguintes condições, que podem ser ajustadas cumulativa ou alternativamente: a) reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; b) renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; c) prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); d) pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou e) cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

A relevância do instituto para o sistema de justiça criminal pode ser facilmente constatada nas estatísticas divulgadas recentemente pelo Ministério Público Federal. Segundo o levantamento da Segunda Câmara de Coordenação e Revisão, de 23 de janeiro de 2020 (data em que a lei “anticrime” entrou em vigor) a 16 de março de 2020, somente o MPF firmou 1.043 acordos de não persecução penal.

Em suma, os mecanismos de resolução consensual dos litígios penais estão ocupando relevante espaço na prática judicial brasileira. Nesse contexto, merece reflexão mais detalhada a relação entre o princípio da boa-fé e as obrigações assumidas pelos investigados.

Isso porque a pessoa investigada ou processada pode assumir – inclusive, cumulativamente – diversas obrigações a título de contraprestação no negócio jurídico firmado com o Ministério Público, as quais nem sempre estão previstas legalmente.

Por seu turno, o eventual descumprimento de uma determinada obrigação por parte do investigado poderá acarretar a desconstituição do negócio jurídico, sem prejuízo de outras consequências negativas, como se observa do disposto no art. 28-A, § § 10º e 11º , do CPP.

Nessa quadra, mostra-se indispensável o seguinte questionamento: a não observância pelo investigado de uma determinada obrigação estipulada no acordo implica necessariamente o seu descumprimento? Em nosso entender, não, haja vista a imprescindível observância do princípio da boa-fé objetiva nos negócios jurídicos.

Especificamente sobre a colaboração premiada, o Ministro Nefi Cordeiro destaca que “é negócio jurídico estatal e, como tal, rege-se pelos princípios constitucionais da Administração Pública, pelos princípios do processo penal, pela legislação penal e processual penal, pelas regras do direito civil de negócios jurídicos e do contrato administrativo”. Por também possuir a mencionada natureza, os acordos de não persecução penal devem seguir o mesmo regramento.

Ou seja, as disposições de direito civil sobre os negócios jurídicos são plenamente aplicáveis aos acordos de colaboração premiada e de não persecução penal, em virtude da natureza jurídica desses institutos.

Dessa forma, a interpretação dos negócios jurídicos segundo a boa-fé encontra-se prevista no artigo 113 do Código Civil, tendo o legislador também destacado que a “interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio” (art. 113, § 1º , I, do Código Civil).

Tal previsão legal está intimamente relacionada a dois deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva, a saber, supressio e surrectio. A primeira se refere à supressão de determinada posição jurídica em razão da ausência do exercício do direito em um certo espaço de tempo. A surrectio é o contrário da supressio, de modo que, com a ocorrência desta, é gerado direito para a parte contrária.

De forma sintética, a supressio é caracterizada por três requisitos: (i) a omissão do titular do direito em exigi-lo; (ii) essa omissão é reiterada por tempo relevante e, (iii) com isso, há quebra de expectativa e da confiança da outra parte ao ser exigida por obrigação que nunca antes foi exercida.

Nas palavras do Ministro Ricardo Cueva, “segundo o instituto da supressio, o não exercício de direito por seu titular, no curso da relação contratual, gera a outra parte, em virtude do princípio da boa-fé objetiva, a legitima expectativa de que não mais se mostrava sujeito ao cumprimento da obrigação, presente a possível deslealdade no seu exercício posterior”.

Nessa sorte, no âmbito da colaboração premiada ou do acordo de não persecução penal, se não exercida a cobrança de certa obrigação por qualquer das partes signatárias do negócio jurídico em relevante extensão temporal, perde-se esse direito de exigência e a parte contrária, por sua vez, adquire o direito de não ser exigida por aquilo que nunca fora antes cobrada, em estrita observância do princípio da boa-fé objetiva.

Com intuito de tornar mais concreto o posicionamento aqui esposado, alguns exemplos podem ser esclarecedores.

Situação A: O investigado celebra acordo de não persecução penal com o Ministério Público e são fixadas, de forma cumulativa, as seguintes condições: 1) o pagamento de R$ 10.000,00, no prazo de 10 (dez) dias úteis após a ciência da homologação e 2) prestação de serviço semanal a entidades públicas pelo prazo de 2 (dois) anos.

Logo de início, houve o pagamento no prazo avençado e a carga horária dos serviços estava sendo cumprida em duas instituições designadas pelo juízo, as quais também foram sugeridas pelo Ministério Público quando da celebração do acordo. Ocorre que, no curso da prestação de serviços, uma das instituições suspendeu suas atividades. Ato contínuo, o investigado informou tal situação nos autos e passou a cumprir apenas a carga horária anteriormente destinada à instituição que estava em pleno funcionamento. Diante desse fato novo, o juízo competente intimou o Ministério Público para se manifestar no prazo de 5 (cinco) dias. Ausente qualquer manifestação do MP por considerável lapso de tempo e se aproximando o final do prazo de 2 (dois) anos fixado no acordo, o juízo determinou nova intimação do órgão de acusação.

Nessa oportunidade, o Ministério Público, que não havia se manifestado sobre a suspensão das atividades de uma das instituições, requereu a rescisão do acordo, com fundamento no art. 28-A, § 10, do CPP, ao argumento de descumprimento das obrigações contratuais. Contudo, entendemos que o hipotético pleito do Ministério Público não poderia ser acolhido, caso contrário haveria violação ao princípio da boa-fé, notadamente do dever anexo da supressio.

Situação B: o investigado firma acordo de colaboração premiada com o Ministério Público, assumindo obrigação de apresentar, no prazo de 30 (trinta) dias, informações mais detalhadas sobre os delatados (x) e (y). Tal prazo é prorrogado a pedido do colaborador por mais 30 (trinta) dias, mas os dados adicionais não foram apresentados. Nos 4 (quatro) meses seguintes, o colaborador presta semanalmente diversos depoimentos ao MP sobre outras pessoas delatadas, sem que houvesse qualquer cobrança das mencionadas informações pormenorizadas em relação aos delatados (x) e (y).

No 6º mês após o esgotamento da prorrogação do prazo, a partir do arcabouço informativo já apresentado pelo colaborador quando da celebração da avença, o Ministério Público oferece denúncia contra os dois delatados (x) e (y) e o colaborador. Mais uma vez, não há cobrança acerca da mencionada obrigação do colaborador.

No final do 10º mês, o MP apresenta pedido de rescisão do acordo, alegando o descumprimento da cláusula contratual relativa à obrigação de o colaborar apresentar informações mais detalhadas sobre os dois delatados mencionados. Pelas razões aqui esposadas, acreditamos que o hipotético pleito ministerial iria de encontro ao princípio da boa-fé objetiva e ao seus deveres anexos, os quais são de observância obrigatória nos negócios jurídicos. A hipótese, mais uma vez, é de supressio.

Bem se vê, portanto, que a resposta da questão formulada perpassa a análise do comportamento das partes após a celebração do acordo, seja ele de colaboração ou de não persecução penal, de sorte que eventual inobservância de determinada obrigação pelo investigado não poderá ser automaticamente tida como descumprimento da avença.

A bem da verdade, sob a ótica proposta neste artigo, qualquer conclusão sobre o inadimplemento do acordo deve observar se o Ministério Público, em interregno considerável e tendo a oportunidade de se manifestar, deixou de exigir o cumprimento da cláusula contratual objeto de discussão, haja vista a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inercia qualificada da parte, o que faria operar o instituto da supressio.


HC 127483, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-021 DIVULG 03-02-2016 PUBLIC 04-02-2016

Art. 3º-A. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos.

ANDRADE, Mauro Fonseca; BRANDALISE, Rodrigo da Silva. Observações preliminares sobre o acordo de não persecução penal: da inconstitucionalidade à inconsistência argumentativa. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 37, p. 239-262, dez. 2017.

http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-celebra-mais-de-2-mil-acordos-de-nao-persecucao-penal

CORDEIRO, Nefi. Colaboração Premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 57.

REsp 1374830/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/06/2015, DJe 03/08/2015.

Foram utilizados como parâmetros os modelos de ANPP’s disponibilizados na rede mundial de computadores pelo Ministério Público do Estado do Espírito Santo e pelo Ministério Público do Estado do Piauí. Embora sejam fundamentados na Resolução n. 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, alterada pela Resolução n. 183/2018, a semelhança desses atos com a redação do artigo 28-A do CPP viabiliza essa utilização. Disponíveis em: https://www.mpes.mp.br/Arquivos/Anexos/6d792bb3-ddfe-4bd8-ab41-cc914591324e.pdf e https://www.mppi.mp.br/internet/index.php?option=com_phocadownload&view=category&id=2603:anpp&Itemid=132.

Sobre o assunto, não é despiciendo salientar que, dependendo do quadro fático, das cláusulas contratuais e da alegação de descumprimento, será indispensável a abertura de instrução processual incidental, nos moldes do decidido pelo Supremo Tribunal Federal na PET n. 7003/DF, em homenagem ao contraditório, à ampla defesa e à segurança jurídica.

Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves é advogado do escritório Almeida Castro Advogados, coordenador-adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) no Distrito Federal, mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade Brasília (UnB), cursa MBA em Compliance e Governança pela UnB, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e bacharel em Direito pela UnB.

 é sócio do escritório Almeida Castro Advogados, conselheiro seccional e presidente da Comissão de Direito de Defesa da OAB/DF, Mestre em Direito e professor de Direito Penal do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialista em Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra/PT e em Direito Penal e Compliance pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu, além de Secretário Geral do Instituto de Garantias Penais (IGP-DF) e bacharel em Direito pela UnB.