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A “descoberta” da mediação no Brasil

O último relatório estatístico anual — “Justiça em Números 2019″ [1] — publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que foi o 15º da série, inovou ao englobar a fase pré-processual no índice de conciliação total. O CNJ, desde que implantou o Movimento pela Conciliação, em agosto de 2006: I) vem proporcionando as Semanas pela Conciliação, com o intuito de estimular acordos, nas fases pré-processual e processual; II) criou os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs), que se tornaram Unidades Judiciárias por força da Resolução CNJ 219/2016, e os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemecs  — Resolução CNJ 125/2010); III) fortificou o Programa Resolve, que incentiva a autocomposição de litígios — conciliação e mediação — em questões previdenciárias, bancárias, habitacionais, consumeristas e trabalhistas, além de execuções fiscais; e IV) estabeleceu o índice de conciliação (percentual de sentenças e decisões resolvidas por homologação de acordo em relação ao total de sentenças e decisões terminativas exaradas).

Os Cejuscs alcançaram o número de 1.088 nas Justiças Estaduais ao final do ano de 2018.

Naquele ano, o percentual de sentenças homologatórias de acordo, em comparação com o total de sentenças e decisões terminativas exaradas, foi de 11,5%, índice esse em queda se comparado com o ano anterior. No mesmo ano, as sentenças homologatórias de acordo, na fase de execução, corresponderam a 6%, enquanto na de conhecimento, a 16,7%.

Se o índice de conciliação total levar em conta os procedimentos pré-processuais e as classes processuais como inquéritos, reclamações pré-processuais, termos circunstanciados, cartas precatórias, precatórios, requisições de pequeno valor, etc., o índice de conciliação sobe de 11,5% para 12,3% [2].

Em matéria de solução de litígios, o Brasil, ao independizar-se politicamente de Portugal, herdou a tradição lusa de solução judiciária. Realizada por juízes em nome do Estado, tal espécie de solução era, praticamente, a única que seria ensinada, por largo tempo, nas escolas de direito do país, que seguiam a tradição conimbricense. Tardiamente, por ocasião do quarto ordenamento processual [3] — o Código de Processo Civil de 1973 (artigos 447 e 448) — seria instituída a conciliação prévia obrigatória (hoje regida pelos artigos 165 a 175 do CPC/2015). Em 1996, acolheríamos a arbitragem pela Lei 9.307 (que, profundamente alterada pela Lei 13.129/2015, continua regendo o instituto). Unicamente por meio da Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, aderiríamos à mediação [4], que continua sendo regida por essa lei.

Os três institutos — arbitragem, conciliação e mediação — possuem duas características em comum: não fazer parte da jurisdição estatal e contar com a participação de um terceiro. Na arbitragem o terceiro é escolhido pelas partes, a quem compete exarar uma decisão (heterocomposição). Na conciliação, o terceiro aproxima os litigantes, cabendo-lhe sugerir decisões (autocomposição). Na mediação, auxilia os contendores a chegar a um acordo, sem apontar solução (autocomposição). Portanto, a diferença entre conciliação e mediação é somente de grau [5].

A Lei 13.140/2015 (Lei da Mediação) é aplicável à solução de conflitos, tanto no âmbito particular quanto na esfera da administração pública; desde que referentes a direitos disponíveis ou a direitos indisponíveis que admitam transação (artigos 1º, caput, e artigo 3º, caput). Esse diploma legal conceitua mediação como sendo a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia” (artigo 1º, parágrafo único).

Logo no início da lei, são explicitados os princípios que devem presidir a mediação e, por conseguinte, servir de guia para a interpretação de todo o seu articulado: imparcialidade do mediador, isonomia entre as partes, oralidade, informalidade, autonomia da vontade das partes, busca do consenso, confidencialidade [6] e boa-fé (artigo 2º, caput).

O mediador será designado pelo tribunal ou escolhido pelas partes (artigo 4º, caput), devendo conduzir o procedimento na busca do entendimento, do consenso e facilitando a resolução do conflito (artigo 4º, § 1º), sendo a ele aplicáveis as hipóteses legais de impedimento e suspeição do juiz (artigo 5º, caput), além de ser equiparado a servidor público com relação aos efeitos da legislação penal (artigo 8º).

A Lei versa sobre mediação judicial e extrajudicial, sendo disposições comuns ao procedimento de mediação: I) poderá haver mais de um mediador (artigo 15); II) em havendo processo arbitral ou judicial em curso, deverá ser requerido ao juiz ou ao árbitro a suspensão do processo pelo prazo suficiente, sendo irrecorrível tal decisão (artigo 16, § 1º); III) mesmo suspenso o processo, o juiz ou o árbitro poderá conceder medidas de urgência (artigo 16, § 2º); IV) ficará suspenso o prazo prescricional durante o transcurso do procedimento de mediação (artigo 17, parágrafo único); V) a primeira reunião da mediação marca a data de sua instituição (artigo 17, caput), que se encerra com a lavratura do termo final (artigo 20, caput); e VI) na hipótese de acordo, o termo final possui a força de título executivo extrajudicial e, após homologação judicial, de título executivo judicial (artigo 20, parágrafo único).

As principais regras sobre a mediação extrajudicial encontram-se a seguir. Os únicos pressupostos para atuar como mediador extrajudicial são possuir capacidade e deter a confiança das partes (artigo 9º). As partes poderão ser assistidas por advogados ou defensores públicos (artigo 10º). O convite à outra parte para iniciar procedimento de mediação, feito por qualquer meio de comunicação, conterá objetivo da negociação, data e local da primeira reunião (artigo 21), convite esse que será tido por rejeitado se não houver resposta até o trigésimo dia do recebimento (artigo 21, parágrafo único). Se a parte convidada não comparecer à primeira reunião de mediação e, posteriormente, vier a vencer procedimento arbitral ou judicial com escopo idêntico ao da mediação proposta, deverá pagar 50% de custas e honorários sucumbenciais (artigo 22, § 2º, inciso IV). A previsão contratual deverá conter os itens seguintes: prazo mínimo e máximo para a realização da primeira reunião de mediação, local da primeira reunião, critérios de escolha do mediador e penalidade para o não comparecimento da parte convidada à primeira reunião (artigo 22 e incisos de I a IV). Entretanto, essa exigência poderá ser substituída pela adesão a regulamento, publicado, de instituição idônea prestadora de serviços de mediação. (artigo 22, § 1º).

Regras mais relevantes sobre mediação judicial: o mediador judicial deverá ser graduado, ao menos há dois anos, por instituição de ensino superior e capacitada por escola de formação de mediadores, ambas reconhecidas, além de cumprir requisitos do CNJ e do Ministério da Justiça (artigo 11); os tribunais regulamentarão a inscrição e o desligamento de seus mediadores, mantendo cadastro dos habilitados, assim como fixarão a respectiva remuneração, a ser paga pelas partes (artigo 12, caput e §§ 2º e 3º e artigo 13); cabe aos tribunais criar centros judiciários de solução consensual de conflitos e desenvolver programas que facilitem a autocomposição, em consonância com normas do CNJ (artigo 24 e parágrafo único); a aceitação dos mediadores pelas partes não é pressuposto (artigo 25); é regra geral as partes serem assistidas por advogados ou defensores públicos (artigo 26); sendo apta a petição inicial, o juiz designará audiência de mediação (artigo 27), devendo o procedimento ser concluído, em princípio, em até 60 dias da primeira audiência (artigo 28); em havendo acordo, o juiz determinará o arquivamento do processo e, a requerimento das partes, homologará por sentença o acordo, bem como o termo final da mediação e arquivará o processo (artigo 28, parágrafo único); e se antes da citação do réu o conflito for resolvido por mediação, não serão devidas custas (artigo 29).

O capítulo II da lei (artigos 32/40) refere-se detalhadamente à autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público. Abre-se a possibilidade para que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios criem câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos junto aos seus órgãos da Advocacia Pública,  desde que competentes para: dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública; avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, em controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público; e promover celebração de termo de ajustamento de conduta (artigo 32 e incisos). A prescrição ficará suspensa caso instaurado procedimento administrativo (artigo 34). Poderão ser objeto de transação por adesão as controvérsias jurídicas que envolvam a Administração Pública Federal direta, suas autarquias e fundações, uma vez cumpridos certos pressupostos (artigo 35 e incisos). 

Com claro intuito de dar maior abrangência à lei, ressaltem-se as regras inseridas na Disposições Finais. No que couber, ela é aplicável nas áreas de competência de outras formas de resolução conflitual (mediações comunitárias, escolares e em serventias judiciais), muito embora não o seja no âmbito trabalhista (artigo 42 e parágrafo único). Havendo acordo das partes, poderá ser feita mediação por meios que permitam transação à distância (internet, etc.). facultando-se aos domiciliados no exterior submeterem-se à mediação nos termos dessa lei (artigo 46 e parágrafo único).

A contar da entrada em vigor da Lei 13.140/2015, a mediação tem-se revelado bastante hábil como meio de solução não judicial de controvérsias. O fato de agora ser dotada de quadro legislativo descomplicado, adaptável e ao mesmo tempo abrangente, fez com que a mediação despontasse. Se o Judiciário já se encontrava assoberbado, mais o estará em razão da desarrumação que a pandemia vem causando no mundo jurídico. Urge ser a mediação mais conhecida e utilizada, tanto no setor privado, quanto no público. Por essa razão, o Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) oferecerá, gratuitamente, online, palestra do especialista professor Rubens Tilkian, no dia 13 de maio, das 8h30 às 10h. Ele exporá as dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário e os benefícios proporcionados pela mediação às empresas e às pessoas físicas. Abordará, em detalhe, as diferenças entre mediação judicial e privada; em quais áreas a mediação é cabível; e os caminhos possíveis para iniciá-la e levá-la a bom termo. Ao final, apresentará case de sucesso, além de reflexões sobre o futuro do instituto no Brasil. Inscrições gratuitas: cursos@cedes.org.br.  

Com toda a certeza, a mediação fará com que o índice anual de conciliação apresentado pela “Justiça em Números”, atualmente em 11,5%, avançará de modo célere. Tanto questões de baixo valor econômico entre pessoas físicas quanto milhares de ações repetitivas entre pessoas jurídicas de grande porte, prestadoras de serviço, e pessoas físicas serão resolvidas.

 

[6] A Seção IV do Capítulo I da Lei intitula-se “Da Confidencialidade e suas Exceções”, possuindo dois artigos.

 é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

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Caio Malpighi: Arbitragem tributária vai representar avanço (página 1 de 3)

Com a conversão da Medida Provisória (MP) nº 899 de 2019 em Lei Federal nº 13.988 de 2020, que instituiu a transação tributária (forma de autocomposição da lide tributária entre fisco e contribuinte), muito se tem discutido sobre as formas alternativas de resolução de conflitos em matéria fiscal.

Com certeza, a instituição da transação tributária é um avanço para o Brasil, e nos projeta a visão de que outras formas alternativas de resolução de conflito também possam ser implantadas no ordenamento jurídico brasileiro, tal qual a arbitragem tributária, que atualmente é objeto de Projeto de Lei nº 4.257 de 2019, em trâmite no Congresso Nacional, por proposta do senador Antonio Anastasia (PSDB-MG).

Com efeito, a arbitragem é uma forma de heterocomposição de conflito havido entre partes, que se dá por meio de resolução por terceira pessoa, denominada de árbitro, diante de compromisso prévio firmado entre as partes litigantes de se submeterem ao processo arbitral [1].

Apesar de haver a compatibilidade para a utilização da arbitragem dentro do ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição Política do Império do Brasil de 1824, essa modalidade de resolução alternativa de conflitos ficou em desuso por um longo tempo no país até que, em 1996, por fatores decorrentes da globalização, foi instituída a sua possibilidade de forma expressa na legislação pátria.

Atualmente, o instituto encontra tratamento legal em nosso ordenamento jurídico, principalmente por meio da Lei nº 9.307 de 1996 (alterada mais recentemente pelo Código de Processo Civil de 2015).

Desde então, conforme narra Roberto Pasqualin, a arbitragem que, antes “se limitava a controvérsias entre particulares e empresas privadas (…) se estendeu para as empresas estatais e, também, para órgãos da Administração Pública direta (…) já que a eficácia da arbitragem mostrou às procuradorias da União, estados e municípios que essa ferramenta soluciona conflitos nos negócios e estabelece um relacionamento fluído entre o setor privado e a administração pública” [2].

Ocorre que, apesar da eficiência com que esse instituto vem desempenhando na resolução de litígios, é certo que, no Brasil, a tutela arbitral ainda não se faz uma opção processual ampla para tratar de litígios envolvendo matéria tributária entre os contribuintes e o Fisco.

Isso porque, ordinariamente, no Brasil, questões litigiosas tributárias são tratadas:

Por meio de processo administrativo tributário, no qual o lançamento tributário (que é ato administrativo vinculado) é submetido ao devido processo legal perante tribunais ou conselhos administrativos [3], que exercem função jurisdicional atípica dentro do Poder Executivo, para proferir juízos de realidade e de valor atinentes ao controle de legalidade do crédito tributário constituído;

II Por meio do processo judicial, no qual o Poder Judiciário exerce em plenitude a sua função jurisdicional típica (o seu jurisdicere) para solucionar litígios que envolvam relações jurídico-tributárias.

Ou seja, via de regra, atualmente a lide tributária no Brasil está adstrita a um sistema de jurisdição una [4], pela qual, no âmbito administrativo, discute-se o controle de legalidade do ato administrativo do lançamento tributário, sem prejuízo de, no âmbito judicial, o contribuinte buscar a tutela jurisdicional para a solução definitiva da questão (em homenagem ao princípio da inafastabilidade do poder judiciário artigo 5º, XXXV, CF).

Ainda há que se mencionar também a já citada hipótese de transação tributária, recentemente instituída no ordenamento jurídico brasileiro, que possibilita que Fisco e contribuinte transacionem (isto é, cheguem a um comum acordo) quanto à tributação objeto da lide.

Aparentemente, portanto, dentro do sistema acima apontado, ainda não seria possível a hipótese de a lide tributária ser tutelada mediante processo arbitral.

Ocorre que, excepcionalmente, a existência de alguns precedentes interessantes nos revelam a possibilidade legal de, no Brasil, haver a resolução de litígios tributários por meio da jurisdição arbitral (isto é, por meio da função jurisdicional, atribuída por lei à órgão arbitral), cuja resolução não poderá ser questionada em juízo pelas partes.

Como mencionado no início deste texto, dado os benefícios da arbitragem, já existem no ordenamento jurídico brasileiro hipóteses legais nas quais a administração pública se vale da arbitragem para a resolução de conflitos havidos entre seus órgãos.

Nesse particular, cabe mencionar existência da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF), instituída pelo Ato Regimental AGU nº 5 de 2007 (portanto, órgão vinculado à Advocacia Geral da União AGU), exatamente no intuito de prevenir e reduzir litígios judiciais envolvendo União Federal, autarquias federais, fundações, sociedades de economia mista, empresas públicas, etc [5],

Trata-se, em suma, de órgão composto por membros da AGU e que se destina tanto à conciliação, quanto (caso infrutífera essa primeira opção) à resolução arbitral de litígios, por meio da emissão de pareceres [6]. Neste sentido, Patrícia Bertolo, que é advogada da União e conciliadora da CCAF, explica que “os casos eventualmente não conciliados são, conforme a natureza da demanda, solucionados por meio de pareceres da Consultoria Geral da União, aprovados pelo Advogado-Geral da União (arbitragem)” [7].

Vale mencionar que, com base nos artigos 39 a 41 da Lei Complementar nº 73 de 1993, em resumo, os pareceres da AGU (incluindo, desta feita, aqueles proferidos no âmbito da CCAF) vinculam todos os órgãos da Administração Pública Federal.

 é advogado tributarista no escritório Ayres Ribeiro Advogados e monitor e pós-graduando no Curso de Especialização em Direito Tributário Nacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).