Categorias
Notícias

Para advocacia, resolução do CNJ cria mais dúvidas do que soluções

A Ordem dos Advogados do Brasil vai precisar entrar com embargos de declaração contra a Resolução 318 publicada nesta quinta-feira (7/5) pelo Conselho Nacional de Justiça. Ao tentar regular a questão dos prazos processuais entre processos físicos e virtuais e diante da possibilidade de lockdown, a norma mais confunde do que resolve.

Resolução do CNJ criou dúvidas quanto aos prazos, segundo advocacia
CNJ

É o que o conselheiro federal da OAB, Ary Raghiant, definiu como “pandemia processual” durante seminário virtual realizado nesta quinta-feira pela TV ConJur. “Quando isso se afunilar e processos chegarem, a contagem de prazo vai ser problema clássico e vamos ter que ir no superior e fazer juntadas de certidões ou de informações particularizadas”, apontou.

Em suma, a resolução confirma que os prazos processuais para processos virtuais foram retomados na segunda (4/5), mas os físicos continuam suspensos. Em estados com decretos de lockdown, todos os prazos podem ser suspensos. Isso também pode ocorrer em locais em que a situação esteja tão complicada que impossibilite trabalho forense regular. Neste caso, o Tribunal de Justiça deve fundamentar o pedido ao CNJ.

Ary Raghiant cita como exemplo o estado do Pará, onde dez cidades estão sob lockdown. “Nas dez está suspenso prazo e nas demais não?”, indaga. Questiona, também, como fica a situação em relação à Justiça Federal. Se em São Paulo a situação evoluir para um lockdown e os prazos forem suspensos, como fica a situação do Mato Grosso, estado também abrangido pelo TRF-3?

“Veja que temos mais dúvidas do que soluções. A Resolução 318, de certa forma, não deixa claro inclusive o que é unidade da federação. Temos decretos feitos por municípios. Precisamos ver se ela contempla também. As pessoas vivem nas cidades, não no estado ou União. Vamos ter que fazer embargos de declaração e ver como resolver esses problemas”, afirmou.

Controvérsia

Quase ao mesmo tempo em que a Resolução 318 era divulgada, o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) protocolava um ofício pedindo ao CNJ a suspensão dos prazos processuais em todo o país até o dia 31 de maio, com posterior reavaliação sobre a possibilidade de estender ainda mais a medida.

O Cesa pedia que o CNJ levasse em consideração o fato de que, em sua maioria, os advogados dependem do contato direto com pessoas que “obrigatoriamente têm que atender o distanciamento social” e de informações ou documentos que estão em poder de terceiros (empresas ou órgãos públicos) que estão, muitos deles, com as atividades suspensas, o que torna impossível o cumprimento dos prazos.

São queixas parecidas com as que já tinham sido levantadas pela ConJur em relação à retomada dos prazos na segunda-feira (4/5). O presidente da seccional de São Paulo da OAB, Caio Augusto Silva dos Santos, por exemplo, destacou que poderia haver dificuldade de cumprir os prazos quando fosse necessário cumprir diligências que não poderão ser feitas devido ao isolamento social. Por exemplo, quando uma empresa precisar ter acesso a documentos que estão em sua sede para se defender devidamente.

Já o presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, Renato José Cury, declarou que a retomada dos prazos funciona para escritórios com estrutura, mas não para advogados que dependem de entidades para exercer a profissão.

A queixa foi ecoada no ofício do Cesa, que também pedia que o CNJ levasse em consideração o fato de que “parte da advocacia depende do acesso a computadores ou a rede de internet de terceiros (salas dos advogados nos fóruns, sedes das OABs etc), o que representaria uma circulação maior de pessoas nesse momento em que se recomenda o isolamento social”.

Continuidade

Por sua vez, o conselheiro e presidente do gabinete de crise do CNJ Henrique Ávila explicou, em artigo publicado pela ConJur, que as resoluções do CNJ foram sendo editadas conforme as necessidades impostas pelo combate à epidemia.

Se a suspensão dos prazos processuais era inevitável num primeiro momento, a sua continuidade acabaria levando a um crescente represamento de ações e recursos nos tribunais. O CNJ também levou em conta que advogados, juízes e servidores também já estavam melhor adaptados ao trabalho remoto e às limitações impostas pela epidemia da Covid-19.

Assim como na suspensão dos prazos e sua posterior retomada, as resoluções do CNJ levam em consideração as alterações no cenário nacional e as especificidades das demandas judiciais, escreve Ávila.

“Essa é a hora de, mais do que nunca, todos os atores processuais atuarem na mais estrita cooperação e compreensão mútua, com empatia e solidariedade, entre juízes, advogados, membros do MP, defensores públicos, e todos os integrantes do sistema de Justiça, para que possamos superar juntos esse período de impensável anormalidade em que vivemos.”

Clique aqui para ler a resolução do CNJ

Categorias
Notícias

A “descoberta” da mediação no Brasil

O último relatório estatístico anual — “Justiça em Números 2019″ [1] — publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que foi o 15º da série, inovou ao englobar a fase pré-processual no índice de conciliação total. O CNJ, desde que implantou o Movimento pela Conciliação, em agosto de 2006: I) vem proporcionando as Semanas pela Conciliação, com o intuito de estimular acordos, nas fases pré-processual e processual; II) criou os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs), que se tornaram Unidades Judiciárias por força da Resolução CNJ 219/2016, e os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemecs  — Resolução CNJ 125/2010); III) fortificou o Programa Resolve, que incentiva a autocomposição de litígios — conciliação e mediação — em questões previdenciárias, bancárias, habitacionais, consumeristas e trabalhistas, além de execuções fiscais; e IV) estabeleceu o índice de conciliação (percentual de sentenças e decisões resolvidas por homologação de acordo em relação ao total de sentenças e decisões terminativas exaradas).

Os Cejuscs alcançaram o número de 1.088 nas Justiças Estaduais ao final do ano de 2018.

Naquele ano, o percentual de sentenças homologatórias de acordo, em comparação com o total de sentenças e decisões terminativas exaradas, foi de 11,5%, índice esse em queda se comparado com o ano anterior. No mesmo ano, as sentenças homologatórias de acordo, na fase de execução, corresponderam a 6%, enquanto na de conhecimento, a 16,7%.

Se o índice de conciliação total levar em conta os procedimentos pré-processuais e as classes processuais como inquéritos, reclamações pré-processuais, termos circunstanciados, cartas precatórias, precatórios, requisições de pequeno valor, etc., o índice de conciliação sobe de 11,5% para 12,3% [2].

Em matéria de solução de litígios, o Brasil, ao independizar-se politicamente de Portugal, herdou a tradição lusa de solução judiciária. Realizada por juízes em nome do Estado, tal espécie de solução era, praticamente, a única que seria ensinada, por largo tempo, nas escolas de direito do país, que seguiam a tradição conimbricense. Tardiamente, por ocasião do quarto ordenamento processual [3] — o Código de Processo Civil de 1973 (artigos 447 e 448) — seria instituída a conciliação prévia obrigatória (hoje regida pelos artigos 165 a 175 do CPC/2015). Em 1996, acolheríamos a arbitragem pela Lei 9.307 (que, profundamente alterada pela Lei 13.129/2015, continua regendo o instituto). Unicamente por meio da Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, aderiríamos à mediação [4], que continua sendo regida por essa lei.

Os três institutos — arbitragem, conciliação e mediação — possuem duas características em comum: não fazer parte da jurisdição estatal e contar com a participação de um terceiro. Na arbitragem o terceiro é escolhido pelas partes, a quem compete exarar uma decisão (heterocomposição). Na conciliação, o terceiro aproxima os litigantes, cabendo-lhe sugerir decisões (autocomposição). Na mediação, auxilia os contendores a chegar a um acordo, sem apontar solução (autocomposição). Portanto, a diferença entre conciliação e mediação é somente de grau [5].

A Lei 13.140/2015 (Lei da Mediação) é aplicável à solução de conflitos, tanto no âmbito particular quanto na esfera da administração pública; desde que referentes a direitos disponíveis ou a direitos indisponíveis que admitam transação (artigos 1º, caput, e artigo 3º, caput). Esse diploma legal conceitua mediação como sendo a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia” (artigo 1º, parágrafo único).

Logo no início da lei, são explicitados os princípios que devem presidir a mediação e, por conseguinte, servir de guia para a interpretação de todo o seu articulado: imparcialidade do mediador, isonomia entre as partes, oralidade, informalidade, autonomia da vontade das partes, busca do consenso, confidencialidade [6] e boa-fé (artigo 2º, caput).

O mediador será designado pelo tribunal ou escolhido pelas partes (artigo 4º, caput), devendo conduzir o procedimento na busca do entendimento, do consenso e facilitando a resolução do conflito (artigo 4º, § 1º), sendo a ele aplicáveis as hipóteses legais de impedimento e suspeição do juiz (artigo 5º, caput), além de ser equiparado a servidor público com relação aos efeitos da legislação penal (artigo 8º).

A Lei versa sobre mediação judicial e extrajudicial, sendo disposições comuns ao procedimento de mediação: I) poderá haver mais de um mediador (artigo 15); II) em havendo processo arbitral ou judicial em curso, deverá ser requerido ao juiz ou ao árbitro a suspensão do processo pelo prazo suficiente, sendo irrecorrível tal decisão (artigo 16, § 1º); III) mesmo suspenso o processo, o juiz ou o árbitro poderá conceder medidas de urgência (artigo 16, § 2º); IV) ficará suspenso o prazo prescricional durante o transcurso do procedimento de mediação (artigo 17, parágrafo único); V) a primeira reunião da mediação marca a data de sua instituição (artigo 17, caput), que se encerra com a lavratura do termo final (artigo 20, caput); e VI) na hipótese de acordo, o termo final possui a força de título executivo extrajudicial e, após homologação judicial, de título executivo judicial (artigo 20, parágrafo único).

As principais regras sobre a mediação extrajudicial encontram-se a seguir. Os únicos pressupostos para atuar como mediador extrajudicial são possuir capacidade e deter a confiança das partes (artigo 9º). As partes poderão ser assistidas por advogados ou defensores públicos (artigo 10º). O convite à outra parte para iniciar procedimento de mediação, feito por qualquer meio de comunicação, conterá objetivo da negociação, data e local da primeira reunião (artigo 21), convite esse que será tido por rejeitado se não houver resposta até o trigésimo dia do recebimento (artigo 21, parágrafo único). Se a parte convidada não comparecer à primeira reunião de mediação e, posteriormente, vier a vencer procedimento arbitral ou judicial com escopo idêntico ao da mediação proposta, deverá pagar 50% de custas e honorários sucumbenciais (artigo 22, § 2º, inciso IV). A previsão contratual deverá conter os itens seguintes: prazo mínimo e máximo para a realização da primeira reunião de mediação, local da primeira reunião, critérios de escolha do mediador e penalidade para o não comparecimento da parte convidada à primeira reunião (artigo 22 e incisos de I a IV). Entretanto, essa exigência poderá ser substituída pela adesão a regulamento, publicado, de instituição idônea prestadora de serviços de mediação. (artigo 22, § 1º).

Regras mais relevantes sobre mediação judicial: o mediador judicial deverá ser graduado, ao menos há dois anos, por instituição de ensino superior e capacitada por escola de formação de mediadores, ambas reconhecidas, além de cumprir requisitos do CNJ e do Ministério da Justiça (artigo 11); os tribunais regulamentarão a inscrição e o desligamento de seus mediadores, mantendo cadastro dos habilitados, assim como fixarão a respectiva remuneração, a ser paga pelas partes (artigo 12, caput e §§ 2º e 3º e artigo 13); cabe aos tribunais criar centros judiciários de solução consensual de conflitos e desenvolver programas que facilitem a autocomposição, em consonância com normas do CNJ (artigo 24 e parágrafo único); a aceitação dos mediadores pelas partes não é pressuposto (artigo 25); é regra geral as partes serem assistidas por advogados ou defensores públicos (artigo 26); sendo apta a petição inicial, o juiz designará audiência de mediação (artigo 27), devendo o procedimento ser concluído, em princípio, em até 60 dias da primeira audiência (artigo 28); em havendo acordo, o juiz determinará o arquivamento do processo e, a requerimento das partes, homologará por sentença o acordo, bem como o termo final da mediação e arquivará o processo (artigo 28, parágrafo único); e se antes da citação do réu o conflito for resolvido por mediação, não serão devidas custas (artigo 29).

O capítulo II da lei (artigos 32/40) refere-se detalhadamente à autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público. Abre-se a possibilidade para que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios criem câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos junto aos seus órgãos da Advocacia Pública,  desde que competentes para: dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública; avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, em controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público; e promover celebração de termo de ajustamento de conduta (artigo 32 e incisos). A prescrição ficará suspensa caso instaurado procedimento administrativo (artigo 34). Poderão ser objeto de transação por adesão as controvérsias jurídicas que envolvam a Administração Pública Federal direta, suas autarquias e fundações, uma vez cumpridos certos pressupostos (artigo 35 e incisos). 

Com claro intuito de dar maior abrangência à lei, ressaltem-se as regras inseridas na Disposições Finais. No que couber, ela é aplicável nas áreas de competência de outras formas de resolução conflitual (mediações comunitárias, escolares e em serventias judiciais), muito embora não o seja no âmbito trabalhista (artigo 42 e parágrafo único). Havendo acordo das partes, poderá ser feita mediação por meios que permitam transação à distância (internet, etc.). facultando-se aos domiciliados no exterior submeterem-se à mediação nos termos dessa lei (artigo 46 e parágrafo único).

A contar da entrada em vigor da Lei 13.140/2015, a mediação tem-se revelado bastante hábil como meio de solução não judicial de controvérsias. O fato de agora ser dotada de quadro legislativo descomplicado, adaptável e ao mesmo tempo abrangente, fez com que a mediação despontasse. Se o Judiciário já se encontrava assoberbado, mais o estará em razão da desarrumação que a pandemia vem causando no mundo jurídico. Urge ser a mediação mais conhecida e utilizada, tanto no setor privado, quanto no público. Por essa razão, o Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) oferecerá, gratuitamente, online, palestra do especialista professor Rubens Tilkian, no dia 13 de maio, das 8h30 às 10h. Ele exporá as dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário e os benefícios proporcionados pela mediação às empresas e às pessoas físicas. Abordará, em detalhe, as diferenças entre mediação judicial e privada; em quais áreas a mediação é cabível; e os caminhos possíveis para iniciá-la e levá-la a bom termo. Ao final, apresentará case de sucesso, além de reflexões sobre o futuro do instituto no Brasil. Inscrições gratuitas: cursos@cedes.org.br.  

Com toda a certeza, a mediação fará com que o índice anual de conciliação apresentado pela “Justiça em Números”, atualmente em 11,5%, avançará de modo célere. Tanto questões de baixo valor econômico entre pessoas físicas quanto milhares de ações repetitivas entre pessoas jurídicas de grande porte, prestadoras de serviço, e pessoas físicas serão resolvidas.

 

[6] A Seção IV do Capítulo I da Lei intitula-se “Da Confidencialidade e suas Exceções”, possuindo dois artigos.

 é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

Categorias
Notícias

Kelly Durazzo:Decisões colocam em risco alienação fiduciária

Com o advento da Lei 9.514/97, foi criado o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) e a alienação fiduciária em garantia de bens imóveis. Essa modalidade de garantia existe quando o devedor, com o escopo de garantia, transfere ao credor a propriedade resolúvel de coisa imóvel. A propriedade resolúvel é aquela condicionada ao pagamento do financiamento imobiliário, ou seja, se o devedor ficar inadimplente a propriedade resolúvel será consolidada em nome do credor fiduciário, após execução extrajudicial do procedimento previsto no artigo 26 e seguintes da Lei 9.514/97.

A alienação fiduciária trouxe celeridade à execução da garantia, eis que todo o procedimento para a recuperação do crédito se resolve por via extrajudicial (registro de imóveis), cabendo ao oficial do Registo de Imóveis a intimação do devedor para a constituição em mora, averbação do leilão realizado e demais atos pertinentes à execução da garantia previstos na citada lei.

Ainda nos termos da lei, a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel passou a ser permitida para financiamentos em geral, não sendo privativo do SFI e do SFH (Sistema Financeiro Habitacional) e instrumentalizado por meio de escritura de compra e venda de bem imóvel, com pacto de alienação fiduciária, firmado por instrumento público ou particular, nos termos do artigo 38 da referida lei. Referida escritura estabelece a relação entre o vendedor do imóvel, o comprador e o agente financeiro que financia o saldo do preço, seja ele privado, do SFI ou do SFH.

A celeridade do procedimento de garantia acima e sua validação pelo Judiciário fizeram com que incorporadoras e loteadoras passassem a utilizar referido instituto, cumulando a função de vendedoras e agentes financeiras, pois financiavam diretamente aos seus clientes, praticamente abandonando a hipoteca como modalidade de garantia, eis que esta se mostrava ineficiente havia muito tempo, principalmente pela morosidade na sua execução.  

Consequência disso é que opera-se a plena transferência da propriedade do imóvel ao comprador com o “registro” da escritura junto ao Cartório de Registro de Imóveis, e, ato subsequente, o devedor transfere a propriedade resolúvel do imóvel em favor do credor fiduciário/agente financeiro, que, no caso em análise, trata-se do loteador.  

O problema é que o Poder Judiciário vem dando tratamento judicial equivocado à estrutura jurídica acima apontada, já que trata as escrituras particulares com efeito de escritura pública (artigo 38 da Lei 9.514/97), indevidamente, como se fossem contratos de compromisso de compra e venda de imóveis, decretando sua rescisão judicial, ignorando que trata-se de ato jurídico perfeito e acabado, passível de nulidade somente se constatado vício jurídico.

Exemplo disso são os julgados abaixo: 

“(…) A mera existência de condição resolutiva em contrato de compra e venda com Alienação Fiduciária em garantia não impede que o adquirente pleiteie a rescisão do contrato com base no artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor (…)”. h.n.. Voto nº 8439. Apelação Cível nº 1010838-30.2017.8.26.0344 Comarca de Marília Apelante: Couto Rosa Empreendimentos Imobiliários SPE Ltda e Outro Apelado: Félix Otávio Bachega.

(…) A aquisição do imóvel mediante contrato com cláusula de alienação fiduciária em garantia não afasta a incidência do Código de Defesa do Consumidor, sendo possível que o comprador rescinda o contrato, desde que antes da consolidação da propriedade em favor da credora fiduciária. (…) Cabe apontar, ainda, que o procedimento previsto nos artigos 26 e 27 da Lei 6.514/97, se restringe à hipótese de iniciativa da credora fiduciária, diante do vencimento e não pagamento da dívida, de consolidar a propriedade do bem para, posteriormente, promover leilão para sua alienação. (…) Portanto, inexiste óbice à pretensão do consumidor, ainda que inadimplente, de rescindir o negócio por iniciativa própria, com a consequente devolução dos valores pagos”. g.n  Apelação Cível nº 1064135-32.2017.8.26.0576 Comarca de São Jose do Rio Preto Apelante: SPE Terni Nature I Rio Preto Empreendimentos Imobiliários Ltda  Apelada: Fernanda Cristina Gaspar Lemes.

Vários problemas decorrem da rescisão judicial da escritura particular com força de escritura pública, cujos formatos são idênticos aqueles dos contratos de financiamento imobiliário da Caixa e de outras instituições financeiras que são contemplados pelo oficial do Registro de Imóveis, por terem plena validade e não conterem quaisquer vícios.

Se o mesmo julgamento equivocado ocorresse para anular os contratos particulares de financiamento da Caixa e dos demais agentes financeiros, ninguém mais conseguiria financiar sua casa, pois as instituições financeiras deixariam de operar por total afronta à Lei 9.514/97, a qual dá base para as operações do mercado de capitais, a seguir descritas.

Do mercado de capitais
Com base nas parcelas do preço do imóvel contratado no financiamento imobiliário celebrado diretamente entre a loteadora (vendedora) e seu cliente, ocorre a originação e emissão de CCI (Cédula de Crédito Imobiliário) e CRI (Certificado de Recebíveis Imobiliários), colocados no mercado de capitais nos termos do artigo 6º e seguintes da Lei 9.514/97.

Trata-se de uma sequência de negócios jurídicos validados com base nos contratos de financiamento firmados para a venda de lotes, por exemplo, refletindo operações que movimentam o mercado de capitais e imobiliário, podendo denominá-las “operações estruturadas”.

O que se alerta neste arrazoado é que o sistema de operações estruturadas está em iminente risco com atuação discricionária e desenfreada do Poder Judiciário, que vem rescindindo tais escrituras, que não são passíveis de rescisão, salvo se apresentasse  algum vício jurídico.

A Lei 9514/97 tem como um dos seus pilares captar recursos financeiros para estimular o crescimento dos negócios imobiliários. Não se mostra aceitável alguns julgadores tratarem instrumentos particulares, que se assemelham aos Contratos de Financiamento do SFH/SFI emitidos pelas instituições financeiras (a lei equipara ambos a escritura pública), como se fossem meros contratos de promessa de compra e venda.

Quando o Poder Judiciário aplica a esses negócios jurídicos a legislação consumerista, ou do próprio Código Civil, afastando a incidência das normas especiais da Lei nº 9.514 e da Lei nº 10.941, decretando rescisão judicial da escritura de venda e compra (do instrumento que tem a mesma força de escritura pública), isso também afeta a garantia acessória ao contrato principal, ou seja, a alienação fiduciária garantia real constituída não só garantidora do pagamento do preço do imóvel, como também da C.C.I emitida.

Ou seja, a intervenção do Poder Judiciário na equação econômico-financeira da operação acima, gera um ‘efeito cascata” devastador, violando a garantia da imutabilidade do ato jurídico perfeito posta no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

Certo é que o Poder Judiciário deveria compreender a cadeia de negócios originados com o financiamento imobiliário garantido por alienação fiduciária, gerando um equilíbrio de sua atuação com a atividade econômica de empreender no Brasil, em respeito à Lei 9.514/97, sem trazer prejuízo e instabilidade ao negócio jurídico aqui tratado.

Concluindo, o mercado de capitais que fomenta o mercado imobiliário com suas operações estruturadas está em risco de ser prejudicado a ponto de afastar investimentos no país, pois o abalo da segurança jurídica desse tipo de transação inibirá a captação de recursos financeiros, inclusive do exterior, o que certamente reverterá em maiores taxas de juros para qualquer tipo de operação lastreada em C.C.I ou similar, o que certamente, de forma indireta, refletirá negativamente no bolso do comprador de imóvel.  

 é advogada especializada em Direito Imobiliário, membro do Conselho Jurídico da Aelo (Associação das Empresas de Loteamento e Desenvolvimento Urbano) e da Comissão de Loteamento da OAB-SP, diretora estadual em São Paulo da CRF (Comissão de Regularização Fundiária) e pós-graduada em Direito Contratual pela PUC-SP e Direito Empresarial Imobiliário.