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Tradição da Suprema Corte dos EUA é quebrada pela Covid-19

A gravíssima crise mundial ocasionada pelo coronavírus tem propiciado, de forma abrupta e acentuada, inusitada mudança de hábitos, quebra de paradigmas e rearranjo social.

Até mesmo nos domínios do Poder Judiciário — o mais conservador dentre os poderes constituídos — tem sido evidente a acomodação às medidas de segurança decorrentes do necessário isolamento social.

No Brasil, as autoridades encarregadas de administrar a justiça procurando, de um modo geral, estabelecer estratégias para que não houvesse estagnação da prestação jurisdicional, sobretudo em situações mais urgentes, responderam rapidamente, ao estabelecerem, além de outras providências, nova rotina de funcionamento do expediente forense e suspensão racional dos prazos processuais.

Ademais, a tradicional sistemática dos julgamentos foi igualmente alterada, passando-se a dar ênfase aos julgamentos virtuais, como, por exemplo, a experiência inédita do Superior Tribunal de Justiça, cuja primeira sessão virtual, aberta ao público, ocorreu no dia 28 de abril, por iniciativa da 3ª Turma, atualmente presidida pelo ministro Moura Ribeiro.

Toda essa reconfiguração do tradicional modelo de julgamentos, em brevíssimo lapso temporal, está a demonstrar como as necessidades de nova dinâmica social impõem soluções que ensejam verdadeira quebra de paradigmas, fixados em passado remoto.

Essa tendência à conservação do costume forense predomina igualmente na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, que detém competência para julgar, em último grau, questões relevantes de interpretação e aplicação da constituição e de lei federal infra-constitucional.

Desde a sua criação, em 1789, os oral arguments — vale dizer, a discussão final da causa – são apresentados em audiência presencial, aproximadamente 80 casos por ano, perante os nove ministros (Justices). Desse importante ato processual, além dos advogados dos respectivos litigantes, ainda participam um secretário (Clerk) e um ou dois agentes (Marshal), para preservar o decoro e a segurança do ambiente. As sessões se realizam geralmente pela manhã, da primeira segunda-feira de outubro até o final do mês de abril, às 10hs, nas segundas, terças e quartas-feiras. Cada sessão, aberta ao público, é reservada para discussão de dois processos, previamente pautados, estipulando-se uma hora para cada um. Geralmente, no período da tarde, a transcrição dos debates é disponibilizada aos advogados. E, na sexta-feira, a secretaria da Suprema Corte também coloca à disposição dos interessados os áudios dos debates ocorridos na semana.

A predominância do processo escrito na superior instância prevalece na experiência jurídica dos Estados Unidos da América. Cumpre lembrar que, no sistema judicial americano, antes do julgamento propriamente dito, após a distribuição de memoriais — briefs — ocorre a única parte oral e pública do processo em curso nos tribunais americanos, consistente exatamente nas sessões acima referidas, para exposição dos oral arguments, nas quais os advogados das partes são convocados a apresentar suas razões perante o tribunal. Nessa ocasião, são questionados pelos ministros acerca dos pontos controvertidos da demanda, estabelecendo-se, assim, um debate efetivo sobre o tema em análise. Assim, seja na Suprema Corte ou em tribunais de apelação, após essa sessão de discussão dos casos sub judice (oral arguments), os julgamentos são realizados em sessões fechadas – as denominadas conferências – das quais participam somente os Justices. “Nelas, não são admitidos nem mesmo assessores ou garçons, sendo que, na Suprema Corte, cabe ao Associate Justice (ministro) mais moderno a pitoresca tarefa de servir água para os colegas, abrir a porta da sala de conferências e atender ao telefone…” (Carlos Bastide Horbach (Qual é a utilidade da sustentação oral nos tribunais?, Revista Conjur, 09.02.2014).

Pois bem, por força do distanciamento social também recomendado na cidade de Washington, quebrando secular tradição, a Suprema Corte norte-americana, no último dia 4 de maio de 2020, determinou que a sessão de apresentação dos oral arguments passasse a ser realizada por meio virtual remoto, restringindo-se ao áudio, disseminado ao vivo pela internet. E, de fato, a primeira sessão de debates nesse sistema inédito foi o de n. 19-46, U.S. Patent and Trademark Office v. Booking.com, cuja questão central pode ser resumida na viabilidade ou não de registro do domínio eletrônico booking.com.

Aberta a sessão às 11hs de Brasília, apregoado o processo, o Chief Justice (presidente da Suprema Corte) John Roberts passou a palavra à sub-procuradora do advogado-geral dos Estados Unidos, Erica Ross, para expor os seus argumentos pelo prazo de 3 minutos.

Representando o U. S. Patent and Trademark Offíce (análogo ao nosso INPI), a referida advogada contestou o registro da marca booking.com, uma vez que o termo “reserva” (booking) se descortina genérico e, portanto, inviável o seu respectivo domínio, como porta de acesso à web.

Após declinar seus argumentos, a advogada passou a ser sabatinada por todos os ministros integrantes da Suprema Corte, na ordem de antiguidade, do mais antigo até aquele que foi nomeado mais recentemente, a saber: John Roberts (presidente), Clarence Thomas, Ruth Bader Ginsburg, Stephen Breyer, Samuel Alito, Sonia Sotomayor, Elena Kagan, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh.

Importa salientar, nesse particular, que, igualmente, em nosso direito, a análise do requisito de distintividade do nome é fundamental para que seja viável o respectivo registro. Sua apreciação leva em conta a capacidade distintiva do conjunto em exame, inibindo a apropriação a título exclusivo de sinais genéricos, necessários, de uso comum ou carentes de distintividade em virtude da sua própria constituição. Ressalte-se que um domínio na internet, diferentemente da marca, engloba a variedade de segmentos econômicos em todos os países do mundo.

A proibição do registro de sinais não distintivos é motivada, em primeiro lugar, pela própria incapacidade de que tais elementos sejam percebidos como marca pelo consumidor. Além disso, a apropriação exclusiva de signo de uso comum, genérico, necessário, vulgar ou descritivo geraria monopólio injusto, uma vez que impediria que os demais concorrentes fizessem uso de termos ou elementos figurativos necessários para sua atuação no mercado.

Apenas à guisa de exemplo, dada a palavra à Justice Ruth Ginsburg, indagou ela à representante do demandante se tinha ciência de que o deferimento do registro do domínio booking.com implicaria o cancelamento de muitos outros que têm o vocábulo genérico booking em seu site eletrônico. Curioso é notar que a advogada tentou sair pela tangente, valendo-se de argumento secundário, que acabou ensejando nova indagação, de forma veemente, pela Justice Ginsburg.

Encerrado o debate com a arguição do último ministro Brett Kavanaugh, o presidente da sessão passou então a palavra à advogada Erica Ross, para que fizesse um resumo de seus argumentos, pelo prazo máximo de 3 minutos.

Em seguida, tudo se repetiu com a advogada Lisa Blatt, representante da requerida Booking.com.

É interessante notar que a demandada invocou em abono de sua tese, vale dizer, da possibilidade de registro booking.com, um antigo precedente da Suprema Corte americana, do final do século XIX, 128 U.S. 598 (1888), Goodyear’s India Rubber Glove Manufactoring Company v. Goodyear Rubber Company, no qual foi decidido que não havia qualquer confusão da marca, pois cada indústria produzia produtos que não se confundiam.

Indagada pelo Justice Clarence Thomas se tal precedente de fato teria a mesma eficácia no ambiente de internet, a advogada Lisa Blatt respondeu que sim, dando ainda como exemplo o domínio thecheesecakefactory.com, conhecida cadeia de restaurantes nos Estados Unidos.

Por fim, apresentada a síntese dos argumentos pela advogada da demandada, a discussão, que durou aproximadamente 1h15m, foi encerrada pelo ministro presidente, declarando apenas: “case submited”, ou seja, processo já submetido à corte e conclusos para a prolação do veredito.

Esse novo regramento emergencial, determinado pela Suprema Corte americana, bem demonstra a necessidade de as instituições, por mais tradicionais que sejam, lidarem com a miríade de exigências decorrentes da pandemia.

 é sócio do Tucci Advogados Associados; ex-Presidente da AASP; professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP; e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

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Ítalo Farias: Ativismo judicial e direito à saúde

As discussões que envolvem o ativismo judicial são tão antigas quanto o próprio surgimento da jurisdição constitucional. Alexis de Tocqueville (1805-1859), por exemplo, já relatava o imenso poder político de que dispunham os juízes norte-americanos para inclusive desaplicar uma lei que estivesse em desacordo com a Constituição [1].

Entretanto, a expressão judicial activism é de forma corrente atribuída a Arthur Schlesinger Jr. que a usou pela primeira vez em um artigo publicado em 1947. Na ocasião o autor analisava a tendência de alguns juízes (justices) da Suprema Corte em adotar posturas mais ativistas, de autocontenção ou moderadas [2].

De fato, não existe um consenso geral sobre o significado da expressão, dada a ambiguidade que isso gera, pois o ativismo é tanto conservador como liberal ou progressista. Na verdade, a postura ativista ou de autocontenção só adquire significado dentro de uma conjuntura específica que envolve determinado momento político e a atuação dos juízes.

Por outro lado, uma postura de autocontenção, ou seja, a opção dos juízes em não interferir em questões políticas, também faz parte do mesmo fenômeno e adquire um significado político quando estão em jogo assuntos que envolvem valores constitucionais.

Hoje em dia, as discussões sobre o ativismo judicial ganharam o mundo, sendo relatadas em várias jurisdições constitucionais e tomando conta dos debates políticos. Talvez um de seus momentos mais marcantes tenha acontecido nos Estados Unidos, no segundo mandato do presidente Franklin Delano Roosevelt (1933 até 1945), envolvendo o Poder Executivo e a Suprema Corte na implementação das medidas relacionadas ao New Deal.

Apesar dos sérios efeitos da crise econômica causada pela Grande Depressão, a Suprema Corte mantinha uma visão conservadora e de oposição às reformas por estar apegada a uma visão doutrinária do capitalismo liberal. O presidente utiliza nessa disputa um forte apelo ao apoio popular que havia somado, o que na reeleição de 1936 lhe confere a vitória com mais de 60% dos votos válidos. Diante disso, inicia uma proposta para alterar a composição da Suprema Corte, o que acaba por ser rechaçado inclusive por membros do seu próprio partido.

Depois dessa queda de braços resulta que em 1937 começa a haver uma certa inflexão da Suprema Corte em favor das reformas que estavam a ser implementadas por Roosevelt, como no caso West Coast v. Parrish. No referido caso, a Suprema Corte não considerou inconstitucional uma lei do Estado de Washington que estabelecia um salário mínimo, em detrimento da ideia de liberdade contratual.

Com a reabertura política que houve a partir da promulgação da Constituição de 1988, o Brasil passou a adotar os valores que integram o constitucionalismo. Entre esses valores a ideia da normatividade constitucional e, mais ainda, do seu caráter dirigente e a crença de seu poder em transformar a realidade social e política.

Impossível que o texto constitucional não influenciasse o Poder Judiciário, ainda mais em um país com grandes desigualdades sociais. O ativismo judicial em relação ao direito à saúde começa a se manifestar já nos anos 90. Até que no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 271.286/RS (RE nº 271.286-8) [3], de 12 setembro de 2000, o STF reconhece como dever do Estado distribuir gratuitamente medicamentos para tratamento do HIV a indivíduos desprovidos de recursos financeiros para arcar com seus custos.

A decisão trata o direito à saúde previsto no artigo 196 da Constituição Federal como um direito subjetivo, afastando a interpretação dos direitos sociais como meras normas de caráter programático. O tema foi sendo ampliado na jurisprudência constitucional e no RE nº 407.902/RS[4], de 26 de maio de 2009, o STF também reconheceu ao Ministério Público a legitimidade para ingressar em juízo com ação civil pública visando a compelir o Estado a fornecer medicamentos, dando ao direito à saúde caráter indisponível.

A temática ganha relevo no debate jurídico constitucional brasileiro do início do nosso século dada a inércia da Administração Pública em fazer frente às necessidades da população. Assim, o Direito Constitucional desenvolveu em relação aos direitos sociais a teoria do “mínimo existencial”, como fora revelado naquela que passou a ser muitas vezes citada ADPF 45 [5].

Essa ideia pode ser explicada como a parcela de “fundamentalidade” do direito social em análise, como o direito à saúde, que constitui o seu “núcleo essencial”, ou seja, a manifestação concreta do princípio-valor da dignidade de pessoa humana. A força dessa vinculação é tão intensa no Direito Constitucional brasileiro que os tribunais reconhecem a sua capacidade de gerar obrigações imediatas para o Poder Público.

É o que afirma a decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes na ADPF 672 [6], ao invocar fundamento já defendido na ADPF 45, de que mecanismos processuais podem ser utilizados “com o objetivo de se evitar condutas do poder público que estejam ou possam colocar em risco os preceitos fundamentais da República, entre eles, a proteção à saúde”.

Por tudo isso, não nos parece que o texto constitucional deixou a cargo de qualquer gestor público a possibilidade de fazer uma escolha em relação à preservação da economia em detrimento do sistema de saúde. Ao contrário, o texto constitucional tornou a defesa e a concretização do direito à saúde um dos valores fundamentais da ordem jurídica, com capacidade de vincular as iniciativas dos poderes públicos constituídos e dos particulares, inclusive, através do controle judicial.

É lógico que a disputa institucional que se coloca entre o presidente da República e o Supremo Tribunal Federal pode rever a sua posição até aqui delineada para uma proposta de autocontenção. Porém, como advertimos no início desse artigo, até mesmo uma posição de autocontenção esconde uma posição política, dada a natureza dos valores que estão em jogo.

 é advogado, professor do Centro Universitário Luterano de Santarém (Ceuls/Ulbra), conselheiro estadual da OAB-PA, doutorando no Programa “Administración, hacienda y justicia en el Estado Social” da Universidade de Salamanca, na Espanha, e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra.