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Opinião: Qual é a finalidade da Medida Provisória 966/2020?

A medida provisória é um instrumento normativo de que dispõe o Presidente da República para regular matéria “relevante” e “urgente” que não possa aguardar a deliberação do Congresso Nacional.

A Medida Provisória 966, de 13 de maio de 2020, dispõe sobre a “responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19”. 

Seu artigo 1º afirma: “Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de: I- enfrentamento da emergência de saúde pública decorrentes da pandemia da Covid-19; e II- combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19”.

§ 1º. A responsabilização pela opinião técnica não se estenderá de forma automática ao decisor que a houver adotado como fundamento de decidir e somente se configurará:

I- Se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica; ou

II – O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público.

Em primeiro lugar é extremamente  discutível se a matéria é de fato relevante e urgente no contexto constitucional tendo em vista a existência mansa e pacífica de várias normas de responsabilização dos agentes públicos no direito brasileiro, quer na Constituição, quer no ordenamento jurídico brasileiro.

Não se vislumbra a intenção de quem formulou a referida MP. 

O artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, dispõe: “ As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Sempre os agentes públicos poderão ser responsabilizados por seus atos, não só por força da Constituição Federal, mas  segundo antigos  princípios jurídicos que advém dos Códigos Civis promulgados ao longo do tempo e mesmo do clássico Direito Administrativo, desde sempre. 

O exercício da função administrativa envolvendo a saúde pública e a pandemia não é, em absoluto causa de extinção ou de mitigação de responsabilização administrativa, civil ou mesmo penal.

Ao contrário do Direito Privado, em que a responsabilidade exige sempre um ato ilícito (contrário à lei), no Direito Administrativo ela pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinados ônus maior do que o imposto aos demais membros da coletividade.

Os agentes públicos não podem jamais em um Estado de Direito, ser isentos ou imunes a responsabilização por seus atos, lícitos ou ilícitos. 

Por sua vez, o artigo 28 da chamada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), relativamente recente estabelece: “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.

Haverá dolo quando o gestor agir com intenção de praticar um ato contrário à Administração Pública. A demonstração da ocorrência do dolo, normalmente refletida em uma fraude, pressupõe o exame de elemento subjetivo que dependerá de ampla instrução judicial ou administrativa. Já a ocorrência de erro grosseiro é de mais fácil verificação.

Não existe medida provisória que possa afastar a relação de causalidade necessária e suficiente entre a ação ou omissão estatal e o resultado danoso. É claro que, se o resultado danoso proveio de evento imputável exclusivamente ao próprio lesado ou de fato de terceiro ou pertinente a realidade natural, não há responsabilidade do Estado.

Mas não há como, a priori, impedir a análise da relação de causalidade para impedir a incidência da responsabilização do agente público. 

Prossegue a medida provisória a prever em seu artigo 2º: “Para fins no disposto nesta medida provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.

Art. 3º. “Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados:

I – Os obstáculos e as dificuldades reais do agente público;

II – A complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público;

III – A circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência;

IV – As circunstâncias práticas que houveram imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público e;

V – O contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia de Covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas”.

Por outro lado, a Lindb já mencionada, igualmente prevê em seu artigo 22 e seu parágrafo 1º a hipótese de o agente encontrar obstáculos e dificuldades ao interpretar normas jurídicas e suas circunstâncias fáticas.

 Dispõe: 

“Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

    

§ 1º  Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.”

 

A pergunta que fica: por que e para que a MP foi editada? 

 é advogado, consultor jurídico, professor associado de Direito Constitucional da PUC-SP, presidente da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas (ABCD) e vice-presidente da Associação Internacional de Direito Constitucional.

 é advogado, foi presidente da OAB-SP nos triênios 2013-2015 e 2016-2018 e presidente da Comissão de Informática Jurídica da OAB-SP nos triênios 1998-2000 e 2001-2003 e da Comissão de Informática do Conselho Federal da OAB no triênio 2001-2003.

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Fábio Oliveira Lima: O plenário virtual nos tribunais

Seguindo a nossa tradição forense, os órgãos colegiados dos tribunais reúnem-se para a exposição, discussão e deliberação do processo em ambientes situados nas respectivas sedes e com a presença física obrigatória e simultânea dos seus integrantes, em sessão denominada de presencial.

Com a evolução tecnológica, os tribunais, na busca de conferir realidade ao princípio constitucional da razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII, CF) e de vencer a demanda, que é sempre crescente, passaram a adotar o julgamento em ambiente eletrônico, através de sessão virtual, em que se dispensa a presença simultânea dos desembargadores. Sessão virtual não se confunde com sessão presencial por videoconferência, em que há a exigência da participação simultânea e ao vivo dos julgadores, só que situados em ambientes físicos diferentes. Na sessão virtual a deliberação ocorre sem a presença concomitante dos desembargadores, que, durante um período delimitado, manifestam-se, cada um a seu tempo, por meio eletrônico.

Vozes destacadas e de elevado espírito público têm advogado que a dinâmica procedimental do plenário virtual violaria cânones do devido processo legal, sob os argumentos de que os julgamentos não são públicos e há restrição ao contraditório.

No ambiente da gestão judiciária, a inovação nasce, quase sempre, na mira da negação, até que sejam compreendidos seus propósitos e as suas nuances.

Há que pontuar, em primeiro plano, que o julgamento em sessão virtual, para além de estar expressamente autorizado pelo Código de Processo Civil (artigo 193 c/c artigo 943, CPC/15), tem plena conformação com os valores atuais da sociedade, que amplamente aceita como eficiente e segura a realização de diversas atividades públicas e privadas sem a necessidade de contato pessoal ou reunião presencial. O Judiciário não pode ficar distante e alheio a essa realidade. É nesse cenário que surge a sessão virtual, com claros ganhos de eficiência e celeridade à prestação jurisdicional do segundo grau. Fundamentalmente, otimiza-se a pauta dos julgamentos complexos. A sessão presencial, com seu ritualismo necessário, deve ficar reservada às causas que exijam debate mais verticalizado. Idealmente, à sessão virtual são remetidos os processos de menor complexidade, que dispensam uma discussão mais aprofundada quanto a aspectos de fato ou mesmo de direito, ou os processos em que já há posição jurisprudencial consolidada do próprio órgão julgador, do tribunal local ou dos tribunais superiores sem efeito vinculante.

Consigne-se, ainda, que, em Pernambuco, apesar de o julgamento virtual não ficar restrito a processos e recursos em que não caiba sustentação oral não há restrição de classe processual , cabendo ao talante discricionário do relator a definição do que será ou não submetido ao plenário virtual, essa discricionariedade é mitigada ou controlada porque os vogais, o representante do Ministério Público e as partes podem, sem declaração de justificativa, manifestar oposição ao julgamento virtual, deslocando, automaticamente, o julgamento para a sessão presencial. A prerrogativa da oposição ao julgamento virtual, sem a necessidade de qualquer justificativa, mantém a dinâmica da sessão virtual dentro dos princípios básicos do devido processo legal. O julgamento eletrônico assume, claramente, a natureza de um negócio processual atípico (artigo 190 do CPC/15) firmado entre o Estado-juiz e as partes, através dos respectivos patronos, em que o acordo procedimental, a partir da não oposição ao julgamento virtual, inclui a impossibilidade de sustentação oral e dos apartes autorizados pelo inciso X do artigo 7º do Estatuto da OAB.

A preocupação com o devido processo legal é uma constante no formato do plenário virtual do Tribunal de Justiça. O edital de convocação, a que se dá ampla publicidade, indica os desembargadores que participarão do plenário virtual. Isso para possibilitar o controle social do princípio do juiz natural, já que a formação dos órgãos colegiados obedece a regras pré-constituídas e firmes em critérios estritamente objetivos, e o exercício da ampla defesa e do contraditório, na medida em que a composição dos órgãos colegiados tem influência decisiva na previsibilidade das decisões, além do que facilita acesso ao julgador para que possam ser apresentadas as manifestações e os memoriais pelos interessados.

Realçada crítica, que não se pode desconsiderar, prende-se à circunstância de que, em todo o período de duração da sessão virtual, apenas o conteúdo do relatório será disponibilizado para as partes e os interessados. A divulgação dos votos dar-se-á no encerramento da sessão, com a proclamação do resultado do julgamento. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade do inciso IX do artigo 7º do Estatuto da OAB, que previa a sustentação oral pelo advogado após o voto do relator, sob o fundamento de que: I) o contraditório se estabelece entre as partes e não entre magistrado e as partes; e II) poderia causar tumulto processual (ADI 1.127). Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio (onde existe a mesma razão deve haver a mesma regra de Direito). Na sessão virtual, tornar público o voto na medida em que for sendo proferido no ambiente eletrônico levaria, na prática forense, a estabelecer um contraditório a cada voto manifestado. A publicidade aos votos somente ao final não qualifica o julgamento eletrônico como secreto, como afirmam alguns. O controle das partes e da sociedade ocorrerá exatamente como ocorre no julgamento presencial sempre a posteriori. Tradicionalmente, o exercício da ampla defesa se dá antes do julgamento.

Não se advogue que a garantia constitucional da imperiosa necessidade da fundamentação das decisões judiciais (artigo 93, inciso IX, CF) sofre relevante mitigação, na medida em que o vogal apenas assinala, no painel eletrônico, mediante registro por certificação digital, que acompanha o relator ou a divergência, deixando de apresentar suas razões de decidir. A consciência jurídica nacional, com amplo respaldo da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, admite como idônea a fundamentação pela técnica da remissão, como razão de decidir, à motivação declinada pelo voto antecessor. Não se pode esquecer que mesmo no julgamento presencial há expressa autorização para a fundamentação per relacionem, de modo que os vogais que estiverem de acordo com o voto e a fundamentação do relator poderão se limitar a declarar sua concordância.

Há, ainda, uma imposição normativa que mantém o formato da sessão virtual em estreita harmonia com o princípio constitucional que assegura a fundamentação das decisões judiciais (artigo 93, inciso IX, CF). A declaração de voto passa a ser obrigatória quando o desembargador vogal divergir do relator ou o acompanhar com ressalva de entendimento. É que, divergindo do relator, o voto vogal poderá assumir a posição de voto vencido, de modo que sua declaração será obrigatória (artigo 941, § 3º) ou assumirá a condição de voto vencedor, condutor da ratio decidendi. Acompanhando o relator por outro fundamento, impõe-se igualmente a declaração de voto. Isso porque sua fundamentação pode constituir a ratio decidendi ou, se não for, facilitará a compreensão da razão de decidir do colegiado. Sem a exteriorização das razões que levaram ao resultado do julgamento não há devido processo legal e nem jurisdição válida. Isso porque o princípio constitucional da ampla defesa não teria como ser exercitado com efetividade e impossível seria o controle social da atividade jurisdicional. Se o relator ficar vencido e o voto condutor da divergência não for declarado, haverá nulidade do julgamento.

Sendo unânime o julgamento ou quando houver divergência que não atraia a aplicação da técnica de julgamento prevista no artigo 942 do CPC/15, o processo segue para a lavratura do acórdão pelo relator. Quando, no entanto, o resultado do julgamento não for unânime e a hipótese atrair a regra do artigo 942 do CPC/15, o processo será encaminhado, automaticamente, para a sessão presencial, com a publicação de nova pauta, com vistas à continuidade do julgamento perante o colegiado ampliado.

Tem-se, portanto, que o formato adotado pelo plenário virtual garante plena observância dos princípios fundamentais do processo, notadamente os da ampla defesa e da publicidade. Não há comprometimento do princípio da colegialidade e da segurança dos julgados. O julgamento continua colegiado. Haverá discussão, possibilidade de convencimento mútuo entre os julgadores e divergências, só que tudo ocorrerá no ambiente eletrônico. A dinâmica procedimental da sessão virtual, em que os vogais têm acesso previamente ao voto do relator e dispõem de tempo razoável para examinar com vagar as questões de direito e de fato, acaba por proporcionar maior segurança ao julgado. É uma alternativa, que supera, em eficiência e segurança, o julgamento em lista, até então utilizado largamente pelos tribunais.