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Aras: Homenagem aos 30 anos de Supremo do ministro Marco Aurélio

No último sábado, dia 13 de junho de 2020, o ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello completou 30 anos de Supremo Tribunal Federal e, quase um mês depois, dia 12 de julho, completará 74 anos de idade.

Nascido no Rio de Janeiro, bacharelou-se na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, formando-se em 1973, onde concluiu o mestrado e iniciou sua festejada vida profissional.

Foi advogado, Membro do Ministério Público do Trabalho, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª região e do Tribunal Superior do Trabalho. 

Sua atividade judicante teve início em 1978, quando ingressou no TRT da 1ª Região. Em 1981, foi indicado Ministro do Tribunal Superior do Trabalho com 35 anos de idade, de onde saiu nove anos depois para assumir o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

Como declarou certa vez, sua passagem pela Justiça do Trabalho lhe exprimiu essa sensibilidade maior no proceder e na arte de julgar conflitos de interesses.

Seu nome passou a ser cogitado para o Supremo ainda na década de 80, época em que começavam a aportar ao Tribunal Constitucional importantes questões trabalhistas, cujo ramo da Justiça nunca antes tivera um representante na cúpula do Poder Judiciário.

Em 13 de junho de 1990, a sociedade brasileira foi agraciada com sua posse no Supremo Tribunal Federal, em vaga decorrente da aposentadoria do ministro Carlos Madeira.

Foi presidente do STF de 2001 a 2003, razão pela qual exerceu a Presidência da República no ano de 2002 por quatro vezes. Também exerceu o cargo de Presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

Em todas essas oportunidades, coordenou atividades de modernização, que promoveram o aprimoramento da Justiça e a construção de uma sociedade melhor para todos.

Em uma de suas passagens pela Presidência da República, sancionou a Lei nº 10.461, de 17 de maio de 2002, que criou a TV Justiça, um marco da transparência na história do Poder Judiciário brasileiro.

O anteprojeto de lei saiu do gabinete do Ministro e em apenas oito meses efetivamente foi aprovado in recordum tempore, com a sanção presidencial do próprio ministro, então exercendo a Presidência da República.

Outro passo à modernização e aprimoramento da democracia brasileira foi dado pelo ministro em 1996, quando no Tribunal Superior Eleitoral, ocasião em que realizou a primeira eleição pelo sistema eletrônico de votação, processo iniciado por seu antecessor, o Ministro Carlos Velloso.

Sua Excelência também principiou o trâmite para a adoção do sistema biométrico, porquanto os primeiros cadastramentos de eleitores foram feitos já em sua Presidência.

É um dos mais notáveis juristas de nosso país, defensor das liberdades individuais, das garantias constitucionais e do Estado Democrático de Direito, permeado pelo cumprimento da Constituição e das leis.

Nunca hesitou em demonstrar seu raciocínio jurídico na defesa de direitos fundamentais, ainda que dissidente dos demais membros da Corte, assim o fazendo com relevantes argumentos e refinadíssimo humor e, ainda quando vencido, rendendo-se à colegialidade, mas marcando posição!

Em sua posse na Presidência do STF, o ministro Celso de Mello o comparou ao Juiz Oliver Wendell Holmes Jr., da Suprema Corte americana, que defendia o direito de greve e a função social da propriedade em votos datados da década de 1920 e de 1930. À frente do seu tempo, restava vencido naquele momento.

O decano do STF ainda destacou que nos votos vencidos, “reside, muitas vezes, a semente das grandes transformações”. E nada é mais poderoso que uma ideia cujo tempo chegou, dizia Vitor Hugo!

Desde sua posse na Suprema Corte, o ministro Marco Aurélio Mello inaugurou forma singular de divergir, estimulando a atividade judicante nacional a inovar e a construir novos caminhos, para além da trajetória tradicional.

Atuando com espontaneidade e ciente de que o colegiado é um somatório de forças distintas, em que os membros se complementam mutuamente, buscou seguir suas convicções.

Um dos mais emblemáticos casos ocorreu no julgamento do HC nº 82.424/RS, do editor Siegfried Ellwanger contra condenação imposta pela Justiça gaúcha, por ter publicado livros considerados antissemitas.

Ministro Marco Aurélio instigou a reflexão, recordando Hans Kelsen, que afirmava a construção da democracia com o respeito aos direitos das minorias, eis que essas, um dia, poderão influenciar a opinião da maioria:

E venho adotando esse princípio diuturnamente, daí a razão pela qual, muitas vezes, deixo de atender ao pensamento da maioria, à inteligência dos colegas, por compreender, mantida a convicção, a importância do voto minoritário.

Aplicando a reflexão ao caso concreto, o ministro divergiu da maioria dos seus pares na Suprema Corte ao reconhecer que o autor possuía ideia preconceituosa em relação aos judeus e que ideias preconceituosas deveriam sim ser combatidas, contudo não a partir da proibição da divulgação dessas ideias.

Na guarida da liberdade de expressão, um dos temas mais caros ao espírito libertário do ministro homenageado, registrou que se pode não concordar com o que o paciente escreveu, mas deve-se defender o direito que ele tem de divulgar o que pensa, parafraseando Voltaire.

Alçando a democracia à necessária relevância, o ministro considerou que não é o Estado que tem de impor a censura para proteger a sociedade, mas a própria sociedade a realiza, ao formar suas conclusões.

A marca de sua dissidência tem sido propulsora da evolução do pensamento jurídico brasileiro, ao trazer um novo olhar sobre questões jurídicas e constitucionais importantes em sua constante dialética, relevante a dinâmica do Direito.

Essa divergência converge com os posicionamentos minoritários da sociedade e representa o papel contramajoritário inerentes às atribuições da Corte Constitucional.

Com os casos complexos e as questões demasiadamente controvertidas, é dificultoso alcançar a unanimidade. Nesse contexto é que o ministro exterioriza a posição da minoria e impede que um determinado segmento da sociedade deixe de ser representado.

Em voto memorável, no qual reconheceu o direito dos participantes da Marcha da Maconha, o ministro Marco Aurélio ressaltou a importância da divergência e o “elemento comunicativo” pluralista posto na doutrina de Jürgen Habermas.

O consenso ético resultante da homogeneidade que existia nas sociedades pré-industriais não existe mais, de modo que as decisões públicas não podem ser justificadas com fundamento nesse acordo global de natureza ética entre os cidadãos. Ao contrário: nas sociedades contemporâneas, os indivíduos discordam veementemente sobre um leque variado de assuntos.

Destacou, portanto, que a concepção política de Habermas ressalta a primazia do processo democrático na construção de um direito legítimo, baseado no pluralismo de ideais, o qual inclui, por conseguinte, posicionamentos divergentes e minoritários, e rechaça a argumentação baseada em verdades apriorísticas.

Por causa de tão destacadas fundamentações é que a publicação do seu voto é hoje aguardado com ansiedade: uma pelos colegas, diante da profundidade e do apuro técnico de seus entendimentos, duas, pelos advogados, cientes de que a decisão não será unânime e na certeza de que outro caminho jurisprudencial é possível.

À vista de suas dissenting opinions, o ministro e decano Celso de Mello, certa feita, fez referência ao Ministro Pisa e Almeida.

Em 1892, o Supremo Tribunal Federal negou pedido de habeas corpus impetrado por Rui Barbosa em favor de vítimas, incluído o poeta Olavo Bilac, de atos arbitrários do marechal Floriano Peixoto, que presidia o país.

A tese defendida por Rui Barbosa era a de que, cessado o estado de sítio, deveriam cessar automaticamente todas as restrições dele decorrentes. Ocorre que o pedido foi negado e o único juiz que acolheu a pretensão foi o Ministro Pisa e Almeida. Entretanto, seis anos depois, o STF reviu sua jurisprudência e acolheu a tese anteriormente defendida por Rui Barbosa e acatada por Pisa e Almeida.

Atualmente, essa tese solitária no longevo 1892 consta do artigo 141 da Constituição de 1988.

“Há quem me julgue perdido, porque ando a ouvir estrelas. Só quem ama tem ouvido para ouvi-las e entendê-las”, diria o ourives poeta.

Com o ministro Marco Aurélio, o exato similar ocorreu: muitas das teses por ele defendidas e minoritárias converteram-se, com o tempo, em jurisprudência da Corte.

Como exemplos emblemáticos, merecem citações a declaração de inconstitucionalidade da prisão do depositário infiel, a inconstitucionalidade da cláusula de barreira e da proibição da progressão de regime aos condenados por crimes hediondos.

Mas não são apenas votos divergentes que permeiam a atividade do ministro Marco Aurélio: sua primorosa forma de argumentar por vezes levou a Corte ao acatamento unânime de suas teses, como na declaração de constitucionalidade, pelo Plenário do STF, da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), editada com a intenção de coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres.

O ministro Marco Aurélio foi relator das duas ações que discutiam a norma (ADI nº 4.424 e ADC nº 19) e consignou em seu voto a situação de vulnerabilidade da mulher, contexto em que a lei se presta a mitigar a realidade de discriminação social e cultural que, enquanto existir no país, legitima a adoção de medidas compensatórias, por promover a igualdade de gêneros.

Assim também no julgamento do HC nº 91.952, oportunidade em que o Plenário do STF recebeu pedido para anular júri, tendo em vista que o réu permaneceu algemado durante todo o julgamento o relator ministro Marco Aurélio votou no sentido de que é necessária a preservação da dignidade do acusado, como prevê o artigo 5º da Constituição Federal, de forma que as algemas deveriam ser usadas apenas em casos excepcionais.

Neste julgamento, unânime, os ministros decidiram editar a Súmula Vinculante 11, que entrou em vigor em 23 de agosto de 2008, a qual reflete o posicionamento de Sua Excelência e deve ser seguida necessariamente pelas demais instâncias do Judiciário.

Para além de suas posições jurídicas, o ministro é marca da precisão ortográfica do discurso. A liturgia que denota o rigor gramatical e a precisão linguística são sua distinção.

Sabe-se que, desde a época da Procuradoria do Trabalho, expressa-se sem escrever, utilizando-se de um gravador para que depois a manifestação seja transcrita.

Em razão do desempenho eficiente em sua fala é que menciona que “o segredo de gravar é não querer ver o que você já gravou. Se ficar retroagindo a fita, você se perde, e, ao invés de ganhar tempo, perde tempo. A gravação é uma marcha”.

Tal prática imprime a certeza de que um ministro não é um juiz, mas a voz do Judiciário. No caso do ministro Marco Aurélio, a voz pautada no primoroso discurso de distinta precisão e contínua evolução.

Durante os últimos 30 anos, ficou registrada que o envolvimento do ministro Marco Aurélio nas discussões do Supremo Tribunal Federal fez a Justiça se modernizar e se moldar à Constituição Federal de 1988.

A higidez do texto constitucional é uma conquista que não se realiza por si só, ou por um ato 13 só. É o resultado de valores compartilhados, de dedicação, da tolerância e do pluralismo de ideias.

É notória a magnífica contribuição do ministro, cuja trajetória luminosa o coloca entre os maiores juristas brasileiros de todos os tempos. Seu incessante atuar com visão e coragem na defesa incansável dos direitos fundamentais, da segurança jurídica e das liberdades, reflete o brilhantismo em sua carreira, a par de revelar o ser humano sensível, fervoroso torcedor do Flamengo!

Da vigilância constante é que se alcança o equilíbrio, pari passu, com o processo civilizatório sob o pálio da Constituição Federal. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, segundo Thomas Jefferson.

Parabéns ministro Marco Aurélio por esses 30 anos de vigorosa atuação na Suprema Corte do Brasil, que retratam uma caminhada esplêndida e nos inspiram a continuar na perseverança de concretização da Constituição, no seio da Suprema Corte brasileira.

Antônio Augusto Brandão de Aras é Procurador-Geral da República, doutor em Direito Constitucional, e professor da Faculdade de Direito da UnB.

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Toffoli diz que Supremo jamais se sujeitará a nenhum tipo de ameaça

Presidente do Supremo, ministro

Dias Toffoli, condenou manifestações antidemocráticas deste fim de semana
Fellipe Sampaio/SCO/STF

Após mais uma manifestação antidemocrática de um grupo de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, divulgou uma nota de repúdio.

Na noite deste sábado (13/6), um bando de 30 militantes autodenominados “300 do Brasil” disparou fogos de artifício na direção do edifício principal do STF, na Praça dos Três Poderes, enquanto xingavam os ministros.

No texto, Toffoli afirmou que “o Supremo jamais se sujeitará, como não se sujeitou em toda a sua história, a nenhum tipo de ameaça, seja velada, indireta ou direta e continuará cumprindo a sua missão”.

O ministro ainda apontou que os ataques à Corte Suprema são financiados de forma ilegal por integrantes do próprio Estado. “Guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal repudia tais condutas e se socorrerá de todos os remédios, constitucional e legalmente postos, para sua defesa, de seus ministros e da democracia brasileira”, diz trecho da nota.

O ministro Alexandre de Moraes, por meio das redes sociais, também condenou os ataques. “O STF jamais se curvará ante agressões covardes de verdadeiras organizações criminosas financiadas por grupos antidemocráticos que desrespeitam a Constituição, a Democracia e o Estado de Direito. A lei será rigorosamente aplicada e a Justiça prevalecerá”, escreveu.

Leia a nota do ministro Dias Toffoli na íntegra:

Infelizmente, na noite de sábado, o Brasil vivenciou mais um ataque ao Supremo Tribunal Federal, que também simboliza um ataque a todas as instituições democraticamente constituídas.

Financiadas ilegalmente, essas atitudes têm sido reiteradas e estimuladas por uma minoria da população e por integrantes do próprio Estado, apesar da tentativa de diálogo que o Supremo Tribunal Federal tenta estabelecer com todos, Poderes, instituições e sociedade civil, em prol do progresso da nação brasileira.

O Supremo jamais se sujeitará, como não se sujeitou em toda a sua história, a nenhum tipo de ameaça, seja velada, indireta ou direta e continuará cumprindo a sua missão.

Guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal repudia tais condutas e se socorrerá de todos os remédios, constitucional e legalmente postos, para sua defesa, de seus ministros e da democracia brasileira.

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Caio Druso: Marco Aurélio, 30 anos e adiante

“Processo não tem capa; tem conteúdo.”

“Não faço questão de formar na corrente majoritária.”

“Não ocupo cadeira voltada a relações públicas.”

Tempos estranhos, muito estranhos, geradores de grande perplexidade.”

“Onde está a liturgia?”

Estudantes e doutores, que todos somos, mesmo quando sem prática ou diploma, numa era em que todos parecem saber tudo, conhecemos a autoria dessas e de tantas expressões que, em cadência marcada, como se o oral e o erudito fossem um apenas, brotam dos votos e das imagens do ministro Marco Aurélio, no Supremo Tribunal Federal há trinta anos.

Pode-se concordar ou discordar do ministro em quase tudo — e penso até que a discordância lhe trará mais alegria. Mas não se pode ficar, jamais, indiferente a ele. Também se pode concordar ou discordar das decisões que, ao longo desse longo tempo, o ministro Marco Aurélio apresentou. Mas não há como negar o impacto que ele já trouxe, e continua trazendo, à história do Brasil e de sua Justiça.

Na trajetória desses tantos anos, desde quando Marco Aurélio assumiu a cadeira que ocupa, muitas manifestações cotidianas e insistentes, que eram minoria e, ao longo do tempo, passaram a prevalecer, em temas como os da vedação da progressão da pena dos crimes hediondos (HC 69.657), e da prisão somente após o trânsito em julgado (HC 126.292), têm se associado a atos de coragem.

Foi o que se deu com a TV Justiça, inciativa pioneira que, na presidência do Supremo Tribunal, Marco Aurélio conduziu, enfrentando resistências e, mais com elas do que apesar delas, assumindo os ônus de uma decisão que faz dessa Corte, entre todas as Cortes de Justiça que existem no mundo, talvez a mais pública, a mais transparente e, portanto, a que mais se expõe ao escrutínio social.

Foi o que se deu, também, com a questão dos juros previstos no texto original do artigo 192, § 3º, da Constituição de 1988. Quando a Carta era ainda uma esperança, Marco Aurélio foi vencido no voto da ADI nº 4, em que sustentava que o limite de 12% disposto naquele texto era, mesmo, um limite real. A disposição constitucional precisou ser revogada para que o voto do ministro fosse esvaziado e, não houvesse essa revogação, apesar de tudo o que se disse em contrário, continuaria o texto a prever que “as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a 12% ao ano”.

Da mesma forma, quando era candente e público o debate sobre a interrupção da gestação por anencefalia, como relator da ADPF nº 54, em 2004, Marco Aurélio deferiu uma liminar que, em análise histórica, naquele momento ao menos, seria certamente desconstituída pelo colegiado. Oito anos depois, e somente depois desse longo período de maturação, é que o processo foi levado a julgamento pelo ministro. Pela maciça maioria de seus pares, a liminar foi confirmada no Supremo.

No arco de 30 anos cabe uma vida inteira. No caso de Marco Aurélio, pode-se dizer que são muitas as vidas. O Supremo de hoje não é diferente daquele que existia em 13 de junho de 1990, quando ele assumiu sua cadeira, apenas na forma de se expor a público e de deliberar, ou na composição dos julgadores, mas também no direito que examina e que aplica, e nos desafios institucionais que lhe são apresentados.

Desafios que, nos dias que correm, vêm tornando necessário ao Supremo Tribunal explicitar, inclusive, regras tão óbvias quanto as de que ao Judiciário cabe arbitrar os conflitos, de que o espaço de discussão quanto ao cumprimento de suas decisões está no próprio sistema de justiça, e de que a manutenção dos procedimentos legais é a melhor garantia para tempos de incerteza.

Ao longo dessas três décadas, Marco Aurélio não tem deixado de decidir, de atuar e de se manifestar, por mais diversas e adversas que tenham sido as circunstâncias, e por maiores que tenham sido as resistências. Nesses dias inquietos, nos quais persiste uma pandemia que parece não ter fim, e nos quais as crises internas são tão cotidianas que já se fazem previsíveis, não poderiam ser mais oportunas as homenagens que se prestem a quem, como ele, faz parte da história, do presente e do futuro da Justiça e do Brasil.

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Gonet Branco: 30 anos de STF do Ministro Marco Aurélio

Quando comentei com uma amiga de Ministério Público que havia recebido convite da ConJur para publicar uma nota de reconhecimento pelas três décadas de judicatura do Ministro Marco Aurélio no Supremo Tribunal Federal, ouvi dela a observação de que a tarefa era simples, porque a ninguém ocorreria senão o vaticínio do lugar distinguido a ele reservado na crônica histórica da corte. Não há como negar-lhe razão.

O ministro Marco Aurélio participou com proeminente realce de todos os mais importantes julgamentos da fase mais esfuziante da história do tribunal, não somente com substanciais votos vencedores em casos emblemáticos, como também com instigantes votos dissidentes — sempre, num caso e noutro, com a marca da fundamentação rigorosa.

Nos chamados votos vencidos, o Ministro Marco Aurélio, porém, transluz de modo ainda mais sensível a sua integridade de juiz. É o caso de reverenciá-lo também nessa produção intelectual que pode admirar o leigo e alguns juristas menos atentos, mas que, na verdade, apresenta singularidades de suma importância para a jurisdição constitucional. Acorrem-me, aqui, prontamente à memória dois desses votos vencidos bastante significativos.

No primeiro, o ministro empunhou, na companhia do ministro Sepúlveda Pertence, a tese de que fere o princípio constitucional da individualização da pena que o legislador, em abstrato, estabeleça a proibição de progressão do regime de cumprimento de pena dos condenados por crime hediondo (HC 69.657, Pleno, j. 18.12.1992).

No segundo, adotou a doutrina da mais ampla da liberdade de expressão, que o levou a recusar a caracterização do crime de racismo em discurso de deplorável conotação racista, no qual, entretanto, não avultou perigo de dano para o povo agredido. Essa foi a tônica do seu voto no conhecido caso Ellwanger (HC 82.424, Pleno, j. 17.9.2003).

Nesse último precedente, houve uma verdadeira proclamação de princípio a que o Ministro Marco Aurélio foi fiel durante toda a sua trintenária presença no Plenário e nas Turmas do STF. O ministro invocou Kelsen, para ressaltar que “a democracia se constrói sobretudo quando se respeitam os direitos da minoria, mesmo porque esta poderá um dia influenciar a opinião da maioria”. Em seguida, lê-se a sua profissão de postura na corte: “Venho adotando esse princípio diuturnamente, daí a razão pela qual, muitas vezes, deixo de atender ao pensamento da maioria, à inteligência dos colegas, por compreender, mantida a convicção, a importância do voto minoritário”.

De fato, o voto minoritário, expresso, publicado e assinado, além de ser uma antiga tradição na nossa praxe pretoriana, é de substancial relevo para o papel da jurisdição constitucional numa democracia, especialmente quando a corte constitucional se detém em temas com alto potencial de discordância na sociedade. O voto que disputa com a maioria certamente que contribui para a função pacificadora da jurisdição, na medida em que revela que a posição não acolhida no julgamento, acaso partilhada por segmentos da população, foi, apesar disso, levada a sério, a ponto de merecer voto consciencioso e apurado de integrante da alta corte.

Não obstante essa e outras utilidades que se podem predicar ao voto vencido, a sua admissibilidade não é uma constante no Direito comparado. O receio de que o tribunal pareça dividido e instável, no contexto de uma estratégia ansiosa por firmar a imagem da corte como ator único no cenário social, leva alguns sistemas a vedar a divulgação das posições de magistrados desacolhidas pela maioria nos procedimentos de decisão. Chega-se ao extremo, como noticia Georg Vanberg [1], de se cobrar juramento de segredo dos magistrados sobre as deliberações internas da corte. É significativo que mesmo numa corte constitucional paradigmática como a alemã, somente em 1970 tenha sido formalmente admitida a divulgação dos votos dissidentes [2].

No Brasil, em que os debates dos julgamentos são acompanhados em tempo real pela TV Justiça — fruto ela própria de projeto de lei apresentado pelo Ministro Marco Aurélio como presidente da corte e sancionado por ele próprio como presidente da República em substituição —, as inibições desses tribunais europeus soam bizarras.

Estamos, nesse particular, mais próximos dos Estados Unidos. Ali, embora o processo decisório da corte ocorra a porta cerrada, são comuns os votos vencidos, assinados e publicados; as suas consequências práticas são, de sua parte, objeto de constantes e interessantes estudos doutrinários, que mesclam aspectos jurídicos, de ciência política e de estatística. Estudos dessa ordem ainda aguardam, entre nós, os devotados pesquisadores que merecem, mas as apreciações elaboradas nos Estados Unidos já são de proveito para uma inicial abordagem comparativa com a realidade brasileira.

Seguindo um modelo de combinação de dados empíricos, filtrados por concepções processuais, um grupo de notáveis da academia americana confirmou bastante do que se tinha por intuitivo a respeito dos votos dissidentes [3]. Alguns desses achados merecem registro, para fins de composição desta nota comemorativa.

O estudo demonstrou que o dissenso impõe custo para a maioria do Tribunal, obrigando-a a um esforço argumentativo mais acendrado. Por isso até, apurou-se que o dissenso nos tribunais americanos acaba guardando relação inversamente proporcional ao volume de trabalho da corte. O excesso de trabalho desanimaria a divergência num colegiado pouco inclinado a dispor de tempo para rever posições de imediata adesão geral.

Apontou-se também que o voto dissidente tem o efeito de reduzir a influência dos votos majoritários, despidos que ficam da aura de irretocáveis. A depender do tom em que vertidos, podem também gerar custo para a reputação dos juízes e do próprio tribunal, donde um outro curioso efeito reportado, o de a crítica da minoria gerar ressentimento no restante do colegiado, “tornando mais difícil para o autor do voto de dissenso persuadir os demais juízes para segui-lo em outros casos”[4]

Esse ressentimento, de toda sorte, apresenta limitado alcance, e não tende a ser causa de dificuldades de relacionamento pessoal para o juiz mais propenso a votar vencido. A ser de outra forma, seria impossível a convivência entre os magistrados da Suprema Corte americana, considerando-se a taxa de 62% de acórdãos com voto vencido. Vale a transcrição do artigo a esse respeito:

“Pode-se pensar que a alta taxa de votos dissidentes na Suprema corte tornaria a vida (entre os juízes) intolerável, gerando uma aversão ao dissenso. Na realidade, estudos sobre a Suprema corte identificam períodos em que o relacionamento entre juízes do Tribunal era muito difícil (a década de 1940, por exemplo, e os anos 1970 e 1980 da corte Burger até a aposentadoria deste juiz), e outros períodos em que o relacionamento era bom, como no presente. Essas flutuações na colegialidade não parecem estar relacionadas com a frequência dos votos de dissenso” [5].

À parte essa investigação sobre efeitos do voto vencido no plano das contingências funcionais e pessoais, cabe salientar as virtualidades do voto vencido em cortes constitucionais no que tange ao seu papel na recomposição institucional do Direito Constitucional em busca do atendimento necessário aos desafios cambiantes do passar do tempo.

Há — bem sabido — uma relação entre tempo e cultura constitucional que enseja mecanismos de adaptação da ordem jurídica às mudanças imprescindíveis. Nesse passo, o sistema dispõe não apenas da opção por elaborar uma nova carta ou da formalização de emenda à Constituição, mas também da construção jurisprudencial. Tratando desta última, Peter Häberle enfatiza o papel crucial do voto de dissenso, como delicado instrumento oxigenação da ordem posta, tornada necessária por exigências últimas da “dignidade humana e de valores humanos”. Häberle contempla “como na Suprema Corte americana interpretações constitucionais alternativas, que figuraram num certo momento como voto vencido, tornaram-se, no devido tempo, posições majoritárias”, referindo-se também a exemplo paralelo na corte alemã [6].

Essas considerações servem para melhor aquilatar o papel não somente jurídico, mas histórico, dos votos dissidentes do Ministro Marco Aurélio, ao longo dos seus 30 anos no STF.

O seu voto vencido em 1992, no caso da progressão do regime de cumprimento de pena do condenado por crime hediondo, serviu de prelúdio para a reconstrução da jurisprudência uma dezena de anos depois. No HC 82959 (Pleno, j. 23.2.2006), o móvel da socialização do preso a que serve a progressão ganhou ênfase e apoio da nova visão da corte, passando-se a reconhecer que a fixação do regime de cumprimento também se inclui no domínio normativo da garantia da individualização da pena.

Esse é apenas um exemplo, entre tantos, que poderiam ser coligidos, a propósito da contribuição dos votos de dissenso do Ministro Marco Aurélio para a atualização da jurisprudência da corte, na linha do ideado e preconizado por Peter Häberle.

Quando se estudam os seus votos de orientação avulsa ou minoritária no Plenário e nas turmas, mostram-se outras duas virtudes que merecem ser devidamente anotadas. Como se viu da pesquisa empírica americana, o excesso de serviço constitui fator poderoso para tolher a disposição dos juízes americanos em proferir votos vencidos. Provavelmente nenhuma outra corte no mundo terá carga de processos por integrante próxima à que vexa os ministros do Supremo Tribunal brasileiro. Nem por isso o Ministro Marco Aurélio se furta ao que a sua consciência jurídica indica como dever de oposição às maiorias que se formam nos colegiados. Muito menos a sua atuação cede a estratégias de formação de apoios, apontadas em jurisdições estrangeiras como elementos não infrequentes de contenção de variantes interpretativas. De outra parte, mesmo que o enfrentamento da maioria com os seus votos divergentes tenha a energia das fortes convicções, não lhe são por isso causas de perturbação das relações pessoais [7].

Todas essas particularidades falam positivamente da personalidade do ministro que completa 30 anos de magistratura no STF. Mas também revelam a superioridade do ambiente da corte. Acerta, por isso, com precisão, Sergio Bermudes quando, ao prefaciar o livro comemorativo dos 25 anos da atuação do ministro no Supremo Tribunal, afiançou que, “na judicatura de Marco Aurélio, incandesce a orientação do Supremo de não cortejar ninguém” [8].

Percebe-se, afinal, a preocupação constante nos votos do Ministro Marco Aurélio de preservar direitos das minorias e dos vulneráveis. Pode-se não concordar com as suas posições — daí mesmo as ocasiões em que é vencido —, mas não se nega a sua constante busca de coerência com os seus valores. Desponta entre tantos dos seus votos o máximo respeito pela liberdade de expressão, que se mostra eloquente no voto vencido do “caso Ellwanger”.

O enaltecer dessa peregrina liberdade constitucional o aproxima ainda mais de outro impertérrito juiz, este americano, a quem muitas vezes o ministro é relacionado pelos votos antecipadores do futuro, embora vencidos no presente. Oliver Wendell Holmes também se deixava guiar pelo mais severo senso de dever e pela aderência irrestrita à liberdade de expressão. As semelhanças são acentuadas ainda pela coincidência de ambos os magistrados terem alcançado a fabulosa marca cronológica de três décadas nas respectivas supremas cortes. Nesse período, aqui e lá, a posteridade recebeu um denso legado de dedicação e de compromisso com as liberdades básicas. Com efeito, nem a corte americana, nem a brasileira, dão-se a compreender devidamente sem o concurso intelectual, corajoso e arrojado de cada um desses seus insignes membros.

A título de fecho, permanece oportuno e bastante o juízo de Sergio Bermudes que associou o ministro Marco Aurélio à “judicatura luminosa de um juiz que a história dirá marcante, porque, não importa se vencedor ou vencido, exerceu, destemidamente, a  função de julgar, conforme os seus princípio, a sua ciência e a sua fé” [9].

Paulo Gustavo Gonet Branco é subprocurador-geral da República, professor de Direito Constitucional no IDP e doutor em Direito.