Categorias
Notícias

Marcelo Buhatem: Ministro Marco Aurélio, 30 Anos no STF

Tempos estranhos… É assim que começo este texto de homenagem ao nosso Ministro Marco Aurélio, que completou 30 anos no Supremo no último sábado, dia 13 de junho de 2020.

Essa frase, que já se tornou quase uma marca registrada do ministro, presente em várias de suas manifestações, é hoje talvez a que melhor retrate o grave momento de crise sanitária e de desarranjo político-institucional vivido em nosso país.

Não há espaço para retrocesso. Os ares são democráticos e assim continuarão. Visão totalitária merece a excomunhão maior”, afirmou Mello em entrevista a Rafael Moraes Moura, de O Estado de S. Paulo.

Polêmico, sábio, destemido, crítico, mas sempre elegante em suas manifestações e com os colegas, Marco Aurélio gosta de divergir e assim o faz não por capricho, mas por não ter compromisso com nada além de suas ideias. É da sua essência questionar o óbvio.

Tive o prazer de conhecer o Ministro Marco Aurélio por meio do saudoso desembargador Enéas Machado Cotta, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ainda nos primeiros anos de vigência da Constituição Cidadã de 1988.

De cada três ações que o Supremo Tribunal Federal julga, o Ministro Marco Aurélio fica vencido em uma, o que lhe rendeu o apelido, que tanto preza, por sinal, de “senhor voto vencido”.

Em voto memorável, em que ficou vencido, ele cita Hans Kelsen e explica uma vez mais por que ficar vencido não é uma derrota pessoal, mas uma vitória da democracia: “É bom sempre lembrarmos Hans Kelsen quando afirma que a democracia se constrói sobretudo quando se respeitam os direitos da minoria, mesmo porque esta poderá um dia influenciar a opinião da maioria. E venho adotando esse princípio diuturnamente, daí a razão pela qual, muitas vezes, deixo de atender ao pensamento da maioria, à inteligência dos colegas, por compreender, mantida a convicção, a importância do voto minoritário”. O recado foi dado no julgamento do HC 82.424/RS, do editor gaúcho Siegfried Ellwanger, contra condenação imposta pela Justiça gaúcha por ter ele publicado livros considerados antissemitas.

Marco Aurélio Mendes de Farias Mello nasceu em 12 de julho de 1946, natural do Rio de Janeiro, filho de Plínio Affonso de Farias Mello e Eunice Mendes de Farias Mello.

Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da UFRJ, em 1973. Membro junto à JT da 1ª região, no período de 1975 a 1978, tornou-se juiz togado, de 1978 a 1981, tendo sido presidente da 2ª turma do TRT da 1ª região. No TST, assumiu a cadeira de ministro em setembro de 1981, onde atuou até ser nomeado para o STF.

Marco Aurélio Mello também foi ministro no TSE, corte que presidiu durante duas eleições: a municipal de 1996 e a presidencial de 2006. Em sua primeira gestão, o ministro esteve à frente das primeiras eleições informatizadas do país, realizadas em outubro de 1996, quando 57 municípios brasileiros todas as capitais e as cidades com mais de 200 mil eleitores utilizaram urnas eletrônicas. Já em 2006, ele comandou as eleições presidenciais com o processo de totalização de votos, até então o mais rápido registrado pela Justiça Eleitoral.

No Supremo, foi presidente da corte no biênio 2001/2003, tendo inclusive exercido a presidência da República interinamente. Sob seu comando, foi aprovada a criação da TV Justiça, símbolo da transparência no Judiciário e da aproximação do Poder com a sociedade.

O Ministro Marco Aurélio foi o relator de um dos casos mais marcantes julgados pelo Supremo: a ADPF 54, na qual se discutiu a possibilidade de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Numa decisão emblemática, em 2004, concedeu liminar para autorizar a antecipação do parto de fetos anencéfalos por gestantes que assim decidissem, quando a deformidade fosse identificada por meio de laudo médico. Três meses depois, a liminar foi cassada, mas, no julgamento do mérito da ação, em 2012, por maioria de votos, o plenário decidiu pela possibilidade de interrupção da gestação nesses casos.

Ao completar 25 anos como integrante do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Marco Aurélio Mello disse que não se vê deixando o tribunal. “Não me vejo virando as costas para essa cadeira. O que mais quero na vida é manter o mesmo entusiasmo, examinando o processo como se fosse o primeiro de minha vida judicante”, afirmou o ministro, ao ser homenageado, na ocasião, pelos colegas.

Não há dúvidas de que quando deixar a honrosa cadeira que ocupa na Suprema Corte, uma luz certamente se apagará e a jurisdição constitucional sentirá saudade dos distintos pontos de vista do ministro, muitas vezes divergentes, mas que sempre engrandecem o debate.

Os votos vencidos proferidos pelo Ministro Marco Aurélio ao longo da sua carreira são emblemáticos de que o exercício do poder somente se legitima com o diálogo, com o respeito à diferença, com o acolhimento do pluralismo de ideias e com a coexistência harmoniosa entre as diversas correntes de ação e de pensamento.

Talvez o maior legado que o ministro deixará, com sua saída da Corte Suprema, prevista para julho de 2021, quando completará 75 primaveras, é que as dissensões fazem parte do jogo democrático. A lógica adversarial deve ceder lugar ao culto pelo respeito a visões diferentes, pois é da essência da democracia e de uma sociedade aberta o pluralismo de ideias.

Parafraseando o ministro Barroso, em recente e sábia manifestação, “quem pensa diferente de mim não é meu adversário, muito menos meu inimigo. É meu parceiro na construção de um mundo plural, de uma sociedade aberta”.

Em tempos estranhos, de democracias em vertigem, porém, na certeza de que as instituições fluem com normalidade, o respeito pela diferença, tão emblemático nos votos vencidos do Ministro Marco Aurélio, deve servir de bússola, indicando os caminhos que seguiremos na construção de uma sociedade mais justa, solidária e paciente na edificação de um Estado fundado em bases democráticas.

Marcelo Buhatem é desembargador do TJ-RJ e presidente da Andes (Associação Nacional dos Desembargadores).

Categorias
Notícias

Caio Druso: Marco Aurélio, 30 anos e adiante

“Processo não tem capa; tem conteúdo.”

“Não faço questão de formar na corrente majoritária.”

“Não ocupo cadeira voltada a relações públicas.”

Tempos estranhos, muito estranhos, geradores de grande perplexidade.”

“Onde está a liturgia?”

Estudantes e doutores, que todos somos, mesmo quando sem prática ou diploma, numa era em que todos parecem saber tudo, conhecemos a autoria dessas e de tantas expressões que, em cadência marcada, como se o oral e o erudito fossem um apenas, brotam dos votos e das imagens do ministro Marco Aurélio, no Supremo Tribunal Federal há trinta anos.

Pode-se concordar ou discordar do ministro em quase tudo — e penso até que a discordância lhe trará mais alegria. Mas não se pode ficar, jamais, indiferente a ele. Também se pode concordar ou discordar das decisões que, ao longo desse longo tempo, o ministro Marco Aurélio apresentou. Mas não há como negar o impacto que ele já trouxe, e continua trazendo, à história do Brasil e de sua Justiça.

Na trajetória desses tantos anos, desde quando Marco Aurélio assumiu a cadeira que ocupa, muitas manifestações cotidianas e insistentes, que eram minoria e, ao longo do tempo, passaram a prevalecer, em temas como os da vedação da progressão da pena dos crimes hediondos (HC 69.657), e da prisão somente após o trânsito em julgado (HC 126.292), têm se associado a atos de coragem.

Foi o que se deu com a TV Justiça, inciativa pioneira que, na presidência do Supremo Tribunal, Marco Aurélio conduziu, enfrentando resistências e, mais com elas do que apesar delas, assumindo os ônus de uma decisão que faz dessa Corte, entre todas as Cortes de Justiça que existem no mundo, talvez a mais pública, a mais transparente e, portanto, a que mais se expõe ao escrutínio social.

Foi o que se deu, também, com a questão dos juros previstos no texto original do artigo 192, § 3º, da Constituição de 1988. Quando a Carta era ainda uma esperança, Marco Aurélio foi vencido no voto da ADI nº 4, em que sustentava que o limite de 12% disposto naquele texto era, mesmo, um limite real. A disposição constitucional precisou ser revogada para que o voto do ministro fosse esvaziado e, não houvesse essa revogação, apesar de tudo o que se disse em contrário, continuaria o texto a prever que “as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a 12% ao ano”.

Da mesma forma, quando era candente e público o debate sobre a interrupção da gestação por anencefalia, como relator da ADPF nº 54, em 2004, Marco Aurélio deferiu uma liminar que, em análise histórica, naquele momento ao menos, seria certamente desconstituída pelo colegiado. Oito anos depois, e somente depois desse longo período de maturação, é que o processo foi levado a julgamento pelo ministro. Pela maciça maioria de seus pares, a liminar foi confirmada no Supremo.

No arco de 30 anos cabe uma vida inteira. No caso de Marco Aurélio, pode-se dizer que são muitas as vidas. O Supremo de hoje não é diferente daquele que existia em 13 de junho de 1990, quando ele assumiu sua cadeira, apenas na forma de se expor a público e de deliberar, ou na composição dos julgadores, mas também no direito que examina e que aplica, e nos desafios institucionais que lhe são apresentados.

Desafios que, nos dias que correm, vêm tornando necessário ao Supremo Tribunal explicitar, inclusive, regras tão óbvias quanto as de que ao Judiciário cabe arbitrar os conflitos, de que o espaço de discussão quanto ao cumprimento de suas decisões está no próprio sistema de justiça, e de que a manutenção dos procedimentos legais é a melhor garantia para tempos de incerteza.

Ao longo dessas três décadas, Marco Aurélio não tem deixado de decidir, de atuar e de se manifestar, por mais diversas e adversas que tenham sido as circunstâncias, e por maiores que tenham sido as resistências. Nesses dias inquietos, nos quais persiste uma pandemia que parece não ter fim, e nos quais as crises internas são tão cotidianas que já se fazem previsíveis, não poderiam ser mais oportunas as homenagens que se prestem a quem, como ele, faz parte da história, do presente e do futuro da Justiça e do Brasil.

Categorias
Notícias

Acelino Carvalho: À espera do Estado de Direito

No desenvolvimento de pesquisa acadêmica acerca da postura de juristas e operadores do Direito nesse período da história brasileira referido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello como “tempos estranhos”, que inclui entre os procedimentos adotados recolher matérias publicadas na imprensa, de modo especial, em portais de notícias, para posterior análise, deparou-se no dia 2 de maio com um texto de autoria de Guilherme Amado, no site da Revista Época, o qual afirma que o também ministro do STF Gilmar Mendes concedeu “uma dura entrevista naquela mesma data aos jornalistas Kelly Mattos, David Coimbra e Luciano Potter. Na dita entrevista, o magistrado teria acusado Sergio Moro de “vazar propositalmente” a delação do ex-ministro da Fazenda do governo Lula Antonio Palocci, no segundo turno das eleições de 2018, quando ainda era juiz, “com o propósito de favorecer” a eleição do atual presidente da República.

De acordo com o articulista, o ministro teria afirmado que o então juiz “estava muito próximo desse movimento político, tanto que no segundo turno ele faz aquele vazamento da delação do Palocci; a quem interessava isso? Ao adversário (…)”. Na sequência, ainda de acordo com o jornalista, o ministro passou a criticar a conduta do ex-juiz em virtude do mesmo ter aceito o convite para integrar o ministério do presidente eleito: “Depois, ele aceita o convite, que é muito criticado, para ser ministro deste governo (…), cujo adversário ele tinha prendido. Ficou uma situação muito delicada, se discute a correição ética desse gesto”. Por fim, conforme o autor do texto, perguntado se, no seu entendimento, houve “intenção política premeditada” por parte do então juiz ao publicar a delação, o ministro respondeu que lhe “bastam os fatos” e que o “vazamento desta delação naquele momento tinha o intuito que se pode atribuir”.

Numa busca no material levantado no desenvolvimento da pesquisa acima referida, sobre esse acontecimento, deparou-se agora com um artigo do jornalista Elio Gaspari publicado no jornal O Globo, do dia 03 de outubro de 2018, o qual traz como título: “A ‘bala de prata’ feriu Moro: a publicidade de um pedaço da confissão seletiva de Antonio Palocci ofendeu a neutralidade do Poder Judiciário”. Afirma o autor que, “se era bala de prata, o teor da colaboração do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci tornou-se um atentado à neutralidade do Poder Judiciário; (…) foi uma ofensa à neutralidade da Justiça porque o juiz Sergio Moro deu o tiro seis dias antes do primeiro turno da eleição presidencial”. O texto fora publicado também no jornal Folha de São Paulo e reproduzido em diversos sites de notícias.

Em editorial na mesma data, o jornal O Globo afirmou logo no título que: “A divulgação do depoimento de Palocci atesta ‘objetivos eleitorais'”. No corpo do texto, o jornal afirma que o então juiz Sergio Moro “divulgou parte de delação do ex-ministro (…), na qual garante que o ex-presidente sabia do grande esquema de corrupção montado na Petrobras, pela simples razão de que ele mesmo avalizara nomeações de técnicos da estatal na diretoria da empresa (…)”. Com isso, diz o jornal, “fez com que se recordasse o caso do grampo de Lula e Dilma, agora com evidências de tentativa de interferência no primeiro turno das eleições presidenciais, a ser realizado domingo que vem”. O órgão de imprensa demonstra preocupação no sentido de que tal atitude possa afetar a credibilidade do magistrado e do próprio Poder Judiciário: “Resta de tudo isso uma chamada de atenção para que os poderes da República (…) se vacinem para não serem contaminados por lutas pelo poder – legítimas, quando são travadas por meio do voto, com lisura; mas condenáveis, se ocorrerem em manobras obscuras dentro de segmentos da máquina do Estado que não podem perder o respeito da sociedade”.

Ainda sobre o episódio, noticiou o jornal GGN, do jornalista Luis Nassif, no dia 18 de outubro do mesmo ano, que, em resposta a reclamação disciplinar junto ao Conselho Nacional de Justiça, o então juiz sustentara que não teve “qualquer intenção de influenciar as eleições gerais de 2018”. Acrescentou, todavia, que “retardar a publicidade do depoimento para depois das eleições poderia ser considerado tão inapropriado como a sua divulgação no período anterior”. E frisou: “Se o depoimento, por hipótese, tem alguma influência nas eleições, ocultar a sua existência representa igual interferência (…)”. Ou seja, se a publicidade da delação antes do pleito poderia beneficiar um candidato em prejuízo de outro, a não publicidade operaria no sentido inverso. Diante dessa afirmação, a conclusão a que se pode chegar é que, muito embora a negativa inicial, a resposta à pergunta feita ao ministro sobre se o magistrado teve a intenção deliberada de interferir no resultado do processo eleitoral foi dada pelo próprio magistrado por ocasião das explicações ao CNJ. 

No último dia 15 de abril, conforme foi divulgado em alguns sites de notícias, o ministro Gilmar Mendes, ao participar de uma live de uma agência de investimentos dois dias antes, diante de manifestações populares pelo país, reivindicando intervenção militar, um novo AI-5, o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, afirmou: “As Forças Armadas têm de deixar muito claro que elas não têm compromisso algum com esse golpismo de botequim que se organizou. Precisamos realmente deixar isso muito claro. Temos orgulho da democracia que construímos. São mais de 30 anos de normalidade institucional. Temos sabido superar todas essas crises num ambiente de institucionalidade e temos que prosseguir nessa faina”.

Já no dia 25 do mesmo mês, apenas dez dias depois, afirmou o mesmo ministro, em uma rede social, o que também foi divulgado em sites de notícias: “Há muito critico a manipulação da Justiça, por meio da mídia e de outras instituições, para projetos pessoais de poder. A criação de heróis e de falsos mitos desenvolveu um ambiente de messianismo e intolerância. Autoritarismo judicial e político são ameaças irmãs à Constituição. O combate à corrupção exige a ação de milhares de agentes públicos e o respeito à lei e não a atuação isolada de uma pessoa. Aprendamos: não há solução democrática fora da virtude política. Que a história recente nos reserve um reencontro com o Estado de Direito”. Significa que, nas palavras de sua Excelência, o Estado de Direito não está em vigor no Brasil.

Ora, se isso é verdade, existe aqui uma contradição a ser superada: não tem como o país estar vivendo uma “normalidade institucional” e muito menos como termos “orgulho da nossa democracia” se já não há Estado de Direito. Não existe democracia sem Estado de Direito, como não existe Estado de Direito sem democracia. Ao contrário do que se possa imaginar, nessa quadra da história as noções de Estado Democrático e de Estado de Direito jamais poderão ser concebidas separadamente (Gomes Canotilho; Vital Moreira). A fórmula política: Estado Democrático de Direito, contemplada na nossa Constituição, tão ameaçada por diferentes formas de autoritarismo, como admite o eminente magistrado, pressupõe uma espécie de fusão conceitual entre liberdade dos antigos e liberdade dos modernos; racionalidade formal e racionalidade substancial; princípio democrático e princípio de Constituição (Ferrajoli).

Com efeito, pela violação ao princípio do Estado de Direito opera-se também a violação ao princípio democrático. Contudo, convém não esquecer que, no dizer de Amartya Sen, o maior acontecimento do século XX foi “o advento da democracia”, como também, nas palavras de Verdú, o Estado de Direito “é uma conquista”. Sendo assim, o fato de um ministro da Suprema Corte, a quem cabe sua defesa intransigente, reconhecer que já não vivemos sob a égide de um Estado Democrático de Direito, mas ao menos afirmar que espera que o reencontremos em breve, apesar de triste, nos devolve um fio de esperança. Que a aurora desse dia não se demore.

 é advogado, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional, professor associado na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), professor do curso de mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), membro do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (Londrina), mestre em Direito Processual e Cidadania e doutor em Direito Público.