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Júlia Mezzomo: O teletrabalho é fundamental na pandemia

O isolamento social é a única (quase) certeza que nós temos nestes tempos de absoluta indefinição, insegurança e oscilação trazidos pelo coronavírus. Até mesmo aqueles que vivenciaram na pele duas Guerras Mundiais, apartheid, ditadura militar, guerra fria, impeachment, inflação descontrolada, torres gêmeas caindo, economia mundial em crise, presidente preso… Até mesmo esses testemunham: vivenciar a pandemia no Brasil tem sido muito pior.

Não bastasse a crise emergencial de saúde pública, a mais alta cúpula do Estado parece fazer tudo ao seu alcance para não impedir a propagação do vírus. Por convicções injustificáveis, indo na contramão de todas as recomendações de autoridades internacionais, o governo federal prepara todos os seus servidores para retornarem ao trabalho presencial imediato.

O governo ignora o fato de que as funções exercidas pela expressiva maioria desses servidores podem ser perfeitamente desempenhadas à distância. Basta um computador e acesso à internet, hoje considerados itens básicos nos lares de, arrisco-me a dizer, todos os integrantes dessa classe média brasileira.

Se não há prejuízo ao trabalho, por que exigir o deslocamento dos 12 milhões de servidores públicos hoje em atividade no Brasil, que ficarão confinados em um ambiente servido pelo mesmo sistema de ar condicionado, separados por pequenas baias, utilizando os mesmos banheiros e compartilhando, por meio do mesmo ar que respiram, a possibilidade de transmissão de um vírus altamente letal?

E é importante lembrar que a transmissão não para nesses inúmeros brasileiros. Ela se propaga para os filhos, companheiros, pais e avós. Considerando-se uma família média de quatro pessoas, 50 milhões de brasileiros passariam a correr mais riscos e, por sua vez, a expor outro sem número de pessoas à mesma ameaça.

O retorno ao trabalho presencial sequer deveria ser considerado na atual fase da pandemia. A curva de contágio ainda não está achatada, momento em que os especialistas recomendam a retomada das atividades normais, de forma gradual. No Brasil, ela permanece em constante ascensão.

Em 19 de maio, ultrapassamos a marca de 1.000 mortos por dia. Já são mais de 470 mil casos confirmados, 28 mil mortes, isso sem mencionar os casos que não são registrados. Além da ineficácia do país em realizar testagens em massa, há diversos e fortes indícios de que haja subnotificação da quantidade real de casos existentes. O sistema de saúde não está preparado para receber tamanha quantidade de pacientes em um curto período de tempo, então, por ora, a melhor solução de contenção continua sendo o distanciamento.

É certo que a economia do país não pode ser congelada, que os serviços públicos devem continuar sendo prestados, que as necessidades básicas dos cidadãos devem ser atendidas. Mas há uma maneira muito simples de se compatibilizar todas essas necessidades com as recomendações sanitárias de isolamento social: estabelecer o teletrabalho como regra em todas as esferas, entes e estados da federação.

O teletrabalho não é apenas mais eficaz para o servidor, que não perde mais horas do seu dia em um congestionamento. Também é mais eficiente para o Estado, que diminui os custos de manutenção das repartições públicas, cortando gastos com energia, água, produtos de limpeza, etc.

O teletrabalho é, além disso, a medida que apresenta menor ingerência possível de risco à saúde e à integridade física dos servidores, direitos tutelados pelo nosso texto constitucional (artigos 6º, 7º, XXII, e 39, § 3º, da CF).

Então, por que o Estado insiste em lutar contra os seus próprios funcionários? E, pior, por que o Estado tem de lutar contra ele próprio?

Temos acompanhado o Ministério Público, a OAB, os partidos políticos e as entidades representativas do funcionalismo indo à Justiça requerer o teletrabalho como regra para todos os servidores, exceto quando as funções não possam ser exercidas à distância.

Ainda temos visto juízes praticamente legislando em prol da segurança da população durante a pandemia, como em decisão recente da Justiça Federal do Distrito Federal sobre a reabertura do comércio.

Nossas três esferas estatais Judiciário, Legislativo e Executivo estão respeitando ao pé da letra a “separação dos Poderes”, pois demonstram que sequer estão alinhadas quanto às medidas a serem adotadas para enfrentamento da pandemia.

Pense, agora, na lógica de uma empresa. Inúmeras experiências modernas demonstram que o sucesso da equipe advém da satisfação pessoal, do sentimento de união, da motivação por um propósito comum. Então, em um momento de crise, a melhor ferramenta é manter seus melhores e fiéis empregados unidos pela missão de resolver a situação.

E o Brasil, há de se reconhecer, é uma grande empresa, que emprega milhões de pessoas, no âmbito de suas três esferas de poder. Não há lógica alguma em exigir que os seus funcionários se exponham a riscos absolutamente desnecessários e facilmente evitáveis, quando há uma simples ferramenta que garante a segurança e o bem-estar psicológico desses cidadãos, atendendo às orientações internacionais de isolamento: o teletrabalho.

O mais sensato, e até estratégico, seria utilizar o mal comum para encontrar o bem comum. Estimular todo o funcionalismo a propor soluções, estudar novos fármacos e vacinas, construir novos leitos de UTI e criar mecanismos para reerguer a economia, em casa. Aquele velho bordão cabe perfeitamente aqui, “a união faz a força”. E enquanto estivermos divididos, o Estado contra o povo, e o povo contra ele mesmo, jamais sairemos vencedores dessa luta.

 é sócia do escritório Torreão Braz Advogados, graduada em Direito pela Universidade de Brasília e pós-graduanda em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

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De guerras a doenças: eleições já foram realizadas em tempos excepcionais


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A crise do coronavírus tem suscitado um debate importante: haverá eleições municipais em 2020? Propostas para adiar o pleito ganham força entre os parlamentares em meio a crescente aplicação de medidas como quarentena, lockdown, proibição de aglomeração, suspensão de atividades comerciais e uso ostensivo de máscaras.

Não é a primeira vez que um país passa por este entrave. De fato, a História mostra que outros países já passaram por situações excepcionais – como guerras e doenças – mas, mesmo assim, mantiveram seus pleitos.

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Em 1864, nos EUA, Abraham Lincoln foi reeleito presidente. Longe de ser uma eleição pacífica, o pleito foi realizado durante a Guerra Civil, conflito entre o Norte e o Sul do país com o mote da escravização dos negros versus a mão de obra livre e assalariada. À época, Lincoln – representante do Norte – preferiu disputar a suspender as eleições ao afirmar:

“A eleição é uma necessidade. Não podemos ter um governo livre sem eleições.”

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Em 1918, o mundo passava por duas situações turbulentas: a 1ª Guerra Mundial e a Gripe Espanhola, fatos que ceifaram a vida de cerca de 100 milhões de pessoas ao redor do mundo. Mesmo com as tragédias, os EUA realizaram eleições para o Senado e a para a Câmara dos representantes, durante o segundo mandato do presidente Woodrow Wilson.

Vale registrar que o próprio Brasil não deixou de realizar eleições por conta da terrível gripe espanhola. Após a morte do então presidente Rodrigues Alves, pela doença, o vice Delfim Moreira assumiu o cargo em 1919 e uma nova eleição foi convocada, sendo Epitácio Pessoa o vencedor do pleito.

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Anos mais tarde, os EUA voltariam a eleger um presidente em meio a uma guerra. Franklin D. Roosevelt foi reeleito em 1944 durante a 2ª Guerra Mundial. O então presidente morreu no ano seguinte, em 1945, menos de três meses após o início de seu quarto mandato. Na história americana, ele foi o único a ter mais de dois mandatos.

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Distanciada geograficamente do Brasil, mas mais próxima temporalmente pelas circunstâncias, a Coreia do Sul realizou em abril de 2020 as eleições presidenciais. As autoridades adotaram medidas de segurança rigorosas, como a desinfecção de todas as seções eleitorais, aferição de temperatura dos eleitores, distribuição de luvas plásticas descartáveis na entrada dos locais de votação, uso obrigatório de máscaras, distância segura nas filas, local de votação separado para agentes de saúde, horário de votação diferenciado para as pessoas em quarentena. O país se destacou no combate à covid-19 por ter sucesso em achatar a curva de novas infecções.

t Foto: Ahn Young-joon/AP Photo

No Brasil

Em março o ministro Luís Roberto Barroso, que ocupará a presidência do TSE a partir de maio e, portanto, presidirá o pleito municipal, disse que não cabe cogitar o adiamento das eleições neste momento. Ele lembrou que a data das eleições está prevista na CF, podendo ser alterada por meio do Congresso Nacional.

“É papel do Congresso Nacional deliberar acerca da necessidade de adiamento, inclusive decidindo sobre o momento adequado de fazer essa definição. Se o Poder Legislativo vier a alterar a data das eleições, trabalharemos com essa nova realidade.”

Veja a íntegra da nota de Barroso:

  1. A saúde pública é o bem supremo a ser preservado no país. Tudo o que possa impactá-la deve ser adequadamente avaliado.
  2. A Constituição prevê a realização de eleições no primeiro domingo de outubro. A alteração dessa data depende de emenda constitucional. Portanto, não cabe a mim, como futuro presidente do Tribunal Superior Eleitoral, cogitar nada diferente nesse momento.
  3. É papel do Congresso Nacional deliberar acerca da necessidade de adiamento, inclusive decidindo sobre o momento adequado de fazer essa definição. Se o Poder Legislativo vier a alterar a data das eleições, trabalharemos com essa nova realidade.
  4. Se o adiamento vier a ocorrer, penso que ele deva ser apenas pelo prazo necessário e inevitável para que as eleições sejam realizadas com segurança para a população. A realização de eleições periódicas é um rito vital para a democracia.

A alternância de poder garantido pelas eleições é um dos pilares do Estado Democrático. Este foi o recado claro do STF nesta quinta-feira, 14, ao manter o prazo para filiação partidária e desincompatibilização.



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Juiz suspende cobrança de reserva de demanda mínima da Aneel

Em épocas de crises extremas, como guerras, desastres naturais ou com a concorrência humana, como foram os casos de rompimento das barragens em Minas Gerais, ou pandemias, como a que vivemos atualmente, nas quais o próprio modelo econômico estabelecido se mostra ineficaz nas respostas necessárias, o Estado pode e deve intervir, seja o Estado-gestor seja o Estado-juiz, este último em conformação secundária.

Rede de academias teve pedido de suspensão de reserva de demanda mínima de energia elétrica acatado por juiz

Com base nesse entendimento, o juiz Bruno Anderson Santos da Silva, da da 3ª Vara Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, decidiu acatar pedido de tutela de urgência da rede de academias Smartfit para flexibilizar os contratos de reserva de demanda mínima pela Agência Nacional de Energia Elétrica.

No pedido, a rede de academias argumenta que, diante do avanço do coronavírus no Brasil, houve impacto direto na sua atividade comercial, já que as autoridades públicas federais, estaduais e municipais determinaram a suspensão total do funcionamento das unidades de academias de ginástica.

A Smartfit também alegou que tentou enviar notificações extrajudiciais a cada uma das concessionarias de energia requerendo que não fosse cobrada ela remuneração mínima de energia elétrica contratada ou que fossem efetuadas cobranças proporcionais até a data de fechamento das unidades da rede.

Ao analisar o caso, o magistrado apontou que “devido à natureza das atividades das autoras, academias de ginástica, foi determinado por Decretos Estaduais o imediato fechamento de suas unidades por não representarem uma atividade essencial à população, conforme documentos carreados aos autos, impactando diretamente sobre o seu faturamento”.

O juiz também pontua que é inegável que o isolamento horizontal vem impactando a economia brasileira, e que a pandemia da Covid-19 vem sendo considerada pela ONU como o maior desafio mundial desde a 2ª Guerra.

A Smartfit foi representada pela advogada especialista em Direito Processual Civil e Empresarial, Janaína Galvão, que coordena a área de contencioso cível do Paradeda, Castro, Duarte e Mantesso Advogados.

Segundo ela, a economia gerada com esta decisão liminar “contribuirá para o fluxo de caixa da rede de academias que poderá usar esses valores para cobrir outros gastos internos, tais como pagamento dos salários e demais encargos trabalhistas”.

Clique aqui para ler a decisão

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Rafael Maciel: Os perigos da ditadura pelos dados

Aspirantes a autocratas costumam usar crises econômicas, desastres naturais e, sobretudo, ameaças à segurança guerras, insurreições armadas ou ataques terroristas para justificar medidas antidemocráticas”. Nessa passagem do livro Como as Democracias morrem, Steve Levitsky e Daniel Ziblatt [1] poderiam ter incluído a pandemia como outro “inimigo comum” a justificar atos autoritários.

Provavelmente não imaginariam um vírus com impactos sanitários e econômicos como os provocados pela Covid-19. Relevantes a ponto de provocarem uma grande mudança de hábitos, tanto pela gravidade que a doença tem apresentado, com índices crescentes de fatalidades e contaminação, como pela bancarrota generalizada e aumento do desemprego. Diante de tantos danos, não se tem dúvida de que a atual pandemia se tornou o mal a ser combatido, capaz de justificar, aos olhos menos atentos, toda e qualquer invenção legislativa, sobretudo as arbitrárias as quais, em situação comum, poucos ousariam representar.

É o que temos visto no Brasil. O cotidiano jurídico tem sido inundado por Medidas Provisórias e propostas legislativas visando a modificações ou inovações diversas. Não se tem dúvidas de que boa parte são válidas e necessárias ao combate dos males da pandemia, seja em seus aspectos econômicos ou sanitários; outras, todavia, repousam sobre o falso argumento da urgência pandêmica para terem tramitação ligeira ou oportunista e escondem violações a direitos fundamentais, primeiro front prejudicado nesses levantes populistas.

É o que se dá com a Medida Provisória nº 954, de 17 de abril, pela qual o presidente Jair Bolsonaro, fundando-se no estado de calamidade pública, determina a todas empresas de telecomunicação que disponibilizem a “relação dos nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas” à Fundação IBGE para fins de produção estatística oficial. Logo de partida constata-se um excesso de dados pessoais a serem disponibilizados. Ora, para que fornecer endereço se essa dita necessidade é para pesquisa remota por conta do isolamento? Para piorar, não há sequer menção a qual tipo de estatística que deverá ser realizada e se ela é fundamental para combate à pandemia, primeiro pressuposto para avaliar o cabimento do compartilhamento de dados pessoais. Tem que haver finalidade específica e para essa, somente podem ser fornecidos dados necessários e adequados para atingi-la.

Os despropósitos não param por aí. Não há na MP qualquer controle previsto para esse tratamento que poderá, inclusive, estar sujeito ao vigilantismo ou uso indevido para envio de mensagens fake com viés eleitoral. Se serão sigilosos, como se dará o controle? Quais medidas foram implementadas para registrar os acessos? A única previsão de proteção prevista na MP é de um enviesado Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais.

A utilização dessa avaliação de impacto deve ser feita anteriormente a qualquer pretensão de tratar os dados, a fim de analisar todos os riscos envolvidos e, inclusive, os impactos aos titulares, sobretudo às suas liberdades individuais. O relatório de impacto não pode servir para o fim pretendido no §2º do artigo 3º da MP: “Divulgar as situações em que os dados foram utilizados”. Depois que são utilizados, pouco ou de nada importará saber das suas violações, sem falar que será difícil confiar nesse relatório feito casuisticamente. Até as situações divulgadas por alguns estados para o compartilhamento de dados dito anonimizados o que a rigor não se sujeitariam a tais limitações para fins de constatar aglomerações devem ser precedidas de uma análise prévia a fim de se constatar a impossibilidade de (des)anonimização mediante “esforço razoável”.

É claro que para combater a pandemia, por ser questão de saúde pública, o Estado pode utilizar alguns dados pessoais, porém essa permissão não é uma carta em branco para que faça da forma como queira, sem qualquer controle. Os dados de saúde são um bom exemplo: podem ser compartilhados para saber quantos estão contaminados, porém sempre respeitando os indivíduos, sem divulgação desautorizada de seus nomes e limitando o tratamento àqueles dados estritamente necessários.

Agências de proteção de dados pessoais ao redor do mundo têm se manifestado com diretrizes para tais compartilhamentos, pautando pela finalidade e implementação de medidas técnicas e organizacionais de proteção, prestigiando a anonimização. Por aqui, a regra, ao que parece, tem sido o compartilhamento irrestrito, como se aproveitassem da vacatio legis da LGPD ou da própria inércia de não instituir a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Se são ou não medidas com viés antidemocrático, propositais, ingenuidade ou equívoco jurídico o tempo dirá. Enquanto isso, que nossos radares permaneçam atentos, assim como vigilantes nossas instituições.

 é advogado e especialista em Direito Digital e Proteção de Dados Pessoais.

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Direitos fundamentais em tempos de pandemia II

O desastre causado pela crise sanitária, econômica e social em curso diante da disseminação do assim designado coronavírus tem impactado o Direito de modo praticamente sem precedentes desde a devastadora “gripe espanhola”, de 1918, não considerando-se aqui as sequelas das duas grandes Guerras Mundiais e de outros conflitos armados e desastres naturais.

À vista disso, a exemplo de outros Países, no Brasil também foi decretada um estado de calamidade pública, mediante o Decreto Legislativo nº 6, de 20.03.2020, com vigência prevista até 31.12.2020, na esteira da edição da Lei nº 13.979, de 06.02.2020. Além disso, tem sido muitas as medidas tomadas nas três esferas da federação, incluindo-se a decretação do estado de calamidade em muitos estados e municípios.

A exemplo do que se verifica quando decretados os estados de defesa e de sítio, embora as diferenças substanciais no concernente aos requisitos constitucionais (formais e materiais) dos dois últimos, no estado de calamidade (assim como no estado de emergência), é permitida a flexibilização dos limites orçamentários (tal como prevê também a LC 101, de 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, no seu artigo 65), além de serem legitimadas juridicamente medidas urgentes e provisórias destinadas a viabilizar o controle e superação, com eficácia, dos efeitos da situação que deu azo a tais providências.

O Estado de Calamidade, portanto, consiste em um dos instrumentos juridicamente legítimos para que o Estado (e a sociedade civil) possam, pese as medidas excepcionais tomadas, enfrentar o problema, sem descurar da manutenção da higidez da ordem constitucional e do primado Democracia, do Estado de Direito e dos direitos fundamentais.

Nesse meio tempo, cresceram, em escala geométrica – paralelamente ao rápido avanço da pandemia -, não apenas as medidas instauradas por todos os atores estatais por todo o Brasil, mas também as publicações, em toda sorte de mídias, relativas ao tema, destacando-se, para efeitos desta coluna, a seara do Direito.

Em caráter meramente ilustrativo, refere-se aqui a análise dos aspectos econômicos, financeiros e tributários por Fernando Facury Scaff, bem como a coluna do ConJur, de 23 de março, onde se tratou da importância de frear quaisquer medidas que ameacem a democracia e tendencialmente levem à ruptura com as instituições democráticas.

No tocante as medidas adotadas pela União relativas à esfera da organização e do procedimento, é de se sublinhar, desde logo, a inclusão de uma alínea C no artigo 6º, da Lei 13.979, dispondo que “[n]ão correrão os prazos processuais em desfavor dos acusados e entes privados processados em processos administrativos enquanto perdurar o estado de calamidade de que trata o Decreto Legislativo nº 6, de 2020”.

Além disso, a teor do parágrafo único do citado diploma legal, “fica suspenso o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na Lei nº 8.112, de 1990, na Lei nº 9.873, de 1999, na Lei nº 12.846, de 2013, e nas demais normas aplicáveis a empregados públicos”.

Dentre tantos outros exemplos que visibilizam o impacto das mudanças estabelecidas em virtude do estado de calamidade pública, é o caso de aqui focar na assim chamada dimensão organizatória-procedimental dos direitos fundamentais, representada pelo problema da suspensão dos prazos processuais, nos casos em que reconhecido o Estado de Calamidade (art. 222, § 2º do CPC).

A questão da suspensão dos prazos processuais demanda juízo de ponderação e preocupação ao mesmo tempo com a efetividade e a segurança jurídica, um binômio em permanente tensão e equilíbrio no direito processual. Afinal, também o processo é direito constitucional aplicado.

Além disso, é possível entender que, diante da pandemia da Covid-19, o Decreto Legislativo que reconhece o Estado de Calamidade tem efeitos jurídicos também no âmbito processual.

Nesse contexto, situa-se a resolução 313/2019, de 19.03.2020, do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, que determinou, em todo o País a suspensão dos prazos processuais até 30.04.20. O tema, aliás, já enfrentado na ConJur.

A Resolução cria um regime de plantão extraordinário no Poder Judiciário Nacional. A finalidade da Resolução é uniformizar a suspensão do trabalho presencial de magistrados, servidores, estagiários e colaboradores nas unidades judiciárias de todo país. Advogados, partes, membros do Ministério Público e interessados deverão ter disponibilizado atendimento remoto pelos meios tecnológicos disponíveis.

A medida foi muito importante, considerando que a existência de critérios conflitantes quanto à suspensão do expediente forense gera insegurança jurídica e potenciais prejuízos à tutela de direitos fundamentais. Atos normativos prevendo suspensão de prazo também foram exarados por Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais e por Tribunais Superiores, mas é importante perceber o papel representado pela Resolução 313 do CNJ, evitando a insegurança jurídica.

Na prática, contudo, com a decretação do Estado de Calamidade, a suspensão pode ser estendida para além de dois meses (art. 222, § 2º, CPC), existindo aí mais uma razão para que a tensão entre segurança jurídica e efetividade seja equilibrada para permitir que atos processuais, que não ensejarem prejuízo ao sistema de justiça e aos direitos individuais das partes, sejam praticados.

Analisemos as regras previstas pelo Código de Processo Civil. A suspensão do expediente forense equivale à feriado, para os fins da norma processual (art. 216, CPC), portanto, se aplica aqui todo o regramento processual na espécie. Com a suspensão os prazos processuais não correm, não fluem, e resta vedada a prática de atos processuais, salvo a citação, intimação e penhora e aqueles atos em que houver urgência (art. 214, CPC).

A razão pela qual o Código de Processo Civil permite a prática de ato processual urgente e a reação da parte contrária reside na paridade de armas e decorre da necessidade de tutela adequada, tempestiva e efetiva como mandamento constitucional (art. 5º, I, CF e 7º, CPC).

A doutrina costuma afirmar que não se permite, contudo, avançar no procedimento. Por exemplo, o prazo para resposta do demandado só começará a ser contado a partir do primeiro dia útil subsequente ao final da suspensão. Significa dizer, a suspensão resulta na retomada do prazo a partir do momento em que ele voltou a correr, considerando-se os dias já computados, até o termo final. É exatamente nisto que a suspensão difere da interrupção, que implicaria a retomada do prazo desde o termo inicial. Finda a suspensão o prazo volta a fluir do ponto em que parou (art. 221, CPC).

O tema tem sido discutido por muitos processualistas desde a edição da Resolução 313/2020, dentre outros, Daniel Mitidiero, Fredie Didier Jr., Heitor Sica, Eduardo Talamini, Marco Antonio Rodrigues, Leonardo Carneiro da Cunha, que tem alertado sobre possíveis problemas interpretativos. Assim, há quem entenda que nenhum ato processual, salvo aqueles absolutamente imperativos, pelo caráter de urgência, devem ser praticados.

Por outro lado, não faltam os que defendem a prática telepresencial de atos no processo civil, especialmente o proferimento e publicação de decisões, atos executivos como a penhora eletrônica, audiências com advogados por videoconferência e a apresentação de peças processuais deve ser admitida.

Há, ainda, aqueles que limitam a interpretação do Código de Processo Civil para permitir apenas atos relacionados à citação, intimação e penhora e à tutela de urgência. Por fim, existem aqueles que defendem terem os Juízes poderes para decidir, no caso concreto, sobre a suspensão ou restituição de prazo a cada processo individual.

Muito embora não se trate de um efeito direto relativamente aos prazos, a especificidade do processo de se desenvolver no tempo pode resultar, ainda, no reconhecimento de efeitos jurídicos da Covid-19 para as situações anteriores, constituindo, modificando ou extinguidos direitos.

Nessa linha, o art. 493 do CPC, prevê que os fatos supervenientes à propositura da ação sejam levados em consideração quando produzirem efeitos jurídicos. A pandemia e suas consequências podem, portanto, acarretar sua incidência. É bom lembrar, outrossim, que também aqui deve ser respeitado o contraditório prévio e a vedação da decisão-surpresa, o que se revela ainda mais problemático nas relações jurídicas de trato sucessivo, podendo até mesmo acarretar a revisão da sentença diante da alteração do quadro fático-jurídico (art. 505, I, CPC).

O que se postula como imperativo, é que a consistência jurídica das medidas tomadas é de ser analisada à luz do marco normativo constitucional, em especial na perspectiva de uma dogmática constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais.

Neste sentido, do ponto de vista do acesso à justiça e à efetividade, a Res. 313, CNJ não impede decisões, especialmente sentenças e acórdãos em processos já instruídos, sessões de julgamento online, e todos os atos processuais visando dar duração razoável e efetividade ao procedimento, incluída aí a homologação da autocomposição entre às partes.

No caso das sentenças, a intimação será realizada durante a suspensão e o prazo somente começara a fluir a partir do dia útil subsequente ao término da suspensão. Isso já tem ocorrido por todo o país, juízes continuam proferindo suas decisões normalmente.

O reconhecimento do regime excepcional não significa um lockdown do sistema de justiça. Este regime excepcional deve ser adequado às necessidades do caso. Os atos que puderem ser praticados sem prejuízo da urgência e da concentração dos esforços do sistema de justiça no combate à Covid-19 não estão vedados.

Portanto, uma interpretação conforme dos dispositivos do Código de Processo Civil, nos termos do seu art. 1º, segundo o qual o Código deve ser disciplinado, interpretado e aplicado conforme os valores e normas fundamentais previstos na Constituição, implica em reconhecer a possibilidade de praticar todos os atos processuais que não conflitem com o objetivo da suspensão, tais como: a) as videoconferências, observada a norma geral que autoriza a videoconferência (art. 236, § 3º, CPC); b) demais atos processuais a depender das condições fáticas para a sua realização, desde que sem prejuízo da atuação de advogados e partes, preferencialmente de forma consensual.

O que se percebe, nesse contexto, é uma migração ainda maior para o sistema do processo virtual (digital/eletrônico), exigência do direito do direito fundamental à organização e ao procedimento e dos correspondentes deveres estatais de proteção.

Uma leitura atenta do Código, portanto, mostra o quanto tudo nele está direcionado para a passagem para o processo eletrônico, sem prejuízo da qualidade do acesso à justiça, desde os deveres do advogado de informar o endereço eletrônico na petição inicial, até a intimação para o cumprimento de sentença e a penhora (arts. 513, III e 837, CPC). Mais, a própria Resolução 313 do CNJ expressamente reconheceu, nos termos do Código, que a suspensão não impede os atos relacionados a pedidos de alvarás, levantamento de importância em dinheiro ou valores, substituição de garantias e liberação de bens apreendidos, pagamento de precatórios, requisições de pequeno valor e expedição de guias de depósito (art. 4º, VI, Res. 313/2020). O arco processual está integralmente compreendido, da petição inicial à satisfação.

Evidentemente, algumas precauções devem ser tomadas, assim como devem ser respeitados os avanços já realizados por cada tribunal, no concernente à migração para o processo eletrônico, visto que nem todos os tribunais brasileiros estão no mesmo patamar relativamente a este tópico.

Note-se que o CPC prevê, inclusive, a possibilidade de ser configurada a justa causa quando ocorrer problema técnico, erro ou omissão (art. 197, parágrafo único). Além disso, regra da justa causa se aplicará em todas as hipóteses que a calamidade impedir a prática dos atos, permitindo às partes a prática do ato em momento futuro (art. 223, CPC), o CPC prevê, ainda, a restituição do prazo recursal expressamente em casos de motivo de força maior (art. 1.004).

Situações específicas como as previstas para o serviço público que impeçam o trabalho remoto justificam que advogados que trabalham sozinhos não possam ser obrigados a praticar atos processuais neste período. Assim, nos parece correto dizer que. para avançar no procedimento, a consensualidade é a chave para evitar discussões sobre nulidade e ineficácia dos atos processuais no Estado de Calamidade.

A consensualidade é a aceitação da prática desses atos pelas partes e seus procuradores, assim como pelo juiz. Neste caso, os acordos, negócios ou convenções processuais são adequados para impedir futuras alegações de nulidade ou ineficácia dos atos por dificuldades de participação das partes e seus advogados (art. 190, CPC). Há espaço inclusive para a calendarização processual (art. 191). Assim, muito embora o juiz possa realizar o gerenciamento dos seus processos de forma a garantir a efetividade e deva zelar pela duração razoável – o chamado case management judicial (gerenciamento de casos) – no caso de calamidades públicas como a Covid-19, a impossibilidade de praticar os atos processuais deve ser seriamente considerada, e pode ser alegada quando da ausência da busca do consenso entre as partes envolvidas nos procedimentos.

Assim, a melhor forma de prosseguir nos feitos pendentes para além dos atos urgentes e expressamente previstos na lei é através do case management consensual entre o juiz, as partes e seus advogados. Isso significa que os direitos fundamentais processuais são respeitados e protegidos em sua maior amplitude, tais como o direito de acesso à justiça e à efetividade da jurisdição, o direito à segurança jurídica e o auto regramento da vontade no processo.

Gostaríamos, aqui, de retomar a ideia central da presente coluna tecendo duas considerações à guisa de encerramento.

A primeira diz respeito aos direitos fundamentais à organização e ao procedimento, vinculados ao status activus processualis de Peter Häberle, na sua famosa releitura da teoria dos quatro status de Georg Jellinek.

Nessa senda, é possível afirmar que os deveres constitucionais de proteção estatais, concernentes à efetiva fruição dos direitos fundamentais, podem justificar a legitimidade jurídico-constitucional de determinadas restrições a direitos e garantias processuais decorrentes do estado de calamidade, observados, à evidência, as exigências da proporcionalidade e da salvaguarda de seu núcleo essencial. Eficazes, portanto, salvo demonstração específica em sentido contrário, as sentenças e os acórdãos proferidos nesse período, assim como válida e eficaz a autocomposição e todos os atos finalísticos praticados com a concordância das partes, que não precisem ser interrompidos em razão da pandemia.

Dito de outro modo, os deveres de proteção estatais e sua concretização mediante organização e procedimento, devem ser compreendidos de modo a assegurar aos direitos fundamentais a sua máxima efetividade possível.

Uma segunda reflexão, por sua vez, vai no sentido da necessidade da observância do contraditório ampliado para o juiz, ou, como passou a ser denominado, na incidência do princípio da vedação da decisão surpresa (art. 10, CPC).

O julgador, quando da prática dos atos processuais, pretenda aplicar de ofício norma (e argumentos) que não tenha sido ventilada e discutida previamente nos autos, a respeito do qual as partes não tenham tido oportunidade de se manifestar, deverá intimá-las para que se posicionem previamente.

Ainda que isso possa representar uma suspensão temporária do processo durante a pandemia, tal medida atende à segurança jurídica, inclusive quando se tratar de uma ampliação do thema in decidendum por fato superveniente, em virtude precisamente dos efeitos da pandemia (art. 493, CPC).

O que parece possível sustentar, ao fim e ao cabo, é que mediante a compreensão constitucionalmente adequada dos princípios, direitos e regras processuais, o sistema de justiça poderá priorizar o combate à pandemia, focando nas situações emergenciais, sem descurar do direito fundamental à uma prestação judiciária efetiva.


Nada obstante não seja o caso de aqui aprofundar o tema, é de extrema relevância pontuar que tanto os estados de calamidade pública e de emergência, que também podem ser decretados em nível municipal e estadual, não se confundem com os dois estados de exceção expressamente positivados como tais e autonomamente regulados no texto constitucional, designadamente, os já mencionados estados de defesa e de sítio.

“Art. 222. Na comarca, seção ou subseção judiciária onde for difícil o transporte, o juiz poderá prorrogar os prazos por até 2 (dois) meses. (…) § 2º Havendo calamidade pública, o limite previsto no caput para prorrogação de prazos poderá ser excedido.”

Seguindo aqui a linha do formalismo-valorativo defendida na doutrina por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do Formalismo no Processo Civil. Proposta de um Formalismo-Valorativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010).

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. 3ª ed. São Paulo: RT, 2017, p. 332.

“Art. 205. Os despachos, as decisões, as sentenças e os acórdãos serão redigidos, datados e assinados pelos juízes. (…) § 2º A assinatura dos juízes, em todos os graus de jurisdição, pode ser feita eletronicamente, na forma da lei. § 3º Os despachos, as decisões interlocutórias, o dispositivo das sentenças e a ementa dos acórdãos serão publicados no Diário de Justiça Eletrônico.” Cf., ainda, https://www.cnj.jus.br/cnj-esclarece-obrigacoes-da-resolucao-313-2020/. Mesmo nos locais onde não há a universalização do processo eletrônico a prática da assinatura digital e a publicação no Diário de Justiça Eletrônico são possíveis.

“Art. 236. Os atos processuais serão cumpridos por ordem judicial. (…) § 3º Admite-se a prática de atos processuais por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real.”. Há inclusive norma que prevê a sustentação oral telepresencial ou outro recurso tecnológico, como a gravação de vídeo-memorial (art. 937, § 4º, CPC), muito embora limitada a advogados com domicílio profissional fora da sede do tribunal, o que por analogia, se aplica a situação em que vivemos de falta de acesso físico ao tribunal, assim como, a permissão de atos por videoconferência durante a realização da audiência de instrução e julgamento, tais como a oitiva de testemunhas e o depoimento pessoal, pode ser estendida para a prática de toda a audiência caso interpretada de forma extensiva (arts. 385, § 3º e 453, § 1º, CPC).

A pandemia, portanto, provoca uma reflexão sobre a necessária virada completa da justiça brasileira para a facilitação do acesso à justiça através das novas tecnologias. Mecanismos de ODR (online dispute resolution) como a plataforma consumidor.gov do Ministério da Justiça são um exemplo do que pode ser feito, inclusive em coordenação com o Poder Judiciário, para que o serviço público de justiça não fique totalmente paralisado neste período de crise, em prejuízo dos jurisdicionados e dos 1.190.72 advogados registrados na OAB: https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados

 é professor, desembargador aposentado do TJ-RS e advogado.

Hermes Zaneti Junior é promotor de Justiça e professor.