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Críticas às razões do veto ao artigo 9º do PL 1.179/2020

1. Introdução

Na última quarta-feira, o Presidente da República sancionou o PL 1.179/2020 que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia da Covid-19 (RJET). Contudo, a sanção veio acompanhada de veto do Presidente a diversos dispositivos do projeto, entre os quais está o art. 9º, que veda, temporariamente, a concessão de despejo liminar em contratos de locação urbana.

O caput do citado dispositivo estabelece que “não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020”. De acordo com o parágrafo único do artigo, a restrição do caput “aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020”.

Embora a suspensão prevista no art. 9º do PL refira-se a seis hipóteses legais de despejo, as razões do veto cuidaram somente da principal delas. Trata-se daquela prevista no art. 59, § 1º, inc. IX, da Lei n. 8.245/91, segundo o qual “concederseá liminar para desocupação em quinze dias, independentemente da audiência da parte contrária e desde que prestada a caução no valor equivalente a três meses de aluguel, nas ações que tiverem por fundamento exclusivo: […] IX – a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias previstas no art. 37, por não ter sido contratada ou em caso de extinção ou pedido de exoneração dela, independentemente de motivo” (destaque nosso).

Para poder analisar criticamente o veto em cotejo com as razões apresentadas pelo Presidente, convém contextualizar brevemente a situação atual de tutela dos interesses do locador inadimplido na Lei de Locações.

2. Tutela do locador inadimplido na Lei de Locações

O referido inciso IX do art. 59, § 1º, da Lei de Locações de Imóveis Urbanos foi incluído pela Lei n. 12.112/2009. Sua ausência no texto original da Lei n. 8.245/91 teria sido um “cochilo do legislador”, pois a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação seria “o motivo mais imperioso para a desocupação imediata do imóvel, superando a urgência dos demais incisos”.

Portanto, antes da alteração, o locador inadimplido dispunha apenas da possibilidade de execução provisória da sentença de despejo. Isso porque, nos procedimentos regidos pela Lei n. 8.245/91, os recursos interpostos contra as sentenças têm efeito somente devolutivo (art. 58, inc. V), de sorte que eventual apelação do locatário não procrastina a retomada do bem. Entretanto, a redação original do art. 64 da Lei n. 8.245/91 exigia a prestação de caução como condição para a execução provisória do despejo, no que a Lei n. 12.112/2009 novamente melhorou situação do locador inadimplido. Com efeito, ela alterou a redação do caput do art. 64 da Lei n. 8.245/91 para dispensar a caução também na hipótese de desfazimento da locação “em decorrência da falta de pagamento do aluguel e demais encargos” (art. 9º, inc. III).

Destarte, atualmente o locador desfruta de uma posição privilegiada do ponto de vista da exequibilidade da ordem de despejo. Ao contrário do CPC, que, como regra, atribui efeito suspensivo à apelação (art. 1.012) e exige contracautela para a prática de diversos atos praticados durante a execução provisória (art. 520, inc. IV), a Lei n. 8.245/91, além de prever o despejo liminar (art. 59, § 1º), possibilita a imediata execução da ordem já a partir da sentença e, para isso, sequer exige que o locador preste caução.

3. Razão do veto presidencial e análise crítica

Segundo a mensagem de veto, “a propositura legislativa […] contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo”. Ainda de acordo com as razões do veto, o art. 9º do PL n. 1.179/2020 conferiria “proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento”, desconsiderando, dessa forma, a “realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de alugueis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio”.

Entretanto, o dispositivo vetado não desconsidera o interesse patrimonial do locador. Além de não afetar a exigibilidade judicial do crédito deste, o art. 9º do PL n. 1.179/2020 não altera a regra da Lei n. 8.245/91 que permite a execução provisória da sentença independentemente de caução (art. 64). Apenas impede, temporariamente, uma medida legítima, porém extrema, sendo que essa solução transitória se justifica em relevantes razões de saúde pública. É nesse contexto que a relação processual é reequacionada em favor do locatário. Mas essa flexibilização da tutela em favor do devedor cessa com a prolação da sentença concessiva do despejo. Reconhecido judicialmente o direito do locador à desocupação do imóvel, a ordem de despejo passa a ser imediatamente executável, independentemente de caução.

Assim, não há de se falar em contrariedade ao interesse público. O art. 9º do PL n. 1.179/2020 não confere uma “proteção excessiva ao devedor”. Sequer é no interesse exclusivo dos locatários que se propõe a vedação transitória do despejo liminar, mas sim no da coletividade. Outrossim, o dispositivo não incentiva o inadimplemento, pois o locatário que descumprir as suas obrigações será fatalmente despejado após a sentença de procedência da ação de despejo, ainda que o locatário recorra da decisão. Em verdade, o art. 9º do PL n. 1.179/2020 promove um justo equilíbrio entre os interesses patrimoniais do locador, de um lado, e as razões de Saúde Pública, de outro.

É nesses termos que muitos julgados já vêm reconhecendo a necessidade de se obstar os despejos liminares durante a pandemia do coronavírus, como se verifica, especificamente, na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A título ilustrativo, a 33ª Câmara de Direito Privado da referida corte, com fundamento no artigo 5º da Resolução do Conselho Nacional de Justiça n. 313/2020 e no artigo 5º do Provimento do Conselho Superior da Magistratura do TJSP de n. 2550/2020, decidiu que “a pandemia de coronavírus tem evidentes reflexos sobre a saúde, e, sem dúvida, ter preservado o direito de moradia, agora, auxilia na prevenção do contágio, contribuindo para o cumprimento da recomendação de isolamento/distanciamento social”. Em sentido semelhante, a 29ª Câmara de Direito Privado do TJSP julgou “correta a determinação de suspensão da medida, por ora, em razão da situação extraordinária que todos vivem, diante da pandemia causada pelo COVID-19 no Brasil e no mundo, fato público e notório, com reconhecimento do estado de calamidade pública feita ao Congresso Nacional pela Presidência da República”. Segundo o acórdão, “a preservação da integridade física do oficial de justiça e [de] todos os que seriam envolvidos no cumprimento da ordem de despejo, se sobrepõe ao interesse da autora, justamente para evitar o contágio do COVID-19, o que não se pode permitir, diante da gravidade da pandemia”. Da mesma forma, recentemente a 36ª Câmara de Direito Privado da corte paulista, com fundamento no reconhecimento do estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo 06/2020) e na decretação de quarentena no Estado de São Paulo (Decreto 64.881/2020), decidiu ser “cabível a suspensão da decisão que concedeu o despejo, uma vez que seu cumprimento, nas atuais circunstâncias, estaria em desconformidade com as medidas de saúde vigentes que indicam a necessidade de se reduzir a circulação de pessoas e a permanência no ambiente residencial”.

Nesse contexto, a aprovação do art. 9º do PL n. 1.179/2020 consolidaria, legislativamente, uma orientação jurisprudencial já existente. O dispositivo vetado apoia-se, pois, em razões de interesse social que estão sendo lamentavelmente desconsideradas no veto do Presidente da República, mas já reconhecidas em reiteradas decisões judiciais, como demonstram os julgados do TJSP acima citados.

Além disso, o veto também se esquece da possibilidade de o locador obter despejo liminar com fundamento no art. 300 do CPC, desde que, além da probabilidade do seu direito, comprove perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. Com efeito, o STJ já decidiu que a tutela provisória prevista no art. 59, § 1º, da Lei n. 8.245/91 é de evidência, de sorte que o dispositivo é compatível com a tutela provisória de urgência do então vigente art. 273, inc. I, do diploma processual civil revogado. Por isso, o art. 9º do Projeto de Lei não exclui a possibilidade de o juiz, excepcionalmente, conceder ordem de despejo liminar, desde que comprovado o risco à subsistência do locador nos termos do art. 300 do vigente CPC. Consequentemente, também não assiste razão ao veto presidencial quando afirma que o PL desconsidera a realidade de diversos locadores cujo sustento depende do recebimento dos aluguéis. A situação particular desses locadores, desde que devidamente comprovada, pode ser resguardada mediante a concessão de tutela provisória de urgência prevista no art. 300 do CPC.

4. Conclusão

Em conclusão, espera-se que o Congresso Nacional, considerando a referida experiência jurisprudencial e a solução equilibrada do art. 9º do PL n. 1.179/2020 em face do contexto da pandemia do coronavírus, aprecie, com urgência, o veto do Presidente da República, para rejeitá-lo, nos termos do art. 66, § 4º, da Constituição Federal.


VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada: doutrina e prática. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 303.

A redação original do art. 64, caput, da Lei n. 8.245/91 mencionava apenas os incs. I, II e IV do art. 9º: “Salvo nas hipóteses das ações fundadas nos incisos I, II e IV do art. 9°, a execução provisória do despejo dependerá de caução não inferior a doze meses e nem superior a dezoito meses do aluguel, atualizado até a data do depósito da caução”.

Mensagem de veto n. 331, de 10 de junho de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-331.htm>.

TJSP, 33ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2066062-90.2020.8.26.0000, j. em 28/04/2020.

TJSP, 29ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2081160-18.2020.8.26.0000, j. em 12/05/2020.

TJSP, 36ª Cam. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2102322-69.2020.8.26.0000, j. em 10/06/2020. No mesmo sentido dos julgados citados cf., dentre outros, TJSP, 30ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2104964-15.2020.8.26.0000, j. 28/05/2020; 32ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2104464-46.2020.8.26.0000, j. em 12/06/2020.

STJ, 4ª T., REsp 1207161/AL, j. em 08/02/2011, DJe 18/02/2011.

Guilherme Henrique Lima Reinig é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, mestre e doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

Daniel Amaral Carnaúba é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus Governador Valadares), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1) e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

Daniel Pires Novais Dias é professor de Direito Civil da FGV Direito Rio, doutor em Direito, com período de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (2014-2015), e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Foi pesquisador visitante na Harvard Law School (2016-2017) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado em Hamburgo, na Alemanha (2015).

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Congresso deve barrar veto a proibição de retroação da Lei 14.010/20

Em 10 de junho de 2020, após quase três meses do reconhecimento oficial da calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 no Brasil (Decreto Legislativo 6/20), sobreveio a Lei 14.010, com a instituição do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET). Entre os dispositivos vetados na análise do Projeto de Lei n° 1.179/20, encontra-se o art. 6º:

Art. 6º As consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.

A regra projetada tinha o objetivo de deixar assentado no âmbito do RJET que, relativamente à execução dos contratos, a existência de motivo de força maior causado pela pandemia ou de fato do príncipe devido às medidas adotadas pelas autoridades sanitárias não poderia ser considerado para o período contratual pretérito à superveniência da pandemia e suas repercussões nos vínculos negociais.

A Lei 13.979/2020, promulgada para dispor sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, enunciou um rol de medidas que as autoridades públicas federais, estaduais e municipais, inclusive as relacionadas à imposição do isolamento social, da quarentena, além de prever medidas de interdição de funcionamento de determinados estabelecimentos. Tais providências, a par do receio da contaminação com a Sars-COV-2, impactaram várias relações jurídicas de Direito Privado, mas obviamente não interferiram nos efeitos contratuais relacionados ao período anterior ao início da pandemia no país.

Logo, no âmbito do Senado Federal foi apresentado projeto de lei para instituir o RJET no período da pandemia do Covid-19. Após regular tramitação nas duas Casas Legislativas, houve a aprovação do Projeto de Lei 1.179/20, com a inclusão do art. 6º acima transcrito. A referida proposição legislativa se justificou em razão da necessidade de haver clareza “que os transtornos causados pela pandemia no equilíbrio econômico dos contratos não têm eficácia retroativa”, conforme registrou a Senadora Simone Tebet, no Parecer n. 18/20.

A iniciativa legislativa brasileira não representou novidade no cenário dos países que vêm sofrendo efeitos da pandemia do Covid-19. Na Alemanha foi aprovada a Lei de Atenuação dos Efeitos da Pandemia da Covid-19 no Direito Civil, Falimentar e Recuperacional. No Reino Unido, da mesma forma foi aprovado o Coronavirus Act 2020 que também tratou de várias questões relativas ao Direito Privado.

Além obviamente das questões relacionadas à saúde pública e à vida das pessoas, é certo que um dos ambientes mais atingidos em decorrência da pandemia vem sendo o econômico e nele se inclui a temática dos efeitos dos contratos numa economia capitalista. A isenção da responsabilidade do devedor pelos prejuízos sofridos pelo credor de uma relação obrigacional resultantes de caso fortuito ou força maior (CC, art. 393) não pode ser reconhecida relativamente ao período anterior à ocorrência do motivo de força maior (no caso específico, os efeitos concretos da pandemia nas relações negociais).

Na clássica lição de Caio Mário da Silva Pereira, “se a prestação se impossibilita, não pelo fato do devedor, mas por imposição de acontecimento estranho ao seu poder, extingue-se a obrigação, sem que caiba ao credor ressarcimento”. Assim, por óbvio, que tal impossibilidade por evento alheio ao devedor deva ficar caracterizada para justificar a isenção de responsabilidade.

A regra projetada no PL 1.179/20 tem o objetivo de, em razão dos casos verificados no período atual — de efeitos negativos da pandemia e dos atos das autoridades públicas no âmbito contratual —, impedir que haja o aproveitamento da invocação do motivo de força maior para efeitos contratuais pretéritos ao início do período da pandemia. Imagine-se, apenas a título exemplificativo, o vínculo de compra e venda de veículo cujo preço deveria ter sido pago em janeiro de 2020, e não o foi pelo devedor de tal prestação e, com o surgimento das consequências da pandemia, o comprador se aproveite de tal circunstância para justificar o não cumprimento da sua prestação, alegando encontrar-se isento de qualquer responsabilidade contratual. É evidente que o inadimplemento da obrigação, verificado antes do início da pandemia no Brasil, deve seguir às regras permanentes do incumprimento da prestação, até mesmo podendo ser invocado o art. 393, do Código Civil, desde que por motivo de força maior ou caso fortuito diverso da pandemia e dos fatos do príncipe que a sequenciaram.

Como já exposto em outro artigo, a aplicabilidade dos efeitos do caso fortuito e da força maior relacionados à pandemia e aos fatos do príncipe, e da sua irretroatividade, foram tratados na regra projetada no art. 6°, do PL 1.179/20, de modo que o devedor não poderá invocar, a fim de se eximir das responsabilidades pelo inadimplemento da sua obrigação, circunstâncias anteriores àquelas relacionadas à pandemia.

Na realidade, tal previsão contida no projetado art. 6º já decorre do sistema jurídico atual (e permanente) que atua sobre o regime do inadimplemento fortuito, na expressão doutrinária. Contudo, a grande virtude da proposta legislativa foi assegurar maior tranquilidade aos contratantes a respeito da separação das situações concretas verificáveis, não dando azo a oportunismos quanto aos inadimplementos de prestações não relacionados aos efeitos da pandemia.

Após avaliar o texto do PL 1.179/20, o Presidente da República vetou o art. 6º. Eis as razões do veto: “A propositura legislativa, contraria o interesse público, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos apropriados para modulação das obrigações contratuais em situação excepcionais, tais como os institutos da força maior e do caso fortuito e teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva.”

Alguns comentários a esse respeito. À luz da Constituição Federal (art. 66), o veto presidencial se justifica em duas hipóteses: a) inconstitucionalidade do projeto de lei; b) contrariedade do projeto de lei ao interesse público. Das duas, resta claro que o veto se baseou numa suposta contrariedade da regra do art. 6° ao interesse público, ou seja, “conveniência do esquema do poder dominante, o que pode ser expressado discricionariamente”.

Contudo, no caso em tela, o interesse público caminha no sentido oposto ao veto do Presidente da República, com a vênia devida. A segurança jurídica é essencial para a confiança no sistema jurídico e no Estado de Direito, além de ser fundamental para a constituição e desenvolvimento dos negócios e das relações jurídicas em geral. A segurança jurídica se correlaciona à uma visão mais democrática do Direito e da vida em sociedade, e aponta para uma melhor qualidade de vida das pessoas, sem que haja “danos” ou com menores danos possíveis, neste caso com uma condigna reparação.

À luz desta perspectiva, o veto presidencial à regra do art. 6º, tão debatida nas duas Casas legislativas e, inclusive com respaldo em manifestações doutrinárias a respeito do tema, não apresenta justificativa que se alicerce na noção de interesse público e, por isso, sugere-se ao Congresso Nacional que, à luz das normas constitucionais (art. 66, § 4º), promova a rejeição do veto o mais rápido possível, de modo a efetivamente proporcionar maior segurança jurídica no âmbito dos contratos, evitando-se, assim, questionamentos a respeito do incumprimento de prestações contratuais que não se relacionem às consequências da pandemia, o que, contudo, já vem ocorrendo na prática.

No âmbito de um período emergencial e transitório, que decorre da pandemia e do “desconhecido”, não se revela justificado e razoável permitir que outras crises possam ser geradas no ambiente contratual. As instituições e as autoridades de todos os poderes da República têm um desafio inigualável quanto à adoção de medidas tendentes à redução dos danos decorrentes da Covid-19 e, por isso, é de se louvar a atuação do Congresso Nacional na aprovação do Projeto de Lei 1.179/20, em especial ao prever a regra do art. 6º, que detalha os efeitos da execução dos contratos em geral para deixar assentado que o incumprimento sob a alegação dos efeitos da pandemia não pode servir de “panaceia geral”, especialmente quando se tratar de casos concretos cujas prestações já deveriam ter ocorrido no período anterior à pandemia no território brasileiro. A regra projetada tem o claro propósito de evitar os “oportunismos”, ainda que para viabilizar a postergação da prestação, que somente será fruto de uma imposição via comando judicial de medidas tendentes ao cumprimento do avençado. Trata-se, à toda evidência, de uma norma pautada também na boa-fé, a impedir a adoção de condutas desleais e ímprobas. Assim, haveria claro “freio” aos devedores no afã de não cumprirem o que havia sido anteriormente avençado sob o manto da alegação de “força maior” em decorrência da pandemia.

Cumpre destacar que, por certo, a nova lei pode não agradar a todos, e isso é natural em qualquer coletividade, particularmente no ambiente de uma sociedade plural. No entanto, o propósito de uma lei, ainda que não atenda aos interesses da unanimidade, é pacificar os conflitos, evitando-se que eles se eternizem no ambiente também desgastante de um processo judicial.

Portanto, o trabalho não se encerrou: concita-se o Congresso Nacional a promover a rejeição do veto presidencial, de modo a permitir a promulgação do projetado art. 6°. Somente assim haverá, de fato, concretização do interesse público na edição de norma jurídica que permita a estabilidade das relações jurídicas no âmbito contratual, notadamente no período emergencial e transitório relativo às consequências da pandemia da Covid-19.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: teoria geral das obrigações. v. II. 31. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019, p. 335-336.

RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 100.

SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. Comentários ao art. 66. In: BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura (coords.). Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p. 1040.

Guilherme Calmon Nogueira da Gama é desembargador do TRF da 2ª Região; professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; professor permanente do PPGD da Universidade Estácio de Sá; professor titular de Direito Civil do IBMEC; mestre e doutor em Direito Civil pela UERJ.

Thiago Ferreira Cardoso Neves é advogado, mestre e doutorando em Direito Civil pela UERJ, professor dos cursos de pós-graduação da Emerj, do Ibmec e do CERS, Visitingresearcherno Max Planck Institute for ComparativeandInternational Private Law — Hamburg-ALE — e vice-presidente administrativo da Academia Brasileira de Direito Civil — ABDC.

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Não incidem juros de mora entre expedir e pagar precatório, diz STF

Não devem incidir juros de mora no período entre a data da expedição do precatório ou da requisição de pequeno valor (RPV) e o efetivo pagamento. O entendimento foi firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em julgamento de recurso com repercussão geral.

O caso foi julgado no Plenário virtual e encerrou-se nesta segunda-feira (15/6). Foram 9 votos contra 2. A maioria dos ministros seguiu o voto divergente apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes.

Maioria dos ministros entendeu que não devem incidir juros de mora entre a data da expedição do precatório e o pagamento efetivoReprodução

Para ele, diversos precedentes da corte geraram o entendimento consolidado na Súmula Vinculante 17, no sentido de que “não incidem juros de mora durante o período previsto no parágrafo 1º do artigo 100 da Constituição Federal (na redação anterior dada pela EC 30/2000)”.

O ministro defendeu que, pelo princípio da unidade da Constituição, o texto deve ser interpretado em sua totalidade. Desta forma, disse Moraes, a incidência de juros de mora desde a inscrição do precatório até seu efetivo adimplemento “vai na contramão do que estabelece o parágrafo 5º do artigo 100, que prevê a possibilidade de pagamento até o fim do exercício financeiro seguinte para os créditos inscritos até 1º de julho”.

A tese fixada foi a seguinte: “O enunciado da Súmula Vinculante 17 não foi afetado pela superveniência da Emenda Constitucional 62/2009, de modo que não incidem juros de mora no período de que trata o parágrafo 5º do artigo 100 da Constituição. Havendo o inadimplemento pelo ente público devedor, a fluência dos juros inicia-se após o ‘período de graça’”.

Relator vencido

Vencidos o relator, ministro Marco Aurélio Mello, e o ministro Luiz Edson Fachin, que entendiam que era possível a incidência dos juros de mora. No voto, o relator defendeu que “o sistema de precatório não pode ser confundido com moratória, razão pela qual os juros da mora devem incidir até o pagamento do débito”.

Ainda segundo Marco Aurélio, o fato de o constituinte ter previsto a atualização monetária decorrente do pagamento não é suficiente para afastar a incidência dos juros. “Tanto que a Emenda Constitucional 62/2009, no campo simplesmente pedagógico, versou a previsão dos juros moratórios — parágrafo 12 —, mantendo a redação anterior do parágrafo 1º — hoje parágrafo 5º — no tocante à atualização”, explicou. 

Acórdão do TRF-4

O recurso foi interposto por um aposentado contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que, em relação ao montante principal devido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), limitou a incidência dos juros de mora ao período entre a conta de liquidação e a inscrição do precatório.

O aposentado sustentou que o tema é diferente da questão contida no tema 96 da repercussão geral, que fixa os juros da conta de liquidação até a expedição do requisitório. Aponta violação ao artigo 100, parágrafo 12, da Constituição Federal, que prevê o uso de valores de requisitórios no período entre a expedição e o efetivo pagamento, conforme a Emenda Constitucional (EC 62/2009).

Além disso, ressaltou a insistência do tribunal local em adotar a decisão de recurso que definiu que incidem juros de mora após a expedição do precatório quando os valores não forem cumpridos no exercício financeiro seguinte.

Destacou ainda a intenção do legislador constitucional de impedir o enriquecimento indevido do erário em razão do significativo lapso temporal. 

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RE 1.169.289

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Ricardo Hiroshi Botelho Yoshino Advogados é parceiro da ConJur

Ricardo Hiroshi Botelho Yoshino Advogados é o novo parceiro da ConJur

O escritório Ricardo Hiroshi Botelho Yoshino Advogados, com sedes nas cidades de Assis e São Paulo, é o novo parceiro da ConJur.

Fundado em 2002, o escritório tem por objetivo prestar serviços jurídicos com alto padrão de qualidade e excelência em diversas áreas do Direito. A banca tem entre seus objetivos principais: oferecer sempre o melhor aos clientes e os ajudá-los a atingir suas metas corporativas. A equipe proporciona soluções imediatas e eficientes para atender as necessidades dos clientes, com um amplo espectro de serviços jurídicos.

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Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2020, 10h28