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A bebida alcoólica e a pandemia do coronavírus

O uso de drogas, entre elas, o álcool, é assunto mundialmente importante, tanto que a Organização das Nações Unidas (ONU), ao definir os “17 Objetivos para Transformar nosso Mundo”, considerou essencial “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar, em todas as idades” fixando como uma das ações importantes “reforçar a prevenção e o tratamento do abuso de substâncias, incluindo o abuso de drogas entorpecentes e uso nocivo do álcool.[1]

Especificamente em relação à prevenção ao uso do álcool e diante da necessidade de a população permanecer temporariamente em isolamento social, em tempos da pandemia do coronavírus, a seção europeia da Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou limitar o consumo de bebida alcoólica durante a quarentena, sob o principal argumento de que consumir essa substância compromete a imunidade das pessoas.

A OMS indicou, também, que o excesso de álcool pode causar intoxicação prejudicial à saúde física e mental das pessoas, além de contribuir para desencadear comportamentos de riscos, que poderiam ser exemplificados desde o descuido com as medidas de proteção e de higiene individual recomendadas para evitar contaminações por vírus até, em casos extremos, o incremento de comportamentos desequilibrados, especialmente, naquelas pessoas que são agressivas, com risco de gerar quadros de violência interpessoal[2], inclusive, doméstica, sem falar que a intoxicação alcoólica torna a pessoa mais propensa ser vítima de agressão.

Cabe acrescentar ser conhecido da ciência que o uso agudo e crônico de álcool[3] está associado aos casos de suicídio por proporcionar desinibição, impulsividade, prejuízo no julgamento, além de haver registros que o abuso do consumo de álcool ocorre para afastar o sofrimento que acompanha esse ato humano extremo[4], cuja redução da incidência é demanda mundial.

Embora sejam temas diversos, a prevenção à contaminação pelo coronavírus e a prevenção aos efeitos danosos do álcool, ambos ocupam a área da saúde e merecem atenção, sobretudo, porque do mesmo modo que durante a pandemia a ciência orienta a alteração de determinados hábitos e modos de vida, ela também enfatiza que nesse período será preciso redobrar as cautelas relativas ao uso do álcool.

Sob esse ângulo, cabe observar a Política Nacional sobre o Álcool, aprovada pelo Decreto 6.177, de 22 de maio de 2007 e a Política Nacional sobre Drogas (Pnad), trazida pelo Decreto 9.761, de 11 de abril de 2019. O último texto apresenta referências que ganham destaque durante a pandemia, servindo para fundamentar ações das autoridades que enfrentam essa crise de saúde pública e, também, para orientar determinados comportamentos individuais.

A introdução do texto da Pnad, isto é, do Decreto Federal de 2019 enfatizou, com base em evidências científicas, que o álcool é a substância lícita cuja experimentação ocorre mais cedo entre os adolescentes brasileiros, provavelmente em razão da ampla disponibilidade; indicou, também, ser esse público adolescente muito vulnerável aos efeitos do álcool, notadamente porque nessa fase da vida o cérebro humano ainda se encontra em desenvolvimento e;apontou ser preocupante para as pessoas, independente da idade, a associação do quadro de depressão e de abuso de álcool. Além disso, o texto da Pnad ressaltou, a partir da análise de resultados de pesquisas, que 5% da população brasileira já tentou o suicídio, ficando apurado em quase um quarto dessas pessoas, antes da tentativa, haviam consumido álcool.

Ao analisar os pressupostos reunidos para sustentar as ideias expostas pela Pnad, vislumbram-se importantes fundamentos, como o reconhecimento do vínculo familiar, a espiritualidade, os esportes, entre outros,como fatores de proteção ao uso, ao uso indevido e à dependência do álcool, os quais podem sustentar ações relativas ao álcool durante a pandemia do coronavírus.

A intoxicação alcoólica é situação séria, não deveria ser glamourizada nem gerar estigmatização caso ocorra com alguém, seja em ambiente privado ou público, menos ainda quando a imagem dessa situação for captada e exibida pelos meios de comunicação.

A propósito, cabe registrar que durante a pandemia foi apontada aparente irregularidade em cenas envolvendo o consumo de álcool durante apresentação artística transmitida por uma rede social (live) e, por consequência, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) manifestou interesse em apurar o episódio justificando a intervenção no fato de ter havido ingestão excessiva de bebida alcoólica, sem qualquer aviso de conteúdo impróprio para menores de idade. Em apresentação semelhante, uma dupla de artistas sofreu crítica pública por um deles ter demonstrado sinais de intoxicação alcoólica durante a exibição[5].

A pandemia do coronavírus está demonstrando a necessidade de a população evitar determinados comportamentos comuns até pouco tempo atrás, para reduzir a exposição e evitar uma contaminação indesejável, adotando medidas preventivas e restritivas em benefício da saúde individual e geral. Essa capacidade humana de mudar hábitos diante do risco, sugere considerar ser momento para o governo e a sociedade alterar em posturas e adotarem práticas de prevenção no campo do álcool, inclusive, com suporte no texto da Pnad.

Uma delas, muito simples, se funda no entendimento que álcool é substância que, embora lícita, não deve ser consumida ou oferecida às crianças e aos adolescentes, porque pelas razões antes mencionadas, álcool para menores é expressamente vedado pela legislação vigente.

Mais do que isso, ao adulto que consome álcool regularmente é sugerido pensar se em alguma oportunidade faz uso dessa substância com a finalidade de aliviar tensões ou buscar relaxamento, especialmente, se esse uso de bebida alcoólica ocorre diante das crianças e dos adolescentes. Referido comportamento, aparentemente comum e, até poucas gerações atrás pouco comentado, é arriscado, porque crianças e adolescentes poderão registrar isso na memória e, num futuro próximo, reproduzir o comportamento do adulto que, muitas vezes, lhe serve como referência de vida.

Esse comportamento relacionado ao uso de álcool ganha destaque nesse momento de isolamento social, no qual há maior tempo de convivência entre as pessoas que residem juntas. Por isso é importante que os adultos evitem usar álcool, mesmo em quantidade moderada, especialmente diante das crianças e adolescentes. Caso isso, inevitavelmente, ocorra é importante conversar com eles antes acerca da vedação do consumo de álcool aos menores de 18 anos de idade, esclarecendo que essa proibição tem fundamento científico e protetivo, porque até essa idade, inclusive, depois dela, o desenvolvimento do cérebro humano pode ser prejudicado pela ingestão do álcool.

É necessário reforçar a ideia, frequentemente exposta pela ciência, que o álcool pode agravar quadros de depressão e de ansiedade, transtornos que certamente serão mais comuns no contexto da pandemia de Covid-19, conforme alerta a psiquiatra Alessandra Diehl, especialista em dependência química e vice-presidente da Abead (Associação Brasileira de Estudos Sobre o Álcool e Outras Drogas)[6], abordagem que, conforme antes destacado, está inserida no texto introdutório da Pnad ao apontar a prevalência da depressão entre abusadores de álcool.

Em relação a estratégias mais amplas, é importante que a sociedade discuta outras medidas para tornar mais seguro e saudável o período de quarentena, a partir da proposta da OMS relacionada aos riscos do álcool, se dispondo a reduzir a oferta de bebida alcoólica durante esse período e, também, retome o tema da restrição da publicidade do álcool (incluindo a cerveja) nos meios de comunicação social; aliás, assunto objeto do Projeto de Lei da Câmara nº 83/2015, atualmente, em tramitação pelo Senado Federal.

Observado isso, seria importante veicular orientações consistentes acerca dos riscos à saúde resultado do consumo excessivo de bebida alcoólica durante a quarentena e, também, estimular que os governantes se disponham normatizar e controlar a quantidade das vendas de álcool diretas ao consumidor, inclusive, nas compras feitas à distância com entrega em casa, na forma conhecida como delivery.

Todas essas medidas são adequadas às políticas e às ações gerais de prevenção ao álcool indicadas pela Pnad, que ainda orienta estimular a regulação do horário e de locais de venda de álcool e, também, recomenda o uso da tributação dos preços, porque essas estratégias inibem a oferta e o consumo de álcool, tal qual a comentada restrição da publicidade.

A título de comparação, verifica-se que o limite de venda de quantidades de álcool, inclusive cerveja e vinho, foi adotado por alguns estados na Austrália, país que vem manejando com cuidado as situações que envolvem a pandemia do coronavírus, de modo que lá o consumidor dessa substância pode adquiri-la em quantidade previamente indicada, o que sinaliza para o risco do consumo de álcool durante a pandemia e busca desestimular abusos.

Da ciência à arte, o álcool está presente na vida das pessoas, mantendo seu emprego em tempos normais e de pandemia,não somente como bebida alcoólica,mas também na apresentação em gel para higienizar mãos e objetos. Entretanto, é preciso destacar que há risco à saúde na ingestão do álcool, cujo uso moderado é restrito aos adultos e a ingestão jamais deveria servir para atenuar problemas ou ter justificativa ineficaz, conforme parece ter ocorrido durante a pandemia de Gripe Espanhola (meados de 1918) quando, no Brasil, a população extraiu da ciência a ideia de que o álcool “matava germes” para estimular o consumo de uma mistura, supostamente terapêutica,de cachaça, mel e limão.

 é procurador de Justiça do MP-SP e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).

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MP recomenda lockdown em regiões críticas da cidade e estado do RJ

Lockdown proposto duraria 15 dias
Sandeepachetan

Para reduzir a intensidade da propagação do coronavírus, o Ministério Público fluminense recomendou, nesta quarta-feira (13/5), que o estado e a prefeitura do Rio de Janeiro adotem medidas mais rigorosas de isolamento social, como aquelas de bloqueio total (lockdown) de atividades não essenciais e da circulação de pessoas nas regiões mais críticas, especialmente em áreas da capital e região metropolitana.

A recomendação é que os bloqueios durem 15 dias, renováveis até que o número de infectados e mortos pela Covid-19 comece a cair.

A Promotoria sugere que seja proibido o acesso de pessoas a espaços de lazer público, como praças, calçadões e complexos esportivos. Também recomenda vedar a circulação de pessoas e veículos particulares, exceto para compra ou abastecimento de alimentos, medicamentos e produtos de higiene pessoal; atividades de segurança; idas a hospitais e clínicas; obtenção de benefícios sociais; entrega em domicílio e no trajeto caso/trabalho de serviços essenciais.

Além disso, o MP-RJ quer a proibição do funcionamento de qualquer tipo de comércio que permita a aglomeração de pessoas na rua. As exceções seriam lugares que só abrem para fazer entregas em casa.

O uso de máscaras deve ser obrigatório sempre que for necessária a interação com pessoas que não pertençam ao círculo familiar, tanto em ambientes públicos como em privados.

Estado e município do Rio também devem regulamentar como fiscalizarão o cumprimento dessas regras e estabelecer multas para quem as desrespeitá-las. Os infratores também poderão responder pelos crimes de infração de medida sanitária preventiva (artigo 268 do Código Penal) e desobediência (artigo 330 do Código Penal).

Para que o lockdown funcione, no entanto, é preciso que os entes adotem medidas para assegurar condições de sobrevivência à população, alerta o MP-RJ. Entre elas, a oferta de cestas básicas, a reativação do programa estadual de transferência de renda e o uso de quartos de hotéis para pessoas em condição de rua.

Nova tentativa

Na quarta-feira passada (6/5), o MP encaminhou ao prefeito do Rio, Marcelo Crivella, e ao governador, Wilson Witzel, um estudo da Fiocruz que alerta para a necessidade de adotar ações de lockdown no estado, com o objetivo de conter a disseminação do novo coronavírus.

Desde então, Crivella já ordenou o lockdown de 11 bairros da capital fluminense.

Clique aqui e aqui para ler as recomendações

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

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Leandro Facchin: A polêmica instrução normativa da Funai

A Instrução Normativa nº 9/2020, publicada no dia 22 de abril pela Fundação Nacional do Índio (Funai), tem causado controvérsia no país. A nova resolução disciplina o requerimento, a análise e a emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites em relação a imóveis privados, o que permite a exploração e a comercialização de terras indígenas que ainda não foram homologadas pelo presidente da República.

O Ministério Público Federal se manifestou contrário à medida e recomendou à presidência da Funai a anulação imediata do ato. Para o MPF, a norma é ilegal e inconstitucional, pois, segundo os procuradores federais, a instrução normativa contraria a natureza do direito dos indígenas às suas terras como direito originário e da demarcação como ato declaratório.

Na resolução, a Funai considerou a necessidade de estabelecer regras quanto à incidência e a confrontação de imóveis rurais em terras indígenas tradicionais homologadas, reservas indígenas e terras dominiais de comunidades indígenas, com fundamento na Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), e no Decreto Nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996.

De acordo com a instrução normativa, as comunidades indígenas proprietárias de imóveis rurais ou urbanos deverão comunicar os limites desses imóveis para que a Funai possa contemplá-los na análise de emissão de Declaração de Reconhecimento de Limites, que se destina a fornecer aos proprietários ou possuidores privados a certificação de que os limites do seu imóvel respeitam os limites das terras indígenas plenamente regularizadas.

A meu ver, a nova resolução da Fundação Nacional do Índio traz segurança jurídica ao Estado Democrático brasileiro, pois o que não está definido por decisão judicial não pode gerar efeito no mundo jurídico prático. O fato de existir um estudo de área de expansão de terra indígena não significa que isso se caracteriza como futura área indígena.

Ou seja, a referida instrução normativa regulamenta o que a legislação já determina e que não estava sendo cumprido pelos órgãos federais. Portanto, enquanto não houver uma decisão judicial de expropriação dessas áreas, elas continuam no domínio do particular, pois esse direito é pleno e eficaz até que ocorra uma decisão judicial contrária.

 é advogado e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

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Arantes e Ramos: Empregador é responsável por adoecimento ocupacional

Após o reconhecimento da pandemia decorrente do surto da doença Covid-19, ocasionada pelo novo coronavírus, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou fortemente o distanciamento social horizontal entre pessoas sãs, o isolamento das pessoas suspeitas de portarem o SARS-CoV-2 e a restrição de atividades em geral (quarentena), com o claro objetivo de salvar vidas.

Tais medidas têm sido adotadas gradativamente pela grande maioria dos países e vão desde o fechamento de escolas, shoppings, academias e comércio em geral até a restrição da circulação de pessoas nas ruas. Principalmente na Europa, em cidades italianas, espanholas e alemãs, a população está autorizada a sair de casa apenas para comprar alimentos, medicamentos ou ir ao hospital, por vezes em sistema de revezamento. Embora as diferentes condutas estabelecidas por governos de países, por estados ou cidades gerem opiniões controversas acerca de seu rigor ou insuficiência, um aspecto é indiscutível: precisamos de que os trabalhadores das denominadas atividades essenciais continuem trabalhando em prol da sobrevivência de todos, especialmente para tratarem as vítimas da Covid-19.

Merecem destaque entre esses trabalhadores, em razão de sua maior exposição ao novo agente viral, os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas), do ramo de alimentação, de segurança, de transporte, de telecomunicações, em serviços funerários e de tratamento de água, esgoto e lixo.

Medidas de proteção a serem adotadas por empregadores

Daí porque medidas tendentes a evitar a propagação da Covid-19 nos locais de trabalho têm merecido especial atenção de diversos organismos internacionais além da OMS, com destaque para a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo a OIT, trabalhadores e suas famílias devem ser protegidos dos riscos à saúde ocasionados pela Covid-19 no local de trabalho. Para a OIT, é de se exigir uma postura responsável das empresas, cabendo aos empregadores monitorar constantemente as orientações fornecidas por autoridades no assunto, visando ao fornecimento de informações corretas aos trabalhadores e à adoção de medidas que evitem o contágio desses trabalhadores com o novo coronavírus.

Nesse cenário, as decisões dramáticas relativas a escolher entre quem deve viver ou morrer, relatadas por médicos europeus diante do gradual colapso dos sistemas de saúde dos seus países, poderiam ser evitadas, em alguma medida, em momento anterior a esse. Na verdade, esse dilema já surge quando hospitais (públicos e privados), supermercados, farmácias, empresas de transporte, inclusive desenvolvedoras de aplicativos com essa finalidade, ou quaisquer outros empregadores, decidem preservar ou não seus trabalhadores em grupos de risco (imunodeficientes, idosos, diabéticos, hipertensos, asmáticos) quando os submetem ao transporte coletivo ou privado, ou então quando decidem fornecer ou não equipamentos de proteção individual (EPIs) suficientes (álcool em gel, óculos, protetores faciais ou viseiras, capotes impermeáveis, gorros) e ambientes apropriados (lavatórios e distanciamento entre os postos de trabalho). Além disso, a adoção de jornadas de trabalho não exaustivas e em conformidade aos limites constitucionalmente estabelecidos também configura importante medida protetiva a ser considerada pelos empregadores.

Particularmente para os profissionais de saúde que atuam heroicamente no combate direto ao SARS-CoV-2, os EPIs são as únicas proteções possíveis para se evitar a contaminação, especialmente porque esses trabalhadores não podem distanciar-se socialmente e lidam com pacientes com alta carga viral. No entanto, denúncias da Associação Médica Brasileira e do Conselho Federal de Enfermagem apontam que o Brasil já tem mais de oito mil registros de falta de EPI. O quadro se agrava diante do fato de que a utilização de EPIs não constitui garantia de neutralização de acidentes ou adoecimentos ocupacionais.

A eficácia horizontal dos direitos fundamentais à saúde, à vida e ao meio ambiente laboral hígido

Em relação à responsabilidade dos empregadores em razão do adoecimento ocupacional dos trabalhadores pela Covid-19, um primeiro e importante aspecto jurídico a destacar é que os preceitos consagradores dos direitos, liberdades e garantias fundamentais não se dirigem exclusivamente ao Estado. A eficácia desses direitos deve ser observada também entre trabalhadores e empresas.

Com efeito, a partir da elaboração de normas constitucionais a estabelecerem pautas sociais e orientarem a atividade econômica dos atores privados, fixando marcos mínimos de proteção, o Estado dessacralizou a autonomia privada e a propriedade, estabelecendo matérias de ordem pública (como, por exemplo, a vida e a integridade psicofísica dos trabalhadores e o dever de preservação do meio ambiente), a justificarem a limitação à livre estipulação contratual e o desempenho de atividades econômicas lesivas àqueles bens jurídicos. Não fosse a incidência das normas constitucionais nas relações jurídicas privadas, as conquistas seculares do Direito Público, que produziram sucessivos direitos e garantias do cidadão perante o Estado, tornar-se-iam inoperantes para as transformações sociais pretendidas.

Em luminar artigo a respeito do tema, Zeno Simm lembra que o ambiente de trabalho se mostrou propício à chamada horizontalização dos direitos fundamentais (ou eficácia dos direitos fundamentais entre particulares), pois “ali, pela própria natureza da relação contratual, o empregado abre mão de uma parte de suas liberdades, na medida em que se coloca a serviço do empregador, subordinado a este e por ele controlado e fiscalizado. Quando, porém, a atuação patronal extrapola os limites do razoável, do aceitável, do necessário ao desenvolvimento das atividades empresariais, entram em ação os direitos fundamentais do trabalhador como limitação do poder empresarial…”. Desse modo, o contrato de trabalho contribuiu para a mudança dogmática dos direitos fundamentais, que deixaram de ser oponíveis somente ao Estado, para o serem também no âmbito das relações privadas.

De outro lado, o Estado não deve ficar de mãos atadas diante da livre iniciativa, sendo impelido, por vezes, a coibir abusos ou até mesmo a limitar tal exercício em determinadas circunstâncias, a fim de evitar o sacrifício de outros valores e princípios constitucionais relevantes. Nesse contexto, cumpre ressaltar o papel relevante que vem sendo desempenhado por sindicatos de categorias profissionais e pelo Ministério Público do Trabalho no ajuizamento de ações civis públicas com pedidos de obrigação de fazer quanto ao fornecimento de EPIs ou para afastamento de trabalhadores em grupos de risco do trabalho.

A caracterização da Covid-19 como doença profissional ou do trabalho e a responsabilidade dos empregadores

Dito isso, é de se indagar a respeito da responsabilização indenizatória dos empregadores no contexto da pandemia e do adoecimento ocupacional dos trabalhadores, ou ainda, se a Covid-19 pode ser caracterizada como doença profissional ou do trabalho.

A OIT já se manifestou acerca da possibilidade de caracterização da Covid-19 como doença profissional, como têm feito alguns países. E, de fato, à luz da interpretação sistemática da legislação brasileira, a Covid-19 pode ser caracterizada como doença ocupacional (ou profissional) caso o adoecimento seja desencadeado pelo exercício do trabalho característico à função ou profissão desses trabalhadores, mais comum na situação dos profissionais de saúde, ou ainda como doença do trabalho, quando causada pelo meio ambiente do trabalho ou pelas condições a que o empregado é exposto.

Em ambos os casos, o empregado doente deverá ser indenizado pelo empregador, seja em decorrência da responsabilidade pela atividade de risco (classificada como objetiva), que se caracteriza pela natureza da atividade laboral e pelo trabalho em situações em que o dano é previsível, seja em face da responsabilidade pela culpa ou dolo do empregador (classificada como subjetiva), existente nos casos em que o empregador deixa de cuidar de modo eficaz do ambiente laboral, por imprudência, imperícia ou negligência, como em decorrência da ausência ou fornecimento insuficiente de EPIs.

Nesse sentido, a Constituição de 1988 consagra, no artigo 7º, inciso XXVIII, a responsabilidade do empregador pelo dano que causar ao trabalhador, mediante comprovação de dolo ou culpa. O Código Civil, por sua vez, no parágrafo único do artigo 927, prevê a responsabilidade objetiva do autor do dano nos casos de atividade de risco ou quando houver expressa previsão legal, situação em que não é necessária a comprovação de dolo ou culpa. A regra civilista é perfeitamente aplicável às relações trabalhistas, como amplamente reconhecido pela Justiça do Trabalho.

Destaque-se, aliás, que muito recentemente o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade do dispositivo do Código Civil (artigo 927, parágrafo único) que garante ao trabalhador o direito à indenização em razão de danos decorrentes de acidente de trabalho ou adoecimento ocupacional, independentemente da comprovação de culpa ou dolo do empregador, se a atividade é considerada de risco (responsabilidade objetiva). Seja como for, a responsabilidade do patrão nos casos de acidente de trabalho ou adoecimento ocupacional sempre existiu em qualquer situação de culpa (negligência, imperícia e imprudência).

Assim, embora a Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, em seu artigo 29, tenha pretendido excluir a natureza ocupacional das contaminações por SARS-Cov-2 ocorridas no ambiente de trabalho de modo apriorístico e abstrato, a norma mostra-se incompatível com os artigos 7º, XXII, e 225 da Constituição de 1988. No contexto da pandemia vivenciada, em que o contágio se dá pelo ar e de modo invisível, é de se presumir que as atividades desempenhadas por profissionais de saúde, por exemplo, representam risco especial a esses trabalhadores.

Portanto, há forte embasamento jurídico a sustentar que a responsabilidade do empregador existente no caso de adoecimento por Covid-19 dos profissionais de saúde e em quaisquer outras atividades essenciais é objetiva. Isso porque o risco da atividade desempenhada por tais trabalhadores é inerente ao fato de ser necessário, em suas funções ordinárias, o trato frequente com pessoas contaminadas com o novo coronavírus, num contexto de pandemia.

Epílogo

Como se sabe, o heroísmo é uma categoria social antiga. Considera-se herói quem age independentemente da opinião pública, com coragem e determinação, mesmo nas piores adversidades, apesar das consequências que possa vir a sofrer. Na antiguidade, estava atrelado ao uso da força. A tradição judaico-cristã alterou a concepção de heroísmo, ao concebê-lo como um processo diário e oculto de sacrifício em favor de outrem, desapegado das aparências do mundo.

Aos trabalhadores chamados a enfrentar a Covid-19, direta ou indiretamente, conforme a profissão que abraçaram ou o emprego que conseguiram obter, inclusive mediante a realização de trabalho extraordinário a qualquer hora do dia ou da noite, é devido mais que a alcunha de heróis e o reconhecimento por meio de aplausos da sociedade. Eles merecem, preventivamente, o gozo de toda proteção a que fazem jus, não apenas em decorrência dos direitos constitucionalmente assegurados acima mencionados, mas, assim como a pequena paz de consciência de saberem que seus filhos e filhas, maridos e esposas, apesar de suas ausências, receberão justa compensação em decorrência de seu altruísmo, se vierem a falecer no campo de batalha. O ordenamento jurídico brasileiro, felizmente, assegura-lhes esses direitos, ainda que alguns empregadores ou governantes possam vir a querer descumpri-los, o que nos faz recordar a famosa frase de Lacordeire: “Entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta”

Denise Arantes é advogada e sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados.

Gustavo Ramos é advogado, sócio-diretor do escritório Mauro Menezes & Advogados e mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas.

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Rocha Rossi: Como ficam os pagamentos de mensalidades escolares?

Inicialmente o que vemos é que se trata de uma situação atípica e não há precedentes em decisões judiciais, bem como que o fechamento das instituições de ensino decorreu de ordem do poder público em razão da pandemia da Covid-19.

De forma geral, boa parte dos órgãos de orientação e defesa do consumidor proferiram orientações, de modo acertado, para que as mensalidades nas escolas particulares sejam pagas regularmente durante a pandemia. A própria Secretaria Nacional do Consumidor recomendou aos consumidores a não solicitação de reembolsos, descontos ou cancelamento dos pagamentos durante a quarentena.

Esse posicionamento decorre do fato de o contrato de educação ser firmado de modo anual, ou seja, a escola tem a obrigação de entregar os serviços ao longo do período do contrato, sendo que o cronograma de horas poderá ser compensado nos próximos meses ou, até mesmo, entregue em forma de EAD (ensino a distância).

O objetivo desta orientação é assegurar o cumprimento dos contratos e respeitar os consumidores, mas também evitar o fechamento das escolas e o eventual não pagamento de colaboradores e prestadores de serviços destas instituições.

Importante ressaltar que na cidade de São Paulo, por exemplo, o Conselho Estadual de Educação aprovou que atividades em casa sejam contabilizadas para o ano letivo nas escolas, dependendo ainda da aprovação do Secretário de Educação.

O MEC também tem agido no mesmo sentido e permitiu que o ensino superior seja ministrado de forma virtual neste período para não prejudicar a entrega do conteúdo programático.

Caso haja redução de custos das escolas e instituição de ensino superiores, essa redução deve ser repassada através da mensalidade para que não haja enriquecimento ilícito e também que o consumidor não seja prejudicado.

Ainda, veja-se caso o isolamento social seja estendido e se, de algum modo, o conteúdo programático não puder ser entregue dentro do período contratado, as instituições de ensino terão de se organizar para que a entrega ocorra fora do prazo sem qualquer cobrança extra, tendo em vista que já houve a quitação e sempre respeitando a carga horária contratada.

Já com relação a creches e berçários que não têm um conteúdo programático obrigatório, a sugestão é sempre no sentido do diálogo e da negociação, tendo em vista que essas instituições também deverão manter as suas obrigações com funcionários e colaboradores.

Alguns casos em que pais tiverem diminuição de renda, a sugestão é sempre no sentido de que haja uma negociação de forma individual e que não sejam cobradas multas e juros por inadimplência.

 é especialista em Direito Processual Civil e também atua no escritório Almeida Prado & Hoffmann Advogados.