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Visitas virtuais amenizam impacto de fechamento de presídios

Com a epidemia do novo coronavírus, as cerca de um milhão de visitas registradas mensais a detentos foram proibidas nos presídios brasileiros. E, para suavizar o impacto do fechamento total das prisões, o Conselho Nacional de Justiça e a organização sem fins lucrativos Instituto Humanitas 360 promovem visitas sociais virtuais.

Agência CNJVisitas virtuais amenizam impacto de fechamento de presídios, diz CNJ

O projeto iniciou no Maranhão e a ideia é que as visitas sociais virtuais sejam expandidas para todo o país e mantidas como política pública, mesmo ao término da pandemia. A solução virtual apoia, por exemplo, visitas de familiares que moram longe, reforçando vínculos para a volta à sociedade após o cumprimento da pena.

Para desenvolver o projeto no estado, o CNJ forneceu apoio técnico ao Instituto Humanitas 360 para a doação de 55 notebooks, que foram distribuídos para 39 unidades prisionais maranhenses. Todos os equipamentos doados na ação têm termos para cessão de uso e só podem ser utilizados para as visitas sociais virtuais. Países como Canadá, Estados Unidos e Colômbia já realizam visitas sociais virtuais e, devido ao contexto da pandemia, a solução também vem sendo adotada em outros países, como Austrália e Irlanda.

As chamadas acontecem por vídeo com visitantes previamente cadastrados e obedecem a regras estabelecidas pela administração penitenciária, como vestimentas adequadas e o número de visitantes por chamada. Elas devem durar 40 minutos para cada pessoa sob custódia do Estado. No início das visitas, é exibido um vídeo gravado pela cantora maranhense Alcione, madrinha do projeto, apresentando os cuidados que as pessoas privadas de liberdade devem tomar para evitar contaminações nos presídios. O projeto também trabalha com as próprias famílias para atender situações de vulnerabilidade.

Ampliação

Até o momento, 14 governos estaduais sinalizaram interesse em participar da iniciativa capitaneada pelo CNJ e pelo Instituto Humanitas 360 com o apoio do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Com potencial para alcançar mais de 70 mil pessoas privadas de liberdade, o projeto permite a doação de aparelhos para as chamadas de vídeo, como tablets e computadores. Após a pandemia, os aparelhos poderão ser usados para assegurar a visita social virtual a grupos específicos, como populações migrantes e pessoas que cumprem pena em municípios distante de suas origens.

O coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ), Luís Geraldo Lanfredi, destaca a importância de não suprimir o contato entre pessoas privadas de liberdade com o mundo externo. “A pandemia da Covid-19 acabou acelerando uma política que já se via como necessária, pois o contato do apenado com o mundo externo atende ao próprio interesse social para que essas pessoas recomecem uma nova vida depois do cárcere. Em tempos de coronavírus, com as visitas suspensas em 100% do país, o contato virtual é ainda mais relevante e urgente”, disse.

Dinâmica

O projeto é estruturado com apoio técnico do Justiça Presente, parceria do CNJ com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública. A ação é realizada no eixo de cidadania e garantia de direitos para pessoas privadas de liberdade e egressas do sistema (Eixo 3).

Uma das principais preocupações no projeto Visitas Sociais Virtuais é a segurança dos dados e da comunicação entre as pessoas privadas de liberdade e seus familiares, que devem estar regidas pela Lei Geral de Proteção de Dados. Todas as conversas acontecem em salas ambientadas para as visitas virtuais, garantindo, ao mesmo tempo, a segurança da unidade prisional e a privacidade dos usuários. A sugestão é que aconteçam no máximo 15 visitas por vez, com duração de 40 minutos cada.

A plataforma utilizada e o sistema de cadastramento de visitantes e agendamento de visitas foram desenvolvidos pela Secretaria de Administração Penitenciária do Maranhão (SEAP-MA) e podem ser compartilhadas com outros governos estaduais. Os familiares ou outros visitantes que não possuam telefone apto a utilizar a plataforma ou que não tenham pacote de internet para as chamadas podem utilizar a estrutura dos Escritórios Sociais, equipamentos que reúnem serviços para pessoas egressas do sistema carcerário. Com informações da assessoria de imprensa do CNJ.

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Antonio Ruiz Filho: Nova disciplina da prisão preventiva

No final de 2019 entrou em vigor a Lei nº 13.964/19 que, alterando o Código Penal, e o seu processo, também impôs nova disciplina às medidas cautelares, especialmente no que se refere à prisão preventiva.

Ao Direito Penal incumbe estabelecer condutas proibidas e as sanções a serem atribuídas aos infratores. A finalidade do Direito Processual Penal é a tutela das liberdades individuais contra os poderes persecutórios do Estado.

Por isso, o processo penal, com apoio constitucional, consagra a paridade de armas, a proibição de utilizar provas ilícitas, o contraditório, a ampla defesa, estabelecendo um complexo de normas que visam a assegurar ao cidadão a oportunidade de se opor à imputação da culpa criminal; trata-se do devido processo legal, que são garantias processuais a serviço da inocência.

Essas balizas, a que todos devem submeter-se, estão atreladas ao conceito de Estado Democrático de Direito, assim reconhecido no preâmbulo da nossa Constituição Federal.

Nesse contexto, já tardava que se fizesse uma reforma relativa às prisões provisórias, hoje estimadas em torno de 40% da população carcerária. Apenas esse dado já era indicativo de que o sistema clamava por urgente reformulação.

A nova redação do art. 282, § 2º, do CPP, deixa claro que a prisão por decisão de ofício deixou de existir, pois o juiz passa a depender de iniciativa das partes ou de representação da autoridade policial.

O art. 311 do CPP também veda a prisão decretada ex officio.

Regra legal nº 1: os juízes, em qualquer hipótese, estão impedidos de mandar prender sem provocação das partes que lhes outorgue essa faculdade.

O § 3º, do art. 282, do CPP, refere que a decretação de medidas cautelares em geral, ressalvados “os casos de urgência e perigo”, “deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional”.

Isto já deveria ser assim, mas, agora, tais exigências estão positivadas na lei, de sorte a inviabilizar decreto prisional que não as adote.

No caso de descumprimento de outras imposições, o § 4º, do art. 282 do CPP, possibilita a prisão preventiva a pedido, apenas “em último caso”.

Regra legal nº 2: as decisões pela prisão preventiva devem conter elementos do caso concreto que justifiquem a aplicação de medida considerada excepcional e, portanto, a ser decretada apenas em último caso.

O § 5º, do artigo 282, do CPP, permite ao juiz que revogue a prisão de ofício ou a substitua por medidas cautelares mais brandas, quando “verificar a falta de motivo para que subsista”. O mesmo dispositivo parece admitir que o juiz volte a decretá-la “se sobrevierem razões que a justifiquem”. Contudo a regra geral das cautelares impõe que haja provação das partes nesse sentido. Caso contrário, o juiz terá de permanecer inerte.

Regra legal nº 3: a prisão deve ser revogada de ofício ou substituída por medidas cautelares mais brandas se deixarem de existir razões que justifiquem a conduta excepcional.

Na sequência, o § 6º, do art. 282, do CPP, condiciona a prisão preventiva, que “somente será determinada” quando não for possível a substituição por outra medida cautelar do art. 319, o que “deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada”.  

O citado dispositivo já trazia essa recomendação, que foi, no entanto, sistematicamente ignorada, sendo necessário tornar expressa a exigência.

Regra legal nº 4: a prisão preventiva será cabível apenas quando não for possível a aplicação de medida diversa, entre aquelas previstas pelo artigo 319 do CPP, fundada em elementos concretos e que possam ser atribuídas por circunstâncias individualmente reconhecidas, de modo a tornar evidente que nada além da prisão é suficiente para acautelar o processo ou a sociedade.

O artigo 283 do CPP, objeto de muita discussão, foi encurtado, mas mantido na essência. Sobre a impossibilidade de prisão para cumprimento de pena, o artigo 313, § 2º, do CPP, afirma: “Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia”.

Neste ponto, inclua-se a prisão decorrente de pronúncia, de modo que a Súmula 21 do STJ[1] tornou-se sem aplicação.

Regra legal nº 5: não existe prisão provisória possível para o cumprimento de pena, real ou disfarçado, nem pode ser decretada como decorrência natural da evolução das fases processuais.

Os artigos 287 e 310 do CPP incluem a audiência de custódia no direito positivo, até aqui prevista apenas por meio de resolução do CNJ[2]. A rápida avaliação do juiz sobre manter o investigado ou acusado preso vem ocasionando a libertação imediata de inúmeras pessoas, que ficariam encarceradas por meses sem necessidade.

Regra legal nº 6: todo preso será apresentado ao juiz competente, em 24 horas, para a realização da audiência de custódia, com o objetivo de verificar a necessidade de manutenção da prisão provisória.

Incluiu-se, no art. 312 do CPP, um novo pressuposto para a prisão preventiva, o “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. O conceito é vago, o que vai dificultar a sua aplicação.

Criou-se o § 2º para o artigo 312 do CPP, cuja redação estabelece que: “a decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos e contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”.

Fato contemporâneo é aquele que se relaciona com o momento da prisão ou subsiste no tempo desde a sua decretação. Assim, acontecimentos pretéritos ou os fatos primitivos que geraram o decreto inicial não são válidos para admitir a prisão cautelar ou a sua manutenção, se os efeitos tiverem cessado ou se esvaído, perdendo a característica de contemporaneidade.

O § 1º, do art. 315, do CPP, repete o binômio “fatos novos ou contemporâneos”.

Regra legal nº 7: o possível infrator, contra quem cabe prisão preventiva, deve oferecer perigo concreto e atual, de maneira que sua liberdade importe em risco provado, para os fins do processo ou para a proteção da paz social.

O caput do art. 315 do CPP impõe que “A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada”, com elementos concretos, os motivos, mediante adequada fundamentação legal.

O novo § 2º, do art. 315, do CPP, reprodução do art. 489 do CPC, traz um rol de obviedades, mas que são frequentemente desatendidas. Os erros ali descritos, se cometidos, invalidam a decisão.

Regra legal nº 8: a decisão que promova mudança do status libertatis deverá ser suficientemente motivada e fundamentada, sob pena de nulidade.

Pelo art. 316 do CPP, permite-se a revogação da prisão preventiva de ofício pelo juiz ao “verificar a falta de motivo para que subsista” (ausência de contemporaneidade). Entretanto, não poderá agir sem provocação das partes para decretar nova prisão, conforme os artigos 282, § 2º, e 311, do CPP.

Regra legal nº 9: o juiz deve revogar a prisão cujos motivos se mostrem insubsistentes, mas não pode tornar a decretá-la de ofício, e nem deixar de expor os motivos concretos e contemporâneos de validação, além de afastar a suficiência de medidas cautelares diversas da prisão.

O parágrafo único do art. 316 do CPP criou regra com a seguinte redação: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.

A revisão do despacho que deu origem à prisão, como se observa, deve ser promovida de ofício, e o descumprimento dessa obrigatória revisão gera a ilegalidade do decreto prisional. 

Cumpre enfatizar que o estabelecimento desse prazo de 90 dias, pela leitura sistemática dos novos dispositivos processuais, impõe “revisão de necessidade” cujo despacho não pode ser fruto do frequente “copia e cola”, novamente observadas todas as orientações do art. 315 do CPP. Decisão assim mantida haverá de ser considerada absolutamente ilegal.

Revisar significa passar em revista, rever, reexaminar todos os elementos antes considerados para o decreto inicial de prisão preventiva.

A partir da excepcionalidade, expressa de forma abundante nos dispositivos da Lei nº 13.963/19, as prisões cautelares finalmente devem ser reduzidas ao mínimo, para que, de uma vez por todas, cessem os abusos, não apenas quanto à utilização, mas também quanto à duração por prazo excessivo.

Diante de tantas exigências legais para justificar um decreto prisional de índole cautelar, não faria o menor sentido permitir que a prorrogação da prisão preventiva para além dos 90 dias — cuja provisoriedade impõe que seja rápida, breve, efêmera, precária —, fosse derivada de simples renovação ou mera ratificação da decisão cautelar anterior.

Nesse ambiente de expressa excepcionalidade, depois de afastada a possibilidade da aplicação do rol de todas as outras medidas cautelares previstas pelo artigo 319 do CPP, a prisão preventiva poderá perdurar por 90 dias; ao final desse prazo deverá ser criteriosamente avaliada ainda de forma mais exigente por se tratar de ato revisional obrigatório.

Essas prisões provisórias que se eternizam no tempo e em tudo se assemelham a cumprimento antecipado de pena sem julgamento definitivo de mérito, agora expressamente proibidos na lei, devem deixar de existir.

É evidente que, depois de tantos anteparos para a decretação da medida de força de especial excepcionalidade, o parágrafo único do art. 316 do CPP remete a 90 dias, naturalmente, o prazo máximo da prisão preventiva a partir de agora. Aliás, durante muito tempo a duração da prisão provisória foi de 81 dias[3]. Ao final desse período, mesmo sem força de lei, a soltura era praticamente imediata.

Com o passar dos anos esse limite temporal foi sendo abandonado e se permitindo prisões provisórias de muitos meses e até de vários anos, o que não se pode mais admitir.

Se a decisão original de prisão preventiva, ante a nova sistemática, há de ser extremamente bem motivada e fundamentada, com o apontamento de fatos concretos de urgência, perigo e contemporaneidade (art. 282, º 3º, 312 e 315, § 1º, do CPP), e, ainda, com os rigores estabelecidos por vários dispositivos de contenção (art. 315, § 2º, I a IV, do CPP), o que se dirá em relação ao despacho que decide pela sua revalidação depois de três meses de duração?

Regra legal nº 10: a prisão preventiva tem prazo certo de 90 dias, devendo sua prorrogação, de caráter excepcionalíssimo, ser obrigatoriamente revisada após esse período e ser mantida apenas diante de circunstâncias ainda mais especiais, mediante o apontamento de motivos concretos e contemporâneos, uma vez mais afastando-se a possibilidade e suficiência de outras cautelas.

Eis o decálogo das novas diretrizes para a prisão preventiva. 

Ainda, o descumprimento dessas novas regras legais, mediante a comprovação do exigido dolo específico, deverão ser enquadradas como crimes de abuso de autoridade (Lei nº 13.869/19), sendo responsabilizado penalmente o juiz que decretar privação da liberdade em manifesto desacordo com as hipóteses legais (art. 9º, caput), ou que, dentro de prazo razoável, deixe de relaxar prisão manifestamente ilegal (art. 9º, I), de substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível (art. 9º, II).

Tudo isso elevará a qualidade da nossa Justiça criminal, que se tornará mais célere e eficiente, em prol da proteção social e do respeito aos direitos individuais.

 


[1] Súmula 21 do STJ: “Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo da instrução”.

[2] Resolução nº 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça: “Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas”.

[3] “(…) A demora na formação de culpa, excedendo os 81 dias, sem motivo dado pela defesa, caracteriza constrangimento ilegal. Habeas deferido.” – STF, HC 78978/PI, Rel. Min. NELSON JOBIM: 09/05/2000.

 é advogado criminalista, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), foi conselheiro e diretor da seccional paulista da OAB e presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas. Também foi diretor-adjunto do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) por duas gestões.

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Veloso de Souza: Estado não é responsável por prejuízos do comércio

O coronavírus mudou drasticamente a realidade social de todo o mundo. A Covid-19, com origem atribuída à província de Hubei, República Popular da China, rapidamente espalhou-se pelo mundo todo, sendo declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como pandemia em 11 de março  [1].

Nesse mesmo período, a OMS passou a recomendar o isolamento como “a forma mais eficaz de salvar vidas” [2]. Alinhado às práticas globais, o Governo Federal editou a Lei nº 13.979/2020 estabelecendo protocolos de isolamento e quarentena, fixando regras de locomoção em todo o território nacional, além de regular o funcionamento restritivo de serviços públicos e privados.

Nos estados e municípios por todo país proliferaram normas determinando uma série de atividades que ficaram proibidas de funcionar, tais como cinemas, teatros, bares, clubes, academias, restaurantes, lojas, shopping centers, centros comerciais, dentre outros [3].

O fechamento de atividades públicas e privadas produziu e produzirá consequências financeiras graves em todo o País. De acordo com as projeções da CNC para 2020, o comércio brasileiro amargará perdas da ordem de R$ 25,3 bilhões, geradas pelas alterações de rotina e fechamento de lojas trazidos pelo isolamento social decorrente da pandemia [4].

Toda essa contextualização, entre normas federais, estaduais e municipais, visa a dimensionar o emaranhado de regras que regulamentam a sistemática de combate social, econômica e de saúde relacionada à Covid-19. Nesse cenário é que se propõe analisar a responsabilidade extracontratual do Estado por prejuízos advindos do fechamento do funcionamento de estabelecimentos privados.

Da responsabilidade civil do Estado derivada de Ato Legislativo

A responsabilidade civil do Estado significa o dever de reparação dos danos causados pela conduta estadual, seja omissiva ou comissiva. Esse dever está fundado no princípio romano neminem laedere, que significa agir de forma a não lesar os direitos de outrem. Utilizando as lições do professor Aguiar Dias, “o mecanismo da responsabilidade civil, visa, essencialmente, à recomposição do equilíbrio econômico desfeito ou alterado pelo dano” [5]. O professor Felipe Braga Netto acrescenta ainda que “hoje sabemos que nem sempre o equilíbrio desfeito ou alterado pelo dano é econômico. Pode ser, também, moral e estético” [6].

O professor José dos Santos Carvalho Filho leciona que a “noção de responsabilidade implica a ideia de resposta, termo que, por sua vez, deriva do vocábulo latino respondere, com sentido de responder, replicar” [7]. Nessa linha é oportuno recordar que a responsabilidade civil vem adquirindo os seus contornos atuais desde a Constituição de 1946, quando se passou a fixar a teoria do risco administrativo à responsabilidade extracontratual. A CF/88, por sua vez, consagrou a regra da responsabilidade do Estado dentro do Artigo 37, § 6º.

É oportuno recordar que os contornos atuais da responsabilidade civil passaram por processo de mutação, no que se entende pelas quatro fases históricas de evolução da matéria: I) teoria da irresponsabilidade do Estado; II) teoria da responsabilidade subjetiva; III) teoria da culpa do serviço; e IV) teoria da responsabilidade objetiva.

A atual fase vivida é a que se denomina de responsabilidade objetiva do Estado. Caracteriza-se pela “obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razão de um procedimento lícito ou ilícito que produziu uma lesão na esfera juridicamente protegida de outrem” [8]. O Estado, como garantidor de direitos fundamentais, é chamado a responder em prol do que se denomina de “solidariedade social, solidariedade essa engendrada pelo fato de que toda ação administrativa do Estado é levada a efeito em prol do interesse coletivo” (STF, RE 262.651, relator ministro Joaquim Barbosa).

No que toca aos atos legislativos, até meados do século passado orientavam-se pela teoria da irresponsabilidade. O professor Aguiar Dias lecionava que “o poder público não responde pelos danos resultantes: a) dos atos parlamentares; b) dos atos legislativos; c) dos atos específicos da função jurisdicional” [9]. Hoje, por mais que a aplicabilidade seja mais restrita, não se tem dúvida da aplicação da responsabilidade extracontratual do Estado por atos legislativos.

Nesse viés, o ministro Celso de Mello pondera que o “Estado não dispõe da competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal” (STF, ADinMC, 1.063-8, relator Celso de Melo, DJ 27.04.01). A majoritária doutrina, tal como professor Matheus Carvalho, entende que a responsabilidade civil derivada de atos legislativos apenas é viável enquanto estivermos diante de leis de efeito concreto ou no caso de leis declaradas inconstitucionais, quando se demonstre o dano direto ao particular.

A lei é destinada a estipular normas gerais e abstratas, medida pela qual, como regra, não está destinada a regular uma situação específica. É esse ato normativo um veículo de regras gerais, sendo incapaz, a priori, de causar um dano específico a alguém. Essa, aliás, é a tese sustentada pelo professor Carvalho Filho, defendendo que “o ato legislativo não pode mesmo causar a responsabilidade civil do estado, se a lei é produzida em estrita conformidade com os mandamentos constitucionais” [10]. Ou seja, apenas seria viável se falar em responsabilidade civil no caso de leis inconstitucionais.

Essa posição, no entanto, não é a defendida pela jurisprudência e a maioria da doutrina pátria. Defende-se que, quando estivermos diante de uma lei de feitos concretos que cause um dano ao particular, aplicar-se-ia a mesma posição adotada aos atos administrativos. Ou seja, no caso de leis de efeitos concretos estaríamos diante de um verdadeiro ato administrativo, aplicando a previsão contida no artigo 37, § 6º da CF.

Nessa medida, portanto, deve a lei terminar por regular e impor ônus específico a certo e determinado grupo de indivíduos. Tem a roupagem de lei, mas reveste-se da concretude de um ato administrativo.

A outra hipótese diz respeito à produção de lei inconstitucional. No caso, a responsabilidade é derivada da indevida atuação do órgão legislativo. A noção de lei inconstitucional está atrelada à prática de um ato ilícito, provocando dever de ressarcir os danos patrimoniais dele decorrentes [11]. Nesse sentido é posição firmada pelo STJ: “Apenas se admite a responsabilidade civil por ato legislativo na hipótese de haver sido declarada a inconstitucionalidade de lei pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado” (STJ, REsp 571.645, relator ministro Otávio de Noronha, 2ª T, DJ 30.20.06).

Fica claro, portanto, que a responsabilidade extracontratual do Estado, balizada no Artigo 30, § 6º, da CF quanto a atos legislativos é restrita. A interpretação da Corte Suprema cinge-se a outorgar a responsabilidade do Estado quanto à edição de atos normativos apenas às duas hipóteses específicas acima elencadas: leis de efeitos concretos ou leis inconstitucionais, que causem dano específico ao particular superior ao bônus experimentado.

Da inviabilidade de responsabilização do Estado por prejuízos na quarentena
A inviabilidade de se atrelar aos estados a responsabilidade advinda de prejuízos experimentados pela redução do consumo e das vendas está atrelada ao seguinte tripé: I) competência dos municípios para regulamentar o funcionamento do comércio; II) excludente de responsabilidade; e III) excludente de ilicitude. Vejamos.

De início, vimos que coexistem normas regulamentando o isolamento social e funcionamento de empreendimentos privados nos âmbitos federal, estadual e municipal. Essa convivência de leis e decretos trouxe um bojo de regras conflitantes. Enquanto as normas federais traziam medidas menos restritivas, alguns estados e municípios adotaram maior rigor nas ações de isolamento social.

Destaque-se que, a princípio, tentou o Governo Federal deixar o tema todo a sua alçada, tal como o fez com a edição da MP nº 926/2020, trazendo alterações à Lei Federal nº 13.979/2020. A MP tentou centralizar a definição das atividades afetadas por medidas de isolamento e quarentena a decreto do presidente da República.

Ocorre que, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.341 DF) proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), reafirmou-se a validade das regras editadas por estados e municípios. Sentenciou o ministro, ainda em análise de pedido cautelar, que há competência concorrente entre os entes federados de normas que cuidem da saúde, de dirigirem o sistema único e executarem ações de vigilância sanitária e epidemiológica, nos termos dos artigos 23, inciso II, 198, inciso I, e 200, inciso II, da Constituição de 1988. Destacou que no caso reside o critério da predominância do interesse.

Nesse cenário, fica claro que cada ente é competente para regular as medidas de isolamento social no âmbito da sua competência, dentro do critério de predominância de interesses. Fica fácil concluir que as medidas que regulamentam o funcionamento do comércio local são da esfera de regulamentação do município, tal artigo 30, inciso I, da CF.

De longa é a tradição do Supremo Tribuna Federal nessa linha, tal como prevê a Súmula Vinculante nº 38 (“É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”).

Em sendo assim, por mais que coexistam regras federais, estaduais e municipais sobre o funcionamento de estabelecimentos privados, é a regra municipal que deve prevalecer. Aliás, tal direcionamento, inclusive, caminha no mesmo sentido das orientações do Ministério da Saúde quanto ao combate ao vírus. Em recente declaração, avaliando a dimensão continental do território do país, o ministro insistiu que a análise das medidas de isolamento devem atentar às peculiaridades de cada região: “Os municípios, Distrito Federal e estados que implementaram medidas de Distanciamento Social Ampliado (DSA), onde o número de casos confirmados não tenha impactado em mais de 50% da capacidade instalada existente antes da pandemia, devem iniciar a transição para Distanciamento Social Seletivo (DSS)” [12].

Portanto, nesse cenário, em que as regras municipais são aquelas que ingerem sobre o funcionamento de comércio local e a análise das questões de predominância local, não pode a responsabilidade pelo eventual fechamento das atividades privadas alcançar o Estado. Não é essa unidade federada a competente constitucionalmente para regulamentar esse tema. Pensar de maneira distinta é atrelar responsabilidade por fato de terceiro, burlando a regra da tricotomia da responsabilidade civil ato, nexo de causalidade e dano.

O segundo aspecto a ser analisado consiste na análise das excludentes de responsabilidade. Por mais que a responsabilidade extracontratual do Estado esteja regida, prioritariamente, pela teoria objetiva, não se afasta que em havendo ruptura do nexo causal não pode o Estado ser chamado a indenizar. O STJ fixa que “existem hipóteses nas quais o nexo de causalidade pode ser afastado: caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima. É certo, porém, que só se afasta esse nexo causal quando demonstrado, com segurança e consistência a ocorrência de uma das excludentes mencionadas” [13]. É exatamente o caso.

Ainda que se supere a inviabilidade de responsabilizar-se o Estado por regras atinentes à esfera de competência do município, não há como atrelar responsabilidade civil ante a clara evidência da caracterização de força maior. De início, recordo a lição do professor Couto de Castro deixando claro que “as expressões caso fortuito e força maior são equivalentes e não se reconhece mais efeitos práticos na distinção entre ambas” [14]. De fato, a relevância no trato jurisprudencial do tema está ligada à distinção entre o fortuito interno e o fortuito externo [15]

In casu, há evidência da configuração do fortuito externo e a ausência do dever de reparação de dano. Como fica claro, a edição de regras de isolamento social e funcionamento da atividade privada não mantém conexão com prévio serviço prestado pelo Estado. De modo que não há como enquadrar em fortuito interno. De outro lado, eventos excepcionais dessa relevância não estão no âmbito de controle do poder público.

O professor Felipe Braga Netto cita que “um tsunami que invade a cidade destruindo imóveis e veículos não empenhará responsabilidade civil do Estado” [16]. O exemplo encaixa-se perfeitamente na repercussão da pandemia da Covid-19: rápida, inesperada e de proporções incalculáveis. As ações de restrição da iniciativa privada visam a promover diretrizes maiores de proteção à vida e à saúde.

A jurisprudência é o maior repositório para identificar uma solução jurídica quanto à (in)existência de responsabilidade civil extracontratual do Estado no presente caso. Recordo caso em que o Estado foi chamado a responder por danos materiais e morais de vítimas em função de fortes chuvas que ocorreram em certa região. O STJ afastou a responsabilidade por entender que não é o Estado garante universal, medida pela qual, inexistindo omissão específica, não concorreu de forma decisiva ao evento, afastando-se o nexo de causalidade [17].

Nesse contexto, portanto, é clara a configuração da força maior que afasta qualquer pretensão reparatória em face do Estado.

O terceiro aspecto sob análise trata das excludentes de ilicitude. Diferente da excludente de responsabilidade, a excludente de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular de direito e estrito cumprimento de dever legal) afasta a contrariedade do direito da conduta, a ilicitude do ato. Nesse contexto, compete observar se as ações de isolamento social que eventualmente causem dano a particulares estão acobertadas por alguma situação de excludente de licitude.

Nesse cenário, oportuno destacar declaração do ministro Gilmar Mendes quando do julgamento do mérito da ADI 6.341 DF. O ministro, analisando que a proteção da população é dever legal previsto na Constituição, destacou que “o presidente da República dispõe de poderes inclusive para exonerar seu ministro da Saúde, mas ele não dispõe do poder para, eventualmente, exercer uma política pública de caráter genocida” [18]. Ou seja, a atuação de isolamento social e restrição do funcionamento de comércio são medidas necessárias e legítimas no momento.

O STJ, em diversas oportunidades, já cravou que “não há conduta ilícita quando o agente age no exercício regular de um direito” [19]. O exercício regular de um direito não afasta por si só a responsabilidade de indenização, como bem ressalta Odete Medauar: “Deixam-se de lado, para fins de ressarcimento do dano o questionamento do dolo ou culpa do agente, o questionamento da licitude ou ilicitude da conduta, o questionamento do bom ou mau funcionamento da administração. Demonstrado o nexo de causalidade, o Estado deve ressarcir” [20].  No entanto, in casu, dadas as condições que cercam a situação, é liame que não apenas torna lícita a conduta, como afasta o dever de indenizar do Estado.

Portanto, ao analisar os entendimentos jurisprudenciais e doutrinários que cercam os temas, defende-se que não é viável a responsabilização extracontratual do Estado por danos experimentados por medidas de isolamento social e fechamento do funcionamento do comércio, dada a incompetência do ente para regular o tema e a configuração das excludentes de responsabilidade e ilicitude no caso.

 

 é procurador do Estado de Rondônia, assessor especial do Gabinete da Procuradoria-Geral do Estado de Rondônia, ex-secretário do Estado de Planejamento, Orçamento e Gestão e professor de Direito Constitucional.