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WEBINAR – Taxatividade da lista do ISS

A CF 88 veda à União, aos Estados, Municípios e DF exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça (art. 150, I), sendo preciso observar a tipicidade pela qual o intérprete não pode criar hipóteses de tributação não previstas, tão pouco ampliar as já existentes. O artigo 108, §1º do Código Tributário Nacional prevê que “o emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributos não previsto em lei”.

Apesar dessa robusta proteção, foi apresentada no STF a posição da ministra Rosa Weber, relatora do Tema nº 296 da repercussão geral, que discute o caráter taxativo da lista de serviços de que trata o art. 156, III, da Constituição, que outorga competência aos Municípios para instituir imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS), definidos em lei complementar.

A parte final da tese proposta flexibiliza os princípios da legalidade e tipicidade tributárias: “É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art. 156, III, da Constituição Federal, ‘admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva’”.

Para debater o assunto, Migalhas realiza, em parceria com o constitucionalista Saul Tourinho Leal, autor da coluna Conversa Constitucional, o evento virtual “Taxatividade da lista do ISS”.

Dia 25/6, às 13h.

  • Betina Grupenmacher – Professora de Direito Tributário da UFPR
  • Luiz Roberto Peroba – integrante do grupo de trabalho do PL 367/2020 e Presidente da Comissão Especial de Contencioso Tributário da OAB/SP
  • Paulo Ayres Barreto – Professor Associado da USP 

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Estado não pode proibir a suspensão de plano de saúde na pandemia

A pandemia da Covid-19 propiciou um cenário fértil para edição de elevada gama de normas legislativas, alicerçadas por uma pretensa necessidade de adequação do arcabouço jurídico à realidade e às necessidades sociais surgidas em decorrência do atual quadro de calamidade. Em que pese as recentes inovações legislativas estarem por vezes imbuídas axiologicamente da ratio que se espera como sendo o verdadeiro “espírito das leis”, qual seja o atendimento das necessidades sociais em cada tempo, o atual esforço legislativo há que ser visto e analisado com extrema cautela, notadamente ante as disputas federativas (e por que não dizer políticas e ideológicas) travadas entre as diferentes esferas de poder no curso do planejamento estatal a ser adotado para conter a pandemia e seus efeitos.

Exatamente nesse contexto merece ser analisada a Lei Estadual do Rio de Janeiro 8.811/2020, que autoriza o Poder Executivo a dispor sobre a vedação da suspensão e/ou cancelamento dos planos de saúde por falta de pagamento durante a vigência do plano de contingência do novo coronavírus. Publicada no Diário Oficial de 12 de maio de 2020, e com origem no Projeto de Lei 2.171/2020, de inciativa parlamentar, o aludido diploma legislativo é de constitucionalidade questionável.

Aparentemente, o legislativo estadual atuou sob a justificativa de estar legitimado pela competência concorrente constitucionalmente conferida à União, estados, Distrito Federal e municípios para legislar sobre Direito do Consumidor, prevista no artigo 24, inciso V, da Constituição Federal de 1988. Ocorre que, em verdade, a matéria envolvida refere-se à competência privativa da União, insculpida no artigo 22, inciso VII, da Constituição de 1988, eis que se trata de ato normativo que atinge a autonomia privada, atuando sob a esfera de pactuação inerente às relações contratuais, no caso especificamente sobre as condições e prazo de pagamento dos planos de saúde. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se em outras oportunidades sobre a inadvertida usurpação de competência em casos similares, sob a justificativa de estar sendo manejada a competência estadual para legislar sobre relações de consumo.

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL QUE FIXA PRAZOS MÁXIMOS, SEGUNDO A FAIXA ETÁRIA DOS USUÁRIOS, PARA A AUTORIZAÇÃO DE EXAMES PELAS OPERADORAS DE PLANOS DE SAÚDE.

VOTO DO RELATOR

(…) Por mais ampla que seja, a competência legislativa concorrente em matéria de defesa do consumidor (CF/88, art. 24, V e VIII) não autoriza os Estados-membros a editarem normas acerca de relações contratuais, uma vez que essa atribuição está inserida na competência da União Federal para legislar sobre direito civil (CF/88, art. 22, I). (…) Os arts. 22, VII e 21, VIII, da Constituição Federal atribuem à União competência para legislar sobre seguros e fiscalizar as operações relacionadas a essa matéria. Tais previsões alcançam os planos de saúde, tendo em vista a sua íntima afinidade com a lógica dos contratos de seguro, notadamente por conta do componente atuarial” (ADI 4.701, Rel. Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJ de 22/8/2014).

Não se pode olvidar, ainda, que atuando diretamente na relação jurídica entre operadora e usuário, o legislativo fluminense usurpou a competência delegada pela Lei 9.961/2000 à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para regular o mercado de planos de saúde, notadamente as contempladas no artigo 4º, incisos II e XXIV, que versam sobre as prerrogativas da ANS de exercer o controle e a avaliação dos aspectos concernentes à manutenção e dos serviços prestados, direta ou indiretamente, pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde.

Além da inconstitucionalidade formal por vício de competência, no caso em tela é patente a inconstitucionalidade material, perpetrada pela violação direta a diversos dispositivos constitucionais, destacando-se os artigos 170 e 174 da CF/88. Primeiro, ante a violação à livre iniciativa, eis que incorre em insustentável intromissão no livre exercício da atividade empresarial que dentre suas vertentes garante a liberdade de gestão, nela incluído o planejamento financeiro e atuarial, tão caro aos planos de saúde, e que certamente restará prejudicado com a postergação de pagamentos admitida pela lei. Ainda no que tange à livre iniciativa, afronta a liberdade de contratação, a qual engloba a estipulação de cláusulas contratuais, como projeção da autonomia da privada.

Noutro giro, ao se imiscuir de tal forma na disposição temporal dos recursos provenientes dos prêmios dos segurados, a novel norma afronta por via transversa o artigo 174 da CF/88, ao passo que interfere no planejamento financeiro e atuarial das empresas, sendo cediço que o aludido dispositivo deixa claro que a atividade de planejamento econômico é indicativa para o setor privado, não obrigatória. Ora, o que pretende em verdade o legislador estadual, com a devida vênia, é realizar o planejamento financeiro no setor privado, postergando prazos de pagamento e purgando a mora (artigo 3º), afastando a cobrança de juros e multa sobre o atraso, o que é expressamente vedado pelo artigo 170 da CF/88.

O artigo 5º do vergastado diploma estipula que a vigência da lei e do regime especial de pagamentos dar-se á “enquanto estiver em vigor a situação de emergência do novo coronavirus (Covid-19) declarada pelo Decreto 6.973 de16 de março de 2020, ou pelos seus sucessivos atos normativos que prorrogarem sua vigência”.

Nesse tocante, merece destaque que não há prazo certo para o regime especial de pagamentos previsto na lei, razão pela qual, a longo prazo o equilíbrio atuarial dos players do mercado pode ser comprometido, o que não é compatível com os princípios da função social da empresa e da preservação da empresa, que inclusive tem sua importância reconhecida ainda que indiretamente no artigo 4º III do CDC, o qual dispõe que a Política Nacional das Relações de Consumo deve ser desenvolvida de modo que sejam harmonizados os interesses dos consumidores com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, dentre os quais destaca-se a livre iniciativa.

Por último, e não menos importante, a Lei 8.811/20 viola frontalmente o princípio da proporcionalidade. A saber, o diploma legislativo não ultrapassa o que a doutrina denomina “3 testes” ou standards” da proporcionalidade, definidos pelo ministro Luís Roberto Barroso, que entende a proporcionalidade como sinônimo da razoabilidade, nos seguintes moldes.

“Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação ao excesso); os custos superem os benefícios, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade e sentido estrito)”, de acordo com o livro Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo, de autoria do ministro Luís Roberto Barroso.

Sob a ótica da adequação, a Lei fluminense 8.811/20 sequer ultrapassa a primeira etapa de aferição da proporcionalidade e razoabilidade. Com efeito, não se pode conceber como adequado diploma legislativo que viola o pacto federativo sob o aspecto da distribuição de competências entre os entes políticos, mesmo que o fim perseguido possa ser louvável.

Ainda que, por um esforço hermenêutico, se admita que a Lei fluminense 8.811/20 ultrapassa a primeira etapa, esta não supera a necessidade/vedação ao excesso. Indubitavelmente há meios alternativos menos gravosos ao equilíbrio atuarial e à sobrevivência dos planos de saúde e que garantam o acesso do direito à saúde à população. Com efeito, poderia o governo engendrar parcerias, aqui compreendidas em seu sentido amplo, com a iniciativa privada, para incrementar as ações, o acesso ao SUS e garantir que aqueles que temporariamente não tenham condições de custear as mensalidades sejam atendidos. Tal iniciativa encontraria guarida na cláusula geral de parcerias insculpida no artigo 116 da Lei 8.666/1993.

Nesse contexto, convém asseverar que a Advocacia-Geral da União já opinou favoravelmente à celebração de acordos de cooperação pela Administração Pública com particulares (inclusive entidades com fins lucrativos)nos casos em que há interesse na mútua cooperação técnica com vistas à “execução de programas de trabalho, projeto/atividade ou evento de interesse recíproco, da qual não decorra obrigação de repasse de recursos entre os partícipes”. Ora, o contexto em que se aloca a pandemia permite exatamente a subsunção a tal hipótese, nela se enquadrando a doação de bens, a construção de hospitais de campanha diretamente pela iniciativa privada, e até mesmo prestação de consultorias no setor de saúde e outras áreas estratégicas.

Em complemento, impende destacar que o artigo 24, inciso XII, da CF/88, confere à União Federal competência para legislar sobre normas gerais de proteção e defesa da saúde, atribuindo ao aludido ente federativo o papel de estatuir as diretrizes gerais para a execução de políticas públicas voltadas ao enfrentamento da Covid-19. Dentre os inúmeros atos normativos, destaca-se a Lei 13.979/2020, que possui uma série de medidas aptas a aumentar a capacidade operacional do SUS. Deve igualmente ser ressaltado que como longa manus do governo federal na implementação de tais diretrizes, assumem papel relevante o Ministério da Saúde e a ANS. O primeiro vem atuando, dentre outras ações, mediante a edição dos protocolos para ao atendimento e realização de exames na pandemia, direcionados ao SUS e ao setor privado, com o objetivo de maximizar o uso dos leitos e recursos disponíveis, propiciando que ocorram da forma mais eficiente.

A ANS, por seu turno, na condição de instância regulatória da saúde suplementar, ampliou o canal de diálogo com as operadoras, e lançou mão de atos normativos para garantir a manutenção dos serviços prestados aos usuários, e possibilitar maior flexibilidade de recursos, para que as operadoras possam suportar o aumento na demanda e possível acréscimo na inadimplência.

Como se vê, sob a ótica do Pacto Federativo, seja no âmbito do SUS (Ministério da Saúde) ou da Saúde Suplementar (ANS), no bojo de suas competências discricionárias de formulação e execução de diretrizes gerais das políticas públicas do SUS e da saúde suplementar, esta enquanto atividade de relevante interesse social, vem sendo empreendidas ações que visam garantir o acesso à saúde, todas menos gravosas à solidez financeira das operadoras que a proposta pelo legislativo fluminense. Assim, a atuação do legislador e do governo estadual para a elaboração de medida (suspensão de pagamento dos planos), que possui intrinsecamente a natureza de norma geral, uma vez que se relaciona a aspecto essencial do negócio jurídico (no caso o pagamento), além de não se mostrar necessária, afronta a competência material da União.

Sob o contexto do prestígio à discricionariedade técnica e ao Pacto Federativo, podem ser elencadas como medidas que melhor atendem à proporcionalidade/razoabilidade, na vertente da necessidade/vedação ao excesso, como meios alternativos menos gravosos às operadoras, o exercício pela ANS das competências previstas no artigo 29-A da Lei 9.656/1998 e artigo 4º XXXVI da Lei 9.961/2000.

Quanto ao primeiro instrumento, medida menos gravosa seria a celebração de termo de compromisso pela ANS, com fulcro no artigo 29-A da Lei 9.656/98, substituindo medidas sancionadoras por investimentos a serem realizados pelas operadoras em sua rede própria no enfrentamento da pandemia, como por exemplo a construção de mais hospitais de campanha ou a ampliação imediata de leitos de alta complexidade, com aquisição de respiradores mecânicos. Tal iniciativa, ademais, beneficiaria os usuários e contribuiria para construção de uma regulação responsiva. Por seu turno, tal instrumento encontra ainda amparo na moderna doutrina do Direito Administrativo, que defende a realização de acordos substitutivos de sanção, os quais ostentariam como cláusula geral de legitimidade no ordenamento pátrio o artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

Poderia, ainda, a ANS utilizar-se da competência prevista no artigo 4º XXXVI da Lei 9.961/00, e celebrar convênio com entidades de proteção de defesa do consumidor, para a constituição de Câmara Técnica e de Conciliação que visasse solucionar eventuais impasses com consumidores inadimplentes em decorrência da pandemia. Tal medida, além de atender melhor ao Pacto Federativo e à distribuição de competências prevista na Constituição, coroa a autonomia privada, ao passo que possibilitaria a cada operadora e a cada consumidor envolvido negociar em espaço institucionalmente seguro, de acordo com as suas peculiaridades.

Por fim, cumpre não olvidar que o Estado, por força do viés social de que é revestido a CF/88 pode e deve estatuir medidas assistencialistas que supram as necessidades em tempos de crise, sendo certo que o texto constitucional não autoriza a transferência compulsória de tal ônus à iniciativa privada, (como parece ser o objetivo da lei em análise). Embora as empresas devam ser comprometidas com os valores sociais, não se deve perder de vista a sustentabilidade do setor.

Como se vê há outros instrumentos disponíveis ao Estado para ampliar sua capacidade de instalação e atendimento, e para garantir os interesses dos usuários da saúde suplementar, todos menos onerosos à saúde financeira dos planos, e aptos a atender às necessidades da população, o que denota ainda mais a ausência de proporcionalidade da norma em epígrafe. Ademais, é cediço que, pelo elevado índice de inadimplência dos usuários dos planos de saúde e considerando a projeção de crise que se instala pelos próximos meses, é muito provável que a suspensão dos pagamentos prevista no diploma se converta em mora irreversível a causar um prejuízo atuarial permanente, podendo acarretar a retração do setor, gerando a extinção de postos de trabalho e consequente perda de empregos e piorando ainda mais o quadro atual da assistência à saúde.

Ora, no momento em que o aporte constante dos prêmios é mais essencial do que nunca, a fim de garantir a sobrevida dos planos e o repasse aos prestadores, para que não haja solução de continuidade nos serviços, de modo que os usuários não sejam todos obrigados a se socorrer da assistência pública, no caso de os pagamentos serem sustados, sem qualquer aviso, de forma automática e indiscriminada e sem qualquer requisito mínimo, afronta o princípio da não surpresa, derivado da confiança legítima, além de ser uma contradição em termos, conforme exposto.

Exatamente nesse sentido as medidas antes elencadas são, sem dúvida, menos onerosas, pois garantem a salvaguarda financeira dos planos, sendo mais compatíveis com a livre iniciativa e a autonomia privada, e ao mesmo tempo protetivas dos interesses dos usuários.

É fundamental não se esquecer que os fins não justificam os meios, sobretudo se a pretexto de alcança-los é violado o texto constitucional, e que na busca pelo interesse público deve ser respeitada a Constituição, símbolo máximo do Estado Democrático de Direito.

* JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

 é advogado, mestre em saúde, sócio do escritório Conde Advogados.

Nathalia Victorino de Mattos é advogada, sócia do escritório Conde Advogados.

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Responsabilidade civil do dentista é de meio, como a do médico

Mary Otto é médica e jornalista norte-americana, autora da obra The Tooth Divide: Beauty, Class and the Story of Dentristy, publicado pela The New Press em 2017. Além de trazer uma análise sobre como a desigualdade entre classes pode aparecer de forma menos convencional,[1] a autora pondera que, mais do que uma falha no cuidado com a higiene bucal, a queda de um dente pode indicar uma falha do próprio sistema de saúde.[2]

Em entrevista ao The Atlantic, Otto pondera que um dos cenários mais dramáticos da falha acima mencionada é que mais de um milhão de pessoas, por ano, busca os prontos socorros dos Estados Unidos com emergências dentais, mas não recebem o tratamento adequado porque, geralmente, os hospitais não contam com dentistas em suas unidades de pronto atendimento.[3]

Medicados, estes pacientes são orientados a buscar um dentista, sendo que muitas destas pessoas sequer têm um.[4] Neste ponto, Mary Otto relembra que a saúde bucal é parte da saúde geral.[5] Ainda assim, ao menos no Brasil, a odontologia, e tudo que orbita este campo, recebe tratamento diferenciado do conferido à medicina, inclusive juridicamente. O que se está a dizer é que a saúde bucal e a saúde geral seguem em vias diferentes (quando não deveriam).

Em alguns países europeus, a odontologia é considerada uma especialidade da medicina. Em Portugal, por exemplo, para se tornar um dentista, é necessária formação em medicina dentária, com a posterior inscrição na Ordem dos Médicos Dentistas.

Regulamentada pela Lei 5.081/1996, no Brasil, a odontologia é tomada como uma profissão autônoma e desvinculada da medicina. Isso não significa que a atuação do dentista seja menos complexa que a de um médico. É por isso que o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás (Cremego) defende a transformação da odontologia em uma especialidade da medicina:
Em muitos países a odontologia é uma especialidade da medicina, e no nosso entendimento o Brasil deveria passar por essa transformação, pois, assim como o médico, o cirurgião-dentista faz diagnóstico de doenças, faz prescrição terapêutica e tratamentos, então ele se enquadra na caracterização do exercício profissional da medicina.[6]

Aliás, o curso de odontologia só foi separado da medicina, no Brasil, em 1911. Ainda que tal mudança tenha se dado há pouco mais de 100 anos, o que parece ser bastante tempo, é bom considerar que Hipócrates, ao construir os primeiros pilares da medicina científica, tratava também dos aspectos odontológicos, em seus estudos. É possível afirmar que, sob a bênção de Asclépio, concebeu-se medicina e odontologia como uma só coisa.[7]

Para se ter uma ideia da complexidade da atuação do profissional de odontologia, alguns males, como o câncer de boca, podem ser identificados em uma cadeira de dentista. No caso desta doença, o diagnóstico precoce pode aumentar a chance de cura em 80%. São inúmeras as patologias que se relacionam com a saúde bucal, manifestando-se por sinais identificáveis pelo profissional de odontologia, dentre elas a sífilis, leucemia, anemia, bulimia, diabetes, cirrose hepática e doenças autoimunes.

Por isso, a atuação do odontologista deve ser visualizada sob o prisma da integração da boca ao restante do corpo (por mais óbvio que isto soe). Segundo Salomão Filho, “o tratamento de uma região, ou órgão específico, influencia todo o sistema”. Para o especialista, “mesmo tratando da região mastigatória, quando o dentista prescreve um medicamento, como um antibiótico ou um anti-inflamatório, por exemplo, ele está interferindo em todo o funcionamento do organismo”.[8]

Se a literatura especializada reconhece a complexidade do trabalho do profissional de odontologia, o ordenamento jurídico deve fazer o mesmo, mirando a atuação do dentista pelas lentes da responsabilidade subjetiva.

O contrário seria admitir que um complexo tratamento odontológico (e todo tratamento odontológico guarda complexidade) pode ser equiparado à compra de um eletrodoméstico qualquer em uma loja — cenário em que o fornecedor e/ou comerciante responderia objetivamente por eventual defeito no produto. A hipótese anterior, a propósito, apenas valida a falha no sistema de saúde, ao ignorar que a saúde bocal importa totalmente à saúde geral.

Não obstante, a jurisprudência pátria vem admitindo que a obrigação do dentista é, em regra, de resultado. O ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do REsp 1.238.746/MS, já destacou que “nos procedimentos odontológicos, mormente os ortodônticos, os profissionais da saúde especializados nessa ciência, em regra, comprometem-se pelo resultado, visto que os objetivos relativos aos tratamentos, de cunho estético e funcional, podem ser atingidos com previsibilidade”.

No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul admite que a obrigação assumida pelo cirurgião dentista é, principalmente, de resultado, recaindo sobre o profissional, o ônus de provar que não agiu com culpa.[9]

O cenário acima destacado foi bem explorado por Maria da Conceição Almeida Lyra, que conduziu um estudo que levantou, em números, ações judiciais em diversos tribunais estaduais, que apuraram a responsabilidade de cirurgiões-dentistas, apontando-se em quais destas ações foi aplicado o entendimento de que a obrigação destes profissionais é de meio. Foram selecionadas 167 ações judiciais dos estados da Amazônia, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, no ano de 2017.[10]

Destes 167 julgados, 87 não faziam referência à obrigação de meio ou de resultado. Dos que fizeram referência, contudo, de acordo com o estudo, a maioria dos tribunais considerou a obrigação como de resultado (64). Deste número, 44 resultaram em condenação.[11] Fica claro, portanto, que o entendimento do STJ acerca da obrigação de resultado, quanto à atuação dos odontologistas, está norteando os entendimentos dos tribunais do país.

No que diz respeito ao Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade do profissional liberal, categoria na qual os odontologistas se enquadram é expressamente tratada no artigo 14, parágrafo 4º, senão vejamos: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.

Dependendo de verificação de culpa, a responsabilidade é subjetiva — e aqui se chama atenção ao fato de que, se há um tratamento diferenciado entre odontologistas e médicos, perante os órgãos de classe, diante do CDC, a análise da responsabilidade civil dos dentistas situa-se no mesmo campo dos médicos.[12]

Com relação aos médicos, já se sabe, a obrigação é eminentemente de meio. O celebrado jurista Caio Mário da Silva Pereira destaca a harmonia deste entendimento, tanto na jurisprudência pátria como na estrangeira: “Ele não assume o compromisso de curar o doente (o que seria contra a lógica dos fatos) mas de prestar-lhe assistência, cuidados, não quaisquer cuidados, porém conscienciosos e adequados ao seu estado”.[13] Doutrina mais recente não se desviou deste entendimento. Ensina Miguel Kfouri Neto:
(…) o fato de considerar como contratual a responsabilidade médica não tem, ao contrário do que poderia parecer, o resultado de presumir a culpa. O médico não se compromete a curar mas a proceder de acordo com as regras e os métodos da profissão.[14]

Sendo a atuação do profissional de odontologia tão complexa quanto a do profissional em medicina e estando ambos enquadrados como profissionais liberais, no mesmo campo de análise da responsabilidade civil, o resultado lógico da articulação destas proposições só pode levar à conclusão de que a responsabilidade do odontologista é, também, de meio, ao contrário da tendência jurisprudencial. Aliás, Matilde Conti ensina que
Não se pode deixar de reconhecer que o dentista compromete-se a atuar usando toda técnica e conhecimento disponíveis na tentativa da cura, significando que, no exercício profissional, o dentista tem obrigação de meio. Ele tem compromisso com a cura, mas não tem obrigação de curar, impondo-lhe sim, a obrigação de ser diligente.[15]

Já foi dito que em alguns países da Europa o dentista é médico, para todos os efeitos, mas apenas para melhor ilustrar o tratamento jurídico conferido aos odontologistas, transcreve-se a ementa do acórdão no Processo 67/2001.P1, do Tribunal da Relação de Porto, de relatoria de Filipe Caroço:
II — Estando em causa actos médicos contratados entre o médico e o paciente, pelos quais são prestados serviços clínicos, existe um contrato de prestação de serviços a que se aplicam as regras próprias do mandato, já que a lei não regula a contratação daqueles serviços de modo especial.
III — Não obstante essa qualificação, o resultado a que alude o art.º 1154.º do Código Civil deve considerar-se não a cura, mas os cuidados de saúde, por se tratar de uma obrigação de meios.
(…)
VII — Não age com culpa o médico dentista que, após diagnosticar a causa da dor e a necessidade de extracção, extrai um dente do siso, tendo pata tal administrado uma anestesia regional, seguida de duas anestesias locais, por se manter a sensibilidade à dor, apesar de, durante a prática desse acto, ter ocorrido a fractura da correspondente mandíbula, que, por si só, não significa violação da leges artis.[16]

Observe-se o mesmo cenário, de equiparação do odontologista ao médico, no acórdão no Processo 1889/15.4T8CSC.L1-7, do Tribunal da Relação de Lisboa, de relatoria de Carlos Oliveira:
O ato médico de extração de um dente a um paciente, por implicar uma ação invasiva, com necessária e inevitável lesão do corpo de uma pessoa, mesmo que no caso concreto fosse tecnicamente adequado a solucionar o problema de saúde do doente e a melhorar o seu bem-estar, é ilícito se não for realizado com o consentimento do lesado (Art.s 70.º e 340.º do CC e Art. 156.º do CP).[17]

É de se notar, de forma cristalina, que a atuação do odontologista é médica, sob a ótica jurídica, em Portugal. Sendo ato médico, a obrigação é de meio. No Brasil, Silvio Venosa já aponta que em determinados casos, a obrigação do cirurgião-dentista é de meio e não há dissenção a respeito disto. Trata-se da atuação nas áreas de traumatologia buco-maxilo-facial, endodontia, periodontia, ortopediatria e ortodontia.[18] A discussão sobre se a obrigação é de meio ou de resultado cinge-se à atuação dos odontologistas em procedimentos que teriam a chamada “finalidade estética”.

Parte desta discussão perpassa pela alegação de que a obrigação do cirurgião plástico, justamente pela finalidade estética de sua atuação, seria de resultado. Novamente, ignora-se a complexidade e a unicidade do corpo, cuja abordagem e manipulação não é precisa.

Não à toa, a Resolução 1.621/2001, do Conselho Nacional de Medicina, expressamente dispõe a prática do ato médico na cirurgia plástica como “obrigação de meio e não de fim ou resultado”, ao mesmo tempo em que informa que a finalidade da cirurgia plástica é trazer benefício à saúde do paciente — benesse esta que pode ser física, psicológica ou social.

Alguém dirá que a resolução pretendia tratar das cirurgias plásticas reparadoras, porque, em tese, a responsabilidade do profissional de saúde, nestes casos, seria de resultado, mas também a cirurgia plástica puramente estética visa ao benefício à saúde do paciente, ainda que psicológica e, admita-se, não deixa de ser um procedimento sujeito aos mesmos riscos e patologias que qualquer outro. Aliás, neste mesmo passo, Carlos Alberto Menezes já ensinava:
A responsabilidade civil do médico não pode ser analisada sob o ângulo exclusivamente técnico, uma vez que sempre se deve levar em consideração as circunstâncias peculiares ao exercício da profissão. (…) Por isso, é que se pede ter sempre a consideração de que o médico não pode assumir, em nenhuma circunstância, a responsabilidade objetiva. Daí, ao meu ver, por exemplo, a impertinência de se identificar a cirurgia plástica embelezadora como de resultado, pois ela não é diferente de qualquer outro tipo de cirurgia, estando subordinada aos mesmos riscos e às mesmas patologias.[19]

A obrigação do profissional de odontologia, portanto, seja de qual ramificação for, assim como a dos médicos, é de meio e não de resultado, considerando-se que são complexas as inúmeras manifestações orgânicas, nem sempre afetas ao controle do odontologista ou do médico. Também não se pode, portanto, admitir que o “fim estético” dos procedimentos odontológicos direcionem, necessariamente, a obrigação do odontologista para o resultado, já que, a exemplo dos profissionais de medicina, também os procedimentos dentais guardam sua complexidade e risco. E mais, mesmo no caso da odontologia estética, o dentista “não está obrigado a obter um resultado, mas sim, a empregar todas as técnicas e meios adequados, conforme o estado atual da ciência, para obter o melhor possível, sem prejuízo do equilíbrio funcional e estético”.[20]

É de se destacar que, na esteira do que ensina Matilde Condi, independentemente da natureza da relação do vínculo entre o dentista e o seu cliente, na obrigação de meio, o ônus de provar que a obrigação de meio foi infringida recairá sobre o prejudicado, razão pela qual a alegação de inadimplemento contratual também seria afastada.

Portanto, a análise da responsabilidade do dentista não pode deixar de considerar a culpa, nos termos do que preconiza o CDC, quando trata da responsabilização do profissional liberal, sendo a obrigação do dentista, de meio, tal como do médico, posto que não é possível exigir precisão sobre a manipulação do corpo (do qual a boca faz parte), já que tal manipulação é “sempre aleatória”.[21]

JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

 


[14]KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 7. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 74-5.

Abner Brandão Carvalho é advogado, sócio do escritório Conde Advogados.

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Pedro Teixeira: Uma questão de igualdade processual

Com a entrada em vigor da Lei n° 13.105/2015, o Código de Processo Civil (CPC), que revogou seu antecessor de 1973, adveio a inovação da taxatividade das hipóteses de cabimento de recurso de agravo de instrumento, que limitou de forma significativa a recorribilidade imediata das decisões interlocutórias, com o intuito de simplificar o processo civil, conforme as exposições de motivos do código recente. Em contrapartida, estabeleceu-se uma situação de insegurança jurídica frente decisões restritivas dos tribunais pátrios entendendo que o recurso se limitaria às hipóteses literais do texto legal, não comportando ampliação de sentido, o que, em consequência, vem desprivilegiar o basilar tratamento processual isonômico.

A situação mais característica desta ausência de isonomia no texto legal é quando uma decisão interlocutória não concede efeito suspensivo aos embargos à execução do devedor, visto que o texto do inciso X do artigo 1.015 do CPC somente prevê como recorrível a decisão que concede, modifica ou revoga tal efeito. Desse modo, a situação jurídica imposta pela lei é prejudicial ao executado, impondo-o uma situação desigual em relação ao executante.

Nesse contexto, decisão recente da Corte Especial do STJ, ao estabelecer a taxatividade mitigada [1] do rol do artigo 1.015 do CPC, e reconhecendo que sua enunciação é insuficiente e em desconformidade com as normas fundamentais do processo civil, estabeleceu interessante avanço, porém, ao restringir hipótese de admissão do recurso fora do rol legal somente quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento de questão em sede de apelação, não logrou em solucionar o problema da ausência de isonomia, o qual bem poderia ser resolvido de forma mais completa a ser considerada a aplicação de métodos de interpretação jurídica.

Regressando ao texto legal, essa limitação das hipóteses de cabimento trazida pelo Código de Processo Civil de 2015 já vinha sofrendo críticas da doutrina, principalmente por ter sido uma inovação que traz celeridade ao processo civil, considerado moroso na prática, mas em sacrifício da ampla defesa, que indubitavelmente sofreu limitação ou cerceamento, como aponta Daniel Assumpção Neves (2016): “Essa fórmula é flagrantemente violadora dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa. Os tribunais de segundo grau precisam melhorar sua performance, disso não há dúvida, mas não se pode admitir que isso ocorra às custas de direitos fundamentais das partes”.

É justamente pensando-se na melhor solução para compatibilização de princípios que as técnicas de interpretação e integração jurídica poderiam ser utilizadas na aplicação das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento. Primeiro, a fim de se evitar o uso indiscriminado das mesmas o que é uma preocupação da doutrina —, um parâmetro importante de controle seria pautar a aplicação de uma técnica interpretativa ou integrativa com o princípio da isonomia.

Sobre o tema, Fredie Didier Júnior (2016) sustenta que a taxatividade extraída do artigo 1.015 do CPC não impede a utilização da interpretação extensiva na aplicação da norma: “A taxatividade não é, porém, incompatível com a interpretação extensiva. Embora taxativas as hipóteses de decisões agraváveis, é possível interpretação extensiva de cada um dos seus tipos”.

Em posição similar, Daniel Amorim Assumpção Neves (2016) também defende uma interpretação ampliativa das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento, através de raciocínio analógico. Na jurisprudência, a Quarta Turma do STJ, antes do julgamento paradigma da Corte Especial, já apontava o entendimento de que às hipóteses de cabimento do artigo 1.015 do CPC aplicam-se a interpretação extensiva ou analógica [2].

Quanto à necessidade de ponderação dessa interpretação com o postulado isonômico, volta-se ao debate sobre a disposição literal do inciso X do artigo 1.015 do CPC. O artigo em comento prevê o cabimento de agravo de instrumento somente contra a decisão que concede, modifica ou revoga o efeito suspensivo em embargos à execução, não abarcando aquela que não concede ou não revoga o mesmo efeito suspensivo.

Em uma interpretação gramatical e literal, a decisão interlocutória que entenda pela não concessão de efeito suspensivo aos embargos de devedor não poderia ser recorrida de imediato, através do agravo de instrumento, somente no futuro, em eventual recurso de apelação, após a sentença. O texto legal, da forma como posto, viola a isonomia processual e prejudica potencialmente tanto o resultado útil do processo, quanto sua celeridade.

Assim, pela sua própria natureza, a execução comporta uma série de atos constritivos ao patrimônio e liberdade dos executados e, conforme o inciso X ipsis litteris, não concedido efeito suspensivo aos embargos, não há como recorrer dessas constrições, ao menos até a sentença de julgamento. Desse modo, imagine-se restarem cumpridos os requisitos à concessão de efeito suspensivo aos embargos do devedor (garantia do juízo, perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo e probabilidade do direito suscitado). A decisão interlocutória que não o conceda não somente causará prejuízos materiais injustos ao executado como fulminaria o resultado útil do processo de embargos à execução, pois até a sentença bens já podem ter sido expropriados, leiloados, adjudicados ou levantados pelo executante, sem impedimentos.

Cabe destacar que a tese da taxatividade mitigada fixada pela Corte Especial do STJ não resolveu essa condição de desigualdade processual, pois para o executado deixou-se a insegurança de uma análise subjetiva e casuística do julgador sobre a admissibilidade do agravo, enquanto para o executante deixou-se a objetividade da lei.

Somente mediante interpretação extensiva do inciso X do artigo 1.015 do CPC seria possível concluir que não somente as decisões concessivas de efeito suspensivo aos embargos do devedor são recorríveis de imediato, como também as decisões não concessivas, preservando-se a isonomia entre executantes e executados.

Por outro lado, a conclusão pelo cabimento do agravo de instrumento também poderia advir de interpretação analógica do inciso I do mesmo artigo, pois toda decisão sobre concessão de efeito suspensivo aos embargos à execução não deixa de ser uma decisão interlocutória que versa sobre tutela provisória, em sentido amplo. É como a ilustre professora Teresa Arruda Alvim Wambier (2015) conclui sobre a desnecessidade do inciso X: “Este inciso de rigor seria até desnecessário, pois trata de medida virtualmente abrangida pelo inciso I”. Cássio Scarpinella Bueno (2016) foi específico sobre a decisão não concessiva: “A recorribilidade imediata daquela decisão parece decorrer da correta compreensão daquele efeito como manifestação da ‘tutela provisória’, a justificar a incidência, na espécie, do inciso I do referido artigo 1.015″.

A Segunda Turma do STJ já havia delineado de forma precisa, no julgamento do Recurso Especial n° 1694667/PR, os entendimentos doutrinários expostos, consignando, inclusive, a vulnerabilidade em que se encontraria o embargante caso não lhe fosse atendida a possibilidade de recorrer com agravo de instrumento de decisão injusta que não concede efeito suspensivo, sob fundamento da isonomia entre as partes e de interpretação extensiva do inciso X através de paralelismo com o inciso I [3].

Revela-se, portanto, a vulnerabilidade da taxatividade mitigada fixada pela Corte Especial do STJ, pois, ao mesmo tempo em que parecer ter solucionado em parte a questão, fixou serem inadmissíveis interpretações extensivas ou analógicas do artigo 1.015, de maneira generalizada, mantendo a desigualdade processual extraída do inciso X. Ao executante a objetividade permissiva da lei e ao executado a subjetividade condicional do julgador.

 

Referências bibliográficas

ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 3ª tiragem. São Paulo: RT, 2015, p. 1.455.

CÁSSIO SCARPINELLA BUENO. Manual de Direito Processual Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

DE FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson. NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de Direito Civil: Parte geral e LINDB. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.

GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume 1: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil: Volume único. 8. ed. Salvador: JusPodium, 2016.

Pedro Mazalotti Teixeira é advogado, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).

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Reflexões sobre o uso da telemedicina em tempos de Covid-19

Em dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu o primeiro alerta a respeito do que uma misteriosa pneumonia, originária da cidade de Wuhan. Desde então, o SARS-CoV-2, vírus por trás da Covid-19, já infectou mais de 4 milhões de pessoas no mundo, vitimando mais de 280 mil, de acordo com números de maio de 2020.

Não há cura conhecida para a Covid-19 e uma vacina viável ao uso demorará, no mais otimista dos cenários, cerca de um ano ou um ano e meio, segundo o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA (Niaid), Anthony Fauci. Neil Ferguson salienta que a Covid-19 é a mais séria ameaça à saúde pública por vírus respiratório desde a pandemia de gripe espanhola, em 1918.[1]

Sem terapias eficazes no combate à Covid-19, abre-se espaço às chamadas intervenções não-farmacêuticas ou non-pharmaceutical interventions (NPIs). Tais medidas têm como objetivo a redução das taxas de transmissão do vírus pelo distanciamento social.[2] Segundo o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, a testagem e o isolamento são fundamentais para a quebra da cadeia de transmissão.

Ainda de acordo com Ferguson, o isolamento dos casos e a quarentena domiciliar, juntamente com o distanciamento daqueles na faixa etária de risco, bem como dos portadores de doenças crônicas, reduzirá, consideravelmente, o número de óbitos ao final desta pandemia, seja pela adoção da estratégia de mitigação ou da supressão.[3]

É preciso ficar em casa, portanto. E, neste sentido, inúmeras empresas e escritórios operam em regime de teletrabalho e os governos estaduais vêm restringindo o funcionamento de estabelecimentos comerciais, ressalvados os que sejam relacionados a serviços tomados como essenciais. As instituições de saúde são exemplos destes serviços essenciais e, a exemplo do que se observa na China e na Itália, os médicos são, a cada dia, mais empurrados na direção do centro da pandemia.

Diante do cenário de urgência global, que foi sendo rapidamente desenhado, o Ministério da Saúde baixou a Portaria 467/2020, que dispõe sobre as ações de telemedicina. Além de se amparar na notória emergência em saúde pública de importância nacional, declarada pela Portaria 188/GM/MS/2020, o ato se apoia na Resolução 1.643/2002 e no Ofício CFM 1.756/2020 – COJUR.

Na telemedicina, a relação médico-paciente é intermediada por meio de instrumentos tecnológicos. Discute-se sua regulamentação no Brasil, há tempos e, neste momento em que há recomendações de se evitar aglomerações e não buscar os prontos socorros dos serviços de saúde, a não ser quando a medida seja indispensável, este tipo de atendimento médico remoto surge como um aliado à quebra da cadeia de contágio do Covid-19.

Acontece que telemedicina é gênero e comporta algumas espécies/modalidades. O Ofício CFM 1.756/2020 – COJUR reconheceu a eticidade, apenas, da utilização das modalidades de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta. De forma breve: na primeira modalidade, fala-se de orientação e encaminhamento de pacientes em isolamento, a segunda trata de monitoramento à distância dos parâmetros de saúde e/ou doença e, na última, diz-se de modalidade que objetiva a troca de informações e opiniões entre médicos, para auxiliar no diagnóstico e na terapia. O reconhecimento mencionado neste parágrafo é, ainda, adstrito ao período que durar a pandemia de Covid-19.

A telemedicina é tratada pelo CFM com certa reserva. Na própria Resolução 1.643/2002, balanceia-se as consequências positivas da telemedicina com os “muito problemas éticos e legais decorrentes de sua utilização”. Uma das preocupações do Conselho com relação a este avanço tecnológico, expressa-se pela assertiva de que o médico só deve emitir sua opinião, recomendação ou mesmo tomar decisões se as informações recebidas forem suficientes para tanto. Ainda, há críticas à telemedicina que tocam a “preocupação com os riscos de uma piora no atendimento, com atrasos ou dificuldades no diagnóstico em razão da distância” e o “enfraquecimento da relação de confiança entre médico e paciente”. Além de tudo isso, o artigo 37 do próprio Código de Ética Médica veda a prescrição de tratamento e outros procedimentos sem o exame direto do paciente, ressalvados os casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada da realização do exame.[4]

Outra modalidade dentro da telemedicina é a teleconsulta, não contemplada pelo ofício do CFM. A propósito e apenas a título de informação, a Resolução 2.227/2018 definia como premissa da teleconsulta “prévio estabelecimento de uma relação presencial entre médico e paciente”, o que parecia mitigar o pesado caráter de antieticidade desta modalidade de telemedicina, já que o contato presencial com o paciente existiria, ainda que de forma espaçada. A resolução em comento foi revogada em 22 de fevereiro de 2019.

Ocorre que, não obstante o constante do referido ofício, a Portaria 467/2020, ao ser abrangente, acabou por causar certa confusão entre especialistas da área e os próprios profissionais. Isto porque o dispositivo menciona atos médicos típicos de consulta, como atendimento pré-clínico, consulta (em sentido estrito) e diagnóstico, inclusive dispondo sobre a possibilidade de emissão de receitas e atestados médicos.

O fato de o ofício do CFM não reconhecer a eticidade da teleconsulta pode gerar certa preocupação por parte dos médicos e médicas quanto à utilização da referida modalidade de telemedicina no relacionamento com o paciente. Uma vez que, em termos práticos, a eticidade da teleconsulta não foi reconhecida pelo CFM e o seu uso poderia, em tese, representar uma falta ética. Naturalmente, os Conselhos Regionais de Medicina fazem eco ao posicionamento do Conselho Federal.

Para fins de ilustração, o CRM-ES, ao disciplinar a telemedicina no Espírito Santo, pela Instrução Normativa CRM-ES 01/2020, admite a possibilidade de estabelecimento de “canais de orientação médica que objetivem esclarecimentos e orientações preventivas relacionadas a pandemia do Covid-19”,[5] sendo que os atos médicos “desenvolvidos nesse enfrentamento que, porventura, sejam objeto de questionamento, serão avaliados pelo CRM, que levará em consideração todo esse contexto”. O Cremesp, por seu turno, ao mesmo tempo em que reconhece a excepcionalidade da situação, reforça a autorização da assistência médica à distância nas condições de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta.[6] O mesmo tom é observado na Resolução CRM/DF 453/2020.

Não obstante a implicação acima destacada, reconheça-se que o Brasil encontra-se em um verdadeiro estado de exceção, que urge uma resposta, em termos de saúde, eficaz, tempestiva e remota. Decerto, a flexibilização da eticidade da telemedicina deve ser concebida como um apoio aos esforços empreendidos pelas políticas públicas de saúde estabelecidas em prol da saúde dos brasileiros.

A recomendação é que o médico e a médica atentem-se a todas os requisitos das ações de telemedicina trazidos pela portaria, inclusive em teleconsulta, já que não há notícia da flexibilização da eticidade de nenhum dos outros deveres delimitados pelo Código de Ética Médica.

Todo atendimento deverá ser registrado em minucioso prontuário clínico que contenham os dados clínicos pertinentes à boa condução do caso, com preenchimento para cada contato. Atestados e receitas médicas emitidas por meio eletrônico devem passar por validação pelo uso de assinatura eletrônica ou de dados associados à assinatura do médico e a tecnologia utilizada para o contato direto entre o médico e o paciente deve ser capaz de garantir a integridade, a segurança e o sigilo das informações.

Nesse sentido, Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), após reunião extraordinária da sua diretoria colegiada, em 31 de março de 2020, firmou o entendimento através da Nota Técnica 7/2020/GGRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO de que: “(…) telessaúde é um procedimento que já tem cobertura obrigatória pelos planos de saúde, uma vez que se trata de uma modalidade de consulta com profissionais de saúde. Dessa forma, não há que se falar em inclusão de procedimento no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, devendo os profissionais observarem as normativas dos Conselhos Profissionais de Saúde e/ou do Ministério da Saúde.” Sendo, portanto, de cobertura obrigatória para seus beneficiários.

Na respectiva reunião, a diretoria colegiada da ANS também aprovou por meio das Notas Técnicas 3/2020/DIRAD-DIDES/DIDES e 4/2020/DIRAD-DIDES/DIDES que, enquanto permanecer a situação de calamidade pública na saúde, não será necessário a alteração e ou adaptação da contratualização entre operadoras e prestadores de serviços para o exercício da telemedicina, mantendo-se as cláusulas já vigentes nesses contratos, em especial na RN 363/2014, desde que exista qualquer outro instrumento (troca de e-mails, mensagem eletrônica através do portal da operadora) que permita identificar que as partes pactuaram as regras para realização deste tipo de atendimento.

Em resumo, as operadoras deverão prever um desses meios de comunicação com o prestador:

  • “A identificação dos serviços que podem ser prestados, por aquele determinado prestador, por intermédio do tipo de atendimento telessaúde;
  • Os valores que remunerarão os serviços prestados neste tipo de atendimento; e
  • Os ritos a serem observados para faturamento e pagamento destes serviços.”

Ao final da referida nota técnica, a autarquia determina que essa negociação permita a manifestação de vontade de ambas as partes e informa que essa medida irá perdurar enquanto o país estiver em situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), “sendo certo que se os atendimentos por meio de telessaúde seguirem autorizados pela legislação e regulação nacional após este período, será necessário ajustar os instrumentos contratuais entre operadoras e prestadores de serviços de saúde”.

A flexibilização da contratualização, adotada pela ANS, é fundamental em tempos de uma pandemia, mas dependerá, sem sombra de dúvidas da flexibilização de inúmeras questões contratuais dessa conturbada relação entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviço, além de uma mudança de hábitos da própria relação médico x paciente, a fim de compatibilizar a telemedicina com o atual momento de isolamento social.

Nosso escritório está preparado para auxiliar nossos clientes e parceiros nesse novo estágio da contratualização no mercado de saúde suplementar, sobretudo no que for necessário a adequação dos stakeholders à regulamentação e ao estado de calamidade pública.

JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

Abner Brandão Carvalho é advogado.