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Estado deve se responsabilizar por agressão em ambiente escolar

Ato Omisso

Estado deve se responsabilizar por agressão em ambiente escolar, diz TJ-SC

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Cabe aos funcionários de unidade educacional pública zelar pelo bem-estar dos estudantes que estão sob sua supervisão. Sendo assim, incidentes gerados em razão de omissão devem recair sobre o estado. 

Criança foi agredida no recreio e desenvolveu síndrome do pânico
123RF

Foi com base nesse entendimento que a 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina ordenou que um aluno agredido durante o recreio receba indenização por danos morais e materiais. A decisão foi proferida nesta terça-feira (12/5). 

Segundo os autos, uma criança de apenas sete anos foi espancada com inúmeros socos no rosto por um estudante mais velho. Após o ataque, houve considerável demora para que o socorro médico fosse feito. O fato ocorreu em 2013. 

O estudante teve um edema nasal e sangramento decorrente da violência. Além disso, desenvolveu síndrome do pânico, passando a receber tratamento psicológico. 

Para o relator do caso, desembargador Luiz Fernando Boller, houve omissão, já que, conforme comprovado por relatos e imagens, nenhum funcionário da escola pública estava presente no momento da agressão. 

“Evidente é a relação de causalidade entre os danos sofridos e a conduta omissiva dos agentes estatais, que descumpriram o munus de guarda e segurança do estudante que se encontrava no ambiente escolar, tanto quanto demoraram para acionar apoio médico”, afirma o magistrado. 

O desembargador, no entanto, entendeu que não era o caso de majorar o valor indenizatório fixado em 1ª instância. Assim, manteve compensação por danos morais no valor de R$ 5 mil e por danos materiais na ordem de R$ 180. 

0502915-14.2013.8.24.0018

 é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 14 de maio de 2020, 10h11

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Andrade: ICMS sobre demanda contratada de potência

Em 2009, o STJ julgou, sob dinâmica repetitiva, o REsp nº 960.476, em que se controvertia a incidência do ICMS sobre os valores pagos pelo consumidor à concessionária de energia elétrica a título de “demanda de potência contratada”. Meses depois, sumulou no verbete nº 391 o entendimento consagrado no precedente: “O ICMS incide sobre o valor da tarifa de energia elétrica correspondente à demanda de potência efetivamente utilizada”.

Ao assim decidir, a corte revelou uma grave incompreensão dos conceitos  de física envolvidos; apreendendo mal os fatos, a aplicação do Direito sobre eles, como era de se esperar, resultou canhestra.

Explica-se. Potência, medida normalmente em watts, é a grandeza física que mensura a quantidade de energia fornecida por uma fonte em um átimo de tempo. É possível medi-la, é possível atingi-la, mas não é possível consumi-la nem gastá-la. Passível de consumo é, apenas, a própria energia, e esse fenômeno é normalmente medido em watts/h.

Em um singelo exemplo: numa sala, há uma lâmpada de 200 w, que fica ligada por uma hora durante um dia; na sala ao lado, há uma lâmpada de 100 w, ligada por duas horas. Ao final do dia, o consumo de energia em cada sala terá sido igual: 200 w/h; a potência necessária em cada sala, no entanto, é diferente, pois na primeira sala a quantidade de energia que trafega na sua rede em um mesmo instante é maior.

Demanda de potência tem, então, a ver com o chamado “pico de energia”, isto é, com a quantidade máxima de energia que poderá trafegar ao mesmo tempo em um ponto de consumo. Quanto maior a demanda de potência, mais robustos devem ser a fiação, os equipamentos e a estrutura geral da rede elétrica no ponto de consumo, e maior, por conseguinte, o custo para viabilizar o fornecimento seguro da energia.

Essa estrutura é fornecida e instalada pela distribuidora de energia que, para dimensioná-la, deve aferir justamente a quantidade de energia passível de consumo quando todas as máquinas do usuário estiverem funcionando simultaneamente.

Por isso, a norma reguladora (Res. Aneel 410/14, artigo 2º, XXI e XXXVII) prescreve que, para grandes usuários (integrantes do Grupo A), o custo necessário para atendimento da demanda é cobrado separadamente do valor da energia consumida propriamente.

São as chamadas tarifas “binômias”. Nelas, autonomizam-se duas relações jurídicas distintas, ainda que contracenadas simultaneamente entre as mesmas partes:

a) Uma relação jurídica mercantil, cujo objeto é a venda de mercadoria energia elétrica; e

b) Uma relação jurídica cujo objeto é a preparação e disponibilização temporária de infraestrutura adequada para atendimento da demanda de potência.

Ainda segundo a Resolução Aneel 410/14 (artigo 104, §1º), o valor imputável à demanda contratada será devido integralmente ainda que, no período de medição, ela não tenha sido atingida. Esse racional é indisputável, afinal o custo da distribuidora para instalar e manter uma estrutura para atender uma demanda de, digamos, 500 w, será o mesmo ainda que, naquele mês, o usuário tenha atingido um pico de apenas 450 w.

Já se vê, de qualquer forma, por que o ICMS não deve incidir sobre o valor da demanda contratada: ela simplesmente não mensura uma operação mercantil translativa da propriedade de um bem móvel. A base de cálculo infirmaria a materialidade possível do ICMS se a demanda contratada a integrasse.

O STJ, porém, não compreendeu bem o conceito físico de demanda de potência delineado acima. Tomou-o como se fosse uma estimativa de energia a ser consumida pelo usuário, como um “crédito de energia” para consumo futuro.

Concluiu, então, que somente a demanda efetivamente consumida somaria à base do ICMS. É o que se lê na Súmula nº 391.

A conclusão seria perfeita se a premissa estivesse correta. Mas, como se viu acima, a premissa está completamente equivocada, na medida em que potência não é passível de consumo, e a demanda contratada não guarda nenhuma relação com a quantidade de energia elétrica consumível em um intervalo de tempo.

Para tentar dar algum sentido à Súmula nº 391, é necessário conferir à expressão “utilizada” não a semântica de “consumida”, mas a de “atingida”. No exemplo de uma indústria que haja contratado com a distribuidora uma demanda de potência de 500 w por R$1 mil, se ela alcançou, no mês um pico de 450 w, o ICMS incidiria proporcionalmente sobre a “demanda atingida” (=90% de 500 w), isto é, sobre R$ 900 (=90% de R$1 mil).

Assim entendida a súmula, a impropriedade do conceito físico subjacente fica resolvida, mas o equívoco jurídico-tributário persiste, afinal o ICMS passa a incidir sobre parte de uma grandeza que não mensura operação mercantil nenhuma.

Em teoria, a Súmula nº 391 erige um Frankenstein no meio do caminho entre as pretensões do contribuinte (que deseja excluir inteiramente o valor da demanda) e do Fisco (que deseja incluir inteiramente o valor da demanda).

Na prática, porém, representa uma vitória para os Fiscos estaduais, uma vez que, em condições normais de produção, o pico de energia é comumente muito próximo daquele que foi estimado contratualmente; basta, para tanto, que o usuário tenha funcionado, em algum momento no mês, com sua capacidade instalada máxima.

A demanda de potência “atingida”, assim, é no mais das vezes muito próxima ou mesmo igual à demanda de potência contratada e, sempre que isso ocorre, o seu valor integral, sob o entendimento sumular, verte à base de cálculo do ICMS.

Tanto é assim que o estado de São Paulo, por exemplo, não hesitou em “se conformar” com o entendimento sumulado e o incorporou ao ordenamento através da Lei Estadual nº 16.886/18.

Pois bem. Coincidentemente, no mesmo setembro de 2009 em que o STJ editou a Súmula nº 391, o STF reconheceu repercussão geral ao tema no RExt nº 593.824. Depositou-se, então, no Supremo a esperança de que o tema fosse “endireitado” e que a análise jurídico-tributária lá se realizasse com as premissas fáticas corretas hauridas da física.

Uma década se passou (como se cansam de esperar os contribuintes!) e o leading case acaba de ser finalmente julgado pelo Plenário. Por expressiva maioria de 9 a 2, assentou-se a seguinte tese:

“A demanda de potência elétrica não é passível, por si só, de tributação via ICMS, porquanto somente integram a base de cálculo desse imposto os valores referentes àquelas operações em que haja efetivo consumo de energia elétrica pelo consumidor”.

O enunciado soa bem. Tem-se a impressão de que os pecados conceituais da Súmula STJ nº 391 foram expiados, afinal já não se fala em “demanda utilizada”. Ao contrário, consigna-se simplesmente que a demanda de potência não se sujeita nunca, nem parcialmente ao ICMS porque não configura uma operação de consumo de energia. Premissa correta, conclusão perfeita.

O alcance preciso da tese fixada será conhecido somente quando da publicação da íntegra do acórdão. Por ora, o que se conhece é, apenas, o voto condutor do ministro relator Edson Fachin, já divulgado na imprensa.

O conteúdo do voto de Sua Excelência, no entanto, preocupa. Inobstante a apurada redação final da tese jurídica fixada, a fundamentação que a precede é toda construída a partir do voto vencedor do saudoso Teorí Zavascki no REsp nº 960.476. Uma interpretação sistemática do voto do ministro Fachin, portanto, pode sugerir que está, na verdade, apenas endossando, e não propriamente aprimorando, o entendimento do STJ.

Tanto assim que, logo antes de enunciar a proposta de tese, o eminente relator derrapa no mesmo equívoco conceitual de sempre, afirmando que não integra a base do ICMS “eventual montante relativo a negócio jurídico consistente na mera disponibilização de demanda de potência não-utilizada (grifo do autor).

Essa fundamentação, portanto, poderá render dissenso sobre o verdadeiro alcance da tese fixada. Se a íntegra do acórdão não esclarecer o ponto, ainda se poderá eventualmente dirimi-lo em embargos de declaração, interposto por qualquer das partes.

O que se deve evitar, a nosso ver, a qualquer custo, é que, após 15 anos de litígios, com a produção de um precedente em regime repetitivo, uma súmula e um precedente em repercussão geral pelos tribunais superiores, reste na boca aquele acre sabor de “tudo certo, nada resolvido”.

 é sócio do escritório Fialho Salles Advogados, juiz do Tribunal de Impostos e Taxas da Sefaz-SP e mestre em Direito Tributário pela USP.

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Robôs podem julgar? Qual é o limite da Itech-cracia?

Resumo-aviso: este texto não é a favor da volta do lápis!

Corretamente o Ministro Luiz Salomão criticou uma petição de RESP de 427 páginas. Pior: a matéria estava vencida de há muito. Aqui se vê o lado perverso da tecnologia. Se o causídico tivesse que escrever à máquina o recurso aposto que não faria mais de 20 páginas. Tentarei tratar destas diversas pontas do problema nas linhas abaixo.

Vejo todos os dias loas às novas tecnologias. Não sou um retrógrado ou jurássico (a não ser quando se fala na Constituição!!!). Tenho em minha casa e escritório toda a tecnologia. A mais moderna.

Mas isso não me fez um intelectual. Meus livros não foram escritos pela tecnologia. Foram escritos com a tecnologia. E, por outro lado, minhas aulas não atraem tanta gente por causa da tecnologia (que, por sinal, não uso em sala de aula). Atraem talvez porque eu seja um bom professor…! A tecnologia me ajuda. Mas não me substitui.

Então, se alguém quer vender essas facilitações tecnológicas, com o argumento de que isso vai trazer uma revolução no Direito, pode fazê-lo. Venda a ideia à vontade. Mas pode ser propaganda enganosa.

Todos os dias aparecem novos argumentos. A onda é ITechLaw, inteligência artificial, robôs que decidem e até corrigem provas. Li recentemente até sobre algo que chamam de advocacia 5.0 (sic). Dizem até que a pandemia trouxe o novo (sic), e que agora clientes e advogados não se atrasam, e os advogados de escritório não gastam tempo em deslocamento… Então tá. Tudo veio para melhorar… Viva a pandemia!

Outra “propaganda” diz que a busca por jurisprudência foi revolucionada. Pode ser. Só não entendo por que as decisões judiciais continuam no recorta e cola como já se fazia. E de que adianta a busca melhorar se o “operador” que está buscando não consegue refletir sobre o “buscado”?

Cada coisa que criam… Por exemplo, o legal design. Há muitos sites sobre isso. Legal design lida com a empatia, dizem. Que coisa, não? É feito por etapas: a primeira fase é a descoberta do problema; a segunda fase é a interpretação, em que, pasmem, “o problema deve ser resumido em uma frase”. Bueno. Parei por aí. É muito profundo. Melhor não lerem as fases seguintes.

De todo modo, quero ver o “método legal design” resolver um caso de distinguishing. Quero ver transformarem “coerência e integridade” em uma frase…! E quero ver…deixa para lá.

Como retranca, depois de dizerem algo como “tecnologia ou o caos”, alguns fazem a observação (não sem antes dizerem que os críticos “não entenderam o que é tecnologia”): a tecnologia não vai interferir ou mudar o direito, que continuará… Dá para notar… Explico na sequência.

O assunto sempre começa com coisas como “o direito é atrasado tecnologicamente”; “o ensino é atrasado”. “Aulas não devem ser expositivas” (pergunto: devem ser por power point, em que o professor lê o que está escrito para os alunos que parece não saberem ler?). Diz-se também que, em tempos de smartphone, não faz sentido o professor ainda achar que é a única fonte de todo o conhecimento.

Opa, alto lá. Já de pronto temos um problema. Primeiro, o smartphone não traz conhecimento. Ele proporciona informações. Qualquer néscio tem acesso à informação. Basta um click. Aliás, se informação de smartphone fosse autossuficiente, não teríamos o aumento de ignorantes no mundo. Isso a tecnologia não explica…

Ou vão dizer que alguém que é analfabeto funcional, transformou-se, depois de ter comprado um smartphone e passar o dia em grupos de whatsapp, em um ser alfabetizado? Na verdade, piorou. Um aluno de direito, com seu smartphone, agora sabe o conceito de Direito? Um advogado que não sabe lhufas sobre recursos e que acha que o direito termina na divisa do município, depois de comprar um tablet transformou-se em um Rui Barbosa?

A confusão dos apaixonados pelo direito 5.0 ou 6.0, turbo-hiper, dá-se por não saberem a diferença entre informação e conhecimento, assim como, até hoje, a comunidade jurídica não sabe a diferença entre ativismo e judicialização (por isso as estatísticas são, na sua maioria, falas), não sabe o conceito de princípio (pensam que é algo que pode ser sacado do bolso).

Vou ajudar, puxando T.S. Eliot: informação não é conhecimento, que não é saber, que não é sabedoria. Por isso (i) precisamos do professor de carne e osso para transformar esse monte de informações em conhecimento. E (ii) precisamos de bons professores para transformar o conhecimento em saber. E, quem sabe, (iii) os melhores professores, de carne e osso, ainda podem transformar o saber em sabedoria. O resto é propaganda.

Fala-se em revolução com startups jurídicas, lawtechs ou legaltechs, market place (Diligeiro e Jurídico Certo), automação de documentos jurídicos (Looplex e Netlex), gerenciamento de prazos e pendências (Legal Note), pesquisa jurídica (JusBrasil) e resolução de conflitos (Arbitranet e Acordo Fácil). Não nego que, no meio de tudo isso, algo possa ser útil – mas como ferramenta.

Nem vou falar do estelionato que virou essa “coisa de busca de jurisprudência” na internet. Despiciendo. Autoexplicativo. Outra pergunta: Diligeiro revoluciona em termos de conhecimento? Ou em informações? E Market place? Acordo fácil? Claro: fácil (itação). Não esqueçamos que o Brasil deve ser o único (ou último) país que tem despachantes de trânsito. São facilitadores… Livros facilitados e resumos são uma espécie de atalho. Despachantes.

Também impressiona o encantamento com softwares de inteligência artificial (IA) com potencial, afirmam por aí, de substituir (sic) o operador do Direito em várias áreas. Uau. E eu vou para o quarto do pânico ou para as montanhas. Fugindo do software dos recursos, que vitima milhares de direitos por dia.

Seria o Direito uma mera ferramenta, manipulável por dois bites? Eis o paradoxo: se os encantadores estiverem corretos, estarão errados. Se vencerem, perderemos. Todos. Afinal, se o Direito é ferramenta manipulável por robôs, aí estará a vitória dos seus inventores e cultuadores. Mas será também a derrota do Direito e dos advogados e demais atores. Paradoxo! Ao vencer, perde.

As crises do ensino jurídico e da aplicação do Direito não existem por causa da falta de tecnologia e quejandos. Ao contrário: parte da tecnologia está emburrecendo mais ainda os alunos, porque traz facilitações, substituindo leituras e pesquisas por tecnologias prêt-à-porter, como resumos e resuminhos e drops jurídicos e ementas descontextualizadas. É sobre isso que os encantados pelas novas tecnologias deveriam se debruçar. Por que a tecnologia não diminui o número de alunos analfabetos funcionais?

Os encantados pela tecnologia deveriam se preocupar com essa praga que são os resumos high tech. Aliás, isso tudo constitui um “novo” tipo de ensino prêt-à-porter, prêt-à-penser e prêt-à-parler. A sala de aula com os alunos utilizando seus celulares conectados com Google e Facebook, etc, transformou-se em um inferno. Todos têm acesso à informação…mas poucos adquirem algum conhecimento. Mais tecnologia, mais informação, menos conhecimento, menos saber, menos sabedoria.

Ledo engano achar que a ferramenta substitui a ciência. Ou o saber. Ou que melhores ferramentas podem substituir a necessidade de estudo. Não existe intelectual bronzeado!

Podem dizer que sou jurássico, que não entendi nada e que quem defende isso não quer afirmar tal e tal coisa e que as tais ferramentas tecnológicas apenas servem para ajudar. Está bem. Aceito o argumento, mas mantenho a crítica.

Dizem que “só a tecnologia salva o Direito”. Em nome “de o” senhor Deus ex machina”. Mas, por que a coisa só piora? A não ser para quem faz direito tipo uber ou coloca produção jurídica tipo fordismo… Admito que quem faz trabalho de massa precisa de alta performance tecnológica. Mas não é desse direito que falo.

Respondam: com o advento de toda essa tecnologia, as decisões melhoraram? As respostas aos embargos? Como estão, na era Itech? E a jurisprudência defensiva? Diminuiu? Cartas para a redação.

Portanto, muita calma nessa hora. Se você quer vender tecnologia, OK. Mas não me altere o samba tanto assim.

Ora, só não vê quem não quer ver. Dia a dia, recursos são e serão examinados por robôs. Robôs especialistas em Direito tal e tal. Permito-me dizer que isso tudo apenas reforça as antigas distopias que a literatura nos mostra. Como uma espécie de “De volta para o futuro”, em que a SkyNet toma conta do mundo.

Quero que me digam como os depoimentos filmados são assistidos em grau de recurso, para falar só desse problema. Já discuti o processo eletrônico (aqui e aqui), essa invenção tecnológica brasileira.

Afirma-se que a tecnologia promove uma democratização do conhecimento… Digo eu, de novo: Como assim? A tecnologia apenas promove a democratização da… informação. O professor – esse sujeito que deveria ganhar auxílio insalubridade – é quem tem a tarefa de transformar essa informação em conhecimento (que é apenas o começo), esse conhecimento deve ser transformado em saber e esse saber em sabedoria.

Outo paradoxo: se o aluno descobrir que “tudo está no tablet”, não necessitará mais ir à faculdade. A vitória é a derrota.

Ora, as pessoas cada vez mais se “comunicam” por neo-hieroglifos (os emojis). Os livros são pirateados, escamoteando direitos autorais. Há robôs que fazem petições, sites vendendo “tudo fácil”, “direito pré-pronto”, “direito-uber”, robôs que fazem acordos etc. Milhões de artigos, memes, aulas musicadas e conceitos pequeno-gnosiológicos estão à disposição dos alunos e dos profissionais a um click.

Essa parafernália, esse Deus ex machina, composto de technismos e quejandos, só tem sentido se alguém, uma pessoa que tenha saber, souber fazer “gerenciamentos epistêmicos”, se me entendem o que quero dizer. “Epistêmicos”, professor? Pois é. Clique no Google. Leu? E agora? Entendeu? De nada serve a tecnologia sem gerenciamento epistêmico.

Professor, faça o teste: peça para o aluno com smartphone na mão, que acabou de ler a palavra epistemologia e até mesmo o seu conceito, para ele interpretar o que leu… Em nome de o Senhor Deus ex machina.

O bom ensino jurídico exige cultura. Os melhores centros de estudo do mundo mantêm sua excelência nessa base, incorporando os úteis desenvolvimentos tecnológicos às suas rotinas, mas sem viajar em modismos.

Não se trata de nostalgia de minha parte. Descobertas que facilitam a vida são bem-vindas, mas há falsas facilidades sobre as quais devemos alertar.

Isso é a mesma coisa do que essa “novidades” (para mim, bobagens) do tipo “textos devem ser curtinhos, máximo dez linhas”, e palestras só devem ter 18 minutos. Tenho que rolar de rir. Por que será que as pessoas ficam uma hora e meia assistindo a um filme e só conseguem ficar 18 minutos prestando atenção a um palestrante? Será que o problema não é o palestrante? Entenderam?

A crise do ensino exige uma ampla reformulação das matrizes teóricas atrasadas com as quais se formam os profissionais. A crise se resolve… lendo. Estudando. Pesquisando…, mas não em sites prêt-à-porters. E os concursos só melhorarão a seleção de profissionais se pararem com o modelo quiz show. E os cursinhos não mais “treinarem” os candidatos.

Antigamente meu pai dizia: curso superior não encurta orelha de ninguém, ao se referir a um néscio advogado lá da minha terra. Hoje, adaptando, posso afirmar: a tecnologia não encurta orelha de aluno, professor, juiz, promotor, advogado.

Numa palavra: não adianta ter cinco computadores, startups etc. e estudar em resuminhos Itech.

Antigamente os livros mais vendidos eram os ementários. Agora os sites resumem os acórdãos…porque a malta não lê mais do que dez linhas. Eis o grande avanço (ironia).

Professor pode optar pelo modelo que quiser. Advogado também. Mas não me venham com essa conversa de que o ensino vai mal por não usar tecnologias. Bah. E que a aplicação do Direito melhorará. Poxa. Há quanto tempo já se usa tecnologia e… Bom, novas cartas para a redação.

Eu continuo com aulas expositivas e seminários, do mesmo modo como cursei mestrado e doutorado. Quem quiser assistir às minhas aulas jurássicas e constatar essas coisas ultrapassadas e não-inovadoras, está convidado a conferir. Mas não pode ligar o smartphone e nem ficar olhando a internet ou o Facebook. O professor sou eu!

Que tal um teste de legal design hoje? Descubra o problema do pamprincipiologismo no Direito. E, na segunda fase do “método”, escreva tudo em uma frase. Difícil? Também acho. Melhor ler o meu Dicionário de Hermenêutica, que, aliás, está em sua segunda edição, com dez novos verbetes (Valores, Autonomia do Direito, Cognitivismo e não-cognitivismo moral, Dualismo Metodológico, Livre Convencimento, Livre Apreciação da Prova, Literalidade, Voluntarismo, Jusnaturalismo e Precedentes). Agora já são 50. Tentei colocar tudo em dez páginas…, mas deu 485. Difícil. Muito.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

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Cassação de aposentadoria e as flores de plástico

Há tempos não escrevo uma coluna sobre servidores públicos. Motivou-me a elaborar a presente o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, no Plenário Virtual de 03 a 14.04.2020, da ADPF 418, Rel. Min. Alexandre Moraes (Informativo 975), cujo objeto foi o reconhecimento da constitucionalidade dos artigos 127, IV e 134 da Lei 8.112/90, que versam sobre a penalidade de cassação de aposentadoria dos servidores públicos federais em processos administrativos disciplinares.

A ADPF 418 foi movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), as quais argumentavam, basicamente, que os artigos 127 (inciso IV) e 134 do Estatuto dos Servidores Civis da União (Lei 8.112/90) não haviam sido recepcionados pelas Emendas Constitucionais 3/93, 20/98 e 41/03, tornando-se incompatíveis com o regime contributivo e solidário da previdência dos servidores públicos.

No julgamento do STF, compreendeu-se que as referidas emendas constitucionais que estabeleceram o caráter contributivo e o princípio da solidariedade para o financiamento do regime próprio de previdência dos servidores públicos, não revogaram as disposições do Estatuto dos Servidores Públicos Federais.

A decisão do STF tem como base os seguintes argumentos:

  • As emendas inauguraram um sistemática que demanda atuação colaborativa entre o respectivo ente público, os servidores ativos, os servidores inativos e os pensionistas;

  • A contribuição previdenciária do servidor público não é um direito representativo de relação sinalagmática entre a contribuição e o eventual benefício previdenciário futuro;

  • A aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria ou disponibilidade é compatível com o caráter contributivo e solidário do regime próprio de previdência dos servidores públicos;

  • A penalidade decorre do Poder Disciplinar da Administração e a impossibilidade de aplicação de sanção administrativa a servidor aposentado resultaria em tratamento diverso entre servidores ativos e inativos, relativamente aos mesmos ilícitos, em prejuízo do princípio isonômico e da moralidade administrativa, favorecendo a impunidade.

Afora os argumentos de índole moral sustentados na decisão suprema, convém observar que o fato de o STF ter reconhecido a constitucionalidade dos dispositivos da Lei 8.112/90 não elimina as controvérsias, as quais são como as titânicas “flores de plástico” — não morrem…

Elegi duas dessas “flores” para serem versadas nesta coluna, em ordem a comprovar a veracidade da afirmativa: (a) a contagem recíproca por tempo de serviço; (b) a impossibilidade de aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria em ações de improbidade administrativa.

Contagem recíproca de tempo de serviço

A primeira “flor” refere-se ao tempo de contribuição realizado compulsoriamente pelo servidor (contribuição previdenciária é tributo) à previdência pública, em face da previsão de contagem recíproca prevista nos artigos 40, §9º e 201, §9º da Constituição da República, que continuam a refletir a mesma orientação do texto originário, independente da Emenda Constitucional nº 103, de 2019 (Reforma da Previdência).

A Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro já faz algum tempo apontou em artigo publicado nesta coluna que “há que se ponderar que, em se tratando de pena de demissão, não há impedimento a que o servidor volte a ocupar outro cargo público, uma vez que preencha os respectivos requisitos, inclusive a submissão a concurso público, quando for o caso. Se assim não fosse, a punição teria efeito permanente, o que não é possível no direito brasileiro. E não há dúvida de que, se vier a ocupar outro cargo, emprego ou função, o tempo de serviço ou de contribuição, no cargo anterior, será computado para fins de aposentadoria e disponibilidade, com base no artigo 40, parágrafo 9º, da Constituição.”

Os argumentos da ilustrada professora falam por si só. O fato de o servidor vir a ser apenado em processo administrativo disciplinar com a sanção de cassação de aposentadoria não apaga automaticamente o seu tempo de contribuição. Mesmo porque se outra atividade vier a ser por ele “prestada no setor privado ou em regime de emprego público, esse tempo de serviço ou de contribuição no cargo em que se deu a demissão tem que ser considerado pelo INSS, por força da chamada contagem recíproca, prevista no artigo 201, parágrafo 9º, da Constituição.”

Bem de ver que para que o ex aposentado venha a pleitear aposentadoria em um novo cargo público ou nos quadros do INSS, desta feita por conta do novo vínculo subordinado, terá de cumprir requisitos previstos na Constituição e na lei. Então, por exemplo, se o indivíduo sancionado pela cassação de aposentadoria vier a ocupar um novo cargo público por concurso público, terá que cumprir, a fim de se aposentar mediante contagem recíproca, “o tempo de contribuição e os demais requisitos estabelecidos em lei complementar do respectivo ente federativo”, nos termos do art. 40, III, da Constituição da República (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019).

Impossibilidade de aplicação da penalidade em ações de improbidade administrativa

A segunda “flor” refere-se à impossibilidade de aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria nas ações de improbidade administrativa.

Já tive a oportunidade de anotar que esse tipo de ação tem um colorido quase penal, asseverando que são ações de conteúdo punitivo, participantes do microssistema do Direito Administrativo Sancionador. São “ações penaliformes”, subordinadas muito mais de perto à “principiologia” típica do Direito Penal e do Processo Penal.

“[O] objeto próprio da ação de improbidade é a aplicação de penalidades ao infrator, penalidades essas substancialmente semelhantes às das infrações penais. Ora, todos os sistemas punitivos estão sujeitos a princípios constitucionais semelhantes, e isso tem reflexos diretos no regime processual. É evidente, assim — a exemplo do que ocorre, no plano material, entre a Lei de Improbidade e o direito penal —, a atração, pela ação de improbidade, de princípios típicos do processo penal”.

Com efeito, de acordo com o art. 37, §4º da Constituição e com o art. 12, I, II e III da Lei 8.429/92, uma das penas aplicáveis ao caso de condenação judicial transitada em julgado na ação de improbidade administrativa (art. 20 da Lei 8.429/92) é a “perda da função pública”.

Diferentemente da Lei 8.112/90 cujos artigos 127, IV e 134 da Lei 8.112/90 acabam de ser declarados constitucionais em ADPF pelo STF   a lei de improbidade simplesmente não alude à penalidade de cassação de aposentadoria.

Logo, uma vez ausente a previsão legal na Lei 8.429/92 é descabida a aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria – nullum crimen nulla poena sine lege.

A questão, portanto, no caso específico da improbidade administrativa, é antes de legalidade do que de isonomia. É que o princípio da legalidade constitui uma efetiva limitação ao poder punitivo estatal […] é um imperativo que não admite desvios nem exceções e representa uma conquista da consciência jurídica que obedece a exigências de justiça, que somente os regimes totalitários o tem negado.”

Para não dizer que não falei das flores…


A competência para legislar sobre servidores públicos estatuários, respeitados os quadrantes constitucionais, é de cada entidade federativa. É comum que se contate em muitos estatutos a inexistência de previsão legal da penalidade de cassação de aposentadoria dos servidores (v.g., Lei 869/52 do Estado de Minas Gerais).

Sobre o tema, ver a coluna “Senso Incomum” semanalmente elaborada pelo jurista Lenio Luiz Streck aqui na ConJur. O ponto de convergência dos textos do autor reside na compreensão de que o Direito não é um subproduto da moral.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. https://www.conjur.com.br/2015-abr-16/interesse-publico-cassacao-aposentadoria-incompativel-regime-previdenciario-servidores. A redação atual do art. 40, §9º da Constituição é a seguinte: “o tempo de contribuição federal, estadual, distrital ou municipal será contado para fins de aposentadoria, observado o disposto nos §§ 9º e 9º-A do art. 201, e o tempo de serviço correspondente será contado para fins de disponibilidade”. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019).

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. https://www.conjur.com.br/2015-abr-16/interesse-publico-cassacao-aposentadoria-incompativel-regime-previdenciario-servidores. A redação atual do art. 201, §9º da Constituição é a seguinte: “para fins de aposentadoria, será assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição entre o Regime Geral de Previdência Social e os regimes próprios de previdência social, e destes entre si, observada a compensação financeira, de acordo com os critérios estabelecidos em lei.” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)

Não se desconhece a existência de precedentes do STJ que sustentam a possibilidade de aplicação da penalidade, como se pode ver dos seguintes arestos do STJ, EDcl no REsp 1.682.961/RN, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA; STJ, AgInt no REsp 1.781.874/DF, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 14/05/2019; e do AgRg no AREsp 826.114/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 25/05/2016.

FERRAZ, Luciano. https://www.conjur.com.br/2020-jan-30/interesse-publico-ausencia-duplo-grau-jurisdicao-obrigatorio-acoes-improbidade.

Voto do Ministro Teori Albino Zavascki no RECURSO ESPECIAL Nº 885.836 – MG (2006/0156018-0), 1ª T, DJ de 02/08/2007, p. 398.

É fundamental compreender a diferença entre a aplicação da penalidade disciplinar em âmbito interno (poder hierárquico da Administração Pública) e a aplicação judicial das penas da lei de improbidade administrativa em âmbito externo (Poder Judiciário).

Saliente-se que o cabimento da penalidade de cassação de aposentadoria, mediante o exercício do Poder Disciplinar da Administração Pública, pressupõe que a falta apenável tenha sido cometida enquanto o indivíduo esteve vinculado ao serviço público. Isso porque se a falta tiver sido cometida depois da ruptura do vínculo, o aposentado não mais se subordina a essa ‘relação de especial sujeição’.

Ver a recente decisão o STJ no AgInt no REsp 1761937/SP. Registra a ementa que “as normas que descrevem infrações administrativas e cominam penalidades constituem matéria de legalidade estrita, não podendo sofrer interpretação extensiva (REsp. 1.564.682/RO, Rel. Min. OLINDO MENEZES, DJe 14.12.2015). Outro exemplar: AgInt no REsp. 1.496.347/ES, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, DJe 9.8.2018. Na espécie, o Tribunal de origem, ao apreciar o tema, assinalou que, em consonância com os precedentes desta E. Turma, verifica-se a impossibilidade de aplicação da pena de cassação da aposentadoria, ante a inexistência de previsão legal desta modalidade de pena no rol do art. 12 da LIA (fls. 4.739). Referida compreensão, bem por isso, não se aparta de ilustrativos desta Corte Superior no tema” (AgInt no REsp 1761937/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe 19/12/2019).

A expressão, verdadeiramente iluminista — e reputada à obra de Cesare Beccaria — transmite a noção secular de que “só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social. Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei; e, do momento em que o juiz é mais severo do que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado. Segue-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem público, aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão.” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000015.pdf).

BITEENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, Vol. 1, 17. ed., São Paulo: Saraiva, 2012. p. 48.

 é advogado e professor associado de Direito Administrativo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Vale-pedágio antecipado é proteção aos caminhoneiros autônomos

Ajuizada, em outubro de 2018, pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), a ADI 6.031 foi julgada, em sessão virtual, pelo STF em março de 2020 e volta, nesta semana, à pauta da Corte Suprema. Ela analisará Embargos de Declaração, visando aclarar a decisão que julgou constitucional o art. 8º da Lei 10.209/20018; entendendo ter sido ela criada para proteger o caminhoneiro autônomo (parte vulnerável da relação); não tendo, contudo, afastado a extensão indevida da norma aos contratos com transportadoras profissionais (empresas em que está ausente o requisito de vulnerabilidade). Embora, normalmente, julgamentos de Embargos de Declaração não suscitem grande interesse, devido a seu pouco alcance, não é o caso do presente.

A Lei Federal 10.209, de 23 de março de 2001, transferiu ao contratante — i.e. ao embarcador ou a ele equiparado [1] — a responsabilidade pelo pagamento antecipado do pedágio do transportador autônomo, a ser feito separadamente (em documento próprio) e de forma discriminada do valor do frete. Ficou assim instituído o denominado “Vale-Pedágio obrigatório” sobre o transporte rodoviário de carga.

Perquirindo-se os motivos da edição da lei, chega-se a um objetivo principal e outro secundário. O principal é dar vazão às reivindicações dos transportadores autônomos — pessoas físicas, proprietárias ou coproprietárias de um só veículo, sem vínculo empregatício [2] — parte mais vulnerável da relação de transporte [3], que culpavam a prática de embutir o custo do pedágio no valor do frete pela redução de sua remuneração final. O secundário era fomentar a receita nas vias pedagiadas, eliminando-se as “‘fugas’ desnecessárias e antieconômicas usualmente praticadas pelos caminhoneiros, que redundavam, de um lado, em evasão de receitas; e, de outro, contribuía para deteriorar as estradas das municipalidades situadas ao longo das chamadas ‘rotas de fuga’” [4] não preparadas para tal espécie de tráfego.

O enforcement da norma ancorou-se em pesado sancionamento: o descumprimento da obrigação de antecipação do valor do pedágio importando no pagamento de indenização ao transportador “em quantia equivalente a duas vezes o valor do frete” (e não do pedágio!) — art. 8º —, o que deságua não raro em indenizações altíssimas (na verdade, multas); dezenas de vezes maior do que o valor que deixou de ser antecipado.

Respeitando os méritos da legislação em comento quanto aos seus propósitos, sobretudo na proteção dos autônomos, muitos foram os reclamos e as decisões do Judiciário atribuindo caráter confiscatório a essa sanção. Sua reconhecida exorbitância resultou quer em sua cassação, quer em sua redução pelo Juiz. Nesse sentido:

“A fixação da cláusula penal não pode estar indistintamente ao alvedrio dos contratantes, já que o ordenamento jurídico prevê normas imperativas e cogentes, que possuem a finalidade de resguardar a parte mais fraca do contrato, como é o caso do artigo 412 do CC/2002.

Embora não haja a possibilidade de determinar a exclusão da multa, pois isso descaracterizaria a pretensão impositiva do legislador, é cabível a aplicação do acercamento delineado pelo art. 413 do Código Civil, no qual está contemplada a redução equitativa do montante, se excessivo, pelo juiz, levando-se em consideração a natureza e a finalidade do negócio jurídico.” (REsp 1520327/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/05/2016, DJe 27/05/2016).

Infelizmente, houve também posicionamentos pela validade de tais multas, chancelando, portanto, a aplicação desproporcional do valor dobrado do frete como parâmetro de indenização. Ainda mais draconianas foram decisões aplicando a multa a toda e qualquer contratação, inclusive em se tratando de embarcadores e grandes transportadores (pessoas jurídicas com ampla frota e atividade profissional), sem qualquer envolvimento do “caminhoneiro autônomo” protegido pela norma.

Face a isso, a CNI ajuizou a ADI 6.031, acima noticiada, questionando a constitucionalidade do art. 8.º da Lei 10.209/2001, que resultou no reconhecimento de sua constitucionalidade, nos termos do voto da relatora ministra Carmen Lúcia, vencido o ministro Gilmar Mendes [5]. Ressalte-se, entretanto, que a ministra relatora enfatizou, em seu julgamento a mens legis, ou seja a necessidade de proteger o caminhoneiro autônomo, parte vulnerável na relação:

“O objetivo da criação da norma em análise seria atender a reivindicações dos caminhoneiros autônomos, consistente na desoneração do transportador ao pagamento do pedágio, considerado que o custo do pedágio era de responsabilidade do transportador no momento da efetiva utilização das rodovias e recuperado quando da remuneração dos serviços executados porque integrava o frete realisticamente planilhado.

(…)

A opção política legislativa dirige-se a evitar comportamentos de transgressão à lei (penalidade administrativa) e de proteção ao transportador (penalidade indenizatória), parte vulnerável da relação estabelecida.”, por maioria,

Embora tenha destacado que a finalidade da multa é a proteção do caminhoneiro autônomo, parte vulnerável da relação — repita-se a mens legis —, a ministra deixou de aplicar o corolário lógico e necessário de que a norma não é aplicável aos contratos com transportadoras profissionais, em que está ausente o requisito da vulnerabilidade. Assim o fazendo: (i) interferiu, indevidamente, na relação entre partes empresárias, violando a livre iniciativa e a livre concorrência (CF, art. 1.º, IV e 170), por lhes ter imposto uniformização de aspectos contratuais (pagamento do pedágio e escolha de rotas), que constituem importantes diferenciais competitivos; e (ii) ter, indiretamente, estimulando a indústria da indenização; possibilitando a grandes transportadoras buscar enriquecimento por meio do Judiciário, alegando descumprimento de lei , cujo objetivo nunca foi esse.

Em última análise, Direito é lógica, equilíbrio e prudência; sendo vedado à hermenêutica de uma lei extrapolar sua finalidade. O próximo julgamento dos Embargos de Declaração dá ao Pretório Excelso a oportunidade de fazer valer no dispositivo do voto majoritário e, consequentemente no acórdão, algo que havia e ficou esquecido em sua respectiva fundamentação. Tal sob pena, de não o fazendo, perpetrar grande injustiça, ensejar oportunismos, além de elevar o já elevado custo Brasil. Isso é inadmissível, mormente em tempos de economia já conturbada pela pandemia.


[1] “Art. 1º Fica instituído o Vale-Pedágio obrigatório, para utilização efetiva em despesas de deslocamento de carga por meio de transporte rodoviário, nas rodovias brasileiras. § 1º O pagamento de pedágio, por veículos de carga, passa a ser de responsabilidade do embarcador. § 2º Para efeito do disposto no § 1º, considera-se embarcador o proprietário originário da carga, contratante do serviço de transporte rodoviário de carga. § 3º Equipara-se, ainda, ao embarcador: I – o contratante do serviço de transporte rodoviário de carga que não seja o proprietário originário da carga; II – a empresa transportadora que subcontratar serviço de transporte de carga prestado por transportador autônomo.

[2] Nos termos do art. 1º, da Lei nº. 7.290, de 19 de dezembro de 1984, “considera-se Transportador Rodoviário Autônomo de Bens a pessoa física, proprietário ou co-proprietário de um só veículo, sem vínculo empregatício, devidamente cadastrado em órgão disciplinar competente, que, com seu veículo, contrate serviço de transporte a frete, de carga ou de passageiro, em caráter eventual ou continuado, com empresa de transporte rodoviário de bens, ou diretamente com os usuários desse serviço.

[3] Nesse sentido, a Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 2.025-5, de 28 de Agosto de 2000 dispõe que “o vale-pedágio obrigatório será sempre antecipado ao transportador no valor necessário para a livre circulação entre sua origem e destino, viabilizando destarte à eliminação de ‘fugas’ desnecessárias e antieconômicas usualmente praticadas pelos caminhoneiros as quais representavam evasão de receitas para uns e encargos extremamente onerosos de manutenção de vias rodoviárias e acelerada deterioração destas para outros, notadamente, as municipalidades situadas ao longo das chamadas “rotas de fuga”.

[4] A Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 2.025-5, de 28 de Agosto de 2000 ainda esclarece que o objetivo da norma é transferir “o ônus do pagamento da tarifa de pedágio dessa categoria [transportadores] para o proprietário originário da carga, com forte repercussão sobre a negociação dos fretes pelos caminhoneiros.”

[5] Decisão: O Tribunal, por maioria, converteu o julgamento da medida cautelar em julgamento definitivo de mérito, conheceu da ação direta e, no mérito, julgou improcedente o pedido, para declarar constitucional o art. 8º da Lei n. 10.209/2001, nos termos do voto da Relatora, vencido o Ministro Gilmar Mendes. Não participou deste julgamento, por motivo de licença médica, o Ministro Celso de Mello. Plenário, Sessão Virtual de 20.3.2020 a 26.3.2020.

 é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

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Ferramenta facilita acesso a quadro de saúde de pessoas presas

A Comissão de Política Criminal e Penitenciária (CPCP) da OAB-SP lançou nesta terça-feira (12/5) uma iniciativa para facilitar que advogados e defensores saibam se os presos por eles assistidos fazem parte do grupo de risco do novo coronavírus. 

Iniciativa é da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB-SP
Stockphoto

A ferramenta foi desenvolvida junto com a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP), responsável por levantar informações sobre a situação dentro dos presídios do estado. 

Com a medida, os advogados poderão solicitar, por meio de um formulário, informação a respeito de um preso específico para saber se ele está na relação de pessoas que se encontram no grupo de risco. Por se tratarem de dados sigilosos, a consulta à lista da SAP só poderá ser feita mediante apresentação de procuração. 

A elaboração da iniciativa leva em conta o grande número de ações que buscam reavaliar medidas de privação de liberdade em razão da epidemia, seguindo a Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça. 

“Estamos facilitando as condições de proteção à saúde de todos no sistema penitenciário, deixando informações à disposição dos interessados para que se dê cumprimento às recomendações da Resolução 62”, afirma Priscila Pâmela, presidente da CPCP. Além dela, encabeçam o projeto os advogados Marcelo Feller e Konstantin Gerber, ambos integrantes da Comissão. 

Pâmela explica que mesmo com a recomendação, alguns pedidos estão sendo indeferidos justamente pela dificuldade em comprovar que os clientes fazem parte do grupo de risco ou estão detidos em penitenciárias com más condições. 

Condição dos presídios

Além do formulário, o CPCP lançou um levantamento sobre a condição das unidades prisionais de São Paulo. Até o momento, os documentos abrangem cerca de 30 presídios.

A ideia, no entanto, é ter documentação referente a todos as 176 unidades prisionais em funcionamento no Estado. Os documentos foram obtidos com base na Lei de Acesso à Informação. Ainda não é possível ter informações sobre todos os presídios porque alguns pedidos da CPCP aguardam resposta.

Por fim, a Comissão também liberou relatórios de inspeção das penitenciárias. Esta última iniciativa foi feita em parceria com o Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo.

“O CNJ estabeleceu recomendação para que juízes observem, em casos de pedido de soltura de pessoas em grupo de risco, problemas no presídio, como acionamento de água ou ausência de assistência médica”, explica Pâmela. 

Petição

Fora as três iniciativas voltadas à advocacia, a CPCP protocolou na última quarta-feira (6/5) pedido para que os magistrados possam acessar livremente dados referentes ao quadro de saúde das pessoas presas em São Paulo. 

A solicitação, assinada por Pâmela, Feller e Gerber, é direcionada ao desembargador Ricardo Anafe, corregedor-geral de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo. 

Caso o pedido seja deferido, os magistrados poderão acessar com facilidade o levantamento feito pela SAP sobre os presos que fazem parte do grupo de risco.

De acordo com os dados, as penitenciárias possuem 14.977 homens com problemas crônicos e respiratórios (tuberculose, hipertensão, asma, hepatite, entre outros) e 3.376 idosos. Entre as mulheres, 4.922 têm filhos de até 12 anos; 211 são idosas; e 1.792 possuem doenças em geral. 

“Referidos dados devem ser cotidianamente atualizados, bem como precisam estar à disposição dos magistrados paulistas, para aferirem a situação de saúde de pessoas presas sob sua responsabilidade, e para verificarem se se enquadram, ou não, dentro de grupos de risco”, diz a petição. 

Não é possível calcular o número preciso de pessoas em situação de risco, já que um mesmo preso pode fazer parte de mais de uma lista (ter problemas crônicos e ser idoso ao mesmo tempo, por exemplo).

Clique aqui para acessar o formulário

Clique aqui para conferir mapeamento sobre situação dos presídios

Clique aqui para acessar os relatórios de inspeção das penitenciárias

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Bruno Figueiredo: Negociação individual facilita fraudes

No último mês de abril, o STF decidiu que é permitido haver acordos individuais com redução de salário sem a participação dos sindicatos. Em duas semanas já se sentem os efeitos de tal decisão de forma devastadora.

O presidente Bolsonaro editou a MP nº 936 [1], que determina que pode haver redução de jornada com diminuição de salário em decorrência da pandemia da Covid-19. Tal MP prevê a possibilidade de acordos individuais, sem o acompanhamento dos sindicatos.

Não se poderia tratar desiguais de forma igual, o que resulta em um aprofundamento das desigualdades. O Brasil é um dos países com maior concentração de renda do mundo. Com os efeitos da pandemia, tal concentração tem se aprofundado ainda mais. E mesmo com garantias constitucionais, assim como versa o artigo 2º da CLT, que diz que o risco da atividade econômica é do empregador, na prática o que se nota é uma “coletivização dos riscos” e privatização dos lucros. A participação dos sindicatos, por si só, não resolveria a questão. Mas criaria um contraponto e possibilitaria, de fato, uma negociação.

O ministro Ricardo Lewandowski deu decisão em uma liminar, no processo ADI 6363 [2], na qual garantiu que os sindicatos deveriam ser informados pelas empresas sobre os acordos individuais, para poderem manifestar se teriam interesse em realizar acordos coletivos. Em não se manifestando, os acordos individuais seriam válidos. Essa decisão do ministro foi submetida ao julgamento do pleno do STF nos dias 16 [3] e 17 [4] de abril.

Enquanto a liminar de Lewandowski esteve em vigor, o que existiu foi que cada sindicato foi procurado por centenas de empresas. Foram montadas forças-tarefas para se negociar condições de trabalho. Pois se a empresa quer reduzir a jornada de trabalho, ela está funcionando. Para funcionar existem regras de segurança, como indicam OIT, OMS, Ministério Público, etc. O governo desmontou o antigo Ministério do Trabalho, que deveria fiscalizar tais condições. Portanto, os sindicatos passam a ter uma importância fundamental nessa fiscalização, que pode ser a diferença entre a vida e até a morte de milhares de pessoas. Vários sindicatos fizeram assembleias por meio de videoconferência, improvisaram mecanismos de votações por aplicativos, buscando de forma enfática manter um contato direto com suas bases.

O STF revogou a liminar por maioria, 7 a 3, impondo que os trabalhadores “livremente” negociem com seus patrões. Na prática, o STF negou a existência dos sindicatos, utilizando-se de toda leva de argumentos falaciosos, como por exemplo, que serão milhares de acordos e os sindicatos não poderão dar conta. Na verdade, a liminar dizia que se o sindicato não se manifestasse, o acordo seria validado. Mas vários sindicatos montaram operativos para atender a essa demanda, desde celebrar até fiscalizar os acordos.

A decisão do STF vai contra várias convenções da OIT, como por exemplo a Convenção nº 98 [5]. A OIT, diante da pandemia, tem sido enfática no sentido de reafirmar a necessidade dos sindicatos para que haja qualquer negociação coletiva. A decisão do Supremo também fere o que está expresso na Constituição Federal:

Artigo 7º — São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

VI irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

Artigo 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

VI é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho”.

Portanto, não se trata de um exercício de lógica muito complexo. O texto é bem autoexplicativo. Premissa: o salário é irredutível. Salvo se houver acordo ou convenção coletiva. Portanto, há uma condição sine qua non, sem a qual não há validade. Para que haja acordo coletivo é necessário o sindicato.

Não se está aqui pedindo raciocínios lógicos muito elaborados. A simples leitura gramatical e a lógica aristotélica mais elementar conseguem expressar o problema. O malabarismo hermenêutico e jurídico aqui significa muito além da decisão em si. Sabe-se muito bem que não se trata de uma “excepcionalidade”, algo meramente transitório. Sabe-se que a situação aberta com a pandemia terá impactos de longo prazo. Trata-se de um objetivo, que é eliminar os sindicatos. Um retrocesso civilizatório de no mínimo dois séculos.

Durante a vigência da liminar dada pelo STF se observou nos sindicatos uma busca frenética das empresas por regularizar suas situações. Que buscavam fazer acordos, comprometendo-se com a segurança e a saúde dos trabalhadores. Mas tão logo houve a decisão da corte, as empresas passaram a esquivar-se dos sindicatos. De modo que chegam aos sindicatos diariamente denúncias anônimas, pois os trabalhadores têm medo de denunciar as empresas que na prática estão a falsificar acordos. Existem acordos realizados tratando da suspensão das atividades laborais, mas os trabalhadores são obrigados a trabalhar. Há ainda uma suposta redução de jornada, mas seguem ocorrendo horas extras, sem que se pague por elas.

Os sindicatos fazem denúncias, movem ações, mas infelizmente o Poder Judiciário não consegue chegar a tempo de salvar os trabalhadores desse incêndio, talvez chegue um dia com as cinzas já frias. Por outro, lado o governo federal atrasa todos os pagamentos. Assim, um amplo setor da população é empurrado para a fome e a miséria nesta pandemia.

O que o STF fez foi uma opção de classe atacando os mecanismos de organização da classe trabalhadora, enfraquecendo os sindicatos e, portanto, enfraquecendo também os empregados diante dos empregadores. Expondo um amplo número de categorias de trabalhadores não só à miséria, mas a graves riscos à saúde e à vida. Pois, por meio dos tais “acordos individuais”, já ocorre uma infinidade de ilegalidades e usurpação de direitos.

O Poder Judiciário fez uma opção consciente, em que a vida da classe trabalhadora não recebe qualquer proteção. Com tal opção, também expôs seus próprios limites para deter o arbítrio, não se propondo a ser o guardião da Constituição de 1988, mas apenas um guardião dos interesses de uma classe dominante. Diante da peste, da fome, da guerra social e da morte, os lucros estão protegidos, a vida dos trabalhadores não.

Bruno Figueiredo é advogado, especialista em Direito do Trabalho e integra a equipe do escritório Parahyba F T Advocacia Associada em parceria com o escritório Cezar Britto & Advogados Associados.

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Opinião: Atos antidemocráticos e crime de responsabilidade

A democracia é um instrumento inafastável para a realização de valores essenciais de convivência humana, sendo um valor estampado nos direitos fundamentais do homem [1]. No regime democrático, o povo conjunto de cidadãos atribuídos ao direito de tomar decisões coletivas em última instância é o titular do poder político [2]. Consoante lição de Montesquieu, “tudo estaria perdido se o mesmo homem exercesse os três poderes, o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes” [3].

De fato, nos últimos dias, o país tem assistido de forma estarrecedora a atos antidemocráticos e inconstitucionais realizados pelo chefe do Poder Executivo. Não bastassem a grave crise mundial decorrente da pandemia da Covid-19 e o descumprimento de não realização de atos que gerem aglomeração de pessoas, exsurge propalação de ideias notoriamente contrárias a valores elementares da sociedade moderna, notadamente os princípios da democracia, da independência dos poderes e da liberdade cidadã.

Isso porque, descumprindo a recomendação internacional de isolamento social para evitar a propagação da Covid-19, entre outros acontecimentos, no dia 2 de maio o presidente da República participou de manifestação pública na Explanada dos Ministérios. No evento, além de ter ocorrido violência a profissionais da imprensa, havia faixas com mensagens contra o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, fazendo-se menção às Forças Armadas [4]:

“Tenho certeza de uma coisa, nós temos o povo ao nosso lado, nós temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, e pela liberdade. E o mais importante, temos Deus conosco”, disse no Palácio do Planalto, enquanto acenava para manifestantes que o apoiavam e criticavam o STF e o Congresso. Ao final, o presidente disse: “Peço a Deus que não tenhamos problemas nesta semana. Chegamos ao limite, não tem mais conversa, daqui pra frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição, ela será cumprida a qualquer preço, e ela tem dupla mão”.

O fato ocorrido que se contrapõe à democracia, à liberdade de imprensa e ao livre exercício dos poderes  foi de tamanho destaque que repercutiu inclusive na seara internacional, a exemplo da reportagem do jornal espanhol El País [5], que noticiou:

“Mientras, Bolsonaro ha vuelto a participar este domingo en una protesta contra el Supremo Tribunal Federal y el Congreso. “No vamos a admitir más interferencias. Se nos acabó la paciencia”, ha dicho allí ante una multitud de seguidores que incumplían las normas más básicas para evitar los contagios de coronavirus. Varios periodistas han sido agredidos”.

O valor essencial da democracia não pode ser transgredido nem malferido por um pequeno grupo de pessoas que não representam, majoritariamente, o ideal de uma sociedade livre e do regime democrático. Norberto Bobbio já advertia: “A vulnerabilidade da democracia dependeria da fragmentação do poder que permite que pequenos grupos organizados desfiram golpes mortais na sociedade” [6].

Com efeito, atos públicos que “desfiram golpes mortais na sociedade” devem ser peremptoriamente rechaçados, não sendo tolerados, mormente quando praticado pelo presidente da República. Atos dessa natureza violam, de maneira explícita, a lei e a Justiça. Sobre isso, Aristóteles já alertava que o homem “quando apartado da lei e da justiça, é o pior de todos; uma vez que a injustiça armada é a mais perigosa, e ele é naturalmente equipado com braços, pode usá-los com inteligência e bondade, mas também para os piores objetivos” [7].

Afora o excesso de manifestação de pensamento contrário aos princípios encartados na Constituição Federal de 1988, atos antidemocráticos e inconstitucionais praticados pelo chefe do Poder Executivo podem ensejar a configuração de crime de responsabilidade. Consoante a doutrina [8], trata-se de “responsabilidade político-administrativa”, sendo “singularizado como mecanismo processual de responsabilização dos agentes políticos no sistema de governo presidencialista”. A natureza jurídica é entendida como “processo político” (Carlos Maximiliano); “processo penal” (Pontes de Miranda) ou “processo misto” (Celso Ribeiro Bastos).

Imperioso registrar que artigo 85 da Carta Magna estabelece que o presidente da República responde por crimes de responsabilidade, especialmente atos contra o livre exercício dos poderes; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a probidade da administração, entre outros. Nesse sentido, a Lei nº 1.079/50 regula a matéria, dispondo que:

“Artigo 7º  São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social;

violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do artigo 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição; (Refere-se à CF/1946)

Artigo 9º — São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

7 proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.

Disso resulta que se afigura necessário o controle de atos emanados de autoridades públicas, sobretudo quando se trata de governante máximo do país. O processo de responsabilização é uma forma de controle, dividindo-se o impeachment em duas fases. Na primeira, cabe à Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração do processo (artigo 51, I, CF/88). Na segunda fase, cabe ao Senado Federal o processo e julgamento, sob a direção do presidente do Supremo Tribunal Federal (artigo 52, I c/c parágrafo único, CF/88). Em caso de condenação, a sanção consiste na perda do cargo, com inabilitação por oito anos para o exercício da função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis (artigo 52, parágrafo único da CF/88).

O escopo da persecução por crime de responsabilidade é que os atos dos governantes mantenham os valores fundantes da sociedade, sendo inafastável a democracia. Sólon [9] pontificava que:

“O bom governo tudo torna bem ordenado e composto, suaviza as asperezas, põe fim à insaciedade, domestica a violência, seca ainda em seu despontar as flores da loucura, mitiga as obras da soberba, apaga as ações das divisões discordes, abranda a ira da contenda funesta, abaixo dele todas as coisas são bem reguladas e sábias”.

Assim, necessária a união da sociedade, bem como a atuação dos poderes da República, para salvaguardar a democracia e o pleno Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput, CF/88), de modo a garantir o bem a todos e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I e IV, CF/88).

 é advogado, consultor jurídico, membro consultor da Comissão Especial de Direito Penal Econômico do Conselho Federal da OAB, integrante do grupo “Estado, Instituciones y Desarrollo”, da Asociación Latinoamerica de Ciencia Política, e do comitê de pesquisa “Systèmes judiciaires compares”, da Association Internationale de Science Politique, e mestrando em Política Criminal pela Universidad de Salamanca (Espanha).

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Opinião: O uso das videoconferências na Justiça do Trabalho

O acesso à Justiça é um dos direitos humanos fundamentais. A preocupação com o pleno acesso à Justiça por intermédio da prestação jurisdicional célere e efetiva como uma das principais formas de tutelar os direitos fundamentais nas relações de trabalho ainda é grande no Brasil.

A permanente evolução e modificação das relações de trabalho e dos meios de produção no mundo é uma realidade. A cada dia nos deparamos com novas tecnologias, muitas delas impulsionadoras de novos negócios e formas de trabalho. Assim como a tecnologia impacta as relações de trabalho e os modos de produção, também produz reflexos no processo judicial e no Poder Judiciário.

Manuel Castells destaca que “a era da internet foi aclamada como o fim da geografia” [1]. Como a internet é uma tecnologia da comunicação e como a comunicação é a essência da atividade humana, todos os domínios da vida social estão sendo modificados pelos usos disseminados da Internet” [2].

Não é diferente no Poder Judiciário brasileiro. A tecnologia proveniente dos novos meios informáticos (processo judicial em meio eletrônico, audiência por teleconferência, uso do aplicativo WhatsApp para negociar conciliações, realizar notificações, teletrabalho, etc.) desempenha papel fundamental não apenas na ampliação do acesso à justiça mas também na implementação de medidas que possibilitem o funcionamento do Poder Judiciário e a manutenção da prestação jurisdicional mesmo em tempo de pandemia da Covid-19, já que esta impõe a vedação de expediente presencial no Poder Judiciário como forma de evitar a disseminação do contágio.

Esse é o cenário em que nos encontramos na atualidade e é evidente que a continuidade dos serviços somente é possível porque o processo judicial tramita em meio eletrônico, o que permite que a demanda seja ajuizada perante a Justiça do Trabalho de qualquer lugar do Brasil. Para juízes, servidores e advogados, o processo judicial em meio eletrônico significa quebra do paradigma de necessidade de presença física em determinado local, que os processos sempre estão acessíveis pelo computador e que seu campo de atuação não precisa ficar restrito ao âmbito de uma Vara do Trabalho ou cidade.

Embora a previsão de realização de audiências por videoconferência não seja uma novidade, foi a necessidade de manutenção do isolamento social para evitar a contaminação pelo coronavírus que tornou urgente a utilização dessa tecnologia específica para viabilizar a continuação de uma parcela importante dos processos que tramitam na Justiça do Trabalho.

Antes da pandemia de coronavírus já havia prática de atos processuais à distância, com uso de imagem e voz, a exemplo da oitiva de depoimentos de partes ou testemunhas que estavam em lugar distinto daquele onde havia sido ajuizada a demanda judicial. Há notícias de realização de oitivas pelos aplicativos Whatsapp, Skype, entre outros.

Foi a necessidade de manter os serviços da área fim da Justiça do Trabalho em pleno funcionamento que levou a publicação de normas regulamentando a utilização das audiências telepresenciais ou por videoconferência.

Não faria sentido ter um processo judicial que se desligasse da forma física (autos de papel) e embarcasse na modernidade (um processo imaterial, acessível por meio da rede mundial de computadores e que se alinhasse com as avançadas tecnologias disponíveis no mundo) como é o processo judicial em meio eletrônico e não utilizar as ferramentas existentes e já previstas em lei para permitir a realização das audiências por videoconferência.

A realização de audiências por videoconferência é a melhor solução existente no momento para possibilitar uma continuidade mais ampla da prestação jurisdicional e a manutenção do isolamento social exigido em razão do perigo de contaminação pelo coronavírus.

Para demonstrar que a utilização de meios tecnológicos no processo judicial não é uma novidade ou extravagância, faremos um breve relato histórico em torno de algumas normas jurídicas que tratam do assunto.

Otávio Pinto e Silva [3] aponta que a Lei 7.244, de 7 de novembro de 1984, que dispôs sobre a instituição dos então chamados juizados especiais de pequenas causas, previu utilização de tecnologia no §3º do artigo 14, que assim dispôs: Os atos realizados em audiência de instrução e julgamento deverão ser gravados em fita magnética ou equivalente (…)”. Em ambos os casos, não se trata de utilização de meio eletrônico, mas sim do uso de algum tipo de tecnologia no processo e para prática de ato processual.

Observe-se que o artigo 1º da Lei 9.800, de 26 de maio de 1999, abriu a possibilidade de prática de atos processuais por meio de “(…) sistema de transmissão de dados e imagens tipo fac-símile ou outro similar (…)”. Portanto, a lei não limitou a transmissão de dados e imagens à transmissão por fax, mas anteviu a possibilidade do surgimento de outras tecnologias que pudessem cumprir a mesma tarefa de maneira mais eficaz.

A Lei 10.259, de 12 de julho de 2001, previu que as Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais poderão reunir-se pela via eletrônica na hipótese dos juízes componentes da respectiva turma serem domiciliados em cidades diversas (§3º do artigo 14 da Lei 10.259, de 12 de julho de 2001).

Trata-se de dispositivo moderno até hoje, pois embora já haja exemplos de sessões de tribunais em que os advogados das partes manifestam-se oralmente por meio de videoconferência, a lei dos Juizados Especiais Federais prevê expressamente a reunião dos julgadores por meio eletrônico, o que privilegia o princípio constitucional da razoável duração do processo, entre outros.

A Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006, tratou especificamente da informatização do processo judicial.

Como anotam José Carlos de Araújo Almeida Filho [4] e Cláudio Mascarenhas Brandão [5], a polêmica sobre a utilização de videoconferência para realização de interrogatório de réu preso e outros atos processuais no âmbito do processo penal cessou com a publicação da Lei 11.900, de 8 de janeiro de 2009.

Por meio dela, os artigos 185 e 222 do Código de Processo Penal foram alterados. O §2º do artigo 185 do Código de Processo Penal passou a permitir, como excepcionalidade, que de ofício ou por requerimento das partes, sempre por decisão fundamentada do juiz, o réu preso possa ser interrogado por videoconferência ou “outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real”  o que demonstra que a legislação abriu caminho para novas tecnologias que possam se desenvolver além da videoconferência.

A medida é excepcional porque a lei determina quais são as situações em que a videoconferência pode e deve ser utilizada nos quatro incisos do §2º do artigo 185 do Código de Processo Penal [6].

Embora não mencionados por esses autores, são dignos de nota outras alterações promovidas também as disposições da Lei 11.900, de 8 de janeiro de 2009. Ao réu foi garantido o direito de acompanhar também por videoconferência os atos da audiência de instrução e julgamento previstos nos artigos 400, 411 e 531 do Código de Processo Penal (§4º do artigo 185 do Código de Processo Penal). Se o interrogatório ocorrer por videoconferência, é assegurado ao réu comunicar-se com o advogado que esteja no ato da videoconferência por via telefônica. Além disso, o defensor que está no presídio e o advogado que está na sala de videoconferência podem se comunicar por telefone (§5º do artigo 185 do Código de Processo Penal).

A previsão do §3º do artigo 222 do Código de Processo Penal é de que se a testemunha tiver domicílio fora da jurisdição em que deva ser ouvida, sua inquirição poderá ser realizada por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico em tempo real. Essa disposição é importante por diversas razões. Dentre elas, pode-se dizer que é importante porque: prestigia o princípio constitucional da duração razoável do processo; se preocupa com a economia processual; revela a tendência de extinção da remessa de cartas precatórias inquiritórias; e demonstra o uso eficaz de meios tecnológicos para encurtar distâncias e fazer valer o princípio da eficiência.

Consideramos a Lei 11.900, de 8 de janeiro de 2009, uma legislação avançada, pois antecipou a utilização de registros de sons e imagens em tempo real (no caso, a videoconferência) para prática de ato processual (audiência) em razão das peculiaridades do direito e processo penal. Ainda hoje aproximadamente dez anos após a publicação da Lei 11.900 estão em desenvolvimento sistemas para gravação de sons e imagens em tempo real para utilização no sistema previsto pela Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Por isso o pioneirismo da Lei 11.900.

O Código de Processo Civil brasileiro (Lei 13105, de 16 de março de 2015) criou várias disposições sobre a utilização da videoconferência em processos judiciais a exemplo dos artigos 236, §3º; 385, §3º; 453, §§1º e §2º; 461, §2º; e 937, §4º.

A videoconferência é uma ferramenta cada vez mais popular para evitar deslocamentos, cortar custos, facilitar e ampliar o acesso à justiça. Têm se tornado comuns as notícias sobre uso da videoconferência não só no âmbito criminal para salvaguardar a segurança de partes, juízes, servidores e advogados como também no âmbito cível e trabalhista para garantir o efetivo acesso à Justiça quando qualquer das partes encontra-se distante do local de realização da audiência, dentro ou fora do Brasil.

A aparente novidade que parece causar burburinho é a utilização ampla da videoconferência para realização das audiências na Justiça do Trabalho, sejam elas audiências de conciliação ou mesmo de instrução (o que implica tomar os depoimentos pessoais das partes e ouvir as testemunhas), como forma de manter o isolamento social exigido para evitar contaminação pelo coronavírus e dar prosseguimento aos processos judiciais que necessitem da realização de audiências como proposto pelo Ato Conjunto CSJT GP VP e CGJT n.006, de 4 de maio de 2020.

A realização de audiências por videoconferência possui vantagens e desvantagens. Como vantagens podemos apontar: manutenção do isolamento social necessário para evitar a propagação do coronavírus; possibilita o acesso à Justiça; possibilita que qualquer pessoa com acesso à internet participe da audiência por videoconferência, o que alarga o espectro do acesso à Justiça; prestigia, amplia e maximiza o princípio da oralidade, que é princípio específico do Direito Processual do Trabalho, já que a audiência por videoconferência pode ser reduzida a termo na ata de audiência ou mesmo gravada; torna ainda mais efetivo o princípio da desterritorialização criado pelo processo judicial eletrônico, pois não há necessidade de presença física em determinado local geográfico para qualquer pessoa (juízes, servidores, partes, advogados, testemunhas, peritos, etc.) participar da audiência; e amplia o princípio da imediatidade da prova pois qualquer magistrado de qualquer grau de jurisdição terá amplo contato com a prova oral coletada, já que a audiência por videoconferência é gravada.

No rol das desvantagens da realização das audiências por videoconferência podemos citar: necessidade de conexão com a internet; utilização de aparelho de telefone celular, tablet ou computador; problemas de conexão com a internet; e insegurança demonstrada por juízes e advogados quanto ao aspecto da realização da audiência de instrução e a garantia de que partes e testemunhas não ouvirão os depoimentos umas das outras.

De fato, os problemas de ordem técnica e material (problemas de conexão com a internet, acesso das partes e testemunhas a dispositivos que permitam acesso à videoconferência como telefone celular e computador, por exemplo) dependem de situações particulares incontroláveis pelo Poder Judiciário. Entretanto, como contra-argumento, vale lembrar que em notícia publicada no sítio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), afirma-se que no ano de 2013 metade dos brasileiros teve acesso à internet e 130,8 milhões de pessoas na faixa etária de dez anos ou mais de idade tinham telefone celular para uso pessoal. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2013 (PNAD) demonstrou que dos 32,2 milhões de domicílios do país que tinham microcomputador (49,5% do total de residências), 28 milhões tinham acesso à internet. Segundo a pesquisa, esse número representa 43,1% do total de domicílios em todo o país. [7]

Os dados obtidos pela pesquisa elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística confirmam uma realidade vivida pela sociedade brasileira, na qual as pessoas utilizam cada vez mais a internet para realizar as mais diversificadas atividades: desde consultar o horóscopo, ler as notícias no jornal, ouvir músicas, assistir a vídeos no YouTube, realizar transações bancárias, adquirir produtos, até realizar consultas ao andamento de processos judiciais seja por meio de sítios na internet seja por meio de aplicativos disponibilizados pelo Poder Judiciário.

Portanto, pode-se considerar desvinculada da realidade a afirmação de que as pessoas teriam menos acesso às audiências por videoconferência porque não têm acesso à internet.

Quanto à preocupação quanto à validade ou incolumidade da prova oral colhida por meio de audiência por videoconferência vale lembrar que da mesma forma que não adianta pensar o processo judicial em meio eletrônico como mera reprodução do processo de papel, não se deve pensar na audiência por videoconferência como mera repetição daquilo que se praticava nas audiências presenciais.

Novas soluções, novas práticas devem ser implementadas, com ou sem o uso da tecnologia, para viabilizar a prática do ato de colher provas orais na audiência por videoconferência com a necessária segurança. Para isso propomos a realização de compromisso diferenciado das partes e testemunhas visando a assegurar que estejam livres da interferência de terceiros, seja de forma presencial ou por meio de utilização de aparelhos de transmissão de sons e imagens, além da criação de salas de videoconferência separadas de forma que fique assegurado que uma parte ou testemunha não ouvirá o depoimento da outra.

Importante lembrar que as partes podem celebrar negócio processual (artigo 190 do CPC), o que significa que elas próprias poderiam solicitar a realização de audiência por videoconferência ou convencionar sobre seus ônus e poderes, o que pode dizer respeito a requisitos específicos do depoimento de partes e testemunhas.

Em conclusão, a realização das audiências por videoconferência tem previsão legal desde 2015 com o advento do Código de Processo Civil e atende às necessidades de acesso à Justiça e continuidade da prestação jurisdicional. A prudência, colaboração e a criatividade de juízes, advogados e demais atores processuais contribuirá para que atravessemos esse momento excepcional e que a utilização de meios tecnológicos no processo judicial continue a ser utilizada de forma ágil, segura e prática.

 


[1] CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, edição digital setembro 2015, p. 172.

[3] SILVA, Otavio Pinto e. Processo eletrônico trabalhista. São Paulo, LTr, 2013, p. 52.

[4] ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Processo eletrônico e teoria geral do processo eletrônico: a informatização judicial no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.68.

[5] BRANDÃO, Cláudio Mascarenhas. Processo eletrônico na Justiça do Trabalho. In: CHAVES, Luciano Athayde (Org.). Curso de processo do trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2012, p. 754.

[6] “Artigo 185 § 2o Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades: I – prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento; II – viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal; III – impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do artigo 217 deste Código; IV – responder à gravíssima questão de ordem pública”. BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 3 out. 1941. Disponível em: <https://goo.gl/j44Cxv>. Acesso em: 3/4/2018.

 é juíza do Trabalho titular da 1ª Vara do Trabalho de Sobral (CE) e doutora em Direito do Trabalho pela PUC-SP.

 é juiz do Trabalho substituto no TRT da 17ª Região e doutor em Direito do Trabalho pela PUC-SP.