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Opinião: A Covid-19, afinal, é uma doença ocupacional?

Essa indagação ecoa atualmente no mundo jurídico com força potencializada após recente julgamento do STF que determinou, em caráter liminar, a suspensão do artigo 29 da MP 927/2020.

A Covid-19, sem dúvidas, é atualmente o arqui-inimigo de todos os países nesta “terceira guerra mundial”. Existe uma preocupação forte generalizada com as consequências desta doença, pois milhares de pessoas vieram a óbito em vários países, e o mesmo ocorreu no Brasil. Será a profecia do filme “Epidemia”, de 1995?

De todas as consequências drásticas da pandemia, há uma que vem preocupando milhares de brasileiros: a desestabilização nas relações de trabalho, em gênero e espécie, pois muitas empresas, principalmente de pequeno e médio porte, sofreram uma redução considerável do faturamento e outras foram obrigadas a encerrar as suas atividades e, consequentemente, realizar inúmeras demissões.

Desde novembro de 2017, o Direito e o Processo do Trabalho vêm passando por grandes transformações, com reformas, minirreformas etc. Entretanto, para enfrentamento das consequências advindas dessa “força maior”, torna-se premente a necessidade de relativização e flexibilização dos direitos trabalhistas, com o escopo de manutenção do emprego e a sobrevivência das atividades empresariais. 

A fim de adequar a vida das pessoas e trabalhadores a essa nova realidade, foram instituídas diversas medidas no ambiente laboral, a maioria prevista nas MPs 927 e 936 de 2020, a saber: adoção de home office, antecipação de férias, uso de banco de horas, suspensão temporária de obrigações, suspensão do contrato de trabalho, redução da jornada e salário.

De fato, a recomendação de adoção do trabalho remoto foi amplamente seguida pelas empresas pátrias. Todavia, existem segmentos que realizam as atividades essenciais, e que estão listados no artigo 3º, § 1º, e incisos do Decreto 10.282/2020, que não podem parar. Existem outras que estão na iminência de retornar, conforme se infere dos planos de retomada divulgados por diversos municípios brasileiros.

Nesse contexto, se o trabalhador que realiza o trabalho presencial adquire a Covid-19, esta doença será considerada doença ocupacional?

O artigo 29 da MP 927/2020 assim dispõe: “Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”.

Considerando a realidade fática de fácil contaminação decorrente do simples contato com pessoa infectada ou com superfícies contaminadas, o que pode ocorrer em atividades diárias comuns, difícil estabelecer previamente o nexo causal entre o vírus (que pode estar em qualquer lugar) e o ambiente laboral, exceto se evidenciado o risco na atividade exercida, a exemplo do que ocorre com os profissionais de saúde.

Assim, buscou a MP 927 consolidar regra já existente na legislação pátria e afastar a imputação objetiva e imediata ao empregador, que já enfrenta grave crise econômica, trazendo de certo modo segurança jurídica de que o simples fato de o trabalho presencial continuar não irá gerar eventual enxurradas de demandas, administrativas ou processuais, caso alguns dos seus empregados sejam contaminados pelo coronavírus. Para tanto, necessário que o empregador diligente tenha adotado todas as medidas e cautelas recomendáveis no ambiente de trabalho, na linha das diversas orientações e recomendações proferidas pelo MPT, pela Secretaria do Trabalho e outros milhares de decretos municipais baixados no período.

Todavia, após o ajuizamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6342, 6344, 6346, 6348, 6349, 6352 e 6354 [1], o Supremo Tribunal Federal, no dia 29 de abril, ao realizar juízo de cognição sumária acerca da constitucionalidade do artigo 29, afastou a sua aplicação e eficácia, ao argumento principal de que seria de prova muito difícil para o trabalhador contaminado pelo vírus comprovar o nexo causal entre a doença e o ambiente de trabalho. Em clara aplicação do princípio da proteção ao empregado, o órgão de cúpula do nosso Judiciário determinou a inversão do ônus da prova, presumindo a responsabilidade do empregador, salvo prova em contrário de que o ambiente de trabalho era apropriado ao trabalho, sem riscos para a contaminação pelo coronavírus.

o há dúvidas de que o simples fato de o trabalhador sair para o trabalho aumenta a sua exposição ao vírus. Todavia, se ele mesmo trabalhador realiza outras atividades diárias essenciais, tais como: vai ao mercado, à farmácia ou ao banco, é difícil presumir o nexo causal direto com o trabalho, especialmente se os seus colegas de trabalho não foram acometidos pelo vírus. Logo, existirá no caso uma quebra da cadeia do nexo causal.

Esse entendimento já restou consolidado há muito tempo na legislação pátria. Basta citar o §1º, alínea “d” do artigo 20 da Lei 8.213/91, que, em redação bem similar, retira das doenças ocupacionais as doenças endêmicas, desde que não haja comprovação do nexo causal [2]. Tal norma existe há quase 30 anos em nosso ordenamento jurídico e é amplamente aplicada. Cite-se, por oportuno, algumas decisões nesse sentido:

“DOENÇA DO TRABALHO. MALÁRIA. REGIÃO ENDÊMICA. AUSENCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. AUSÊNCIA DE CULPA PATRONAL. DEVER DE INDENIZAR. IMPOSSIBILIDADE. Em regra, o reconhecimento do dever de indenizar perpassa pela comprovação do nexo de causalidade entre o resultado lesivo e a conduta patronal, sendo exigido nalguns casos a demonstração do dolo ou culpa do empregador (artigo 186 c/c 927, CC e artigo 7º, XXVIII da CR). In casu, o empregado não conseguiu demonstrar que foi acometido por malária durante as suas atividades laborais no estabelecimento empresarial da reclamada, tendo o conjunto probatório se alinhado preponderantemente em sentido contrário e evidenciado que o obreiro contraiu a moléstia anteriormente à sua admissão. (TRT 14ª R.; RO 0010388-41.2014.5.14.0006; Primeira Turma; Relª Desª Elana Cardoso Lopes Leiva de Faria; DJERO 11/12/2014; Pág. 280)”

DOENÇA DE CHAGAS. DOENÇA PROFISSIONAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. De acordo com o que estabelece a alínea d do §1º do artigo 20 da Lei nº 8.213/91, não é considerada, como doença do trabalho, a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho. No caso dos autos, o reclamante é trabalhador rural e mora na zona rural que, de acordo com o laudo técnico, sabidamente adoecedora. Não há provas de que a doença foi adquirida em decorrência das atividades profissionais por ele desenvolvidas na fazenda do reclamado – A alteração do ambiente natural não constitui motivo suficiente para configurar a culpa do réu. (TRT 3ª R.; RO 119200-33.2009.5.03.0145; Nona Turma; Rel. Juiz Conv. Milton V. Thibau de Almeida; DJEMG 13/01/2012; Pág. 20)”.

Ora, se a norma em comento se aplica, sem maiores questionamentos às endemias, com maior razão de ser pela potencialidade de alastramento da doença deveria ser também utilizada como solução em questões envolvendo a pandemia.

Dessa forma, ainda que suspensa a aplicabilidade e eficácia do artigo 29 da MP 927/2020, a normativa que existe sobre a matéria não permite outra interpretação senão a de ser necessária a análise pontual de cada caso, não sendo a princípio  possível estabelecer o nexo de causalidade pelo simples fato de o trabalhador estar laborando, exceção feita aos profissionais de saúde, coveiros, funcionários de mercados, entre outros, que, pela própria natureza da atividade que realizam, estão no front, em exposição total ao novo coronavírus.

Desse modo, conquanto tenha o STF liminarmente e com bons argumentos afastado a eficácia do artigo 29 da MP 927, certo é que o nosso próprio arcabouço jurídico não permite a presunção de contaminação quando o empregador é diligente, adota e faz cumprir regras de controle de acesso, saúde, higiene, inclusive com higienização do ambiente, tomando todas as medidas de proteção de saúde e segurança do trabalhador.

Interpretação contrária seria aumentar sobremaneira o risco da atividade para aqueles que em tempos de pandemia lutam para se manterem ativos.

Considerando não ser hipótese de responsabilidade objetiva do empregador, com todo respeito à decisão do Pretório Excelso, o qual citou a Rext nº 828040, a inversão injustificada do ônus da prova para o empregador poderá gerar uma avalanche de demandas judiciais, inclusive algumas de cunho aventureiro.

Destarte, importante que as empresas criem mecanismos de prevenção e proteção dos seus trabalhadores, documentando todas as iniciativas realizadas, a fim de afastar pretensa responsabilização injustificada.

Nessa linha, importante seguir as recomendações vinculadas ao reforço de higiene e medidas de saúde, tais como: disponibilização no local de trabalho de papéis toalhas, sabonetes líquidos ou detergentes e álcool em gel 70%. Além disso, importante que os empregadores divulguem por e-mail, site oficial ou redes sociais informativos sobre a importância de utilização de equipamentos de proteção individual (EPIs), e, considerando a Covid-19, o uso obrigatório de máscaras de proteção facial [3], estas que devem ser fornecidas aos empregados, para utilização no trajeto casa-trabalho e vice-versa, bem como no local de trabalho. Por fim, paras as atividades não essenciais, a adoção de home office para evitar as aglomerações.

Tais cuidados revelam não apenas a preocupação com a saúde e vida dos seus trabalhadores, como ainda refletem no ambiente laboral os princípios da cooperação e solidariedade, cada vez mais necessários atualmente na nossa sociedade.

 


§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:

d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho”.

 é advogada, sócia no escritório Chalfin, Goldberg, Vainboim Advogados, mestre pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

 é advogada, sócia do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados e pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho na FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas).

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Toffoli anula suspensão de ICMS e ISS em São Luís e Aracaju

Na crise do coronavírus, não cabe ao Judiciário decidir quem deve ou não pagar impostos ou quais políticas públicas devem ser adotadas. Com esse entendimento, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, anulou decisões que haviam suspendido a cobrança de ICMS e ISS — em São Luís e Aracaju, respectivamente.

Toffoli afirmou que não cabe ao Judiciário decidir quem não paga imposto
G.Dettmar /Agência CNJ

No caso da capital maranhense, o Tribunal de Justiça suspendeu, por seis meses, a cobrança de ICMS a uma empresa. Toffoli afirmou que a decisão pode gerar grave dano à ordem público-administrativa e econômica de São Luís.

“Não se ignora que a situação de pandemia, ora vivenciada, impôs drásticas alterações na rotina de todos, atingindo a normalidade do funcionamento de muitas empresas e do próprio Estado, em suas diversas áreas de atuação. Mas, exatamente em função da gravidade da situação, exige-se a tomada de medidas coordenadas e voltadas ao bem comum, não se podendo privilegiar determinado segmento da atividade econômica, em detrimento de outro, ou mesmo do próprio Estado, a quem incumbe, precipuamente, combater os nefastos efeitos decorrentes dessa pandemia”, apontou.

De acordo com o ministro, cabe ao Executivo e ao Legislativo decidir que políticas públicas — incluindo tributárias — devem ser adotadas no momento. E o Judiciário só deve intervir em caso de ilegalidade ou inconstitucionalidade.

Segundo Toffoli, a suspensão de ICMS não pode ser determinada de forma isolada pela Justiça, sem uma análise de seus impactos no orçamento municipal. Até porque uma decisão do tipo pode ser repetida em inúmeros processos, esvaziando os cofres públicos em um momento em que é preciso ter recursos para combater a epidemia.

Em outra ação, o ministro já havia anulado decisão do TJ-SP que havia suspendido o pagamento de IPTU à capital paulista por uma empresa específica.

Clique aqui para ler a decisão de São Luís

STP 185 (São Luís) e SS 5.373 (Aracaju)

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

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Juiz ordena lockdown em todo o Maranhão

Como 100% dos leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) da rede pública de saúde em São Luís estão ocupados por pacientes com Covid-19, a Vara de Interesses Difusos e Coletivos da Comarca da Ilha de São Luís ordenou, nesta quinta-feira (30/4), que o estado do Maranhão e a capital determinem o bloqueio total de atividades (lockdown).

Justiça do Maranhão ordenou bloqueio total das atividades em todo o estado
Divulgação

O Ministério Público estadual afirmou na ação que, mesmo com os leitos a serem criados pelos hospitais de campanha, o sistema de saúde pode entrar em colapso se não forem tomadas medidas de prevenção mais drásticas.

Em sua decisão, o juiz Douglas de Melo Martins disse que há probabilidade do direito e risco da demora que justificam a concessão da tutela de urgência, uma que a saúde dos maranhenses corre risco. Ele apontou que, mesmo com as medidas de isolamento social estabelecidas pelo estado e pela capital, o coronavírus tem se propagado, e até o sistema privado de saúde já está quase no limite.

Esse cenário justifica a adoção do bloqueio total, destacou o julgador. Afinal, “essa é a única medida possível e eficaz no cenário para contenção da proliferação da doença e para possibilitar que o sistema de saúde público e privado se reorganize, a fim de que se consiga destinar tratamento adequado aos doentes”. “Do contrário, conforme se viu em outros lugares do mundo, viveremos um período de barbárie.”

O juiz reconheceu que há dúvidas quanto à constitucionalidade do lockdown. Isso porque a medida implica restrições à circulação de pessoas, ao funcionamento de estabelecimentos comerciais e a outros direitos. Contudo, nenhum direito é absoluto, ressaltou. E, nesse momento, a preservação da saúde se sobrepõe às outras liberdades individuais, opinou.

Dessa maneira, o juiz ordenou que o Maranhão e os municípios de São Luís, São José de Ribamar, Paço do Lumiar e Raposa, na região metropolitana da capital, suspendam todas as atividades não essenciais à manutenção da vida e da saúde. Os entes também deverão limitar reuniões de pessoas em espaços públicos, proibir a circulação de veículos (salvo para compras de medicamentos e alimentos ou idas a hospitais), punir quem não usar máscaras e barrar, por dez dias, a entrada na Ilha de São Luís.

Clique aqui para ler a decisão

0813507-41.2020.8.10.0001

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

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Opinião: Necessidade de intervenção na economia em tempos de crise

No dia 31 de dezembro de 2019, foi identificado em Wuhan, na China, o primeiro caso de contágio pelo novo coronavírus (Covid-19 ou Corona Virus Disease). Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu o surto da doença como uma pandemia. Desde então, o mundo tem convivido com medidas drásticas de isolamento social, crises nos sistemas de saúde e inúmeros reveses concernentes, especialmente, aos setores de economia e empresarial. Para Angela Merkel, chanceler alemã, trata-se do maior desafio vivenciado no país europeu desde a Segunda Guerra Mundial, fortemente dependente da “solidariedade comum”[1].

Ao Brasil o vírus chegou no final do mês de fevereiro de 2020, por intermédio de um cidadão brasileiro residente do Estado de São Paulo e com histórico de viagem para a região da Lombardia, na Itália[2], e, desde então, tem se alastrado pelos demais Estados da federação, exigindo a adoção de ações concretas de combate à pandemia.

Em um país como o Brasil, onde se tem uma economia de mercado, o Estado acaba renunciando ao seu protagonismo na seara econômica, para que as decisões sobre a melhor alocação de recursos fiquem a cargo das empresas e da população. Ocorre, todavia, que o Estado se faz presente como uma espécie de supervisor, intervindo, geralmente, para garantir uma convivência saudável entre as empresas, evitar que abusividades sejam cometidas em face da população e conceder alguns benefícios para incentivar determinados setores de produção.

Para Mankiw[3], “há dois motivos para que um governo intervenha na economia — promover a eficiência e promover a igualdade”. Isso se dá, principalmente, porque até mesmo o mais eficiente dos mercados não consegue “alocar os recursos de forma eficiente para maximizar o tamanho do bolo econômico”[4]. E essa dificuldade de melhor alocação dos recursos é conceituada, na Economia, como uma falha de mercado. Tal falha pode ser provocada por vários fatores, muitos deles alheios ao mercado em si, como o que está ocorrendo hoje: uma pandemia que levou vários governos, inclusive o Governo Federal, a propor a decretação de calamidade pública. Em momento de crise como esse, a atuação estatal se faz ainda mais relevante e necessária.

É certo que a intervenção estatal na Economia não pode se dar de maneira indiscriminada, devendo estar pautada “por alguma justificativa: o interesse coletivo ou segurança nacional”[5]. Nota-se que ambas as situações que legitimam a intervenção possuem conceitos indeterminados, ou seja, “o componente político estará sempre presente”[6].

O momento por que passam o Brasil e o mundo se enquadra com perfeição nesse conceito: o combate à pandemia é — ou pelo menos deveria ser — o “interesse geral da sociedade”. Logo, tem-se configurada, sem maior esforço intelectivo, ao menos uma das situações que legitimam a intervenção do Estado na Economia.

Em situações tais, necessária se faz a intervenção do Estado para garantir a ordem econômica, o que pode se dar de várias formas, como, por exemplo, criando-se um benefício para garantir o mínimo existencial para famílias de baixa renda ou instituindo programas que atenuem os impactos econômicos da pandemia nas empresas. Nota-se que, seja para a família paupérrima ou para a grande empresa, num contexto de crise, como este que o mundo atravessa, a presença do Estado se faz essencial para a garantia do bem-estar da população e da economia como um todo.

E é exatamente isso que vem se observando nos últimos dias, como, por exemplo, com a aprovação, no Senado Federal, do Projeto de Lei 1.282/2020, que institui o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), que tem como objetivo a oferta de crédito aos microempresários e aos empresários de pequeno porte, com recursos oriundos do Tesouro Nacional. Ou a Medida Provisória 944/2020, que cria o Programa Emergencial de Suporte a Empregos, que abre uma linha de crédito especial de R$ 34 bilhões para financiar até dois meses da folha salarial de empresas em geral, exceto sociedades de crédito, e cooperativas.

Também nos Estados da federação vêm sendo publicadas normas específicas de cunho social, como medidas de enfrentamento à crise oriunda da pandemia do coronavírus. No Estado do Ceará, por exemplo, o governo decretou o fechamento de comércio, templos, igrejas, restaurantes, museus, barracas de praia e outros locais de atividade não essencial que permitam a aglomeração de pessoas[7]. Por sua vez, a Lei Estadual 17.196/2020 autorizou o Poder Executivo cearense a pagar, durante o período emergencial de enfrentamento ao coronavírus, as contas de água e esgoto e de energia de consumidores de baixa renda que residam no Ceará.

Assumiu o Estado (lato sensu) o protagonismo direto em atividades que, normalmente, são regidas por entes outros. A situação pandêmica que se instalou no Brasil e no mundo, com suas consequências diversas, obrigou o Poder Público a tomar medidas de maior auxílio à população, principalmente àquela mais carente, como forma de enfrentamento direto ao vírus e a fim de reduzir as estatísticas até então negativas.

O pagamento, pelo Estado, das faturas de água e esgoto e de energia elétrica consumidos pela parcela menos favorecida reverbera o que vem sendo dito por alguns a respeito da indispensabilidade do Estado. Há algumas semanas, defendia-se duramente, com algum respaldo no discurso do Presidente da República, a não intervenção do Estado nos setores econômicos, como se incompetente ou inútil fosse o Estado. Agora emerge a necessidade de que o Poder Público auxilie direta e precisamente no enfrentamento à pandemia — a situação vulnerável em que se encontram todas as pessoas e todos os setores requer o intervencionismo estatal, admitido até mesmo por aqueles que pouco tempo atrás o repudiavam.

O que se vê é que, especialmente em momentos de crise, a intervenção estatal não somente se faz necessária, mas, sim, essencial para a manutenção da ordem econômica. Ou seja, desde a criação de um auxílio para as pessoas de baixa renda até a abertura de linhas de crédito de bilhões de reais, para socorrer as empresas, a “mão do Estado” se faz presente para amparar a sociedade.

Objetivamente, dizem Bercovici, Clark, Corrêa e Nascimento[8] que, em tempos de coronavírus, “é preciso o Estado controlar os preços e punir aqueles que abusam do poder econômico em tempos de pandemia; nacionalizar empresas estratégicas em risco de falência, bem como impedir/restringir a abertura do comercio, redefinir as linhas de produção das indústrias (fabricar respiradores hospitalares em substituição dos bens anteriores) a fim de evitar a efeitos mais gravosos decorrentes da pandemia e ainda fixar uma renda digna para os cidadãos permanecerem em suas residências”. E concluem: o Estado é indispensável à manutenção [e, diga-se, ao soerguimento] do sistema econômico produtivo.

Volta-se, finalmente, à lição de Angela Merkel: somente a solidariedade comum, a englobar pessoas, empresas e, de modo enfático, o próprio Estado, é capaz de gerar um eficaz enfrentamento à pandemia da Covid-19. Sem a intervenção estatal, corre-se o risco de se avolumarem os impactos sociais causados pelo vírus e de não se concretizar o desenvolvimento da nação. Mesmo para o setor produtivo, da ação do Estado dependerá a retomada de diversos setores da relação econômica. Trata-se do que já advertira Rudolf Hilferding, Ministro das Finanças da República de Weimar, também em meio à instabilidade do período entre as duas guerras mundiais e a consequente grave crise econômica: a organização do capitalismo, com o compromisso mínimo civilizatório entre capital e trabalho. Como todo momento de confusão é também momento de reconstrução, o Brasil está diante de uma histórica oportunidade de repactuar o compromisso democrático e social firmado em 1988.


1 EXAME. Merkel: Coronavírus é o maior desafio da Alemanha desde 2ª Guerra Mundial. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/mundo/merkel-coronavirus-e-o-maior-desafio-da-alemanha-desde-2a-guerra-mundial/>. Acesso em: 3 abr. 2020.

2 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Coronavírus. Brasil confirma primeiro caso da doença. Disponível em: < https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-de-novo-coronavirus>. Acesso em: 3 abr. 2020.

3 MANKIW, N. Gregory. Introdução à Economia. 8. ed. São Paulo: Cengage, 2020. Tradução de: Allan Vidigal Hastings, Elisete Paes e Lima, Ez2 Translate. p. 9-10.

4 Ibid., p. 9.

5 BENSOUSSAN, Fabio Guimarães; GOUVÊA, Marcus de Freitas. Manual de Direito Econômico. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 168.

6 Ibid., p. 171.

7 Decreto Estadual nº 33.519, de 19 de março de 2020.

8 BERCOVICI, Gilberto; CLARK, Giovani; CORRÊA, Leonardo A., NASCIMENTO, Samuel P. O indispensável Estado: Uma das lições do coronavírus. Disponível em: <https://portaldisparada.com.br/economia-e-subdesenvolvimento/indispensavel-estado-coronavirus/>. Acesso em: 3 abr. 2020.

 é mestre em Direito Constitucional (Universidade de Fortaleza) e advogada do Braga Lincoln Advogados.

 é mestre em Direito e Gestão de Conflitos (Universidade de Fortaleza), advogado do Torres & Teodoro Advogados e Conselheiro da Agência Reguladora do Estado do Ceará (ARCE).