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Melo e Santos: A vida dos presos está em jogo

“Assim, o que nos permite analisar de forma integrada o regime punitivo dos delitos e o regime do trabalho é a relação do tempo de vida com o poder político”. (Foucault, Michel. A sociedade punitiva: curso no collège de France. P. 66/67)

Controlar corpos e punir por meio do tempo:essa é a essência da prisão moderna. Mas não só da prisão, o processo e o tempo são elementos que também estão em íntima correlação,“o processo não escapa do tempo, pois ele está arraigado na sua própria concepção, enquanto concatenção de atos que se desenvolvem, duram e são realizados numa determinada temporalidade” (LOPES, 2004, p. 67).

No processo penal, o prolongamento do procedimento interfere diretamente na esfera dos direitos fundamentais do indivíduo, gerando efeitos, às vezes, até mais graves do que a punição que se atribui ao final do processo. Como bem ressalta Pastor, “o simples início e, muito mais, o desenvolvimento do processo penal causa sofrimento: o sofrimento do inocente é, desgraçadamente, o custo insuprível do processo penal”.  (PASTOR, 2004, p. 91)

Foi no século 20, a partir da ratificação de vários tratados internacionais de direitos humanos, que o problema da demora processual foi objeto de regulação positiva. A fim de estabelecer limites precisos dos prazos de duração dos atos processuais, vários desses diplomas normativos fixaram o que se convencionou chamar de “prazo razoável”.

Dentre os vários tratados que recepcionaram e regularam o referido conceito, destaca-se a Convenção Interamericana de Direito Humanos — da qual o Brasil é signatário — que, em seus arts. 8.1 e 7.1, traz previsão expressa sobre a garantia fundamental da duração razoável do processo.

No direito brasileiro, foi, apenas, com a edição da Emenda Constitucional n° 45/04 que o direito ao prazo razoável passou a ter previsão expressa dentro do rol de direitos do art. 5° da Constituição Federal.

No entanto, como se sabe, há vários empecilhos que impediram e impedem a real efetivação do instituto do prazo razoável no sistema processual brasileiro. O congestionamento e a morosidade processual são problemas que assolam o Poder Judiciário brasileiro, especialmente o sistema de justiça criminal. Na justiça estadual, segundo dados do CNJ, um processo localizado no 1° grau de jurisdição leva, desde a data de ingresso, em média 3 anos e 7 meses para receber sentença (CNJ, 2019, p. 153). Este problema ocorre de maneira mais grave na justiça federal, onde um processo localizado também no 1° grau de jurisdição leva, desde a data de ingresso, em média 4 anos e 6 meses para receber sentença. (CNJ, 2019, p. 153).

Inclusive, tais problemas foram reconhecidos em âmbito internacional. Em julgamento histórico, a Corte Interamericana de Direito Humanos condenou o Estado Brasileiro pela violação dos direitos fundamentais à vida, à integridade pessoal, e às garantias judiciais mínimas, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes. Na ocasião, a Corte entendeu que houve uma injustificada demora na prestação da tutela penal e cível. Julgou-se que o prazo de desenvolvimento do procedimento penal não foi razoável, isso porque, após mais de seis anos, ainda não havia sido proferida sentença de primeira instância. Tal circunstância, no entendimento da Corte, violou o princípio de prazo razoável consagrado na Convenção Americana, bem como constituiu grave violação ao devido processo legal. (CIDH, 2006, p. 67)

Na atual crise ocasionada pelo novo coronavírus, a ausência de celeridade e efetividade do sistema de justiça criminal assumem feições ainda mais graves, poiso que está em jogo, neste momento, é o direito individual mais importante: a preservação da vida. Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, o sistema carcerário brasileiro é caracterizado pela superlotação, insalubridade, insuficiência de itens de higiene básicos e de atendimentos de saúde.No julgamento da ADPF n° 347, a Corte reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema carcerário brasileiro. Ressaltou o Ministro Relator Marco Aurélio que:

“A maior parte desses detentos está sujeita às seguintes condições: superlotação dos presídios, torturas, homicídios, violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida imprestável, falta de água potável, de produtos higiênicos básicos, de acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde e ao trabalho, bem como amplo domínio dos cárceres por organizações criminosas, insuficiência do controle quanto ao cumprimento das penas, discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual.” (STF, 2015, p. 23, )

Vê-se, portanto, que o próprio Judiciário reconheceu que os presídios brasileiros não são capazes de garantir medidas mínimas de proteção à saúde. Segundo levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen, 2017, p.53), 62% dos estabelecimentos penitenciários possuem modulo de saúde, o que significa dizer que, levando em conta o número total de detentos (704.245), 234.292 detentos estão segregados em unidades que não contam com módulo saúde.

Cita-se aqui o que ocorre no sistema prisional do Distrito Federal, que, pela ausência de espaço e condições salubres mínimas, contabiliza 444 casos confirmados de infecção pelo vírus Covid-19 (GDF, 2020, n.p) – número que representa 72% dos casos registrados nos sistemas prisionais de todo o país. (Depen, 2020, online)

Neste contexto, a dilação indevida no processo penal com réus presos, além de violar a garantia fundamental da duração razoável do processo, constitui grave ataque à saúde e a vida das pessoas segregadas.

Algumas medidas foram tomadas pelo Conselho Nacional de Justiça, com o intuito de garantir o funcionamento das atividades jurisdicionais no período de pandemia, bem como de preservar a saúde dos jurisdicionados.Dentre elas, destacam-se: a) instituição do regime de plantão extraordinário no Poder Judiciário (Resolução n° 313/2020; b) suspensão dos prazos processuais (Resolução n° 313/2020) e c) imposição de revisão de medidas socioeducativas de liberdade e semiliberdade (Recomendação n° 62/2020).

As recomendações do CNJ tiveram rápida adesão dos Tribunais nacionais, que passaram a adotar medidas alternativas para garantir a manutenção das atividades jurisdicionais nos tempos de pandemia, tais como: a adoção do regime de home office, a imposição de quarentena a juízes e servidores, a realização de sessões virtuais e proibições de visitas aos prédios da Justiça.

No entanto, é de se questionar se o emprego de tais medidas é capaz de assegurar uma prestação jurisdicional que se guie pela promoção da efetividade e celeridade processual, sem abdicar da manutenção das garantias processuais consagradas em nossa legislação e na Constituição Federal.

Em um processo penal adequado ao Estado Democrático de Direito, a busca de celeridade não tem como implicação a violação de outras garantias processuais de natureza constitucional. O direito a um julgamento no prazo razoável “não pode ser entendido, simplesmente, como o direito a um processo que busque celeridade processual a qualquer custo” (LOPES; BADARÓ, p. 44).

As atuais circunstâncias de calamidade exigem, portanto, o equilíbrio entre dois extremos: “de um lado, o processo demasiadamente expedito, em que se atropelam os direitos fundamentais; de outro, aquele que se arrasta, equiparando-se à negação da (tutela da) justiça e agravando todo o conjunto de penas processuais ínsitas ao processo penal”.(LOPES, 2004, p. 68)

O prolongamento indevido do processo, especialmente no atual contexto, pode ter consequências ainda mais nefastas. Odelongar do procedimento pode implicar, sem nenhuma dúvida, na morte de muitos presos, especialmente daqueles mais vulneráveis ao novo vírus e que estão encarcerados em estabelecimentos prisionais superlotados e insalubres.

 é advogado criminalista, sócio da Braga de Melo Advocacia Criminal. Professor voluntário da Universidade de Brasília (UnB), pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal e mestrando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Jhonas de Sousa Santos é graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

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Opinião: O 13º salário e a Medida Provisória nº 936

A profusão de medidas legislativas decorrentes da pandemia da Covid-19 tem trazido aos profissionais do Direito do Trabalho e de recursos humanos uma série de dúvidas quanto aos efeitos práticos das medidas instituídas pelo governo nos contratos de trabalho, especialmente em razão das regras criadas pelas Medidas Provisórias nº 927 e nº 936.

Recentemente, fomos questionados por empregadores quanto à contagem do período de suspensão do contrato para efeitos de pagamento do 13º salário. De início, poderia se supor que o período de suspensão do contrato de trabalho com base na MP nº 936 simplesmente não seria contado para pagamento do 13º salário.

Como se trata de suspensão contratual, com a sustação recíproca das obrigações contratuais entre empregado e empregador, a suposição acima é apenas parcialmente verdadeira, pois o cálculo do 13º tem um critério que, na prática, precisa ser observado caso a caso.

A Lei 4.090, de 13 de julho 1962, estabelece em seu artigo 1º, § 1º, que a gratificação de Natal corresponde a 1/12 da remuneração devida em dezembro, por mês de serviço, no ano correspondente. Esclarece ainda, no § 2º do mesmo artigo, que a fração igual ou superior a 15 dias de trabalho será havida como mês integral para os efeitos da regra de cálculo estabelecida no § 1º.

Portanto, não é possível afirmar como regra geral que o período de suspensão simplesmente não será contado para o cálculo do 13º, pois isso dependerá da quantidade de dias que o trabalhador laborou no mês. Se o contrato, por exemplo, foi suspenso por 30 dias no período de 16 de março de 2020 a 14 de abril de 2020, o trabalhador laborou os 15 dias exigidos pela lei em março e abril e, portanto, esses meses serão contados normalmente para o cálculo da gratificação, correspondendo a 2/12. Logo, nesse exemplo a suspensão não teve qualquer efeito jurídico no cálculo do 13º.

Por outro lado, se em razão da suspensão do contrato o trabalhador não laborou num determinado mês pelo menos os 15 dias exigidos pela norma, aí sim este mês não será contado para o cálculo do 13º.

No caso apenas da redução da jornada, logicamente o trabalhador continuará desempenhando suas funções, ainda que em jornada inferior à usual, e, portanto, o período será contado para o cálculo da gratificação de Natal.

Por fim, uma vez que o valor do salário do empregado será reduzido ou não será pago nos meses em que houve redução de jornada ou suspensão do contrato, poderia surgir a seguinte dúvida: quais serão os efeitos no valor do 13º?

Ao contrário das férias, a variação do valor do salário durante o período de aquisição do direito não tem relevância para o cálculo da parcela. Assim, essa questão é respondida pelo artigo 1º, § 1º, e artigo 3º da Lei 4.090/62, que estabelecem que o valor do 13º é calculado com base na remuneração devida em dezembro ou, no caso de rescisão do contrato, no valor da remuneração do respectivo mês.

Portanto, a eventual redução do salário em razão das medidas previstas na MP nº 936 não importará em redução da base de cálculo do 13º.

 é auditor-fiscal do Trabalho e coordenador do Projeto de Análise e Encerramento de Processos de Multas e Recursos da Superintendência Regional do Trabalho em Goiás.

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Opinião: Processos sinalizam que conta da crise está pendurada

As lojas fechadas, os voos cancelados e os turnos reduzidos por causa da pandemia de coronavírus carregam consigo uma preocupação que vai além da queda imediata da receita ou do uso do caixa para pagar despesas operacionais.

Essas atitudes conduzem aos temidos afastamentos de empregados, redução de carga horária ou demissões. Tudo previsto em lei, ou em Medida Provisória, como é o caso da redução de salários e suspensão de contratos de trabalho (MP 936).

É na hora da demissão que o empregado vai à Justiça cobrar, por exemplo, por horas extras às quais julga ter direito. E a insegurança de renegociar contratos com base numa MP pode ser vista no recente caso da famigerada carteira verde e amarela, criada em 2019 pela MP 905, revogada há menos de um mês.

A medida presidencial, que reduzia os impostos na contratação de jovens, bem como o valor recebido por esses empregados em caso de demissão, caducou por falta de articulação entre governo federal e Congresso. Empregados e empregadores já consultam escritórios de advocacia sobre processos em potencial.

Esse é o tipo de conta que chega bem depois, na ressaca da crise. Demitidos têm até dois anos para processar seus antigos patrões. E processos trabalhistas demoram de 2 a 5 anos para chegar ao fim.

R$ 830 milhões na conta

Já é possível vislumbrar uma senhora fila de processos relacionados à pandemia se formando na Justiça do Trabalho. São 15,8 mil ações trabalhistas que citam, em suas petições iniciais, “covid”, “coronavírus” ou “pandemia”. Somados, os valores das causas chegam a praticamente R$ 830 milhões.

Os dados vêm do Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho, feito pelo site Consultor Jurídico, com a empresa Datalawyer e a instituição de ensino Finted. E isso é apenas um sinal do que está por vir. Os processos começaram a aparecer só em março.

Uma busca nos diários oficiais mostra que, contra a Petrobras, já são, pelo menos, 90 ações trabalhistas citando a pandemia. As causas somam R$ 8,9 milhões. Contra o Bradesco, são 79, avaliados em R$ 5,6 milhões. Contra o Santander, 60 processos, somando R$ 5,4 milhões.

Há ainda as ações milionárias do Ministério Público do Trabalho obrigando empresas a seguir normas de segurança específicas contra a Covid-19.

O Bradesco afirma que a maior parte das ações contra o banco registradas com base nesse cenário são coletivas e envolvem “aspectos organizacionais das agências”, em caso de incidência da Covid-19. As ações individuais, diz o banco, são “residuais”, com valores semelhantes aos das ações comuns.

Já a Petrobras aponta que muitas das ações classificadas como relacionadas à pandemia são para que a companhia tome ou deixe de tomar alguma atitude (“obrigação de fazer”), de forma que o valor atribuído ao processo não é algo preciso.

“A companhia está investindo mais de R$ 30 milhões em ações de saúde e prevenção para seus colaboradores. Entre as principais medidas adotadas estão a adoção do teletrabalho para cerca de 30 mil trabalhadores”, afirma a petroleira, em nota enviada à coluna.

Fora do caixa

Ainda que os atuais R$ 5 milhões de valor de causa não façam cócegas no lucro de quase R$ 26 bilhões do Bradesco, por exemplo, as três companhias com ação em bolsa já terem tantos processos relacionados ao tema mostram um relance de mais um dos efeitos da Covid-19 na vida do investidor.

É bom ressaltar que as empresas são obrigadas a provisionar os valores para as ações cuja perda é provável, de forma que o dinheiro sai do caixa já antes de qualquer condenação.

E como tirar dinheiro do caixa é sempre um problema, o ideal é estar atento a como a companhia na qual se investe tem se comportado com seus empregados durante a crise.

A situação atípica traz uma nova variável (mais uma!) para sua tomada de decisão na hora de comprar ou vender uma ação. A boa notícia, é que acompanhar o noticiário já pode ajudar nessa tarefa. E se você está lendo essa coluna, é sinal de que se preocupa com isso.

Para quem quiser ir mais fundo, as provisões para processos são listadas pelas companhias no formulário de demonstrações financeiras padronizadas (DFP), acessível pelo site da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Se o histórico for de grandes provisionamentos, o “empurrãozinho” da Covid-19 pode se transformar num problemão.

Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo.