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STJ admite trabalho antes dos 12 anos para revisão previdenciária

A regra constitucional que proíbe o trabalho a partir de determinada idade, cujo objetivo é evitar a exploração infantil, não pode ser interpretada em prejuízo do menor que, apesar da vedação, exerceu atividade laboral, sob pena de privá-lo de seus direitos na esfera previdenciária.

Autor da ação começou a trabalhar com menos de 12 anos com agricultura familiar 
123RF

Com esse entendimento, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a um recurso para reconhecer o tempo de trabalho exercido pelo recorrente em período anterior aos seus 12 anos de idade. A decisão permitirá embasar a revisão do valor da aposentadoria percebida.

No caso, o autor da ação apresentou indício de prova material e prova testemunhal que indicam que exerceu trabalho rural em regime de economia familiar desde criança. Pleiteava que esse período fosse reconhecido para fins previdenciários desde 1º de janeiro de 1967, quando tinha 11 anos de idade, a 31 de junho de 1976.

O Tribunal de Justiça de São Paulo colocou como termo inicial maio de 1969, quando o autor completou 14 anos, por ser essa a regra em vigor na Constituição Federal de 1949. Em decisão monocrática, o ministro Napoleão Nunes Maia ampliou o período para a partir dos 12 anos, data mínima reconhecida na Constituição Federal de 1967.

Em voto-vista nesta terça-feira (2/6), a ministra Regina Helena Costa apontou que o reconhecimento do tempo rural não foi feito em função da existência da prova de trabalho, mas a partir da vedação legal ao trabalho infantil. Assim, comprovado exercício do trabalho, deve ser reconhecido para fins previdenciários.

“Em caráter excepcional e quando devidamente comprovada a atividade laborativa, é possível sua mitigação de forma a reconhecer o trabalho da criança e do adolescente, pois negar o tempo de trabalho seria punir aqueles que efetivamente trabalharam para auxiliar no sustento da família”, afirmou a ministra.

O ministro Napoleão Nunes Maia aderiu ao entendimento da divergência, o que na prática acrescentou alguns meses ao cômputo: de 1º de janeiro de 1967 a 11 de maio do mesmo ano. O colegiado acompanhou por unanimidade.

O reconhecimento do período de trabalho do menor abaixo dos limites legais — que atualmente, pela Constituição Federal de 1988, são de 16 anos para o trabalho e 14 anos para o aprendiz —, é uma tendência jurisprudencial brasileira. A Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais já admitiu o período de trabalho antes dos 12 anos para questões previdenciárias.

AResp 956.558

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TRT-1 mantém proibição de Petrobras reduzir jornada e salário

O presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ), desembargador José da Fonseca Martins Junior, manteve, nesta sexta-feira (8/5), liminar que proibiu a Petrobras de reduzir a jornada e salário de empregados durante a crise do coronavírus.

Petrobras não pode reduzir salários sem negociação prévia com empregados

Cinco sindicatos moveram ação civil pública contra o Plano de Resiliência da Petrobras, implantado a partir de 1º de abril. O programa adia o pagamento de 10% a 30% da remuneração mensal de empregados com função gratificada; promove a mudança temporária de regime especial de trabalho (turno e sobreaviso) para regime administrativo; e estabelece a redução temporária da jornada de trabalho dos empregados do regime administrativo, de oito para seis horas diárias, com a redução proporcional da remuneração em 25%, nos meses de abril, maio e junho de 2020. Mas a 75ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro concedeu liminar para suspender o plano.

A Petrobras apresentou pedido de suspensão de tutela provisória. A estatal argumentou que tentou, em vão, negociar com os sindicatos e que as medidas são temporárias e emergenciais, adotadas devido ao estado de calamidade pública causado pela epidemia do coronavírus.

Em sua decisão, o desembargador José da Fonseca Martins Junior apontou que não ficou provado que a Petrobras tenha tentado negociar com as entidades antes de colocar o Plano de Resiliência em vigor.

Para o magistrado, a imposição das alterações sem negociação fere os direitos sociais da irredutibilidade do salário (artigo 7º, VI, da Constituição), da jornada de trabalho máxima de oito horas por dia e 44 por semana (artigo 7º, XIII, da Constituição) e do reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho (artigo 7º, XXVI, da Constituição).

Além disso, a implementação das regras sem discussão prévia afeta os princípios da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, ressaltou Martins Junior. Ele também destacou que a Petrobras firmou acordo coletivo com os trabalhadores em 2019 — e que permanece em vigor —, sem constar as reduções de jornada e salário.

“Importante salientar ainda que o poder de direção do empregador, fundamentado no artigo 2º, caput, da CLT, não é ilimitado e deve ser pautado — mormente no caso de sociedade de economia mista federal — pelo postulado da razoabilidade, especialmente diante do delicado quadro vivenciado no país, devendo buscar o caminho da negociação a fim de que sejam sopesados os interesses econômicos e sociais envolvidos”, avaliou o presidente do TRT-1 ao negar o pedido da petrolífera.

Clique aqui para ler a decisão

Processo 6200/2020

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

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Laicidade do Estado, liberdade religiosa e a crise do coronavírus

A Constituição de 1891 fez do Brasil uma República Federativa laica, marcando a divisão entre Estado e Igreja além de estabelecer a alternância no poder por eleições e a organização do Estado na forma federativa.

É bem verdade que novas regras muitas vezes levam tempos para se tornarem realidade concreta, valendo lembrar que os dois primeiros Presidentes não foram eleitos — os Marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto — e quando começamos a ter eleições apenas votavam os homens ricos (voto censitário).

A ligação secular entre Estado e Igreja não seria desfeita de um momento para o outro e, 129 anos após, em pleno 2020, em muitos prédios públicos, inclusive da Justiça, há ainda muitos crucifixos, inclusive no STF e STJ — símbolos específicos de uma opção religiosa, que fazem parte do conjunto de escolhas da vida privada de cada indivíduo.

Quanto à Federação, somos 27 unidades e 5570 municípios, mas, mesmo assim, é sabido que sofremos da doença crônica do centralismo. O poder é ainda muito centralizado na figura da União, por maior que seja a autonomia jurídica e política de estados e municípios.

A pandemia do novo coronavírus, maior drama vivido pela humanidade desde a segunda grande guerra, veio testar esta autonomia da federação brasileira à medida em que o chefe do Poder Executivo Federal publicamente vem defendendo desde sempre posição contrária ao isolamento social, mesmo diante das evidências científicas que o recomendam e da orientações da Organização Mundial da Saúde.

Diante desta postura, Governadores e Prefeitos de todo o país, discordando compreensivelmente do posicionamento do Presidente, estabeleceram o conflito e a questão foi submetida ao Supremo Tribunal Federal, que, em 15 de abril reafirmou a concorrência das competências nesta matéria. Ou seja, declararam que a União pode legislar sobre o tema, mas entenderam que o exercício desta competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes.

Tem-se tomado conhecimento que os números da pandemia são diferentes nos distintos estados brasileiros (como era previsível) assim como dentro de suas regiões. Isto pode determinar distintas políticas de saúde pública de acordo com tais diferentes realidades, à luz da decisão da Suprema Corte.

Lamentavelmente em oito capitais do país — Manaus, Recife, Rio de Janeiro, Fortaleza, Boa Vista, São Luís, Belém e São Paulo os sistemas de saúde estão beirando o colapso, tendo em vista a demanda de doentes e os números insuficientes de leitos com respiradores oferecidos, o que levou o Ministério Público do Rio a recomendar estudos sobre a decretação de lockdown, já estabelecido em várias cidades do país. Em Pernambuco e no Amazonas, houve pedido do MP neste sentido, indeferido pela Justiça.

Em Manaus, onde seria plenamente cogitável o lockdown (é de 90% o índice de ocupação de leitos de UTI em Manaus e 80% no Estado), a Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, no momento mais agudo da pandemia (10.099 casos de infectados com 806 óbitos, com 7,98% de letalidade — dados de 7/5), em pleno caos, com o isolamento como a única medida segura minimizadora da disseminação do vírus aprovou a reabertura de todas as igrejas em todo o estado.

A autonomia das unidades da federação e o princípio da separação entre os poderes não desobrigam o Poder Legislativo do Estado do Amazonas da observância da razoabilidade, já que o exercício do poder nunca pode ser absoluto e se afigura desarrazoado autorizar por lei a abertura de todo e qualquer templo religioso no Estado do Amazonas em virtude da suposta essencialidade, vez que tal situação dará certamente ensejo a aglomerações, por mais restritivas que sejas as regras de uso das igrejas.

A fé é importante e todos têm o direito de escolher tê-la ou de não a ter, mas o Brasil não tem religião oficial, pouco importando quantos têm e qual é e quantos não a têm em virtude de nosso caráter laico. De um lado, vemos o direito à fé e o exercício da autonomia federativa, mas de outro, o dever do Estado de cuidar da saúde pública e de salvar vidas.

O bom senso elementar evidencia que igrejas, por mais que a fé possa servir como “alimento para a alma” dos fiéis, não podem ser incluídas no rol restrito de atividades essenciais, como os hospitais e supermercados, cujo funcionamento é imprescindível para garantir saúde e abastecimento, em virtude do que se espera a prevalência do bem comum e da preservação da saúde pública, com o veto ao projeto, pelo Governador do Estado, para a supremacia do interesse público.

 é procurador de Justiça em São Paulo, doutor em Direito pela USP, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, e ex-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático.

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O debate Hart-Fuller: discussão sobre veículos no parque público

Em 1957, a Harvard Law School recebeu a visita de um dos mais renomados juristas da época, o Professor H. L. A. Hart, para ministrar palestra e expor a sua teoria positivista do Direito. Hart havia sido convidado por ninguém menos que Lon Fuller, à época, Catedrático de Jurisprudência da casa, quem esteve presente ao longo de toda sua exposição. Conta-se a história de que, durante a fala de Hart, Fuller, conhecido por seus estudos acerca da moralidade do Direito e por afirmar um posicionamento antipositivista, “ia de lá para cá no fundo da sala como um leão faminto”[1], angustiado com as conclusões que ali estavam sendo concebidas, pedindo, ao final, o direito a sua réplica.

O direito foi concedido, oportunizando, naquele momento, um dos debates mais importantes e mais ricos para a Teoria do Direito, rendendo, no ano seguinte, a publicação de dois artigos na Harvard Law Review: um de Hart, sustentando seus argumentos, e um de Fuller, contrapondo-os, agora de forma escrita.

Mas com o que, afinal, Fuller angustiava-se? É preciso esclarecer o contexto em que se deu a discussão. À época, havia uma grande questão, de natureza dupla, acerca do Direito na Alemanha Nazista: (1) se ele, conforme estabelecido, poderia ser considerado um sistema efetivamente jurídico e (2), a posteriori, como um sistema jurídico pós-Nazismo deveria responder aos atos institucionais autorizados pelo Reich, que eram revestidos de imoralidade.

Após a Segunda Guerra Mundial, os Tribunais alemães viram-se obrigados a julgar alguns casos de crimes de guerra, de espiões e informantes do regime nazi. As pessoas acusadas destes crimes defenderam-se no entendimento de que suas ações não foram ilegais, pois estavam conforme a legalidade do regime dominante naquele momento. Ou seja, tais agentes apenas cumpriram ordens de uma autoridade hierarquicamente superior. Esse argumento foi contraposto a partir da ideia de que tais leis deveriam ser consideradas inválidas, isto por serem contrárias a princípios fundamentais da moralidade. É o caso, por exemplo, de uma mulher que, em 1944, na tentativa de se separar do marido, à época, membro do exército alemão, denunciou às autoridades algumas manifestações injuriosas sobre Hitler que ele havia feito enquanto estava de licença em sua casa, violando as leis que protegiam o Terceiro Reich de afirmações prejudiciais ao governo. Após a queda do regime, a mulher fora acusada do crime de privar uma pessoa de sua liberdade (positivado na Alemanha desde 1871) e defendeu-se sob o argumento de que estava amparada pelas leis anteriores. A questão que se criou, portanto, é a seguinte: a legislação que amparou a conduta da esposa, por ser era contrária a princípios de moralidade, deveria ser considerada inválida?

Positivism and the Separation of Law and Morals, de Herbert Hart
Apesar de Hart iniciar a discussão analisando as teorias de Austin e Bentham, nosso foco não será nesta parte do artigo, tendo em vista que seu propósito foi única e exclusivamente aprofundar tais teorias para adentrar no fio condutor da argumentação acerca da separação entre ser/dever ser. Segundo Hart, há dois problemas que se seguem a partir de uma filosofia que não faz a devida diferenciação conceitual entre as esferas do Direito e da moralidade, que já haviam sido diagnosticados pelos autores utilitaristas referidos acima: a derivação de um dever-ser, ought, de um ser, is; dito de outro modo, a derivação de uma premissa normativa de premissas descritivas. Isso geraria dois tipos de problemas: o primeiro deles é o fato de que, ao permitir a aproximação do sistema jurídico com a moralidade, o intérprete estaria legitimado a desobedecer ao que fora previamente positivado, por acreditar que tal positivação devesse ser diferente. Ou seja, permitiria uma consequente dissolução do Direito e de sua fidelidade nas concepções humanas do que ele deve ser. O segundo deles seria inversamente proporcional, no sentido de dizer que o Direito já é aquilo que ele deveria ser, ultrapassando qualquer crítica reformadora.

Para confrontar as respostas dos realistas americanos, Hart traz à tona uma questão importantíssima, que, futuramente, serviu de guia para o seu raciocínio argumentativo. Ao considerar, por exemplo, uma regra que proíbe veículos nos parques públicos, de pronto compreende-se pela proibição de automóveis. Há, nesse sentido, um núcleo de significação padrão, compreensível a qualquer um, em relação ao termo “veículos”. No entanto, segundo Hart, existem determinados casos concretos que elevam a norma a um nível de indeterminação: “mas o que dizer das bicicletas, skates, automóveis de brinquedo? O que dizer sobre aviões? Estes, como dizemos, devem ser chamados de ‘veículos’ para os fins da regra ou não?”[2]. Tais indeterminações são chamadas por ele de “problemas de penumbra”, impossibilitando a aplicação da regra de forma imediata. Nesse contexto,, em razão da insuficiência do sentido literal do termo, no momento da aplicação prática da regra ao caso em zona de penumbra, alguém deverá assumir a responsabilidade de decidir qual o alcance das palavras, o que elas abrangem e o que deixam de abranger.  Esse alguém, portanto, trata-se do julgador, quem possui a legitimidade para a interpretação.

Seguindo seu raciocínio, Hart conclui a seguinte questão: nos casos em que não exista controvérsia sobre a aplicação da norma, ou seja, em que o problema de penumbra não se faz presente, o intérprete simplesmente descreverá o Direito, aplicando a norma tal como ela está posta. A norma, portanto, apenas é, sem interferências externas, como política, moralidade ou economia. Em contrapartida, quando houver indeterminação em relação à aplicação do sentido literal a algum caso concreto extraordinário, é preciso ir além. O intérprete deverá escolher uma das várias possibilidade daquilo que o Direito deve ser[3], em consonância com a sua concepção, que pode ser tanto política quanto econômica ou moral. Aceita-se, nesse contexto, um poder discricionário que se assemelha ao poder do legislador, capaz de promover a criação da regra. Há, por parte do julgador, um exercício interpretativo criativo. E — apenas — então, aceita-se a interferência de aspectos de moralidade no Direito.

 

Obviamente, Hart identificou o problema da interpretação meramente literal dos textos jurídicos[4], oferecendo como resposta a interpretação criativa do julgador, afirmando a dicotomia existente entre o Direito como ele é e o Direito como ele deve ser (evidenciando a diferenciação juspositivista entre fato e valor). No entanto, é importante ressaltar que tal discricionariedade, conforme os termos elencados por Hart, não significa necessariamente uma junção entre ser/dever ser, ou seja, entre Direito e moral. Obviamente, também é necessária a consideração dos fins, das políticas sociais e dos propósitos utilizados pelos juízes, mas estes devem ser considerados em si mesmos como parte do sistema jurídico. Isso não significa que o termo dever ser seja um produto de intersecção daquilo que o Direito é, mas, sim, que a distinção é feita entre aquilo que o Direito é e as variadas e diferentes concepções daquilo que ele deve ser. Ou seja, refere-se a um standard de análise crítica, rejeitando-se, ainda, que haja uma conexão necessária.

E qual a relação disso tudo com os julgamentos do Tribunal de Nuremberg? Bem, afirmar uma separação entre Direito e moralidade, leia-se, entre o fato e o valor, significa, também, afirmar que o Direito é independente de concepções morais acerca de como ele deve ser. Nesse sentido, após o contexto nazista, a comunidade jurídica da época visualizou a necessidade de se juntar aquilo que os utilitaristas haviam separado. No entanto, Hart descarta que essa possibilidade seja essencial para que os julgamentos tomem um rumo racional. O efeito de uma desobediência aos critérios estipulados pelo Direito, ainda que tais critérios sejam considerados imorais ou injustos, poderiam ensejar o enfraquecimento da própria autoridade do sistema jurídico. Por isso, em que pese tais atos sejam extremamente repreensíveis, estavam dentro da legalidade, ou melhor, dentro da juridicidade, e, sendo assim, Hart compreende que as suas punições apenas poderiam ser feitas por meio de legislação retrospectiva[5]. O contrário seria confundir o Direito como ele é daquilo que ele deveria ser, com todos os problemas que isso pode acarretar.

Positivism and fidelity to Law: a reply to Professor Hart – Lon Fuller
Será mesmo que uma concepção baseada na relação necessária entre as instâncias do Direito e da moralidade acarretaria tantos problemas assim? Fuller fornece respostas diferentes para a questão, objetando os pressupostos filosóficos da teoria de Hart.

Sua leitura sobre as análises de Hart concluem que há uma confissão positivista de que os fins perversos poderiam ter tanta coerência e lógica interna como os fins não perversos. Fuller se recusa a aceitar tal presunção. Sua crença, embora – assumidamente – “ingênua”, é de que a coerência e a bondade possuem maior afinidade entre si do que a coerência e a maldade. É em razão disso que, quando os indivíduos veem-se obrigados a explicar e justificar suas decisões, geralmente, direcionam-as em uma argumentação que se relacione com a bondade, qualquer que seja o standard de uma boa moralidade. Nesse contexto, se é verdade que o Direito é um dos refúgios mais seguros, não seria assim pelo fato de que, inclusive nos regimes mais corruptos, há uma hesitação em legalizar crueldades, intolerâncias e atos desumanos? E, não é claro que essa hesitação deriva não da separação entre Direito e moral, mas, precisamente, de uma identificação do Direito com as demandas mais urgentes de moralidade?[6]

Fuller, então, contradiz a tese positivista da separabilidade, pois haveria uma finalidade inerente ao Direito e uma consequente conexão deste com a Moral. Para que uma legislação seja efetiva, deve ser aceita, ao menos provisoriamente, não somente como Direito mas também como um bom Direito. Em outras palavras, o filósofo americano compreende que, para que uma legislação tenha condições mínimas de cumprimento, suas disposições devem, por consequência, serem simples e fáceis de entender, não somente em virtude de sua linguagem mas também em razão de seu propósito.

O que ele pretende demonstrar é que, para que seja possível chamar um sistema jurídico de Direito (e tratá-lo como tal), deve haver, necessariamente, uma administração mínima que observe princípios de moralidade procedimentais (posteriormente, em sua obra The Morality of Law[7], Fuller os desenvolve com maior profundidade). Tais princípios de moralidade observam, basicamente, questões como a publicidade, a clareza, a não contradição, a prospectividade e a consistência das regras, considerando que, nos sistemas que não lhes conferem o devido respeito, verifica-se a impossibilidade de serem considerados como sistemas jurídicos. O Direito, nesse sentido, sendo uma ordem, contém sua própria moralidade implícita, que é condição de possibilidade para a sua própria existência. Nas palavras de Fuller, trata-se da moralidade que torna o Direito possível; um sistema jurídico que não observa essas demandas não é apenas um sistema ruim, mas sequer é um sistema efetivamente jurídico digno do rótulo.

É com essas reflexões que Fuller contesta não apenas a diferenciação feita entre fato/valor, Direito/moral, mas, sobretudo, a conclusão de que o regime nazista não poderá ser considerado direito para os julgamentos do Tribunal de Nuremberg (o que possibilita outro campo de debate, que, por questões de limitação de espaço, não nos debruçaremos). Tais princípios de moralidade interna não foram respeitados pelas autoridades nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Um Direito que é injusto, ou seja, que não observou um princípios mínimos para a sua administração, não é (e não deve ser) considerado Direito. Essa aproximação fulleriana das instâncias do is e do ought é explicada por sua concepção teleológica. Fuller entende que não se pode separar os planos do ser e do dever-ser quando tratamos de empreendimentos que se destinam a um fim. Algo só é, ontologicamente, na medida em que se põe como aquilo que se pretende ser. Sendo o Direito um empreendimento coletivo que tem como objetivo coordenar, guiar e orientar a conduta humana por meio de regras estabelecidas, um sistema jurídico só será Direito quando efetivamente respeitar os princípios mínimos que tornam esse objetivo possível.

Mas a discussão não termina nesse ponto. Fuller contrapõe, também, a resposta que Hart oferece ao problema da interpretação das regras. Segundo ele, há um defeito gritante na suposição hartiana de que os problemas de interpretação aparecem tipicamente em relação aos termos termos individualmente considerados, tendo em vista que o significado não está adstrito apenas a uma palavra, mas sim a uma frase, a um parágrafo ou às demais partes do texto. Fuller descarta que exista um significado nuclear das palavras que se mantenha constante independente do contexto em que apareça. Nesse sentido, por meio do significado de uma frase, de um parágrafo ou, até mesmo, de uma página, é possível extrair o propósito daquele conjunto, que sempre estará lá.

Se a regra que proíbe veículos nos parques públicos é aplicada facilmente nos casos considerados não complexos, isso se dá em razão de claramente ser possível interpretar o propósito das regra em linhas gerais, ou seja, de extrair qual finalidade ela possui. Nesse sentido, todos que estão sujeitos a essa regra não precisam se preocupar com a diferença entre Fords e Cadillacs[8]. Também o intérprete não precisará se preocupar em ser discricionário (e nem deverá fazê-lo), tendo em vista que, diante de um caso de grande complexidade, em que o termo não se ajusta de forma direta ao caso concreto, basta que essa busca pelo propósito/finalidade da norma seja novamente percorrido para que a solução seja fornecida. Qual a finalidade da norma que proíbe veículos nos parques públicos? Se ela serve para permitir que se tenha um melhor tráfego de pedestres, não faz sentido, diante dos seus termos, proibir que um veículo seja exposto como monumento histórico no meio do parque. O Direito, afinal, não é apenas um conjunto de regras isoladas e abstratas, mas um corpus juris, que, tomado em seu conjunto, orienta-se em uma determinada direção a partir de sua lógica própria. Os princípios mesmos que informam a possibilidade de existência do Direito qua Direito permitem também que os sistemas sejam orientados a partir de diretrizes que possibilitam sua interpretação como sistemas que são.

Conclusões
O debate Hart-Fuller não se resumiu apenas à discussão acerca da validade do direito nazista, da tese da separabilidade e do problema da interpretação. Tratou-se, sobretudo, de uma divergência acerca do próprio conceito de Direito. Para Hart, as regras jurídicas não são capazes de estabelecer com antecedência todos os casos concretos, abrindo-se a possibilidade extraordinária de existir uma zona de penumbra, que, consequentemente, permitirá a discricionariedade judicial. Para Fuller, a discricionariedade não é necessária nem legítima, pois o julgador deverá observar a finalidade (o propósito) da norma, que está adstrita ao texto, recorrendo àquilo que a própria regra tem a dizer. Hart e Fuller, portanto, cada um a seu modo, desenvolveram, articularam e anunciaram perguntas e proposições que constituem o que há de mais importante na teoria do Direito: questões sobre legitimidade, sobre interpretação, sobre o que é, afinal, Direito.


[1] Lacey, Nicola. A Life of H.L.A. Hart. Oxford University Press, 2004, p. 197.

[2] H. L. A. Hart. Positivism and the separation of Law and Morals. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 607 (tradução livre).

[3] H. L. A. Hart. Positivism and the separation of Law and Morals. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 613.

[5] H. L. A. Hart. Positivism and the separation of Law and Morals. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 620.

[6] FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to Law: a reply to Professor Hart. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 637.

[7] FULLER, Lon L. The Morality of Law. Edição revisada. New Haven: Yale University Press, 1964.

[8] FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to Law: a reply to Professor Hart. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 663.

 é mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Giovanna Dias é graduanda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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Lewandowski Libertuci: Ainda o imposto sobre grandes fortunas

Em artigo meu publicado pela ConJur, expus entendimento de não ser apropriada a criação do imposto sobre grandes fortunas, ainda mais nos tempos atuais, em que o empobrecimento dos países resultado da propagação de Covid-19 é iminente. Comentei que a criação do referido imposto deflagaria fuga de capitais e que a tributação sobre patrimônio vigente no Brasil é expressiva, mesmo que comparada a países  ricos, como é o caso dos Estados Unidos.

O tema provocou debates, principalmente no tocante à comparação que fiz em relação à tributação sobre herança. A alíquota aplicável em São Paulo é de 4%. Não cheguei a mencionar que nos Estados Unidos é de 40%, o que poderia passar a impressão de que estava sendo tendenciosa ao omitir referida informação. Não é o caso. Mas importante esclarecer que ninguém paga alíquota, mas imposto, que como se sabe é a aplicação da alíquota sobre base de cálculo. E no que se refere aos Estados Unidos, o imposto incide sobre o que exceder a US$ 11,580 milhões.

Partindo disso, importante fazer algumas comparações. Exemplo: herança de US$ 12 milhões. A base de cálculo é de US$ 420 mil. Sobre a alíquota de 40%, chegamos a US$ 168 mil. Acontece que a alíquota efetiva nesse caso é de 1,4% (168 mil sobre 12 milhões) , quase três vezes maior do que a aplicada em São Paulo.

Muitos poderiam contra-argumentar no sentido de que fortunas expressivas obviamente são mais tributadas nos Estados Unidos do que no Brasil. Concordo. Mas aí teríamos que analisar caso a caso. Mas não podemos afastar o argumento de que 4%, sem deduções importantes, implica, sim, tributação bem expressiva e não raras vezes bastante superior ao que acontece em países ricos.

Outro ponto que merece destaque é minha afirmativa de que a instituição do imposto sobre grande fortunas implicará fuga de capitais. Reafirmo que isso efetivamente se apresentará não por uma questão econômica, mas por conta da estrutura jurídica vigente no Brasil. Explico. Implementado o imposto sobre grandes fortunas no Brasil, o residente no Brasil terá que submeter à tributação o patrimônio existente no Brasil e no exterior ante o status de contribuinte no Brasil.

Evidentemente, o não residente se submeterá à tributação apenas sobre o patrimônio localizado no Brasil. Enquanto não residente, o patrimônio do exterior não será atingido pela tributação brasileira ante as limitações tributárias aplicáveis ao não residente e em níveis mundiais. Se é assim, se o brasileiro se transferir definitivamente ao exterior e se desfizer do patrimônio aqui existente, não terá seu patrimônio atingido pela tributação da mesma forma. No contexto, será um não residente sem patrimônio no Brasil. Evidente que cada caso terá de ser analisado com suas particularidades, equivale dizer, prova de efetiva transferência oa exterior e inexistência de patrimônio no Brasil. Contudo, por hipótese, me parece que o imposto sobre grande fortunas tende sim a ser um veículo estimulador ao desfazimento de patrimônio no Brasil, o que, em tempos de empobrecimento mundial, não me parece ser estratégia sensata.

E, por último, para que duvidas não pairem em termos ideológicos, afirmo que não tenho dúvida de que o sistema tributário justo é aquele que tributa menos a produção e mais a concentração de renda. Mas essa é uma outra discussão que deve ser enfrentada no âmbito da reforma tributária. Não no contexto isolado do patrimônio. Projeções bem feitas falam que justamente porque a concentração da riqueza se encontra concentrada em universo restrito, o máximo que o imposto sobre grandes fortunas conseguiria importar em termos de arrecadação seria algo em torno de R$ 6 bilhões. Certamente, uma reforma tributária eficiente importaria em cifras bem mais atrativas e em cenário ideal sem distorções.

O debate é sempre muito bem-vindo.  Que outros argumentos surjam para que eu possa avaliar, concordar ou discordar.

Elisabeth Lewandowski Libertuci advogada em São Paulo, sócia de Lacaz Martins, Gurevich, Pereira Neto & Schoueri e conselheira do Conjur da Fiesp.