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Clínica veterinária deve adotar regime de plantão na quarentena

Não é lícito ao Poder Judiciário, em sede de cognição superficial, ingressar no juízo de conveniência e oportunidade do ato administrativo e tampouco desprezar o interesse do Estado em conferir maior proteção à população e baixar normas restritivas para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus, visando diminuir a transmissão comunitária, sob pena de grave lesão à ordem pública.

ReproduçãoClínica veterinária deve adotar regime de plantão na quarentena, diz TJ-SP

Com esse entendimento, o desembargador Renato Sartorelli, integrante do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, negou o pedido de uma clínica veterinária para retomada de todas as suas atividades. O estabelecimento oferece serviços como banho e tosa, passeios pelas ruas, e creche e hotel para animais, que foram suspensos em razão da quarentena decretada no estado.

O desembargador afirmou que é “inegável” que os serviços veterinários e de nutrição animal são importantes para a população, como aponta nota técnica elaborada pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), mas que a própria entidade recomenda que as clínicas e os hospitais veterinários mantenham o funcionamento em regime de plantão, oferecendo serviços como consultas, exames e cirurgias.

“Diante disso, a assertiva de essencialidade para a saúde animal dos serviços de ‘day care’ e ‘hotel de cães’ não me parece verossímil neste presente momento em que o convívio e a interação entre tutores e seus animais de estimação se intensificou em decorrência do isolamento social, sendo que muitas vezes a ausência dos donos no dia-a-dia é que normalmente tem o condão de desencadear ansiedade e estresse, fazendo com que as pessoas procurem por esses serviços”, disse.

O magistrado também pontuou que, ainda que não se possa ficar indiferente a esses e tantos outros cenários negativos derivados da crise sanitária, as adversidades vão existir para todos e não autorizam, à primeira vista, a concessão da medida liminar.

“Cuida-se, na verdade, de conceito extremamente subjetivo. Embora não se ignore a importância e a necessidade de lazer e gasto energético para muitos animais de estimação, eventuais dificuldades com a mudança de rotina dentro de casa é um problema que certamente também tem afetado a sociedade nos mais diversos aspectos como, por exemplo, os pais em relação a seus filhos pequenos que não podem contar com escolas e creches”, concluiu.

0014767-48.2020.8.26.0000

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CNJ determina apuração de negociação de decisões na Bahia

Em 60 dias

Corregedor do CNJ determina apuração de negociação de decisões na Bahia

Em pedido de providências instaurado a partir de ofício encaminhado pela Corregedoria Regional da Polícia Federal na Bahia, o corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, determinou que a Corregedoria-Geral da Justiça das comarcas do interior do estado da Bahia apure denúncia de suposta venda de sentenças na comarca de Formosa do Rio Preto.

Duas juízas de Foromosa do Rio Preto (BA) serão investigadas
123RF

O documento encaminhado à Corregedoria Nacional de Justiça é assinado pelo delegado de Polícia Federal Maurício Salim Sahade Araújo e apresenta notícia crime contra duas magistradas que teriam atuado na referida comarca: Marlise Freire de Alvarenga e Martha Carneiro Terrin e Sousa. As juízas, segundo a denúncia, estariam envolvidas em esquema de negociação de decisões judiciais.

Apuração

“Considerando os fatos narrados, a existência de outros expedientes em trâmite neste CNJ relacionados a possíveis infrações disciplinares praticadas por magistrados que atuaram na comarca de Formosa do Rio Preto e tendo em vista a cautela peculiar afeta à atuação da Corregedoria Nacional de Justiça, é salutar a apuração das informações prestadas para verificação de eventual prática  de falta funcional por parte das requeridas”, declarou o corregedor nacional.

A Corregedoria-Geral da Justiça das comarcas do interior do estado da Bahia tem prazo de 60 dias para apurar os fatos narrados e prestar informações à Corregedoria Nacional de Justiça. Com informações da assessoria de imprensa do Conselho Nacional de Justiça.

Revista Consultor Jurídico, 2 de maio de 2020, 14h26

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As assembleias virtuais são realidade no direito societário brasileiro?

Reflexões sobre a MP 931/2020 e a Instrução 79 do DREI

I. A MP 931/2020 e a sua abrangência
A pandemia do coronavírus e as várias medidas sanitárias e de isolamento social impostas em diferentes esferas estatais inviabilizaram, em muitos casos, a realização tempestiva de reuniões e assembleias de acionistas e sócios, gerando ou podendo ocasionar diversos impactos nas atividades regulares das sociedades: desde o retardo na aprovação de contas e demonstrações financeiras, passando pela não distribuição de resultados e a falta de eleição de administradores e fiscais, até o impedimento à prática de tudo o mais que societariamente depende da análise e aprovação de órgãos colegiados. Impunha-se, pois, a edição urgente de normas legais, ao menos de caráter provisório.

Essas normas foram de início previstas no PL 1.179/2020 do Senador Antônio Anastasia, o qual dispõe sobre o “Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado” (RJET). Acolhendo oportunas sugestões da “Associação Brasileira das Companhias Abertas” (Abrasca), nele procurava-se fornecer prontas respostas aos problemas transitórios causados pela epidemia (que, de igual modo, se espera passageira), sem alterar em definitivo a legislação ordinária.

No entanto, ao longo do processo legislativo do PL 1.179/2020, as regras da seção destinada ao regime societário foram eliminadas, justamente porque, à undécima hora, sobreveio a Medida Provisória n° 931, de 30 de março de 2020 (“MP 931/2020”), com orientação parcialmente divergente daquele projeto e que, por isso, poderia suscitar futuros problemas de direito intertemporal, caso as duas disciplinas fossem mantidas.

A MP 931/2020, além de veicular regras transitórias para o momento e pandemia, foi além e alterou, em caráter definitivo, importantes leis societárias. Mas, ao mesmo tempo, restringiu o seu alcance às sociedades anônimas, limitadas e cooperativas, sem tratar de importantes questões que envolvem outros tipos societários, além de fundações e associações, os quais clamam igualmente por regulamentação.

Seja como for, em seus arts. 1° a 6°, a MP 931/2020 trouxe as seguintes regras transitórias: (i) para as sociedades cujo exercício social se encerre entre 31 de dezembro de 2019 e 31 de março de 2020, permitiu a realização de assembleias gerais ordinárias e assembleias e reuniões anuais de sócios em até sete meses contados do término do exercício social([1]); (ii) os mandatos dos titulares de órgão que se vencerem no entretempo ficam automaticamente prorrogados até a realização da assembleia geral ordinária ou reunião do conselho de administração, conforme o caso([2]); (iii) ainda nesse período, nas sociedades anônimas poderá o conselho de administração excepcionalmente declarar dividendos e, ad referendum da assembleia geral, deliberar assuntos urgentes([3]); e (iv) durante 2020, a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) poderá prorrogar os prazos estabelecidos na Lei de Sociedades por Ações (Lei n° 6.404/1976 ou “Lei das S/A”) para companhias abertas e definir para estas a data de apresentação das demonstrações financeiras. Por fim, (v) também outros prazos para apresentação de documentos a registro perante o Registro Público de Empresas Mercantis foram estendidos.

Não nos ocuparemos aqui da análise dessas regras transitórias; o que nos interessa, neste momento, é muito mais a análise de alterações que, em caráter definitivo, foram introduzidas na legislação ordinária, mesmo sendo discutível se, de fato, para estas havia urgência a ampará-las (CF, art. 62)([4]).

Nos artigos 6º a 10, a MP 931/2020, em caráter definitivo: (i) introduziu na Lei das Sociedades Cooperativas (Lei n° 5.764/1971), na Lei das S/A e no Código Civil, novos preceitos legais para permitir que sócios de sociedades cooperativas e sociedades limitadas, bem como acionistas de sociedades anônimas fechadas possam “participar e votar à distância em reunião ou assembleias, nos termos do disposto na regulamentação do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministérios da Fazenda”([5]); (ii) repetiu na Lei das S/A, como novo § 1° do art. 121, a regra que, desde a Lei n° 12.431/2011, constava como parágrafo único do mesmo artigo, dispondo que “nas companhias abertas, o acionista poderá participar e votar a distância em assembleia geral, nos termos do disposto na regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários”; e (iii) reformulou o § 2° do art. 124 da Lei das S/A e nele ainda introduziu novo parágrafo (§ 2°-A) para prever que “a assembleia geral deverá ser realizada, preferencialmente, no edifício onde a companhia tiver sede ou, por motivo de força maior, em outro lugar, desde que seja no mesmo município da sede e indicado com clareza nos anúncios” e, mais importante, dispôs que “regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários poderá excepcionar a regra disposta no § 2° para as sociedades anônimas de capital aberto e, inclusive, autorizar a realização de assembleia digital”.

Note-se, portanto, que na MP 931/2020 é feita uma clara distinção entre “participar e votar à distância” e “assembleia digital”: a primeira hipótese é prevista para sociedades cooperativas, limitadas e anônimas, fechadas ou abertas; esta, a assembleia digital, apenas para as sociedades anônimas de capital aberto, ou companhias abertas (LSA, art. 4º).

Pois bem. Como devem essas regras ser aplicadas, na prática; qual o seu alcance? Eis o ponto central.

II. A Instrução Normativa n° 79/2020 do DREI e as assembleias virtuais

Cumprindo a tarefa que lhe impôs a MP 931/2020, o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministérios da Fazenda (“DREI”) preparou, com louvável rapidez, uma minuta de Instrução Normativa, submeteu-a a consulta pública (e, nesse processo, foi bastante receptivo a críticas e sugestões) e, ao final, editou a Instrução Normativa n° 79, de 14 de abril de 2020 (“IN 79”), que “dispõe sobre a participação e votação à distância em reuniões e assembleias de sociedades anônimas fechadas, limitadas e cooperativas”.

De acordo com a IN 79, “as reuniões e assembleias podem ser: I – semipresenciais, quando os acionistas, sócios ou associados puderem participar e votar presencialmente, no local físico da realização do conclave, mas também a distância, nos termos do § 2º; ou II – digitais, quando os acionistas, sócios ou associados só puderem participar e votar a distância (…), caso em que o conclave não será realizado em nenhum local físico” (art. 1°, § 1°, I e II).

De acordo com DREI, portanto, em sociedades cooperativas, limitadas e anônimas fechadas, é possível, de regra, a realização da assembleias digitais, nos termos da disciplina que para isso o órgão traçou.

A dúvida que essa disciplina infra legal([6]) suscita é exatamente a seguinte: poderia o DREI disciplinar – e, portanto, permitir – a realização de assembleias ou reuniões virtuais em sociedades anônimas fechadas, limitadas e cooperativas? É esta uma forma legalmente válida de realização de conclaves em tais tipos societários([7])?

A nosso ver, a resposta diante do texto atual da MP 931/2020, é negativa: assembleia ou reunião digital é legalmente admissível apenas em companhias abertas; não em sociedades cooperativas, limitadas ou anônimas fechadas. É essa a conclusão que nos afigura correta, a partir da interpretação sistemática, histórica e literal da lei.

Com efeito, a interpretação sistemática da MP 931/2020, feita a partir do confronto e da análise conjunta de seus diversos comandos, revela que “assembleia digital” é hipótese prevista apenas para sociedades anônimas de capital aberto (no contexto do novo § 2°-A introduzido no art. 124 da Lei das S/A); para os demais tipos societários, o que se contemplou, apenas, foi “participar e votar à distância”, modalidade essa também prevista para as companhias abertas.

Ora, se o legislador distinguiu – “assembleia digital” e “participar e votar à distância” – é seguramente porque são hipóteses distintas, ou então a distinção não faria sentido algum.

E mais: mirassem uma mesma realidade, compreender-se-ia menos ainda que, para a companhia aberta, o legislador tenha se reportado simultaneamente na MP 931/2020 a ambas as hipóteses.

Daí porque, tendo o legislador feito claramente essa diferenciação, ao intérprete ou ao regulador, pouco importa, não cabe desprezá-la.

A interpretação histórica das regras, de igual modo, leva à mesma conclusão.

A expressão “votar e participar à distância”, como se sabe, foi introduzida no texto da Lei das S/A através da Lei n° 12.431/2011, que acrescentou à redação original do art. 121 um parágrafo único – para prever que “nas companhias abertas, o acionista poderá participar e votar a distância em assembleia geral, nos termos da regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários”. Eis a origem da expressão agora repetida na MP 931/2020.

Apesar disso, desde então e até a MP 931/2020, a CVM nunca entendeu que aquela só expressão teria sido suficiente para criar – e menos ainda para permitir ao órgão regulador ex novo disciplinar – assembleias inteiramente virtuais, tanto assim que efetivamente nunca as concebeu.

Pelo contrário, o máximo que a autarquia facultou, ao amparo da permissão para “votar e participar à distância” foi somente o voto à distância, por meio de boletim de voto, e a participação remota em assembleias que hoje passaram a ser designadas de semipresenciais (Inst. CVM n° 481/2009, alterada pelas Inst. CVM n° 561/2015).

Eis, pois, mais uma boa – e sempre autorizada – indicação, a partir da disciplina emanada de órgão regulador dos mais respeitados, do que se deva compreender abrangido na locução “votar e participar à distância”.

Por fim, a interpretação literal da MP 931/2020 confirma a mesma orientação.

De acordo com as novas regras introduzidas na Lei das S/A, no Código Civil e na Lei das Sociedades Cooperativas, o sócio “poderá participar e votar à distância”.

“Poderá” significa estar autorizado, permitido ou legitimado, como ato de simples faculdade ou opção. Não significa “deverá”, isto é, que a tanto esteja obrigado, constrangido ou adstrito a só fazê-lo virtualmente, vedado o comparecimento pessoal.

Ora, na assembleia virtual — em que não há reunião presencial, total ou parcial, dos membros da sociedade no seio do órgão deliberativo — tolhe-se qualquer escolha.

É a própria IN 79 que, ao definir a assembleia digital no art. 1°, § 1°, II, esclarece que tal será o conclave “quando os acionistas, sócios ou associados só puderem participar e votar à distância, nos termos do § 2°, caso em que o conclave não será realizado em nenhum local físico”.

Repita-se: “só puderem participar e votar à distância” – com o que resta claro que a disciplina infra legal, ao estender a previsão de assembleias digitais das companhias abertas para os demais tipos, restringiu onde a lei simplesmente permitiu.

Daí porque, salvo se a lei de conversão da MP 931/2020 corrigir os pontos mencionados, entendemos serem ainda hoje inadmissíveis assembleias virtuais em sociedades anônimas fechadas, cooperativas e limitadas.

A discussão — insista-se — não é se isso seria desejável ou não, até porque sob esse prisma muito se poderia debater; o que se aponta, apenas, é que a lei societária não permite o que o DREI acabou por instituir.

III. O necessário respeito às regras contratuais e estatutárias

Outro ponto de atenção a ser destacado na nova disciplina das assembleias é que a leitura da MP 931/2020 e da Inst. 79 do DREI necessita ser feita em harmonia com as regras do contrato social ou do estatuto da sociedade.

Isto porque, de acordo com as regras do princípio majoritário, são vinculantes para a sociedade e para todos os sócios, ainda que ausentes, abstinentes ou dissidentes, as deliberações tomadas em assembleia “convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto” (LSA, art. 121); “as deliberações tomadas de conformidade com a lei e o contrato” (CC, art. 1.072, § 5°). A desatenção às regras do contrato social ou do estatuto, por isso mesmo, é também causa de invalidade da assembleia ou das deliberações, conforme o caso (LSA, art. 286).

Pois bem.

A MP 931/2020 não impediu a realização de assembleias e reuniões exclusivamente presenciais – esse impedimento, meramente episódico, pode em termos práticos decorrer de regras sanitárias, e foi por isso mesmo que se previu a prorrogação de prazos para a realização dos conclaves. Mas não há impedimento em definitivo.

O que a MP 931/2020 facultou, apenas, foi a realização de conclaves semipresenciais e, nos casos em que ela admite, digitais. Mas, insista-se, não proibiu os presenciais. Tanto assim que a Inst. 79 do DREI corretamente ressalvou, em seu art. 1º, § 4°, a não aplicação de suas regras “às reuniões e assembleias em que a participação e a votação de acionistas, sócios ou associados sejam exclusivamente presenciais”.

A advertência é oportuna, pois não são poucas as sociedades que, nos seus respectivos atos societários, preveem que as assembleias devam ser presenciais. E nesses casos, segundo entendemos, não será possível simplesmente ignorar as regras que os sócios se outorgaram, possivelmente tendo para isso razões ponderáveis.

Bem por isso, se o estatuto ou o contrato social contiver expressa indicação de que assembleias ou reuniões devam ser presenciais – ou se análise sistemática daqueles atos a tanto apontar –, outra não poderá ser a forma de realização válida dos conclaves, até que se alterem as regras convencionais básicas de seu funcionamento.

IV. Em conclusão

A pandemia do coronavírus impactou toda a sociedade civil e o regular funcionamento de suas instituições, e demandou – e ainda demandará – a pronta ação do legislador. Na área societária, seguramente, era preciso que se dessem respostas a problemas inadiáveis.

O ideal seria que essas respostas fossem de caráter emergencial e transitório, justamente para não modificar a legislação ordinária sob a pressão imposta pelo tempo e, portanto, com imperfeições.

É bem possível que o texto da MP 931/2020 venha a ser aprimorado, mas, até que isso ocorra – e em que pese o bem-intencionado (e, registre-se novamente, democrático) processo de regulamentação conduzido DREI –, entendemos que:

(1º) no quadro atual, não são legalmente permitidas reuniões ou assembleias virtuais de acionistas ou sócios de companhias fechadas, sociedades limitadas e cooperativas, pois essa modalidade de conclave ficou restrita às companhias abertas, nos termos da disciplina da CVM;

(2º) se e enquanto houver entraves regulatórios à realização de reuniões ou assembleias presenciais, restarão aos interessados como opções aguardar (e oportunamente realizar os conclaves nos prazos que para tanto foram estendidos) ou promover assembleia ou reuniões semipresenciais, sempre com o respeito às regras do estatuto ou do contrato social, da lei e da Instr. 79 do DREI; mas

(3º) havendo restrição no estatuto ou no contrato social à admissão de conclaves que não sejam totalmente presenciais, será de rigor aguardar o momento em que tais encontros se viabilizem – ou, ainda como opção, havendo consenso entre os membros, utilizar da permissão para a tomada de deliberações unânimes por escrito (CC, art. 1.072, § 3°).

 

 

 

* Marcelo Vieira von Adamek é Professor Doutor do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Advogado em São Paulo, é associado do Instituto de Direito Societário Aplicado – IDSA, secretário da Comissão Especial de Direito Societário do Conselho Federal da OAB, coordenador da Comissão de Contencioso Societário do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial – Ibrademp e ex-Presidente da Associação dos Advogados de São Paulo – AASP.

 é professor Doutor do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Advogado em São Paulo, é associado do Instituto de Direito Societário Aplicado, secretário da Comissão Especial de Direito Societário do Conselho Federal da OAB, coordenador da Comissão de Contencioso Societário do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial e ex-Presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.

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Thaís Oliveira: Dispensa de licitação e “Lei do Coronavírus”

A imprevisível crise da pandemia do novo coronavírus gera fortes impactos sociais, econômicos e políticos. Por consequência, o regime de contratações públicas foi cabalmente afetado, em diversos âmbitos. Diante desse cenário, o poder público precisa adotar medidas urgentes para solução de problemas extraordinários de várias ordens. A urgência da situação clama pela flexibilização dos trâmites e exigências nos procedimentos administrativos.

Nesse contexto, foi publicada a Lei n.º 13.979/2020, popularmente conhecida como “Lei do Coronavírus”, que prevê nova hipótese de dispensa de licitação:

Artigo 4º — É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei”.

O §1º do supracitado artigo 4º estabelece que essa hipótese de dispensa é temporária, aplicando-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública. Trata-se, portanto, de lei excepcional, conforme prevê a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Segundo os juristas Luciano Elias Reis Marcus e Vinícius Reis de Alcântara, tal prazo não poderá ser superior ao que for declarado pela OMS [1].

Cumpre ressaltar que a referida lei é uma norma geral de licitações e contratos públicos, nos termos do artigo 22, XXVII, da Constituição Federal. Aplica-se, portanto, a Administração Pública direta e indireta, além de abranger todos os entes federativos, que poderão regulamentá-la, considerando suas respectivas competências. Importante esclarecer que, embora as estatais sejam regidas atualmente pela Lei 13.303/2016, a hipótese de dispensa também se aplica a estas, pois o diploma abrange todo e qualquer contrato necessário ao enfrentamento da emergência de saúde pública [2].

Frisa-se que essas contratações de objetos relacionados à solução da crise de enfrentamento não dispensam a observância aos princípios regentes da Administração Pública. Nesse sentido, leciona o professor Marçal Justen Filho:

A pandemia pode gerar situações de atendimento imediato, insuscetível de aguardar dias ou horas. Basta considerar hipóteses em que instalações ou serviços de terceiros sejam indispensáveis para tentar evitar o óbito de um sujeito ou para impedir a disseminação do vírus. É evidente que as regras constitucionais, que privilegiam o atendimento às necessidades coletivas e a realização do interesse público, impõem a adoção de medidas práticas e efetivas por parte da Administração Pública, independentemente, de formalização num procedimento administrativo burocrático” (JUSTEN FILHO, 2020, pg. 2) [3].

O princípio da publicidade deve ser cabalmente observado, conforme dispõe o artigo 4º §2º, devendo o procedimento ser publicado em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet). Os professores Luciano Elias Reis e Marcus Vinícius Reis de Alcântara entendem que não é necessária a publicação em imprensa oficial, por não haver menção à utilização subsidiária da Lei nº 8.666/1993, além de considerarem a publicidade na internet mais eficaz e transparente do que a realizada no diário oficial [4].

Importante ressaltar que a lei não abre a possibilidade de dispensa de licitação para nenhuma outra necessidade pública senão às inerentes ao combate da  pandemia, no que se refere à “emergência de saúde pública”. Desse modo, é necessário avaliar se a hipótese de contratação realmente tem como causa à situação de calamidade, sob pena de burlar o dever constitucional de licitar.

As hipóteses de contratação direta no ordenamento jurídico brasileiro, em regra, são dispostas na Lei 8.666/93. A MP 926/2020, em seu artigo 4º-B, traz um elenco de situações com presunção absoluta de atendimento aos requisitos de contratação direta: a) ocorrência de situação de emergência; b) necessidade de pronto atendimento da situação de emergência;  c) existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares;  e d) limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.      

Presume-se, portanto, preenchidas as circunstâncias autorizadoras de contratação direta, nas hipóteses listadas pelo supracitado dispositivo legal. O legislador teve a intenção de proteger o gestor público e o contratante de eventual responsabilização por eventual alegação de que a hipótese contratada não se trata de emergência ou calamidade pública.

A decisão se mostra necessária na medida em que a realização de um procedimento licitatório poderia inviabilizar o objeto do contrato, considerando a morosidade, seja na fase interna ou externa. Marçal Justen Filho leciona, contudo, que “alguma espécie de emergência deve existir para autorizar a dispensa de licitação”. A hipótese de dispensa não abrange um procedimento de contratação em que o serviço ou produto não possam ser efetivado em um curto intervalo de tempo.

Não obstante, a contratação direta deve observar os  princípios e normas básicas que regem a Administração Pública, de modo a atender a contratação mais vantajosa, isonomia, transparência e publicidade. Desse modo, necessária a abertura de um procedimento administrativo, para análise de preços de obras e serviços, sempre atendendo ao princípio da motivação, justificando a escolha do objeto e preço contratado.

O artigo 8º do Decreto Federal nº 10.024/2019 prevê, entre outras exigências, a apresentação de estudos preliminares nos processos que envolvem o pregão eletrônico. O artigo 4º-C da MP 926/2020, por sua vez, dispensou a elaboração destes estudos preliminares, quando se tratar de “bens e serviços comuns”. O conceito de bem ou serviço  comum é trazido pela Lei 10.520/2002, que define como “aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado”.

O artigo 4º-E da “Lei do Coronavírus” estabelece um procedimento simplificado para contratações, admitindo a apresentação do “termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado”. Exigem-se, no entanto, algumas condições para o termo como: a) declaração do objeto; b) fundamentação simplificada da contratação; c) descrição resumida da solução apresentada; d) requisitos da contratação; e) critérios de medição e pagamento; f) estimativas dos preços obtidos; e g) adequação orçamentária.

Em relação à estimativa de preços, a lei impõe o atendimento a, no mínimo, um dos parâmetros estabelecidos pelas alíneas do inciso VI, do §1º do artigo 4º-E, quais sejam: a) Portal de Compras do Governo Federal; b) pesquisa publicada em mídia especializada; c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo; d) contratações similares de outros entes públicos; ou e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores.

Não obstante, o §2º do artigo 4º-E excepciona a exigência do atendimento a tais parâmetros: “Excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente, será dispensada a estimativa de preços de que trata o inciso VI do caput”. Essa exceção se aplica apenas a situações excepcionalíssimas, que não permitem a pesquisa da estimativa quanto ao preço.

“Artigo 4º-E, § 3º — Os preços obtidos a partir da estimativa de que trata o inciso VI do caput não impedem a contratação pelo Poder Público por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, hipótese em que deverá haver justificativa nos autos. (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)

4º-F  Na hipótese de haver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, a autoridade competente, excepcionalmente e mediante justificativa, poderá dispensar a apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista ou, ainda, o cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigência de apresentação de prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do artigo 7º da Constituição”.

    Esse dispositivo é aplicável apenas quando não houver outro modo de atender a necessidade pública, senão contratando as empresas sem a regularidade fiscal ou trabalhista ou mais de um requisito para habilitação.

    Marçal Justen Filho leciona: “Admite-se o afastamento de apenas alguns requisitos de habilitação ou da sua generalidade. Anote-se que a MP 926, ressalvou os requisitos de habilitação exigíveis em nível constitucional. Não se admite a contratação de sujeitos em débito com a seguridade social ou que infrinjam limites atinentes à utilização do trabalho de menores” [5].

    Por fim, o artigo 4º-G da “Lei do Coronavírus” prevê disposições relativas à modalidade de licitação pregão:

    “Artigo 4º-G  Nos casos de licitação na modalidade pregão, eletrônico ou presencial, cujo objeto seja a aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de que trata esta Lei, os prazos dos procedimentos licitatórios serão reduzidos pela metade. 

    § 1º  Quando o prazo original de que trata o caput for número ímpar, este será arredondado para o número inteiro antecedente.

    § — Os recursos dos procedimentos licitatórios somente terão efeito devolutivo”.

    Marçal aponta que essa previsão do artigo 4º-G denota que nem sempre será necessário ao Administrador Público adotar a dispensa de licitação. Desse modo, a administração pode se utilizar também do pregão simplificado. O administrativista aponta o problema hermenêutico gerado, na medida em que  a lei trouxe presunções absolutas da possibilidade de dispensa para situações emergência [6]. Para compatibilizar o possível problema gerado, entende-se que existe competência discricionária da Administração Pública, para escolher entre as duas alternativas, tendo em vista o caso concreto. Para casos mais urgentes, o poder público poderá se valer da contratação direta. Para casos menos urgentes, o poderá ser realizado o pregão, se não houver risco para o interesse público.

    Se for realizado o pregão, este pode ser feito de modo simplificado, ou seja, adotando-se o termo de referência simplificado, trazido pela MP 926, além de prazos reduzidos pela metade e recursos apenas no efeito devolutivo. Assim, a lei do pregão, que prevê prazo mínimo de oito dias úteis entre a publicação do edital e o recebimento das propostas, será reduzido para quatro dias úteis.

    O prazo de apresentação das razões recursais passará a ser de um dia  útil. O  prazo de até três dias úteis anteriores à data de abertura da sessão pública para impugnação do edital, previsto pelo Decreto 10.024, será reduzido para apenas um dia útil.

    Por fim, cumpre ressaltar que a “Lei do Coronavírus” não afasta por completo o artigo 26 da Lei 8.666/93, que prevê formalidades a serem observadas na dispensa de licitação. Desse modo, a justificativa dos objetos contrato, sujeito e preço continua plenamente exigível, além da observância de todos os princípios regentes da Administração Pública. Por outro lado, os órgãos de controle deverão levar em consideração todos os obstáculos práticos enfrentados pela Administração, ao analisar as hipóteses de contratação direta, enquanto perdurar a crise do coronavírus.

    Referências bibliográficas
    FURTADO, Lucas Rocha. Curso de licitações e contratos administrativos. 6. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2015.

    JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

    JUSTEN FILHO, Marçal. Efeitos Jurídicos da Crise sobre as Contratações Administrativas, 2020. Disponível em: < https://www.justen.com.br/pdfs/IE157/IE%20-%20MJF%20-%20200318-Crise.pdf >. Acesso em 21/4/2020.

    JUSTEN FILHO, Marçal. Um Novo Modelo de Licitações e Contratações Administrativas?, 2020. Disponível em < https://www.justen.com.br/pdfs/IE157/IE%20-%20MJF%20-%20200323_MP926.pdf  > Acesso em 21/4/2020.

    LIMA, Edcarlos Alves. Aquisição de bens e insumos e contratação de serviços para o enfrentamento da emergência gerada pela pandemia do novo coronavírus. Zênite Fácil, categoria Doutrina, 15 de abr. de 2020. Disponível em: < http://www.zenite.blog.br/aquisicao-de-bens-e-insumos-e-contratacao-de-servicos-para-o-enfrentamento-da-emergencia-gerada-pela-pandemia-do-novo-coronavirus > Acesso em 21/4/2020.

    MENDES, Renato Geraldo. Zênite Fácil, Categoria Anotações, Lei nº 8.666/93, nota ao art. 24. Disponível em: < http://www.zenitefacil.com.br. > Acesso em 21/4/2020.

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Carlos Alexandre Böttcher: Dia da memória do Poder Judiciário

A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens. [1]

Nesses tristes e difíceis tempos de pandemia, que afligem a humanidade e reforçam a percepção da efemeridade da vida, veio em boa hora a Resolução 316/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), [1] a qual instituiu o 10 de maio como o Dia da Memória do Poder Judiciário, evidenciando que a atemporalidade da memória sobrepõe-se à fugacidade do presente e à brevidade da existência humana.

A memória é considerada uma reconstrução atualizada de maneira contínua do passado e não uma reconstituição fiel dos tempos pretéritos, o que sequer seria possível. Memória e identidade estão indissoluvelmente conectadas. [2]

Valorizar certos episódios do passado e esquecer outros é uma forma de construção da própria história e consequentemente de definição da própria identidade. [3]

Nesse sentido, a instituição do Dia da Memória contribuirá para a construção da narrativa histórica do Poder Judiciário e consequentemente de sua própria identidade, enquanto essencial pacificador social e garantidor da cidadania e dos direitos. Grande parte da população brasileira desconhece seus próprios direitos e tampouco as atribuições do Poder Judiciário, de sorte que a celebração da memória poderá contribuir para o suprimento dessas lacunas de formação educacional.

E a construção dessa narrativa histórica ou memória institucional tem função relevante não apenas para consolidação da identidade do Poder Judiciário perante a sociedade, conferindo-lhe ainda maior legitimidade como um dos poderes da República e um dos principais pilares do Estado Democrático de Direito, mas também perante seus próprios magistrados e servidores, reforçando o grau de pertencimento à instituição. Em última análise, a memória institucional contribui para o fortalecimento e a independência do Poder Judiciário, não raras vezes alvo de críticas infundadas e tentativas de ingerências de outros poderes.             

Antecedentes da proposta
Feita essa introdução, vejamos, brevemente, os antecedentes da formalização da proposta do Dia da Memória do Poder Judiciário, cuja iniciativa e elaboração partiram deste autor, que a submeteu a um grupo de discussão (Memojus),[4] que congrega vários representantes das áreas afins à Memória de todos os segmentos do Judiciário de grande parte do Brasil.  

O autor proponente selecionou algumas datas representativas para a história da Justiça e submeteu-a à votação no âmbito do grupo mencionado. A alternativa vencedora foi aquela do dia 10 de Maio. Com a vinda da família real portuguesa ao Brasil e em razão de dificuldades de comunicação com a metrópole, o príncipe regente D. João, por meio do Alvará régio de 10 de maio de 1808, [5] criou a Casa de Suplicação do Brasil no Rio de Janeiro, que passou a funcionar como última instância recursal. Esse Tribunal é representativo da independência judiciária do Brasil em relação a Portugal, pois a partir dele não mais houve direcionamento da maior parte dos agravos ordinários e apelações a Lisboa. Até a criação da Casa de Suplicação do Brasil em 1808, haviam funcionado apenas dois Tribunais no território brasileiro:  a Relação da Bahia a partir de 1609 [6] e a Relação do Rio de Janeiro a partir de 1751.[7]

A proposta teve, portanto, caráter democrático em razão da votação para a escolha da data  e a participação motivada desses interlocutores reforça a necessidade da construção de rede nacional na área da Memória do Poder Judiciário, abarcando Museus, Memoriais, Arquivos e Bibliotecas judiciários, a qual incentivará o diálogo dessas várias áreas e o intercâmbio de experiências com o escopo de aprimorar a gestão da memória dos vários Tribunais do país.

Apresentação da proposta ao CNJ 
A proposição com a minuta do ato foi remetida ao Comitê do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname)[8] do CNJ em 28 de outubro de 2019 e foi fundamentada em grande parte na exposição dos consideranda da minuta do ato normativo, destacando “a importância da Memória como parte do Patrimônio Cultural brasileiro (artigo 216, da Constituição Federal) e como componente indispensável ao aperfeiçoamento das Instituições em geral e do Poder Judiciário em particular e que a fixação de Dia da Memória do Poder Judiciário contribuirá para o fomento de atividades de preservação da história dos vários Tribunais do país, ensejando maior consciência de conservação e tratamento dos arquivos judiciais, museus, memoriais e bibliotecas.

O Comitê aprovou a minuta em 28 de novembro de 2019, encaminhando-a à Presidência do CNJ. 

Aprovação da Resolução
Em 14 de abril de 2020, a minuta de Resolução foi aprovada, por unanimidade, em sessão plenária do CNJ. Em seu brilhante voto, o Ministro Relator ressaltou que “a preservação da memória institucional judiciária não constitui apenas um tributo ao passado, mas sim um compromisso e um dever fundamental com as futuras gerações, que têm o direito de conhecer a sua história e, por via de consequência, a sua própria identidade”. [9]

Também destacou a “necessidade de instituição de uma data especificamente voltada à celebração do Dia da Memória do Poder Judiciário, com o primordial objetivo de valorizar e divulgar a história contida nos documentos, processos, arquivos, bibliotecas, museus, memoriais, personalidades, objetos e imóveis do Poder Judiciário”. [10]

Em 30 de abril de 2020, foi publicada a Resolução CNJ 316/2020, ora em análise.

Comentários à Resolução
Dos três poderes da República, o Judiciário é, indubitavelmente, o que mais cultua a própria história, a tradição e a memória, seja pelos ritos forenses, seja pela formalidade de seus atos, seja pelo uso da toga, seja pela exposição de seus  documentos históricos, processos e objetos em museus judiciários, seja pela realização de ações concretas de preservação e divulgação.     

Não obstante, vivemos em uma era de constantes avanços tecnológicos, rapidez da circulação de informações não verificadas, virtualidade das relações pessoais e sociais e ainda valorização excessiva e irrefletida da modernidade e do progresso a qualquer custo, sobretudo em nações recentes como a nossa. Esses fenômenos respingam seus efeitos em toda a sociedade e também no interior das instituições, inclusive no Poder Judiciário. 

Some-se a esse conjunto de fatores, o nível educacional médio do brasileiro ainda muito aquém do esperado, o que contribui para o baixo apreço à memória, à história e à cultura, em geral. Em tempos recentes, vivenciamos danos  irreparáveis à cultura do país com o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro e o assunto foi esquecido muito antes da situação de pandemia ora vivida. É senso comum chamar o brasileiro de povo sem memória.

Situação é ainda mais grave no interior de muitos órgãos do Poder Judiciário, que padecem da falta de incentivos, valorização e fundos. O mencionado descaso à memória, à história e à cultura atinge também grande parte do Poder Judiciário nacional.

Tanto isso é verdade que muitos Tribunais do país sequer lograram implementar política de gestão documental adequada e muitos Arquivos judiciais, que agregam rico patrimônio histórico, sofrem com a falta de recursos materiais e humanos, além do descaso dos respectivos órgãos de direção, que os veem apenas como massa documental geradora de despesas, ignorando a riqueza do material como fonte de pesquisas de historiadores e cientistas sociais.   

Por todas essas razões, a criação de data específica para celebração do Dia da Memória do Poder Judiciário tem relevância incomensurável.

Não se trata de mera inclusão de uma data formal no calendário do Poder Judiciário, mesmo porque já se celebram o Dia da Justiça em 8 de dezembro, [11] quase que inteiramente dedicado à essencial função da conciliação e o Dia 11 de Agosto. [12]

Os escopos da instituição do Dia da Memória do Poder Judiciário são inúmeros. Em primeiro lugar, espera-se uma construção conjunta da memória institucional e consequentemente da identidade da Justiça e de seu papel na sociedade brasileira. Em segundo lugar, também se objetiva dar visibilidade nacional ao tema de preservação da história da Justiça brasileira e mostrar a relevância da conservação, valorização e divulgação de seus Museus, Memoriais, Arquivos e Bibliotecas, que são parte do Patrimônio cultural nacional.  Em terceiro lugar, o objetivo também é a conscientização de magistrados e servidores do Poder Judiciário acerca da importância do tema em todas as suas vertentes.

Espera-se um engajamento efetivo e conjunto dos Tribunais para que a questões concernentes à memória passem a ser tratadas com a merecida relevância.

Nesse sentido, não se pode deixar de mencionar, que disciplina normativa mais abrangente sobre a gestão da memória dos Tribunais está por vir depois da aprovação da minuta de Resolução pelo Comitê do Proname, atualmente em trâmite no CNJ. [13]

Para a efetiva celebração do Dia da Memória, o artigo 2º, da Resolução CNJ nº 316/2020 elenca, em caráter exemplificativo, o fomento de uma série de ações para os Tribunais, explicitando, de maneira muito precisa, a necessidade de mobilização dos vários setores relacionados, como  Museus, Arquivos, Memoriais, Bibliotecas, Comissões de Memória ou equivalentes, Unidades de Gestão Documental e afins.

O diálogo entre esses protagonistas é fundamental. Como se sabe, a teoria clássica dos bens culturais distingue corretamente a tríade formada por Museus, Arquivos e Bibliotecas, pilares do Patrimônio cultural. Cada qual tem sua própria esfera de competência e atribuições. No entanto, se estamos na seara da Memória dos Tribunais, é imprescindível que esses setores consigam interagir adequada e eficientemente entre si, o que ainda não se verifica em muitos casos. Exemplo claro disso é a forma negligente como a gestão documental e os Arquivos judiciários são tratados no âmbito de muitos Tribunais, conforme exposto acima. Em vez de serem vistos como guardiães da importante documentação histórica de guarda permanente e verdadeiro patrimônio cultural, os Arquivos judiciários padecem, em muitos casos, de mínima estrutura e valorização. Nesse sentido, a norma corretamente faz referência à mobilização de todos esses setores, sem os quais não se consegue preservar adequadamente a Memória institucional.   

Como dito, as ações elencadas nos incisos têm caráter exemplificativo e não excluem iniciativas próprias dos Tribunais e de suas respectivas unidades. Nesse sentido, importante mencionar iniciativas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, em 2014, criaram o programa Agenda 150 Anos de Memória Histórica do Tribunal Bandeirante, antecipando-se em dez anos ao sesquicentenário de 2024, e o Dia do Patrono,[14] atribuindo denominação de personalidades ilustres de seu quadro a todos os Fóruns do Estado e incentivando a celebração da data em âmbito local.[15]  

O artigo 3º, da Resolução, por sua vez, prevê a realização de um Encontro Nacional de Memória do Poder Judiciário, preferencialmente na semana do dia 10 de maio, a cargo de um dos Tribunais do país e com incentivo do Conselho Nacional de Justiça. Sem dúvida, Encontro Nacional dessa magnitude trará contribuições expressivas à Memória, servindo de excelente interlocução entre magistrados, servidores do Poder Judiciário e profissionais das áreas correlatas da História, Museologia, Arquivologia e Biblioteconomia.

Considerações finais
Diante do exposto, podemos extrair as seguintes conclusões:

1. A instituição do Dia da Memória do Poder Judiciário pela Resolução nº 326/2020 do Conselho Nacional de Justiça representa relevante conquista para a valorização da história da Justiça brasileira, quer sob o aspecto unitário enquanto um dos poderes do Estado, quer sob o aspecto multifacetário enquanto poder composto por vários órgãos autônomos entre si.

2. Essa valorização da história da Justiça tem dupla vertente: uma interna e outra externa. De um lado, refere-se ao próprio Poder Judiciário em sua formação, composição, estrutura e demais relações no âmbito intrínseco aos próprios órgãos. De outro, concerne às relações da instituição com a nação brasileira, ao longo do tempo, nos vários aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e jurídicos. 

3. Da conjugação desses ambos aspectos, interno e externo, deve ser construída a narrativa da memória do Poder Judiciário, de modo a ressaltar sua identidade perante a sociedade brasileira, enquanto instituição essencial para a pacificação dos litígios e guardiã da cidadania e dos direitos. A memória consolida a identidade do Poder Judiciário como um dos mais importantes pilares do Estado Democrático de Direito, contribuindo a seu aprimoramento e fortalecimento, à consciência de pertencimento à instituição por parte de juízes e servidores e também à formação de cidadania do povo brasileiro.

4. No entanto, a importância da Resolução não se limita ao conteúdo em si, mas também à sua forma de elaboração, pois teve origem de base e participativa. Apresentada a proposta em Fórum próprio (Memojus) pelo autor, que é magistrado de primeiro grau, foi discutida e votada por vários interlocutores e especialistas das áreas correlatas antes de ser encaminhada ao CNJ. Essa iniciativa democrática confere ainda maior legitimidade à norma e pode ser interpretada em contexto mais amplo de participação na gestão da administração pública.    

5. Para que o ato normativo aprovado cumpra sua finalidade, é imprescindível o engajamento dos Tribunais de todos os ramos (Justiça Federal, Justiça Estadual Justiça Eleitoral, Justiça do Trabalho e Justiça Eleitoral) do país, quer por meio de seus órgãos de direção, quer por meio dos setores atinentes à área (Museus, Arquivos, Memoriais, Bibliotecas), quer por meio de magistrados e servidores, de modo a fomentar a valorização da Memória a partir das várias ações e iniciativas elencadas na norma, sem prejuízo de outras inovações a serem criadas. 

Não obstante a pandemia e a crise econômica decorrente, temos  esperança de que dias melhores virão e que, no ano vindouro de 2021, o Supremo Tribunal Federal, pela sua importância de órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional, com o incentivo do Conselho Nacional de Justiça, poderá acolher calorosamente representantes de todos os Tribunais do país para a realização do I Encontro Nacional de Memória do Poder Judiciário.

 


[4] MEMOJUS é um Fórum de discussão criado em setembro de 2019 pelo autor, por meio de aplicativo de mensagem e atualmente também em rede social, do qual fazem parte historiadores, arquivistas, biblioteconomistas, jornalistas, juízes, desembargadores, servidores públicos e Ministro de Tribunal Superior, reunindo todos os ramos do Judiciário de grande parte do Brasil. Embora o grupo MEMOJUS não tenha existência jurídico-formal, pois ainda está em formação, tem-se mostrado importante palco para intercâmbio de experiências, discussões de temas relevantes e solução de problemas da área, que afligem o Poder Judiciário de todo o país, contribuindo para a capacitação e o aprimoramento dos profissionais da área de Memória. A denominação do grupo foi inspirada no Memojutra, Fórum Nacional Permanente em Defesa da Memória da Justiça do Trabalho, fundado em 2006 e que funciona como uma rede articulada de magistrados e servidores, que atuam em defesa da memória da Justiça do Trabalho, tendo atuação científica, educacional e cultural. O Memojutra congrega os Centros de Memória dos vários Tribunais Regionais do Trabalho do país, realizando dois Encontros Nacionais anuais e é atualmente presidido pela diligente e atuante Anita Job Lübbe, Juíza do Trabalho do TRT4. Disponível em: <https://www.memojutra.com.br/o-memojutra/>. Acesso em: 24/04/2020.

[5] : ….. sou servido determinar o seguinte. I. Relação desta Cidade se denominará Casa da Supplicação do Brazil e será considerada como Superior Tribunal de Justiça, para se findarem alli todos os pleitos em ultima instancia, por maior que seja o seu valor, sem que das ultimas sentenças proferidas em qualquer das Mesas da sobredita Casa se possa interpor outro recurso que não seja o das revistas nos termos restrictos do que se acha disposto nas minhas Ordenações, Leis e mais disposições. E terão os Ministros a mesma alçada que têm os da Casa da Supplicação de Lisboa (grafia original).

[13] Pela primeira vez, a memória do Poder Judiciário terá uma política própria de gestão, com o apoio da tecnologia, das ciências “da informação, arquivologia, biblioteconomia, museologia, história, antropologia e sociologia”, de uma rede entre as unidades que cuidam do tema, da preservação dos patrimônios, do intercâmbio e da divulgação de experiências e boas práticas no campo da preservação da memória institucional. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/comite-estuda-regras-de-gestao-da-memoria-na-justica/>. Acesso em: 25/04/2020. 

Carlos Alexandre Böttcher é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Doutor e Mestre em História do Direito (Direito Civil) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Romano pela Università di Roma La Sapienza (Itália). Membro do Comitê do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Membro da Câmara Setorial de Arquivos Judiciários (CSAJ) do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq). Juiz formador da Escola Paulista da Magistratura (EPM).

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Guarda Civil retira venezuelanos de ocupação em Boa Vista

A Defensoria Pública da União, Conectas Direitos Humanos, Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados e Centro de Migrações e Direitos Humanos ajuizaram nesta quinta-feira (30/4) ação civil pública contra o estado de Roraima, município de Boa Vista e União por desocuparem um acampamento de venezuelanos sem ordem judicial. 

Desocupação, sem ordem judicial, aconteceu no último dia 27
CMDH

A ação, que ocorreu na última segunda-feira (27/4), no bairro Treze de Setembro, foi conduzida pela Guarda Civil Metropolitana sob ordem da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Boa Vista.

“Não houve comunicação formal prévia, não houve oportunidade do exercício do contraditório e da ampla defesa, não houve qualquer amparo assistencial, de intérprete ou de agentes de saúde. Houve, por outro lado, emprego de força bruta através da Guarda Civil Metropolitana que, por sua vez, sequer é adequada para esse tipo de função”, afirma a ação. 

De acordo com a peça, cerca de 30 famílias venezuelanas viviam no local. Dentre os ocupantes, 31 eram crianças de até 12 anos, 10 adolescentes (de 12 a 17 anos), 30 mulheres adultas e 42 homens adultos. Alguns dos ocupantes fazem parte do grupo de risco caso contraiam o novo coronavírus. 

“Um órgão do município, encarregado de políticas relativas ao meio ambiente, entendeu por bem se imiscuir em temas de migração, assistência social, moradia e saúde pública e, em pleno cenário de pandemia, dispersar as famílias pela cidade, obrigando-as, por certo,a se aglomerarem em outro local”, prossegue o documento.

A ACP pede liminarmente que seja concedido, em um prazo de até 24 horas, auxílio emergencial a todos os migrantes venezuelanos que foram retirados da ocupação; que seja fornecida alimentação e abrigo em local adequado; e a concessão de testes de Covid-19 e atendimento médico.

A DPU e a Conectas também solicitam que os demandados sejam proibidos de conduzir despejos, remoções ou reintegrações de posse enquanto durar a emergência em saúde, a menos que seja comprovado que os ocupantes correm risco. 

Neste sábado (2/5), o juiz Bruno Hermes Leal, da 4ª Vara Federal de Roraima, deu o prazo de 72 horas para que União, estado e município de Boa vista se manifestem. O caso corre em segredo de justiça na 1ª Vara Federal Cível e Criminal de Roraima. 

Segundo a DPU, só foi possível viabilizar a ação porque o Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados e o Centro de Migrações e Direitos Humanos, organismo da Diocese de Roraima, conseguiram mapear todas as famílias envolvidas.

Suspensão em todo o país

Por causa da epidemia, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), que integra o Ministério Público Federal, solicitou que o Conselho Nacional de Justiça tome providências para suspender reintegrações, despejos e remoções judiciais e extrajudiciais em todo o país.

De acordo com o PFDC, ações como essas atingem as populações mais vulneráveis, o que “tornaria ainda mais difícil o isolamento” em caso de infecção social.

Diversas decisões judiciais já foram tomadas nesse sentido. Nesta semana, por exemplo, a 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo negou um pedido do município de Santana da Parnaíba para desocupação de um imóvel e demolição de uma construção irregular na região. 

A corte entendeu que reintegrações de posse nesse momento colocam em risco a saúde de diversos profissionais envolvidos no cumprimento da ordem, e inclusive dos próprios ocupantes, indo na contramão dos objetivos traçados pelas autoridades de saúde. 

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos também se manifestou, afirmando ser essencial que os governos tomem medidas urgentes para ajudar pessoas sem moradia adequada, suspendendo despejos e evitando “que mais pessoas se tornem sem teto”. 

Fluxo migratório

Roraima viu crescer exponencialmente o número de migrantes a partir de 2015. Eles, em sua maioria, deixaram a Venezuela, país que atravessa uma crise econômica que atingiu seu patamar mais alto em 2019. 

Segundo a Unicef, o Brasil recebeu cerca de 178 mil solicitações de refúgio e residência temporária entre 2015 e 2019. A maioria dos migrantes entra no país pela fronteira norte e se concentra nos municípios de Pacaraima e Boa Vista, ambos em Roraima. 

Uma pesquisa publicada em janeiro pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV DAPP), do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) e da Universidade Federal de Roraima (UFRR), mostra, no entanto, que os brasileiros não estão sendo prejudicados pelo movimento migratório.

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Paula Stemberg: Direito e cinema: reflexões a partir de ‘Altos Negócios’

O cinema, assim como todas as linguagens artísticas, é um instrumento de compreensão da realidade [1]. Embora os paralelos entre a ficção e a realidade sejam sempre possíveis, alguns filmes como “O Poço” (“El hoyo Galder Gaztelu-Urrutia”, 2019), ou “Milagre na cela 7” (“7. Koğuştaki Mucize” Mehmet Ada Öztekin, 2019) trazem à tona uma série de temas e abordagens presentes nos debates jurídicos, como a desigualdade social e a distribuição de renda, ou a incoerente estrutura prisional e sancionatória no sistema jurídico. Outros, por sua vez, não trazem explicitamente temas jurídicos ao debate talvez como um reflexo da nossa “cegueira parcial” enquanto sociedade a condutas ou práticas estabelecidas em um determinado nicho, classe ou grupo social.

É a esse segundo “tipo” de filme, e justamente nos temas que menos lhe são explícitos, que dedico este artigo. O objetivo dos próximos parágrafos é indicar três pontos de análise possíveis a partir do filme “Altos negócios”, de Cüneyt Kaya, estreado no Brasil no último dia 17  um filme morno, que não inova na temática nem na forma de representação ou narrativa, mas que esbanja cenas de crítica social.

Fisco
Precisamos de água para viver, não? Você a bebe, rega as plantas com ela. Ela faz batatas, cerejas e peras crescerem. E você sabe o que o Fisco faz””

Aos 34 minutos do filme, deparamo-nos com a cena mais simples (sem efeitos especiais) e mais reveladora sobre a difícil relação Fisco-contribuintes.

Ao pegar uma jarra com água e despejá-la em um carpete, a personagem Viktor Stein (David Kross), protagonista deste longa-metragem do Netflix, já reconhecido como uma espécie de sátira [2] ao “Lobo de Wall Street” (“The Wolf of Wall Street” Martin Scorsese, 2013), sintetiza o sentimento dos contribuintes no que diz respeito ao dinheiro pago ao Fisco: desperdício!

O dinheiro que entregamos ao Estado para que ele cumpra seus fins, incluindo a sua própria manutenção, mas também um número razoável de políticas públicas destinadas à realização do bem comum, não é pouco na Alemanha, nem no Brasil. Se lá o percentual do PIB de arrecadação é cerca de 41,5% [3], aqui, em 2018, batemos o recorde de 35,07% [4].

Por isso o pagamento do tributo é sentido tão profundamente pelo contribuinte. Mas e o resultado desse pagamento? Quem é que os sente? Se em tempos normais é difícil responder, em tempos de pandemia, quando uma parcela da população não sai de casa senão em emergências ou buscar suprimentos e quando se tornam mais frequentes atitudes impensadas em algumas das esferas de governo, essa percepção pode ficar ainda pior!

Não se trata de uma ode à revolta fiscal culminando na quebra do princípio da solidariedade, ao estilo Victor Fouquet e Jean-Baptiste Noé [5], mas de uma provocação para que tomemos consciência do quanto o uso do dinheiro pelo Estado nos diz respeito, e o quanto devemos exigir de nossos representantes democraticamente eleitos o mais eficiente uso deste caro e escasso recurso!

Infelizmente a relação problemática com o Fisco não é a única tônica de realidade no filme.

Moradia e propriedade
Viktor Stein sai de casa para ‘tentar a vida”. Chegando a Berlin escolhe um apartamento para morar ao módico preço de 1,2 mil euros mensais. O problema é que ele não tem um contrato de trabalho que sirva, naquele contexto alemão, como comprovação de que terá renda suficiente ao pagamento do aluguel da moradia.

Ele até tenta conseguir uma moradia digna por 20 euros diários da forma correta, mas ser correto significa maior sacrifício e maior emprego de esforços. Qual é a solução? Pelo que o filme demonstra, começa por falsificação ideológica e termina em sonegação fiscal, passando por lavagem de dinheiro e fraude, pelo menos, em cada ciclo de criminalidade.

Quando Viktor decide falsificar seu nome e seu contrato de trabalho, consegue locar uma cobertura e a aluga para trabalhadores da construção imobiliária por 15 euros diários, e logo percebe a essencialidade da habitação e a facilidade de que ela seja o vetor de seu “enriquecimento ilícito”.

Falar em essencialidade da habitação me remete, no contexto Brasil, a diversas coisas. A primeira delas é que aqui no metro quadrado mais caro da América Latina, no ano de 2018 mais de 6,35 milhões de famílias não tinham uma casa para morar, sendo que o número de imóveis vagos e com condições de ocupação era de 6,89 milhões [6]. Aquela frase que não cansamos de ouvir permanece verdadeira: há mais (possíveis) moradias do que pessoas precisando de uma!

A segunda, e pararei por aqui, é que no mais extenso território latino-americano, desde a redemocratização do país, foram 13 anos de tramitação da lei que criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, a Lei nº 11.124/2005, a partir da qual pode se estabelecer o Plano Nacional de Habitação. Mas ainda não foi devidamente implantado.

Em seu lugar, o Programa Minha Casa, Minha Vida, que sem dúvida alguma beneficia inúmeras famílias de baixa renda, reduzindo o déficit habitacional e contribuindo para a geração de empregos pelo gatilho que o crédito pode dar ao setor imobiliário e de construção civil, e está para ser substituído por um novo programa que no ano de 2019 foi inúmeras vezes mencionado pelo Governo Federal, mas que ainda não foi devidamente formalizado, e que algumas vezes foi referido, por representantes do próprio governo, pelo nome Projeto Casa Brasil.

Embora ainda não tenhamos elementos suficientes para analisar o novo programa, vale a pena lembrarmos que os anos de vigência do Minha Casa, Minha Vida não foram suficientes para solucionar o déficit habitacional, porque não é apenas o crédito que resolve esse problema. É preciso uma força coordenada entre os entes da federação e entre as diversas pastas do governo para elaboração e implementação de políticas públicas que tratem a propriedade a partir de sua característica mais elementar na concepção do Estado de Direito (e para alguns [7] até mesmo do estado liberal): a partir de sua função social. Será que este novo programa caminhará em direção à adequada compreensão desta característica da propriedade?

Mulher
Nicole Kleber, interpretada pela deslumbrante Janina Uhse, gerente do Berlin Global Credit Bank e que na trama se torna ex-esposa de Viktor Stein, é a típica mulher de sucesso: inteligente, persuasiva, perspicaz, intuitiva e muito segura. Na primeira hora do filme, “Frau Kleber” tem uma vida estável, é trabalhadora, com independência econômica e emocional.

Até que Viktor cruza o seu caminho como um presente grego de seu amigo de infância, Garry Falkland (Frederick Lau). A partir do momento que ele consegue clientes para seis milhões de “crédito pré-aprovado” do Berlin Global, ele conversa com o chefe de Nicole e pede que ela seja promovida e fique à sua disposição dia e noite.

Apesar de aparentar uma inocente paixão, neste momento a chave reflexiva do feminismo é acionada. O que se retrata no filme é que na estrutura patriarcal de nossa sociedade muitas mulheres, embora extremamente competentes, ficam subordinadas não apenas ao crivo masculino que aprove sua ascensão profissional, mas também ao apoio masculino que a promova.

Rompendo a fronteira entre a profissional e a pessoa em sua intimidade, o custo desta promoção, no caso do filme, não demonstra uma coação sexual como mais comumente a coação é realizada —, mas replica um padrão indesejado. Trata-se de uma espécie de compra que não foi pedida ou consentida por Nicole, mas que é a linguagem para fazer com que ela se relacione com Viktor.

Isso porque ele já estava interessado em se relacionar com ela quando exigiu de seu chefe que a deixasse como gerente exclusiva para sua empresa e a promovesse. Não sabendo do mesmo interesse por parte dela, esta é a arma para deixá-la sem saída: ela passou a dever atendê-lo diuturnamente.

Depois de ser comprada por Viktor, ela se transforma em sua Katja Falkland: a mulher que não trabalha e fica em casa para cuidar dos filhos, enquanto o homem providencia o sustento da família e diverte-se com bebidas, drogas e sexo.

Katja Falkland é a esposa de Gerry. Ela não sabe dos esquemas criminosos e do envolvimento com drogas e prostituição de seu marido, e para demonstrar seu afastamento do mundo no qual seu esposo vive, ela só aparece em uma cena do filme.

No Brasil, embora as mulheres sejam mais escolarizadas, com maior número de horas em formação, têm menores salários e ocupam menos cargos de gestão, inclusive no setor público. Embora os índices com relação à faixa etária sejam diferentes, a desigualdade de gênero não se rompeu com o tempo. Ela permanece [8].

Além da relação conflituosa com o Fisco, o problema de moradia e propriedade e o retrato do papel da mulher, há outros problemas sociais retratados no filme: o caminho cíclico da criminalidade; a alienação parental (que Viktor sofre como filho e depois como pai); e o papel dos países reconhecidos como “paraísos fiscais” na consecução dos crimes de colarinho branco, entre outros exemplos.

Por fim, a narrativa de Cüneyt Kaya mais uma vez coloca a Sétima Arte como uma forma lúdica de colocarmos um espelho em frente à nossa realidade social e de encararmos nossos inúmeros problemas: um prato cheio para os famintos por aprendizado, por discussões conscientes e por mudanças!

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Número de ações trabalhistas durante epidemia será cada vez maior

A ConJur, em parceria com a instituição de educação FintedLab e a startup Datalawyer Insights, lançou nesta sexta-feira (1º/5) o Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho, plataforma que permite a visualização, em tempo real, dos dados dos processos cujas petições iniciais citam “Covid-19”, “coronavírus” ou “pandemia”. 

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do Termômetro Covid-19 em tempo real

Os números mostram, de modo claro, alguns dos impactos imediatos da epidemia: de primeiro de janeiro para cá foram mais de 10 mil processos e 9 mil demissões e afastamentos. O valor total das causas já é de R$ 596 milhões. 

Somente na semana de 6 e 13 de abril, 2.493 novos processos foram ajuizados. Os dados, segundo advogados, evidenciam que há a tendência de que os conflitos entre empregados e empregadores desemboquem cada vez mais no Judiciário. 

“A crescente judicialização das questões afetas à Covid-19 na seara laboral demonstra que isso é uma tendência cada vez maior, durante esse período de pandemia, devendo ser vista com preocupação pelos empresários e as empresas de nosso país”, afirma Ricardo Calcini, professor de pós-graduação da FMU, mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP e organizador do e-book Coronavírus e os Impactos Trabalhistas

Segundo o professor, os advogados devem transmitir orientações mais conservadoras aos clientes, para conter uma outra epidemia: a de processos judiciais.

“O comportamento de hoje, seguramente, vai repercutir no retorno das atividades no dia de amanhã, razão pela qual se deve empreender maiores esforços para frear esse número preocupante de quase R$ 600 milhões em passivo trabalhista, até para que se evite a quebra das empresas que, conquanto tenham sobrevivido no período de crise, podem ter que fechar as portas em razão do tsunami de ações judiciais que passarão a sofrer. Isso, aliás, passa a ser visualizado, doravante, graças a belíssima iniciativa da ConJur”, afirma. 

Demissões

Segundo o termômetro, a maior parte dos processos tem “Covid-19” como assunto (classificação criada recentemente pelo CNJ), sendo seguidos por ações sobre aviso prévio e multa de 40% do FGTS, que são temas inerentes a casos sobre dispensas. 

Tendência, segundo especialistas, é a de que número de processos aumente ainda mais
Reprodução

Mariana Machado Pedroso, especialista em Direito do Trabalho e sócia do Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados, diz que o número de processos envolvendo demissões  não é uma surpresa. 

“Normalmente o momento em que empregados procuram o ajuizamento de ações é após sua dispensa e, como têm havido muitos desligamentos, era esperado que o volume de ações judiciais aumentasse”, afirma. 

Ela ressalta, ainda, que o fato de não ser possível saber quais empresas permanecerão ativas depois que a epidemia passar faz com que os empregados não esperem muito para abrir novos processos. 

Quebradeira

A preocupação dos especialistas quanto à possibilidade de que muitas empresas fechem as portas ou tenham problemas para permanecer em funcionamento é justificada. 

Segundo estimativa da consultoria Alvares & Marsal divulgada pelo jornal O Estado de S. Paulo no último dia 22, a queda de 3% do PIB pode gerar 2,2 mil pedidos de recuperação judicial. O boletim Focus divulgado pelo Banco Central daquela segunda-feira (20/4) previu retração de 2,96% do PIB para este ano.

De acordo com a mesma consultoria, caso a queda fique em 5% — o Fundo Monetário Internacional projetou recuo de 5,3% —, a estimativa é que 2,5 mil empresas batam às portas do Judiciário invocando a Lei 11.101/05, que trata da recuperação judicial, extrajudicial e da falência. O número de casos, se verificado, será 40% maior ao registrado em 2016, quando 1,8 mil sociedades empresárias recorreram à Justiça — cifra até então recorde.

Para Patrícia Suzuki, especialista em Direito do Trabalho e sócia do escritório Nascimento e Mourão, os dados do Termômetro mostram a necessidade de adequação da justiça trabalhista para atender à enxurrada de ações.

“O Termômetro Covid-19 é uma inovação na esfera trabalhista que permite o acesso a informações relevantes, que servirão como norte para a atuação dos setores públicos e privados no enfrentamento da crise”. 

O Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho avaliou toda a base de dados abertos da Justiça Trabalhista, tendo como fonte as publicações relacionadas a esses processos, utilizando técnicas de ciência de dados, metodologia de pesquisa científica e tecnologia de última geração.

A plataforma permite o monitoramento constante do fenômeno nos próximos meses, com base nas publicações da Justiça do Trabalho, por meio de uma plataforma online e de relatórios semanais sobre a evolução dos casos.

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Conselheiro da Comissão de Ética da Presidência coloca colegiado em xeque

Denúncia contra Moro

Conselheiro da Comissão de Ética da Presidência coloca colegiado em xeque

Erick Vidigal, conselheiro da Comissão de Ética Pública da Presidência, divulgou nesta sexta-feira (1º/5) uma carta em que faz uma série de críticas ao funcionamento da instituição.

A principal delas, definida por ele como “gota d’água”, diz respeito à maneira como foi escolhida a relatoria do processo que analisará a denúncia contra o ex-ministro Sergio Moro. Ele foi denunciado por supostamente ter exigido sua indicação para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal em troca da permanência no cargo de ministro da Justiça.

Em sua carta, endereçada aos conselheiros da Comissão, Vidigal informa que soube por terceiros da existência da denúncia. A partir de então, questionou a secretaria do colegiado a respeito de quem tinha sido sorteado como relator, mas recebeu apenas uma “série de evasivas”. 

Apenas após “muita pressão” é que recebeu uma mensagem eletrônica (e-mail) informando que o relator designado era Paulo Lucon, presidente do colegiado. Para Vidigal, falta transparência no processo, pois a distribuição “sequer é feita por sorteio e publicamente”.

Vidigal menciona ainda outros episódios que colocam em xeque a credibilidade da comissão. Por exemplo, o processo referente à apuração de condutas de Fabio Wajngarten, chefe da Secretaria de Comunicação (Secom) do governo. Referindo-se a Lucon, Vidigal afirma que o presidente da comissão “não vê nada de imoral em autoridades realizarem despesas públicas que favorecem pessoas contratadas ao mesmo tempo pela administração pública e pela empresa do qual a autoridade é sócia”.

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Revista Consultor Jurídico, 2 de maio de 2020, 10h44

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Empresa consegue suspender plano de recuperação judicial

Por quatro meses

Empresa consegue suspender exigências de plano de recuperação judicial

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Juiz suspendeu exigências de plano de recuperação judicial de empresa afetada pelo avanço da Covid-19 no país

O juiz Paulo Henrique Stahlberg Natal, da 2ª Vara Cível do Foro de Santa Bárbara D’Oeste, acatou o pedido da empresa Textil Canatiba e suspendeu a exigibilidade do cumprimento de todas as obrigações do plano de recuperação judicial da empresa por quatro meses.

No pedido, a empresa alega que, por conta da crise gerado pelo avanço da Covid-19 no Brasil, foi altamente impactada economicamente, em decorrência das medidas de restrição e isolamento social.

Ao analisar o caso, o magistrado apontou que a empresa demonstrou nos autos que foi, de fato, impactada pela crise gerada pelo novo coronavírus e apresentou centenas de pedidos de compra cancelados e outros tantos de postergação de pagamentos.

Há evidente desequilíbrio econômico-financeiro, uma vez que fora alterada a base fática que levou ao acordo de vontades, já que o fluxo de caixa sofreu queda drástica de praticamente 100% nas últimas semanas. E este desequilíbrio decorreu de evento imprevisível, inevitável e não ocasionado por nenhuma das partes envolvidas na relação jurídica (plano de recuperação judicial)”, ponderou o juiz.

Na decisão, o magistrado ainda lembrou que a recuperanda encontra-se regular com o cumprimento do plano de recuperação. Segundo o advogado da empresa, Roberto Carlos Keppler, sócio do Keppler Advogados Associados, a empresa comprovou nos autos centenas que o faturamento da empresa caiu vertiginosamente. “Houve drástica redução de sua atividade econômica, a impactar sobremaneira no seu fluxo de caixa, gerando, inclusive, inadimplência de sua folha de colaboradores (atualmente cerca de 2.100 pessoas), com custo mensal aproximado de R$ 11 milhões”, disse.

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1004884-18.2017.8.26.0533

 é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 2 de maio de 2020, 10h20