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Conjur é o 7º site mais acessado do mundo em sua categoria

ConJur deu um salto de audiência no último mês de abril de 130% em relação à média de todo o ano passado. Em 2019, a revista eletrônica fechou com média mensal de 4 milhões visitantes. No mês passado, foram 9,9 milhões de usuários.

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Esse patamar deu à publicação a sétima colocação mundial na categoria law and government — Legal. A informação é da ferramenta SimilarWeb, que fornece serviços em Web Analytics, mineração de dados e inteligência empresarial e corresponde ao último mês de abril.

Entre as dez primeiras posições, a ConJur é o único veículo noticioso de língua portuguesa. Outra página brasileira no ranking é a da empresa de tecnologia Jusbrasil, que ocupa a segunda colocação, atrás apenas do russo Consultant.ru.

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O terceiro site brasileiro do top 10 é o Tribunal de Justiça de São Paulo. A página do maior tribunal do país ocupa a nona posição, à frente do site Nolo.com

Ainda conforme dados da SimilarWeb, a Conjur ocupa a posição número 257 entre todos os sites do Brasil e a 5.896 entre todas as páginas da internet no mundo.

Viés de alta

Os bons resultados no ranking confirmam a tendência de crescimento da ConJur. A revista eletrônica praticamente dobrou o número de usuários em três dos primeiros quatro meses de 2020 em comparação ao mesmo período do ano passado.

O viés de alta se consolidou com a crise causada pelo avanço da Covid-19 no Brasil. Em cenário em que a Justiça vem sendo cada vez mais desafiada, e o número de usuários à procura por informação confiável fez a ConJur aumentar ainda mais a sua já crescente audiência.

Em março deste ano — período em que o governo federal decretou estado de calamidade pública no país e marcou o início do agravamento da crise do novo coronavírus —, a audiência da ConJur saltou da média de 4.042.761 usuários em 2019 para 8.525.401 de usuários.

Parte considerável do aumento de audiência corresponde aos esforços editoriais da empresa. Em abril deste ano, a revista eletrônica chegou a marca de 9.927.799 usuários, um salto de pouco mais de 130% em relação à média do ano passado.

Credibilidade e tecnologia

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Além de textos opinativos dos mais importantes operadores do Direito do Brasil, a ConJur tem publicado centenas de reportagens, artigos e notícias claras e aprofundadas que ajudam a traduzir o cenário jurídico neste momento em que novas questões surgem diariamente.

Para o diretor de marketing digital Newton Haidar, encarregado pela produção da TV ConJur, “a publicação deu uma pronta resposta com mais informação sobre a realidade que a epidemia nos impôs”. “Passamos a produzir o dobro do conteúdo normalmente produzido. Atingimos a marca de quase 10 milhões de leitores por mês, navegando por mais de 22 milhões páginas. Somamos mais de 300 mil textos em nosso banco de dados ao longo de mais de 20 anos de jornada”, diz. 

Parte desse esforço tem sido materializado nos webinários promovidos pela TV ConJur no YouTube. As séries “Saída de Emergência” e “Voz da Experiência” têm reunido alguns dos principais nomes do Direito e da política do país.

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Um dos destaques desses seminários virtuais foi o que promoveu o raro encontro de três ex-presidentes da República e pautou o noticiário nacional. “Atuando em várias frentes, esse número se multiplica: são mais de 260 mil telespectadores do nosso conteúdo em vídeo que assistiram 18 mil horas, ou um total de 750 dias de reprodução de vídeos. Batemos a marca de mais de 800 mil seguidores em nossas redes, que interagem diretamente com nossas publicações”, afirma Haidar.

“Identificamos também um aumento no acesso por dispositivos móveis, que hoje são quase 75% ou 7,5 milhões de leitores que nos acessam usando a telinha. Pensando nisso, vem novidade por aí: um formato novo para nosso site mobile, pensado para melhorar muito a experiência do usuário previsto para final do segundo semestre.”

Criada em 1997, a revista eletrônica Consultor Jurídico é o mais influente site sobre a Justiça e Direito em língua portuguesa. Nasceu para ser fonte de informação sobre o que acontece nos tribunais, escritórios e no dia a dia do país sob as lentes do Poder Judiciário.

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Atuação estatal precisa ser criativa e rápida frente à pandemia

Através de um esforço coletivo, temos abordado ao longo dessa coluna em que medida a pandemia vivenciada vem impactando a forma como compreendemos o papel a ser exercido pelo Estado para superarmos os desafios que nos são impostos enquanto sociedade. A medida que as semanas passam, se consolida a ideia de que o cenário pós-pandemia será desafiador, demandando uma nova postura de todos nós, bem como uma nova postura do Estado nas mais diversas frentes, em especial, frente à economia.

Mas, para chegarmos lá, é importante que enfrentemos o aqui e agora, que busquemos ferramentas que nos auxiliem a desatar o complicado nó existente entre a conciliação da política sanitária necessária para conter o avanço da pandemia e os efeitos econômicos adversos por ela causados. Para isto, alguns passos precisam ser dados e, assim como a crise da Covid-19 é algo novo para a humanidade, as soluções que devemos alcançar em nível institucional também nos cobram um certo grau de inovação e criatividade, já que não se trata apenas de reviver a importância da atuação do Estado em momentos de crise – valendo-se da experiência histórica – mas de construir uma agenda de reconstrução de uma crise sem precedentes (sem qualquer exagero de nossa parte, haja vista os números públicos de todas as economias afetadas pela pandemia).

Não podemos nos enganar, o que está em jogo no momento não é a credibilidade de nosso país frente ao mercado financeiro e sua avaliação de nossa capacidade de manter as contas equilibradas. A credibilidade que está em jogo no momento é relativa à forma como vamos lidar com essa crise do ponto de vista sanitário, buscando reduzir ao máximo as mortes dela decorrentes e evitar a perda de nossa força de trabalho, além de todos os aspectos humanitários e de civilidade envolvidos.

Com tal perspectiva em mente e dando o pontapé inicial dessa análise que temos feito, já abordamos a partir de uma visão geral quais os desafios que a pandemia impõe ao Estado no campo econômico aqui. Afirmamos naquela oportunidade que cabe ao Estado fornecer as condições materiais de enfrentamento da Covid-19, possibilitando não apenas a manutenção de uma política de isolamento social, com fornecimento de renda mínima e políticas de incentivo às empresas para manutenção dos postos de trabalho, como também com gasto público direto na ampliação da capacidade hospitalar para atender aqueles que necessitarem amparo. Para tanto, defendemos, já naquela oportunidade, a necessidade de rediscussão do papel do setor público na busca pelo bem-estar coletivo e de como tais demandas exigem uma reavaliação da atividade financeira do Estado. Tal atuação, contudo, desafia o governo federal à busca por fontes de financiamento da ação estatal.

Em continuidade, esta coluna analisou aqui em que medida algumas das propostas para tal injeção dos recursos, colocadas em debate no âmbito do legislativo, não auxiliariam no momento de emergência e excepcionalidade que vivemos. Nesse sentido, foi defendido que o aumento de tributos em geral e a proposta de instituição de um empréstimo compulsório em específico não seriam o melhor caminho a seguir para alcançarmos aquele objetivo.

Como ali apontado, concordamos com a premissa de que a reforma tributária é algo urgente, e entendemos que não podemos descartar todo o esforço empreendido nos últimos anos para a formatação da discussão nos moldes que se encontra. Ainda assim, não é o momento de pensarmos em soluções estruturantes, como a que demanda a nossa matriz tributária. Escolhas estruturantes feitas em cenários de crise geralmente não são tomadas com a reflexão necessária que elas necessitam, bem como tendem a se perenizar e prejudicar avanços futuros – vide a política de austeridade imposta pela emenda constitucional do teto dos gastos.

Temos que ter em mente, portanto, que a solução imediata para o problema de finanças públicas causado pela pandemia não será feita por meio dos caminhos de sempre do ajuste fiscal – aumento de tributos ou controle de gastos. Teremos justamente o oposto disto, nesse primeiro momento de enfrentamento.

Feita essa introdução, assumindo a centralidade do Estado nesse processo de enfrentamento e, notadamente, por parte do governo federal, temos que a crise impõe o desafio da proteção do emprego (para assegurar o mínimo de demanda da sociedade por consumo e investimento por parte da iniciativa econômica), dos gastos com saúde e criação de mecanismos de empréstimos subsidiados. Os instrumentos devem ser principalmente de natureza fiscal e de natureza monetária.

O diagnóstico da atuação fiscal do governo federal, até aqui, é de timidez no volume de sua atuação e no seu ritmo.

Falta coordenação federal de esforços e o uso de opiniões técnicas que não estejam mirando na repercussão fácil e imediatista das redes sociais marcadas pelo ódio e o medo. Se houve rapidez ao se decretar calamidade pública, até por conta da premente necessidade de ajustes de meta fiscal (vide artigo 65 da aniversariante Lei de Responsabilidade Fiscal), o pragmatismo não foi além dessa decisão, já que concorreu com o negacionismo dos números da saúde pública (a tal bravata da “gripezinha” versus a pandemia).

Também foi rápido o governo federal ao liberar os recursos dos depósitos compulsórios (no montante de R$ 1,2 trilhões) para o aumento da liquidez de provisão e na esperança – ao que parece infundada – de que esses recursos chegariam ao mercado tomador. Houve atuação rápida, ainda, na criação de regras de exceção na legislação trabalhista, mas houve, novamente, timidez ao se conceder apenas diferimento de alguns meses no pagamento de tributos do Simples e em algumas situações específicas de tributos federais, bem como postergação da entrega de declarações, como se, em curtíssimo espaço de tempo, as empresas já não terão que pagar duas competências tributárias ao mesmo tempo.

Os gastos com a saúde, contudo, ainda são pífios, e a falta de sinais claros de que estamos alinhadas com as melhores práticas no âmbito sanitário geram ainda mais incertezas, justamente o maior inimigo – essa tal incerteza – da demanda efetiva, conforme nos ensinou Keynes.

O cenário futuro de queda no PIB, de resultados fiscais negativos e de taxa de desemprego apontam para os desafios que não temos o direito de olvidar à espera de um milagre.

Os instrumentos fiscais necessários não são triviais. O aumento da dívida pública já se faz presente e sequer poderia deixar de assim ser. A emergência determina o aumento dos gastos nesse primeiro momento e a reconstrução de níveis melhores de endividamento apenas após passada a fase sanitária aguda da crise e ao longo de muitos anos.

O Estado deve fazer com que os recursos econômicos cheguem ao ou permaneçam no mercado. Que cheguem a ele por meio de despesas diretas, por meio de linhas de crédito subsidiadas, pelo despertar do catatônico BNDES e por meio de gastos com a saúde pública (nada justifica os valores liberados para gasto sob essa rubrica estarem intocados, como nos dão conta os relatórios de gastos do governo federal). Por outro lado, não é momento para o governo buscar fontes de financiamento por meio da tributação, conforme já alertamos aqui; momentos de crise não são propícios para reformas estruturantes na tributação por meio de criação de novos tributos ou novas incidências. A sabedoria popular sempre nos ensina a não se fazer compras no supermercado quando estamos famintos.

Mais do que nunca, a alteração de nosso sistema tributário não poderá se concentrar apenas na modernização da tributação sobre o consumo, o país que reconstruiremos não poderá ter apenas na sociedade de consumo o seu financiador. A renda e a propriedade daqueles que a têm também deverão ser objeto de reanálise e não somente por meio de tributos insensatos ou sem maiores estudos de aplicabilidade, como o de grandes fortunas ou a mera tributação de dividendos. Mas, repita-se, esse será o segundo momento.

A Emenda Constitucional 106, da economia de guerra, prepara o terreno da atuação do governo, ao flexibilizar a regra de ouro, ao autorizar certa atuação do Banco Central no âmbito fiscal e ao excepcionar certos gastos direitos e indiretos (benefícios), desde que não permanentes.

Na seara tributária, a atuação deverá ser mais incisiva e diametralmente oposta à da discussão do aumento de tributos, seja porque não teremos fato geradores se sufocarmos as empresas, seja porque a ideia chave é fazer o dinheiro ficar no mercado e não retirá-lo. Precisamos lançar mão de programas tributários (isenções parciais) inteligentes, com regras claras de encerramento, com objetivos previamente traçados, voluntários (por adesão) e, sobretudo, com contrapartidas, com ênfase à manutenção de certo nível de empregabilidade, podendo, inclusive, ser graduada conforme o atingimento de resultados.

Não somos os únicos a elencar certas medidas urgentes e, em geral, de cunho mais temporal do que de efetiva renúncia. Muitos colegas têm defendido, e fazemos coro a eles, medidas do seguinte tipo: suspensão temporária da trava dos 30% na compensação de prejuízos fiscais e bases negativas para aquelas empresas que estão apurando lucro; análise da possível transferência de prejuízo fiscal e bases negativas entre empresas do mesmo grupo. Autorização para a efetiva e rápida transferência de créditos tributários acumulados para terceiros em tributos como PIS, Cofins e ICMS.

De cunho menos temporal e de efetiva renúncia, adicionamos ao debate a redução de pontos percentuais das contribuições previdenciárias patronais, de acordo com contrapartidas de nível de empregabilidade do empregador, a revisão das contribuições a terceiros, como a contribuição ao Incra (todas elas, medidas de curtíssimo prazo e com data de encerramento com o fim da calamidade pública).

Mereceria atenção, ainda, um tratamento legislativo pontual para dotar de maior segurança créditos de PIS e Cofins sobre a aquisição de bens e serviços (materiais de combate à pandemia e de segurança, para se evitar zonas fronteiriças do que seria equipamento de proteção etc) e as repercussões sobre o IR e a CSL das doações efetuadas. É hora de não alimentar mais o contencioso (o que seria mais gasto com serviço público da atuação da Administração Tributária e do Poder Judiciário).

Não menos importante, a suspensão com prazo certo de diversas contribuições de intervenção no domínio econômico (Cide). Ora, em um momento em que a atuação federal prioritária é no combate à pandemia e seus efeitos econômicos, não faz o menor sentido a captação de recursos para outras finalidades de atuação (como inovação, desenvolvimento do cinema e outros). Há muito se reclama que os fundos criados para receber recursos dessas Cides não são utilizados para os seus desideratos originais, seja pela manutenção dos recursos nos fundos (por razões fiscais), seja pelo uso desvinculado dos objetivos originais. Nesse sentido, a suspensão do pagamento por poucos meses parece ser uma boa saída para se manter os recursos naqueles que também estão em uma frente de combate importante: as empresas que produzem e mantêm empregados.

Por fim, deve-se estudar instrumentos monetários de atuação fiscal do Banco Central. Há pouquíssimo consenso entre economistas sobre essa atuação e muita desinformação: basta ver como surgem críticas fáceis e despropositadas sobre expansão ou recomposição de base monetária (como se tratasse apenas de imprimir papel). O artigo 7º da EC 106 trata do tema, mas há muito a se estudar, seja quanto às possíveis técnicas de atuação fiscal (quantitative easing, uso de reservas internacionais, realocação contábil de dívida etc), seja pelos entraves jurídicos a essas políticas, seja por se tal atuação deve ser assim conduzida (aquisição pelo BC de títulos de duvidoso retorno). Não será nessa oportunidade que trataremos disso, mas aguardamos maiores reflexões por parte dos especialistas.

Certamente o momento nos desafia a sermos mais criativos, incisivos e cooperativos. Não podemos nos deixar guiar por vozes autoritárias e proprietárias das últimas verdades (duvidosas), pois, como bem lembrava Orestes Barbosa, na voz de Noel Rosa: “A verdade, meu amor, mora num poço./É Pilatos lá na Bíblia, quem nos diz./Que também faleceu por ter pescoço/O autor da guilhotina de Paris”.

 é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente e doutor pela mesma instituição. Foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

Pedro Júlio Sales D’Araújo é pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha), doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB); e especialista em Direito Tributário pela FGV/SP. Foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal para assuntos tributários. Advogado.

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A biblioteca nacionalista de Policarpo Quaresma

O escritor Lima Barreto é um injustiçado. Um triste visionário, na percepção de recente biografia lançada pela historiadora e antropóloga Lilia Maria Schwartz. Que livro! Lima Barreto era um homem do trópico com alguma coisa de russo dos gelos em sua vocação para escrever romances ao mesmo tempo sociais e introspectivos, na alusão de Gilberto Freyre, um insuspeito, para esse tipo de assunto. Lima Barreto viveu em contexto de frustração, de falta de reconhecimento, de preconceito racial, situações existenciais que talvez o induziram ao alcoolismo, que o levou à morte, no mesmo hospital onde seu pai estava internado, pela mesma razão, morrendo os dois — pai e filho — com a distância de alguns dias. Na verdade, pode-se pensar no triste fim de Lima Barreto. Muito triste.

O Triste Fim de Policarpo Quaresma é provavelmente seu livro mais conhecido. Penso que o Policarpo é um Dom Quixote nacional. O Policarpo era um idealista, acreditava no país. Porém, não se dava conta de que tudo e de que todos desdenhavam qualquer projeto nacional sério e genuíno. Era um nacionalista diferente de alguns que há hoje, e que por vezes assumem um nacionalismo de intimidação e de desconsideração para com a ciência e para com qualquer pensamento mais sério.

O nacionalismo era um traço da personalidade do Policarpo, enquanto muitos hoje se dizem nacionalistas, em vários lugares do mundo, justamente por uma completa ausência de resquícios de personalidade. É um nacionalismo tampão. Um nacionalismo bovino, ao qual o Policarpo opunha um nacionalismo de ação e de esperança, ainda que muitas vezes exagerado, a exemplo do esforço para que o tupi fosse a língua nacional, em substituição ao português falado no Brasil.

O nacionalismo do Policarpo era honesto, por vezes ingênuo, mas sempre comprometido com a busca de soluções factíveis e razoáveis para o enfrentamento de nossos problemas. Era um nacionalismo marcado pelo afeto e pela esperança. Não pregava a violência, e nem propagava a ignorância. Pelo contrário, indignava-se com a guerra interna. E estudou com afinco, sempre, alternativas para saúvas, péssimas colheitas, fome e miséria. O Policarpo lia, e lia muito, e entendia o que lia. O problema é que não havia como transformar tanta leitura em realidade. É o eterno problema dos quixotes.

Lima Barreto opôs com o Policarpo as propostas formalistas e europeizantes da época, centradas em autores como Gustavo Barroso, Alberto Torres e Coelho Neto. Queriam fazer do Brasil um apêndice da Europa. É a velha imagem do índio de Alencar, para quem um índio poderia ser um europeu de tacape e sunga. Nacionalismo, patriotismo, eleições a bico de pena, loucura, bacharelismo, preconceito, burocracia e injustiça são os temas centrais do Triste fim de Policarpo Quaresma.

Segundo Lima Barreto, a biblioteca do Policarpo assentava-se em estantes de ferro, perto de 10, com quatro prateleiras. Havia também pequenas prateleiras, para os livros menores. Era mais do que uma coleção de livros. Era uma homenagem ao país no qual acreditava. Na sessão de livros de ficção e de poesia o Policarpo reunia apenas autores nacionais ou reconhecidamente brasileiros: Bento Teixeira (Prosopopeia), Gregório de Matos, Basílio da Gama, Santa Rita Durão, Joaquim Manoel de Macedo, Gonçalves Dias.

O Policarpo tinha todos os livros do José de Alencar, que foi quem nos explicou o Brasil, do índio ao gaúcho, no singular mesmo. Quem entende do José de Alencar é o Lira Neto, seu grande biógrafo contemporâneo (O Inimigo do Rei). Na biblioteca do Policarpo tinha-se o cânone bem comportado de uma literatura bem comportada que descrevia o Brasil bem comportadamente, com exceção do Gregório de Matos, o boca do inferno, talvez. Quem entende do Gregório de Matos é Ana Miranda, que nos deixou um delicioso romance histórico centrado nessa figura que misturava o diabólico com o serafínico, se possível essa conformação. Não havia livros do Padre Vieira na biblioteca do Policarpo. Quem entende do Padre Vieira é o Alcir Pécora (Teatro do Sacramento), um estudo essencial sobre a unidade teológico-retórico-política do grande sermonista.

A sessão de História do Brasil era completa. Havia todos os cronistas que de algum modo explicaram as singularidades de nossa terra. Estavam todos: Gabriel Soares, Pero de Magalhães Gandavo, Frei Vicente do Salvador, Armitage, o Padre Manoel Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (um alemão que escreveu nossa história, Geschichte von Brasilien), Melo Morais, Capistrano de Abreu (o cearense não poderia faltar), Southey, Varnhagen. O Policarpo lia em línguas estrangeiras também.

O Policarpo também colecionou (e leu) os viajantes que descreveram o Brasil. Havia nessa sessão o Hans Staden (o alemão que quase foi engolido pelos índios), o Jean de Léry, o Saint-Hilaire, o Martius, o Príncipe de Neuwied, o John Mawe, o von Eschwege, o Agassiz, Couto de Magalhães. E havia ainda Darwin (que esteve no Brasil e que se horrorizou com a escravidão), Freycinet, Cook e Bougainville. Lima Barreto nos conta que o Policarpo também tinha o livro de Pigafetta, um cronista que narrou a viagem de Fernão de Magalhães.

O Policarpo de igual modo possuía dicionários, manuais, enciclopédias e compêndios, em vários idiomas. Livros que chamamos de referência e que Lima Barreto a eles se refere como livros subsidiários. Não havia livros de Direito, talvez poque copiávamos o que europeus escreviam. Bibliotecas (reais ou imaginárias) compõem de forma definitiva uma biografia de seu proprietário, ou de seu utente. É o que se percebe na descrição que Lima Barreto fez da biblioteca do Policarpo Quaresma. Descreva-me tua biblioteca, e direi quem és.

 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

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Desafios da consensualidade na administração em tempos de Covid

O avanço da pandemia do novo coronavírus tem aumentado os desafios para o administrador público. Respostas rápidas e eficientes são cada vez mais urgentes e estimulam a busca por soluções inovadoras, experimentais e compatíveis com a juridicidade.

Uma justificação para a busca por novos caminhos está em como a singularidade do evento tem evidenciado as limitações dos mecanismos tradicionais colocados à disposição do gestor público para tomar decisões no que já se chamou de Estado Administrativo de Emergência. A publicação da MP 961, que autoriza pagamentos antecipados, aumenta alguns limites de dispensa de licitação e amplia o uso do RDC durante o estado de calamidade pública, ao lado de críticas à aplicação da teoria da imprevisão aos contratos de concessão são apenas exemplos do reconhecimento de limites, respectivamente, legais e dogmáticos de ferramentas jurídicas rotineiramente invocadas até pouco tempo para lidar com excepcionalidades. Processos administrativos e ações judiciais mostram-se, na mesma linha, igualmente problemáticos por serem custosos, excessivamente rígidos e permeáveis a assimetrias de informações.

Um dos caminhos promissores para enfrentar os desafios impostos pela pandemia para a saúde pública e a economia tem sido o recurso a mecanismos consensuais de solução de problemas. A negociação administrativa e a criação de crisis dispute boards, como sugere Egon Bockmann Moreira, seriam exemplos nesse sentido. Se a consensualidade, na forma de acordos, já havia recebido impulso significativo com as alterações promovidas em 2018 pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, especialmente pela inclusão do seu artigo 26, o atual cenário só amplifica a sua importância.

Incentivar a busca pelo diálogo e a abertura à participação, no entanto, encontra desafios de pelo menos duas naturezas. O primeiro seria cultural. A opção pela via consensual nem sempre é priorizada – ou considerada possível – pelo administrador. Segundo Voronoff, (i) um ranço autoritário por parte da Administração, (ii) a insegurança sobre a validade e a definitividade dos acordos, (iii) o nível de capacitação da Administração, (iv) os impactos sobre o dever de motivação produzidos pela elevação dos ônus de argumentação para sustentação da preferência pela negociação e (v) a tradicional associação entre a imposição de soluções unilaterais e realização do interesse público seriam as principais causas dessas primeira dificuldade. Lidar com esses fatores exige repensar diversas premissas que moldam a compreensão e a atuação da Administração. A pandemia, ao que tudo indica, vem contribuindo para acelerar esse processo.

O segundo desafio seria de natureza propriamente operacional. Se o artigo 26 da LINDB é uma das principais bases no direito positivo para a celebração de compromisso entre a Administração e interessados, como aplicá-lo adequadamente? A pergunta se justifica tanto pelo recurso legislativo a termos e expressões vagas como pela necessidade de compatibilização do dispositivo com a segurança jurídica, indicada como central na aplicação de qualquer norma pelo artigo 30 da própria LINDB.

A busca pela operacionalização do dispositivo, que se predestina a “eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público”, pode se dar a partir do investimento em soluções procedimentais capazes de contribuir, incrementalmente, para a justificação da necessidade do acordo e da adequação dos seus termos. Nesse sentido, antes da estipulação (i) das obrigações das partes (que não poderão desonerar permanentemente dever legal), (ii) do prazo para cumprimento, (iii) das sanções (art. 26, §1º, III e IV) e (iv) da publicação do ato (art. 26, caput), há de se definir uma trajetória a ser percorrida, com propensão para a identificação, por exemplo, da relação entre o objeto do acordo e a pandemia, do nível de impacto, do nível de esforço a ser atribuído às partes e da possibilidade de replicação automática do resultado para agentes privados em situação paritária. A boa notícia é que parte do percurso já se encontra definido em lei.

É certo que há muita indeterminação a ser superada. O inciso I, do § 1º, do artigo 26 investe numa exigente justificação focada na otimização de transações específicas pelo aproveitamento máximo de informações e habilidades do gestor que, na prática, tem pouca propensão de ser cumprida. A aplicação de critérios como interesses gerais, solução equânime, proporcionalidade e eficiência recomenda que o órgão jurídico da autoridade administrativa intervenha não somente na qualidade de parecerista (art. 26, caput), mas, sempre que possível, como agente estruturante da vontade administrativa em formação, conjuntamente com a área técnica de competência (inc. III, § 4º, art. 10º, do Decreto Federal nº 9.830/2019). Pela associação das razões de ambas as áreas, inclusive, é que também poderá ser dirimida a necessidade (ou não) de audiência pública para a salvaguarda de eventuais interesses outros não vinculados imediatamente às vontades dos acordantes.

Outra peça de valor disponível no direito positivo para a construção de um acordo é a instituição de câmaras de mediação e conciliação no órgão competente para transigir, conforme art. 174 do CPC e art. 32, II, da Lei n. 13.140/2015. Embora facultativa, a criação dessas câmaras soa altamente recomendável, tanto para afastar eventual viés decorrente da combinação de persecução com a função de transigir, como para tentar elevar a qualidade do acordo e dificultar a captura. Neste esforço dogmático já fora dos lindes da LINDB, não poderia faltar, em complementação, a referência à Lei n. 9.784/99. Em específico, dela podem ser extraídos (i) os critérios de condução procedimental consignados em seus arts. 2º e 3º, dentre os quais se destacam a objetividade, a publicidade e a indicação de pressupostos de fato e de direito, assim como (ii) a imposição de especial ônus de argumentação ao administrado, na forma do seu art. 4º, com força para ensejar a necessidade de que o agente particular especifique de antemão a compatibilidade entre aquilo que propõe para o acordo e as determinações do art. 26 da LINDB.

Para além dessas diretrizes, ainda é possível vislumbrar outras medidas que poderão ser (re)modeláveis à luz das contingências de cada órgão ou mesmo de cada caso em que esses sejam chamado a decidir. São elas: (i) a indicação de manutenção do mundo “como está”, em casos de incerteza radical sobre os efeitos futuros do acordo (ou de custos excessivos para a sua superação); (ii) a obrigatoriedade de análise, pela Administração Pública, do histórico comportamental do(s) proponente(s), como forma de identificar a verdadeira excepcionalidade da medida; (iii) a criação de mecanismos de vinculação para a solução de casos futuros à luz dos precedentes criados; (iv) o estabelecimento de patamar limite de valor, sendo que, acima do limite fixado, a autorização para transacionar — por dever ser ainda mais excepcional — demandaria uma intervenção de agente público com competências que o coloquem em posição “superior” (e.g.: procurador geral); (v) a verificação da existência de um programa efetivo de compliance pelo agente privado; e (vi) a criação de sistemas de monitoramento de resultados dos acordos administrativos já celebrados.

A impressão é a de que, por meio da identificação e observância de parâmetros procedimentais, como os delineados ao longo deste texto ou outros que podem ser a eles agregados, há potencial para aumentar a racionalidade decisória da atuação administrativa (inclusive para fundamentar que a via negocial ou alguma forma de acordo não deve, em determinado caso, ser privilegiada) e facilitar o monitoramento das ações de todos os envolvidos em tempos tão difíceis. Pensando em como se concretiza um instrumento de consensualidade, acaba-se moldando o que será feito.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


Para aprofundamento dos próximos argumentos v. MACHADO, Gabriel. Acordos Administrativos a partir do artigo 26 da LINDB: Consensualidade, Tensões, Sentidos e Processo. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Regulação da FGV Direito Rio. Rio de Janeiro, 143f., 2020.

Gabriel Machado é mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio e advogado.

Fernando Leal é professor da FGV Direito Rio.

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Tratamentos normativos da morte para famílias em luto

Tem sido afirmado que a morte é um tema que nos ocupa uma vida inteira, porque sempre se tenta entendê-la embora todos a saibamos inevitável. Menciona Voltaire que “a raça humana é a única que sabe que há de morrer e só o sabe pela experiência”. Entre perdas e lutos, enquanto se vive, agimos, porém, como se eternos fossemo-nos, em um paradoxo inexplicável e mais ostensivo pelos soberbos.

Fato, afinal, é que somos finitos e essa finitude humana tem sido dolosamente vivenciada pelas famílias em luto, diante das vidas que têm sido delas subtraídas; prematuramente, em todos os casos, pela Covid-19. A certeza da finitude, por certo, nos fará mais solidários com o próximo, em solidariedade fundante, dentro da pandemia, de uma nova alvorada da consciência humanista da mortalidade.

Dirá Fernando Pessoa: “Morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada” (1932), enquanto Sigmund Freud, de seu sofá, escreveu “Luto e Melancolia” (1917). As famílias em luto também agonizam, pelo súbito choque humanitário jamais experenciado, com a vivência progressiva da morte que a Covid coloca nas horas de cada dia, e a dor de cada um é a nossa dor.

Allan Kellehear, em “Uma História Social do morrer” aponta: “Estamos presenciando a ascensão de formas indignas de morrer. Não são as doenças e as ciências médicas que apresentam os maiores testes morais ao morrer moderno, mas a pobreza, a velhice e a exclusão social” (1). De fato, morrer de vulnerabilidades sociais, de frágeis ancianidades ou de serviços débeis de saúde pública, criam o nascimento das mortes indignas e incômodas.

A atual pandemia, diante de seus resultados trágicos, tem reclamado nova consciência social e novos tratamentos normativos da morte, a regular circunstâncias incomuns, que minimizem a desolação dos sobreviventes.

(i) Orfandade dupla — O primeiro deles, “de lege ferenda”, diz respeito “à orfandade dupla”. Inúmeras famílias têm perdido não apenas um de seus membros, mas dois ou três, em sucessivas perdas. Designadamente, morrem os pais provedores, deixando os filhos em orfandade dupla.

Não custa lembrar a Lei nº 7.070/1982, que constituiu pensão especial previdenciária às vítimas do medicamento Cotegan-Talidomina, cujo uso provocou a deformação de fetos e o nascimento de crianças com sérias deficiências (02). 

Em primoroso estudo tratando dos danos hedônicos, Marcelo Lannes sublinha: “(…) Historicamente o Estado Brasileiro já reconheceu a sua falha na prestação de serviços e como consequência o dano causado na vida de milhares de pessoas; tendo-se em exemplo as pensões especiais pagas às vítimas da Síndrome de Talidomida (Lei no 7.070/82), aos familiares das vítimas fatais da hemodiálise de Caruaru (Lei no 9.422/96), às vítimas do acidente Césio-137 em Goiânia (Lei no 9.425/96) e aos atingidos pela hanseníase submetidos à internação e tratamento compulsórios (Lei no 11.520/07) além da pensão mensal, vitalícia e intransferível às crianças com microcefalia decorrente do vírus Zika (MP 894/2019)”. (03)

Pois bem: em objetivação legal, à luz do solidarismo social, novo paradigma ressarcitório deve contemplar situações que tais, pelo que de logo se propõe, que aos filhos menores, em orfandade dupla, possam terem garantido por lei, uma pensão especial para uma subsistência mais digna.

Por certo, a figura jurídica do tutor (art. 1.728, I, do Código Civil), será empregada com sua nomeação, seja testamentário, legitimo ou por escolha judicial (art. 1.732, Código Civil), podendo, a tanto, nesse último caso, por idoneidade da opção, avocarem-se ao “múnus” qualificado, as denominadas “mães sociais”, em suas funções primordiais de amparo aos órfãos. Estas, nos termos da lei, são as que “dedicando-se à assistência ao menor abandonado, exerça o encargo em nível social, dentro do sistema de casas-lares” (Lei nº 7.6441/87, de 18 de dezembro).

De efeito, impende urgente atualização da reportada lei, a contemplar a figura da mãe social, excepcionalmente fora do sistema dos abrigos, no objetivo de atender os órfãos da pandemia; redimensionando-se, a tanto, essa importante atividade social. Bem de ver que a Lei nº 7.644/87 aguarda há dezesseis anos a sua alteração (PL nº 2971/2004), quando ali se estende a atividade ao “pai-social”, em garantia constitucional de igualdade de gênero.

A morte tem sua vida no direito, e nessa perspectiva, v.g., no direito de família, encontramos a viúva, o pai póstumo, o órfão e o nascituro órfão, o casado noncupativo (“in extremis”), o adotado “post mortem”, o curador do morto-vivo. Na bioética (que com ele guarda intimidade), estão questões como a ortotanásia, em termos de suspensão artificial da vida, o testamento vital como diretivas antecipadas ao processo de dignidade da morte, o paciente moribundo e a autonomia da vontade e, ainda, os prontuários médicos.

Com a pandemia, novos institutos jurídicos, por certo, serão agregados ao direito de família, a exemplo da “orfandade dupla” e da “magnitude do luto familiar” (04)

(ii) A cerimônia do cadáver — Agora, novos normativos regem a morte sob os influxos da pandemia, na administração mortuária de questões imediatas, sem mais burocracias desmedidas. A morte tem pressa diante de uma ordem jurídica atrasada para as situações dramáticas de exceção.

O principal normativo, em sua essencialidade, está na Portaria Conjunta nº 02/2020, da CNJ/Min. da Saúde, de 28 de abril, que dimensiona a cerimônia do cadáver. Ficam estabelecidos procedimentos excepcionais para os sepultamentos de corpos nas hipóteses de ausência de familiares, de pessoa não identificada, de ausência de pessoas conhecidas do obituado, e em razão de exigência de saúde pública (05).

Em todos os casos, obrigam-se os serviços funerários manter identificação precisa das sepulturas, com informação de fácil cruzamento de dados com o registro de sepultamentos (art. 4º, III); certo, ainda, que os restos mortais devem ser enterrados com etiqueta de identificação à prova d’água afixada ao cadáver e a um envoltório do cadáver, que deve seguir acompanhado de suas roupas e bens portáteis que carregava quando do óbito (art. 4º, I).

A proteção do cadáver sempre teve os seus rituais, para além de uma disciplina jurídica. Bastante lembrar:

a) A reverência da rainha Artemísia II, de Cária ao corpo do marido (352 a.C.). Ela determinou construção funerária (43m. de altura) sobre a sepultura onde inumado o corpo do Rei Mausolo, do império persa (Halicarnasso, atual Bodrum, na Turquia). Segue-se, daí, a palavra mausoléu.

b) A providência do patriarca Abraão. Ele, por morte de Sara, sua mulher, adquiriu a Efron, o hitita, o seu campo para ali sepultá-la em caverna. (Gênesis 23, 1 – 20).

Prepondera o direito à sepultura (jus sepulchri), como um direito personalíssimo potestativo do morto. Esse direito se irradia ao dever jurídico conferido aos parentes, o de poder sepultá-lo, a estes constituindo um direito-dever pelos liames da afeição. São atributos, de ordem moral, inclusive. Aliás, o sepultamento sempre foi um ato religioso. Este novel normativo vem acrescentar, em momento oportuno, mais um capítulo descritivo de direito fundamental.

Nesse contexto, a reparação civil por ofensa ao juz sepulchri pode operar-se diante de diversas infringências ao direito de sepultar: (a) em face da demora da entrega do cadáver, impondo aos familiares maior sofrimento; (b) pela demora injustificada na não identificação do cadáver e c) pela errônea identificação do corpo, com entrega de outrem aos não familiares, em caixão lacrado. O mesmo sucederá quanto ao direito de permanecer sepultado, diante da eventual perda ou extravio dos despojos mortais.

(iii) As cremações — A incineração (cremação) do cadáver foi, antes de tudo, na sua remota origem, uma prática de respeito ao cadáver. Temia-se, em tempos de guerra, que corpos fossem desenterrados pelos inimigos, como o fez o general e estadista romano Lúcio Cornélio Sula (138 a.C.-78 a.C), com o cadáver de Caio Mario.

A cremação (a substituir a inumação) foi introduzida no direito português (artigo 340, Código Civil/1932), e está referida em nossa Lei dos Registros Públicos (parágrafo 2o do art. 77, introduzido pela Lei n. 6.216, de 30.06.75), quando já então, desde muito, regulada em São Paulo (Lei n. 7.017, de 19.04.1967). A esse modo, as cinzas humanas são guardadas em urnas cinerárias, então constituindo o depósito sepulcral do corpo cremado. Sepultamento atípico, sem quebra, porém, das doutrinas religiosas e da dignidade do corpo.

A cremação tornou-se uma prática permitida pela Igreja Católica, a partir de 1963, depois que difundida em muitos países católicos, quando se pretendeu ajustá-la aos acordos de fé. E a conservação das cinzas daqueles que são cremados tem sido um dos pontos mais discutidos segundo as normas da Igreja (06).

A reportada Portaria nº 02/2020-CNJ/MS traz consigo valioso tratamento expresso sobre as cremações. Os restos mortais de pessoas não identificadas ou que, identificadas, não tiverem seus corpos reclamados por familiares, não deverão ser levados à cremação, mas sepultados, o que possibilitará a exumação para eventual posterior confirmação de identidade (art. 1º, § 7º) e, de consequência, o direito do morto ao túmulo de culto familiar.

(iv) Os testamentos simplificados – A seu turno, o direito sucessório se flexibiliza no trato de mortes anunciadas. Assim, as questões testamentárias ganham relevo jurídico, assumindo modernidade tecnológica com os testamentos simplificados e/ou virtuais.

O testamento particular de emergência ou hológrafo simplificado em tempos de pandemia, segundo Flávio Tartuce, resulta da aplicação do art. 1.789 do Código Civil, considerando-se circunstância excepcional a pandemia da Covid19 (07). Lado outro, Rodrigo Pereira da Cunha defende os “vídeos testamentos”, expressando: “Nada mais autêntico do que a voz e a imagem para alguém expressar sua real e verdadeira vontade. Em tempos de coronavírus, no mínimo, o vídeo testamento reforçaria a autenticidade do testamento hológrafo” (08).

(v)  A cerimônia do adeus. As ritualizações dos velórios e dos sepultamentos sempre cerimonializaram o adeus.

Funerais proibidos em diversas partes do mundo, quando as vítimas tiveram de ser sepultadas com roupas hospitalares, velórios sumários de até dez minutos, sepultamentos reduzidos a poucos presentes e caixões lacrados, a não se permitir a colocação ali de “objetos de valor sentimental” ou uma visão última do ente querido, rompem o paradigma cerimonial das despedidas familiares nos rituais de passagem (9). Circunstâncias que devem ser reguladas, com maior sensibilização, não obstante o colapso dos serviços funerários nas grandes cidades e os problemas de contágio. Enterros sem ritos, corpos em sacos plásticos, a perda de gestão social de elaboração do luto, o estresse pós-traumático, enfermam mais a sociedade.

Noutro giro, o Provimento 93/2020 da CNJ, de 23 de março, autorizando os sepultamentos, mediante comunicações eletrônicas dos hospitais diretas ao registro civil competente, para a lavratura imediata do registro de óbito, sem maiores formalidades, com a regularização e eventual complementação do assento e retirada da respectiva certidão, em data posterior (08), constitui normativo de valioso sentido humanitário. Um normativo desburocratizante, de respeito ao luto das famílias.

(vi) Os seguros de vida — Os contratos de seguros de pessoa, onde são excluídos da cobertura os casos de epidemias e pandemias, terão em face das apólices vigentes, por liberalidade das seguradoras do ramo vida, conforme assinalou a Superintendência de Seguros Privados (Susep), as coberturas dos eventos morte decorrente do coronavírus.

Essa postura, a nosso sentir, valoriza a função social do contrato, prevista no art. 421 do Código Civil. No mais, o seguro de vida que cobre a morte, com sua validade admitida, circunstancialmente, à atual pandemia, constitui, decerto, o solidarismo social tão necessário em meio aos infortúnios que a morte acarreta às famílias em luto.

Dir-se-á, afinal, que as coisas não estão mais postas onde deveriam estar: pais precocemente póstumos, os muitos nascituros órfãos, os que nascem sem a sobrevivência de suas mães, famílias fragmentadas por perdas imensas de seus entes queridos, estão todos, estranhamente, nos pergaminhos estatísticos de realidades trágicas.

Por certo, porém, em tudo o que nos lutos da atual pandemia o amor tutela, repete-se com o argentino Jorge Luis Borges:

“só que o que está morto é nosso, só é nosso o que perdemos.”

Anotações:

(01) KELLEHEAR, Allan. Uma história social do morrer. Trad. Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: Editora Unesp, 2016, 539 p.

(02) Alterada pela Lei nº 12.190/2010, regulamentada pelo Decreto nº 7.235/2010 garantindo indenizações por danos morais e materiais, incluindo a pensão mensal.

(03) LANNES, Marcelo. Uma nova Previdência Social Indenizatória em virtude da negativa de Direitos Fundamentais. Danos Hedônicos (01.03.2020) Web: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-previdenciario/uma-nova-previdencia-social-indenizatoria-em-virtude-da-negativa-de-direitos-fundamentais-danos-hedonicos/

(04) ALVES, Jones Figueiredo. A família pede guarda provisória da lei em proteção urgencial. Web: https://www.conjur.com.br/2020-mai-03/processo-familiara-familia-guarda-provisoria-lei-protecao-urgencial

(05) Web: https://www.conjur.com.br/dl/portaria-conjunta-28-abril-2020-cnj.pdf

(06) O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal alemão Gerhard Ludwig Muller, anunciou (10.2016) que as cinzas devem ser mantidas em um cemitério ou em um local sagrado, não sendo permitida a conservação delas no recinto do lar, a “dispersão das cinzas no ar, na terra ou na agua” ou, ainda, a sua conversão em “recordações, joias e outros objetos”. A distribuição das cinzas entre diversos parentes também é proibida pela Igreja, não se confundindo com as chamadas relíquias dos santos.

(07) TARTUCE, Flávio. O testamento particular de emergência ou hológrafo simplificado em tempos de pandemia.

Web: http://professorflaviotartuce.blogspot.com/2020/04/

(08) CUNHA, Rodrigo Pereira da. Descomplicando o Direito de Família e Sucessões em tempo de pandemia. Testamento hológrafo e o fetiche das formalidades. Web: http://www.ibdfam.org.br/artigos/1421/Descomplicando+o+Direito+de+Fam%C3%ADlia+e+Sucess%C3%B5es+em+tempo+de+pandemia.+Testamento+hol%C3%B3grafo+e+o+fetiche+das+formalidades

(09) Prorrogada a regularização do ato por até quinze dias, após a decretação do fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), estabelecida pela Portaria n. 188/GM/MS, de 04.02.2020

 é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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Quebra da justa expectativa do consumidor gera indenização

A quebra da confiança e da justa expectativa do consumidor-investidor, vítima direta de fraude ou golpe, gera o dever de indenizar. O entendimento é do juiz Guilherme Ferreira da Cruz, da 45ª Vara Cível Central de São Paulo. 

Ação envolve investimento em criptomoedas
123RF

O autor investiu em uma empresa que atua no ramo das criptomoedas. Segundo nota emitida pela Comissão de Valores Mobiliários, no entanto, a companhia não tem licença perante o órgão regulador. Além disso, houve quebra unilateral do contrato, alargando o prazo para saque, e prática de publicidade enganosa por parte da empresa. 

“Verificada a inexecução obrigacional que ultrapassa o limite do aceitável, caracteriza-se o ato ilícito diante da ofensa danosa à esfera da dignidade e aos direitos básicos do consumidor, a quem o Estado deve defender, reprimindo todos os abusos praticados no mercado, tanto que, a partir da consagração do direito constitucional à dignidade, o dano moral deve ser entendido como sua mera violação”, afirma o magistrado. 

Ainda segundo ele, “analisando-se a matéria com olhos voltados à defesa da consumidora, mais fácil será o entendimento e a compreensão acerca do dever de indenizar pela simples falha do produto ou do serviço fornecido”. 

O juiz considerou, também, que frente aos transtornos impostos ao autor, é possível aplicar a teoria do desvio produtivo do consumidor. Isso porque o reclamante tentou resolver o problema inúmeras vezes por via extrajudicial. 

Com base em tudo isso, o magistrado condenou as rés (a empresa, sua intermediadora e subsidiárias), ao pagamento de R$ 39 mil por danos extrapatrimoniais. 

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Entrevista: José Eduardo Cardozo, advogado e ex-ministro da Justiça

José Eduardo Martins Cardozo apareceu e saiu dos holofotes da cena política em dois processos de impeachment. Em ambos, suas teses acabaram derrotadas. No primeiro, como presidente da CPI da Máfia dos Fiscais na Câmara de Vereadores de São Paulo, durante a gestão do então prefeito de São Paulo Celso Pitta (1997-2000), o pupilo do ex-prefeito Paulo Maluf acabou se safando em votação no plenário, em junho de 2000.

Mas o trabalho de Cardozo rendeu a cassação de três vereadores e, na eleição daquele mesmo ano, foi o candidato a vereador mais votado na capital paulista, com quase 230 mil votos.

Em 2016, depois de dois mandatos como vereador, outros dois como deputado federal e cinco anos à frente do Ministério da Justiça (2011-2016), deixou a função de advogado-Geral da União em maio quando a então presidente Dilma Rousseff foi afastada pela Câmara dos Deputados. Passou a atuar como advogado particular da petista durante o processo de impeachment no Senado.

Nos embates com Janaina Paschoal, uma das coautoras do pedido contra Dilma, a hoje deputada estadual pelo PSL levou a melhor na batalha. E acabou sendo eleita em 2018 com a votação mais expressiva (2.060.786) na história da Assembleia Legislativa de São Paulo.

Cardozo se retirou da vida política e voltou a ser advogado e professor. Procurador do Município de São Paulo aposentado, hoje advoga e dá aulas na capital paulista (PUC) e em Brasília (UniCEUB).

Em entrevista exclusiva à ConJur, bateu no ativismo judicial, defendeu sua gestão à frente do Ministério da Justiça durante os governos Dilma  (2011-2016) e lembrou da pressão que sofreu tanto do seu partido [PT] quanto da oposição por suposta falta de “controle” sobre as ações da Polícia Federal.

Lembrou de quando foi convocado para depor no Congresso: “Das duas, uma, ou eu não controlo [a PF] ou eu instrumentalizo. Decidam. Na verdade, não era nem controlar nem instrumentalizar, é saber respeitar o Estado de Direito, só isso”.

Cardozo criticou os “engenheiros de obras prontas” nos casos da “Lei Anticorrupção” e do instituto da delação premiada, ambas sancionadas por Dilma e ferramentas essenciais nas condenações proferidas pelo então juiz Sergio Moro.

Quando você faz uma lei, é a partir da análise do momento em que é elaborada. Nunca imaginei que fosse ser utilizada da forma abusiva que foi.”

Na conversa de mais de 2 horas pelo telefone, o professor falou muito sobre impeachment, do acordo de cooperação investigativa com os Estados Unidos, de Constituição, do governo Bolsonaro e do nosso ordenamento jurídico.

“Não foi o ordenamento jurídico que falhou [nos abusos cometidos pela “lava jato”]. Foram os homens que operavam o ordenamento jurídico que falharam. Pelo Estado de Direito, os fins não justificam os meios. Pelo Estado de Direito, não poderiam ter feito coisas como foram feitas, condenações sem provas, condenações por convicções, condenações midiáticas, operações feitas para chamar atenção da opinião pública.” 

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

ConJur — Na entrevista em que anunciou que deixava o governo, o então ministro Sergio Moro [Justiça] citou vocês [governos Lula e Dilma]. Disse que a Polícia Federal não sofreu interferência direta como viria a sofrer neste atual governo. Não deixa de ser um elogio, mas também não foi temerário deixar o consórcio formado a partir da 13ª Vara Federal de Curitiba operar com tamanha liberdade?
José Eduardo Cardozo — É uma crítica que tenho ouvido muitas vezes. Lembro da época que até fui criticado por alguns companheiros. Por adversários também, quando uma investigação chegava aos deles.

Diziam que estava instrumentalizando a Polícia Federal contra eles. Fui até chamado no Congresso. Estava em curso uma investigação que falava do cartel do Metrô de São Paulo. Tinha mandado abrir uma investigação e me chamaram para dizer que eu estava intimidando o Congresso, instrumentalizando a Polícia Federal.

Falava: das duas, uma, ou eu não controlo ou eu instrumentalizo. Decidam. Na verdade, não era nem controlar nem instrumentalizar, é saber respeitar o Estado de Direito, só isso. Não se  pode interferir numa investigação, a não ser em casos de abusos, abrindo inquéritos. E isso foi feito em todos os casos por mim quanto pelo Leandro Daiello, que era o diretor-geral da Polícia Federal.

ConJur — Mas houve muito abuso, não? Fica a impressão de que Polícia Federal e Ministério Público são incontroláveis, sem hierarquia.
Cardozo — Estes órgão têm autonomia investigativa, mas não têm autonomia para cometer abusos. Várias inquéritos foram abertos quando se tinha vazamento. Aliás, vou ser bem sincero. Na “lava jato”, parte daquilo que a imprensa falava em vazamento, era Moro quem já tinha levantado o sigilo de inquérito. Então não havia ilegalidade. Agora, se alguém da força-tarefa indicava aos jornalistas páginas do processo… Mas era público.

Muitas vezes a Polícia Federal é a parte visível das operações porque faz a busca, a prisão. A Polícia Federal apenas cumpre o que um juiz determina.

O ministro da Justiça não tem como punir delegado, mesmo que ele ache que a ordem judicial é arbitrária. Você está cumprindo ordem judicial. Quem tem que fiscalizar abusos do Judiciário não é o ministro da Justiça. É o CNJ (conselho da Justiça), o CNMP (conselho do Ministério Público).

Essa má compreensão das instituições que funcionam num Estado de Direito tem uma mentalidade autoritária. Cobra agir com os amigos diferente do que se age com os adversários. E isso fazia com que nós sofrêssemos muitas críticas de descontrole.

ConJur — Em 2014 o FBI já tinha feito grandes acordos no combate à corrupção no Brasil. Em 2013 Dilma havia sancionado a chamada “Lei Anticorrupção” e também oficializado o instituto da delação premiada. Não foi o conjunto dessas ações que possibilitou quase todas as condenações de Moro?
Cardozo — Era um projeto de lei muito antigo. Nós apoiamos. Quando você faz uma lei, é a partir da análise do momento em que é elaborada. Nunca imaginei que fosse ser utilizada da forma abusiva. Na verdade, visava combater organizações criminosas. Era necessária para enfrentá-las.

Agora, prender pessoas para delatar. Nunca imaginei que fossem dar uma latitude tão grande a isso. Hoje, pela experiência, acho que essa lei tem que ser aperfeiçoada para evitar o abuso de poder. Naquela época não tínhamos essa avaliação. Você nunca prevê o futuro.

Achava que as pessoas iam utilizar essa lei dentro das finalidades que ela estabelece e não utilizando a lei como pretexto para verdadeiros atos de tortura, quando o investigador vem e diz: “ou fala o que eu quero ou continua preso”.

Então, me admiro também, muitas vezes, alguns engenheiros de obras prontas. No momento em que a lei foi aprovada, não falaram nada.

ConJur — Houve cooperação da força-tarefa de Curitiba diretamente com investigadores dos Estados Unidos sem o governo federal ser informado. O que o senhor tem a dizer?
Cardozo — A Polícia Federal tem acordos de cooperação com polícias do mundo inteiro, não só com os Estados Unidos. Evidentemente eu não sei te dizer que tipo de contatos foram utilizados pela força-tarefa, Ministério Público e Polícia Federal com o acordo de cooperação. Há muita especulação sobre isso. Sou daqueles que não falo por convicções, só com provas.

Então, sinceramente, acho que não tenho como falar de fatos que eu não sei e que pesa haver muita especulação a respeito.

ConJur — Anos depois, como o senhor avalia a operação “lava jato”. Está enfraquecida?
Cardozo — A “lava jato” tem dois lados. Uma intenção muito boa e um propósito excelente que é o combate à corrupção. A corrupção é um dos grandes malefícios do Brasil historicamente.

Mas tem um lado perverso. No Estado de Direito, os fins não justificam os meios. E em face dessa situação eu vi na operação situações extremamente abusivas. Aquelas que competiam à Polícia Federal eu mandei abrir sindicância. Todavia, vi uma série de abusos no âmbito do Poder Judiciário e no âmbito do Ministério Público.

Prisões indevidas, temporárias, cautelares, apenas com o objetivo de intimidar, de criar fatos midiáticos ou delações premiadas. Situações de perda de imparcialidade. Aliás, todas elas agora escancaradas pelas divulgações do The Intercept Brasil.

Então vejo um lado perverso, demoníaco, que prestou um grande desserviço ao país, que é exatamente essa burla da legalidade, responsável pelo desequilíbrio de poder. Acho que seria perfeitamente possível, como todos os países do mundo fazem, combater a corrupção de frente, sem comprometer a saúde das empresas. A “lava jato” acabou provocando, no Brasil, problemas e danos econômicos seríssimos.

Nós tentamos dialogar com o Ministério Público justamente para punirem as pessoas físicas que tinham feito isso. Punir o CPF, mas não punir as empresas.

ConJur — Nosso ordenamento jurídico falhou?
Cardozo — Não foi o ordenamento jurídico que falhou. Foram os homens que operavam o ordenamento jurídico que falharam. Pelo Estado de Direito, os fins não justificam os meios. Pelo Estado de Direito, não poderiam ter feito coisas como foram feitas, condenações sem provas, condenações por convicções, condenações midiáticas, operações feitas para chamar atenção da opinião pública ao invés de uma finalidade de investigação.

ConJur — Uma avaliação da gestão de Moro à frente do Ministério da Justiça.
Cardozo —  Logo que ele aceitou, para meu espanto, um ministério daquele que indiretamente ajudou a eleger, achava antiético. Dizia também o seguinte: pelo perfil que eu observava, Jair Bolsonaro, que eu conheci, porque fui deputado com ele, e Sergio Moro, que observei como juiz, a situação era incompatível sem que um se submetesse ao outro.

E neste pouco mais de um ano que esteve no Ministério da Justiça a atuação ficou muito a desejar. Se limitou ao tal do “pacote anticrime”. Se tivesse sido aprovado na versão que ele mandou para o Congresso, seria um desastre. Vi também uma postura muito acanhada como ministro durante a crise do coronavírus. Ele sumiu.

ConJur — O senhor publicou recentemente um artigo aqui na ConJur em que defende decisão liminar que impediu a posse do novo diretor-geral da Polícia Federal escolhido pelo presidente.
Cardozo — Exato.

ConJur — No mesmo texto, porém, discorda de uma também decisão monocrática do STF, em 2016, que impediu a posse do ex-presidente Lula como ministro da então presidente Dilma. Pode explicar melhor?
Cardozo — Tenho sido muito crítico do ativismo judicial. Julgar significa aplicar dentro das possibilidades daquilo que a lei e a Constituição dizem. Não pode ser aquilo que eu quero que a Carta diga. Descalibra o Estado de Direito. Feita a ressalva, digo que a teoria do controle de atos administrativos pelos textos jurídicos é uma norma antiga e pacífica. Vem do Direito francês e tem relação com a aplicação do princípio da legalidade. Se no Estado de Direito é a lei que determina o que é interesse público, o ato administrativo perfeito tem por finalidade alcançá-lo. Se um ato administrativo concretamente praticado se desvia da finalidade que a lei consagra, é um ato ilegal. E se é ilegal, o Judiciário tem o dever de anular. Normalmente, os autores brasileiros e estrangeiros afirmam que o desvio de poder não exige uma prova documental, digamos assim, absoluta, mas que ele se revela por um conjunto de indícios que somados mostram a finalidade desviada do ato. Exigir recibo de desvio de poder é a mesma coisa que exigir recibo de corrupção. Você prova por um conjunto de indícios.

No caso do presidente Bolsonaro, parece que fica claro, com o conjunto de indícios que mostram a correção da decisão do ministro Alexandre de Moraes. A renúncia de Moro isolada, por si só, não seria um conjunto de indícios.

Bolsonaro já disse que teve que pedir quase de joelhos para a Polícia Federal investigar uma coisa que poderia mostrar a inocência dos seus filhos. O presidente da República nem manda nem pede investigação para preservar quem quer que seja ou para punir quem quer que seja. Quem conduz uma investigação, pela lei, é o delegado de polícia. O ministro da Justiça e presidente da República são apenas superiores administrativos da Polícia Federal. Isso não lhes dá o direito de pedir investigação, até porque num caso desse tipo em que eu queira proteger alguém, isso obviamente tem a ver com a ausência do princípio da impessoalidade, que está previsto no artigo 37 da Constituição.

O Executivo tem liberdade para escolher quem queira nomear, mas se junto de evidências que cercam a nomeação ou qualquer ato administrativo mostrar que esta nomeação se destina a desrespeitar a lei, aí é desvio de poder.

ConJur — E o caso do ex-presidente Lula?
Cardozo — Vamos aos fatos. Primeiro, Moro divulga ilegalmente um áudio descontextualizado. Hoje fica cada vez mais claro que, se tivesse divulgado todos os áudios que envolviam aquela conversa vazada, nós saberíamos que Lula não queria ser nomeado justamente para que não dissessem que ele estava tentando se livrar da prisão. Mas naquele momento não eram conhecidas as descontextualizações do áudio.

Esse áudio é a razão de ser da decisão do Supremo, uma prova ilícita que a Corte [decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes] não sabia que era.

Mas mesmo que não fosse ilícita, a presidente, claramente, por meio de seus ministros, em uma nota oficial, disse que não confirmou aquele diálogo nesse sentido. Explicou que o sentido era outro. Lula não tinha aceitado naquele momento. Só poderia ir à posse já marcada de dois ministros numa sexta-feira porque acompanharia dona Marisa ao hospital.

Então o que eu tenho juridicamente é uma prova ilegal, que pedia uma interpretação, não confirmada pela presidente. O Supremo então tinha que ter esse contexto. A teoria do desvio de poder é a mesma a qualquer ato administrativo, só que no caso de Lula e Dilma não havia a certeza.

ConJur — Sobre impeachment. Se Eduardo Cunha não tivesse poder regimental de timing do processo, o desfecho poderia ter sido outro?
Cardozo — Não tenho a menor dúvida que sim. A bola propulsora do impeachment foi Eduardo Cunha, que contou com o apoio do grupo comandado por Aécio Neves.

Esse grupo não concordava com o resultado das eleições de 2014. E desde o primeiro dia tentou articular razões para o impeachment. Recontagem, que as máquinas de votação não funcionavam. Moveram tudo o que podiam. Aí, quando nada deu certo, foram para o impeachment. Contavam com Cunha porque o o presidente da Câmara queria controlar o governo para parar a “lava jato”. Ele não escondia isso.

E a gota d’água foi quando Dilma não comandou o PT, e nem deveria, para que o partido votasse contra o pedido de processo de cassação dele.

ConJur — O senhor não acha que o presidente da Câmara acumula muito poder?
Cardozo — Acho que a legislação do impeachment, como um todo, é muito antiga. Consegue ser mais velha do que eu, de 1950 [Cardozo nasceu em 1959].

Houve até um pedido do PCdoB, que entrou com uma ação no Supremo para criar regras depois do impeachment já aberto. Houve uma decisão do ministro [Luís Roberto] Barroso, e o STF acatou as regras como base do julgamento do presidente Fernando Collor. É necessária uma nova lei que rediscipline o impeachment. Precisa ser ajustada à Constituição de 1988, ao espírito democrático dela, inclusive dessa questão da abertura do processo de impeachment.

ConJur — No impeachment de Dilma, muitos defenderam que os crimes de responsabilidade tenham natureza penal. Outros defendem que são de natureza política.
Cardozo — O  fato dele ser chamado de crime não o transforma num processo penal, até porque um presidente pode ser condenado penalmente ou não condenado penalmente e ter ou não ter um processo de impeachment.

São responsabilizações diferentes, o que não afasta a necessidade de ter pressupostos jurídicos. A diferença entre o presidencialismo e o parlamentarismo, uma delas, está justamente no fato que quando um presidente perde a maioria parlamentar, ele cai. No presidencialismo, não. Então isso mostra que não basta perder a maioria parlamentar, é necessário juridicamente ter pressupostos e um ato ilícito grave sobre o qual se abre defesa para que se perca o mandato.

Ora, portanto não é um processo só político, em que basta a conveniência. É necessário demonstrar a ocorrência de um fato que justifique o crime de responsabilidade.

ConJur — O senhor acha que a presidente Dilma não cometeu crime. E o presidente Bolsonaro?
Cardozo — Não tenho a menor dúvida. Tinha muita dúvida antes, nos últimos meses. Porque os primeiros atos dele foram irracionais, destemperados, falava-se muita bobagem. Falar bobagem e mostrar situações de descompasso com a racionalidade não são crimes de responsabilidade.

A partir do momento em que passa a participar da convocação de atos antidemocráticos. Em que tenta utilizar o seu poder para interferir nas investigações, isso a meu ver configura crime de responsabilidade.

Agora, há um juiz de conveniência e oportunidade que compete ao Congresso. O presidente pode partir para o ilícito e entender que não é caso de impeachment porque seria pior para a sociedade tirá-lo do que ele ficar. Então, por isso que é um processo jurídico-político.

ConJur — Alguma sugestão de como deveria ser redesenhado o processo de impeachment no presidencialismo brasileiro?
Cardozo — Tenho duas sugestões. Uma micro e outra macro. A micro é uma nova lei, uma perspectiva que seja mais segura, para garantir  o contraditório.

Numa perspectiva maior, daí eu falo das minhas convicções, que não são nem as do meu partido. Sou parlamentarista, acho o presidencialismo um sistema que traz instabilidade política e insegurança. Então, pessoalmente, se pudesse, proporia para o país o semipresidencialismo, que acho que se ajustaria muito bem à realidade histórica e cultural brasileira, nos moldes que existe em Portugal e na França. E isso casa com o voto distrital misto, que é o sistema alemão. Tudo isso qualificaria o sistema perfeito? Não, porque não existem sistemas perfeitos nem democracia perfeita, embora seja o melhor dos sistemas.

ConJur — Acha que o inquérito autorizado pelo Supremo contra Bolsonaro pode canalizar a decisão para o Judiciário em vez de ficar no Congresso?
Cardozo — Pode. A Procuradoria-Geral da República teria que denunciá-lo. Aí a autorização para abertura do processo pode implicar no seu afastamento. Claro, até o julgamento do processo. Então, talvez, se isso vier a acontecer, seria a maneira mais rápida, dentro da Constituição, desde que provado que ele praticou o crime. Ele pode ser afastado.

ConJur — Sobre Constituição. O senhor acha que ruiu esse modelo de 1988?
Cardozo – Não. Sou um defensor da Constituição de 1988, embora ache que existem algumas questões que nós devemos discutir para aperfeiçoá-la. O grande mérito dela é que firmou um Estado Democrático de Direito e assegurou direitos fundamentais e instituições como nunca antes nós tivemos na nossa história.

Evidentemente que há aspectos, por exemplo, em que acho que não andou bem. A reforma agrária, por exemplo. A Constituição de 1946 é um pouco mais avançada do que a nossa atual. Mas, de modo geral, é uma Constituição avançadíssima dentro da nossa história.

ConJur — Um dos argumentos utilizados para o impeachment de Dilma era a questão orçamentária, equilíbrio fiscal, que está dentro desse desenho da Constituição.
Cardozo — Sou favorável ao equilíbrio fiscal. Acho que nenhum governo pode ser irresponsável com as suas contas. O que eu sou contra é o engessamento que foi feito não pela nossa Constituição, mas por aquela emenda ao longo do governo Temer [2016-2018], que engessa teto de gastos. Aí é um pecado introduzido pelo Michel Temer.

ConJur — A emenda do teto de gastos e a reforma trabalhista redesenharam a Constituição?
Cardozo — Acho que trouxe grandes marcas à Constituição. Ou seja, o mal não está na estrutura da Constituição de 1988, está em certas questões que foram nela introduzidas, a meu ver incompatíveis a seu próprio espírito. O Congresso decidiu. A reforma trabalhista foi muito ruim. O teto de gastos foi péssimo. Não é questão para ser tratada em Constituição. A Carta Magna tem que colocar os grandes princípios. Ali se tentou agradar o mercado e realmente se esqueceu que o Estado Democrático de Direito do Brasil é um Estado social.

ConJur — Na campanha de 2018 Fernando Haddad chegou a defender uma nova Constituição. O que o senhor pensa a respeito?
Cardozo — Não concordo. Acho que o redesenho constitucional do Brasil hoje vai sair pior a emenda que o soneto. Uma Constituinte hoje, no clima que nós vivemos no Brasil de intolerância, de ódio disseminado, onde o símbolo da arminha prevalece ao símbolo do coração. Diria que seria uma Constituição do ódio, não da pacificação e não da estruturação de um Estado democrático, como faz a de 1988.

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Opinião: O cumprimento da pena antes do trânsito em julgado

Por um lado, a presunção da inocência é uma garantia individual que alberga o suposto autor de um ilícito penal. Só  é permitido considerá-lo culpado depois do trânsito julgado. Por outro lado, as vultosas quantidades de recursos postergam o fim do processo e em razão disso parece não promover efetividade  aplicação da lei penal.

Essa problemática foi recentemente enfrentada pelo supremo. Todavia, parece também estar distante do consenso. Analisar os posicionamentos antagônicos dos senhores ministros mostra-se imperioso para uma reflexão sobre a temática. Desta forma, serão trazidos os principais argumentos dos senhores Ministros do supremo Tribunal Federal na ocasião do julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44.

O Supremo tribunal Federal posicionou-se favorável à execução provisória da pena[2]. Esse entendimento vem gerando grande controvérsia jurisprudencial. Em que pese não tenha força vinculante a decisão incentivou os tribunais de todo o país a passarem a adotar idêntico posicionamento: mitigar o princípio constitucional da presunção de inocência e ignorar o disposto no artigo 283 do CPP.

A pena de prisão, dada a sua severidade, deve ser utilizada como último recurso para a punição do condenado. Todavia, extraordinariamente a prisão precautelar e a cautelar podem se mostrar necessárias desde que presentes certos pressupostos tais como: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, nos termos do artigo 312 do código de processo penal.

Mesmos aqueles que são condenados o encarceramento deve a última medida. Isto é, como bem preconiza a teoria do “Direito Penal Mínimo”, também denominada de Teoria da Intervenção Mínima, as penas alternativas ou restritivas de direito mostram-se mais eficazes em crimes tidos como de menor ofensividade. Desta forma, o cárcere somente deve ser destinado aos indivíduos de alta periculosidade e que representam uma ameaça à paz pública e à integridade física dos cidadãos.

Valiosa pesquisa empírica[3] nos autoriza a reconhecer que a Justiça, a Polícia Judiciária e o próprio Ministério Público são instituições que respondem amplamente pelo atraso do procedimento criminal e com o prolongamento por demais as prisões pré-processuais.

Outro ponto importante a ser destacado é a fragilidade das fundamentações que buscam sustentar a necessidade das prisões provisórias. Estudos mais detalhados demostram que  A grande maioria das impetrações de HC atacam a deficiência ou falta da fundamentação da prisão cautelar[4]. Desta forma, a mera referência ao art. 312 do CPP. Não tem o condão de justificar uma medida tão radical como a prisão pré processual.

Pesquisas indicam também que 41% da população carcerária brasileira é compostas por presos provisórios.[5]. Esses suportam traumas irreparáveis. O fato é que esses números podem aumentar mais ainda em razão do recente entendimento do STF que autoriza a antecipação da execução da pena antes do trânsito em julgado.

Outras pesquisas no Rio de Janeiro[6] apontam a triste  trajetória dos presos até o final do processo. Ela relata como a prisão provisória é utilizada não apenas de forma abusiva, mas também ilegal. Para mais de 50% dos casos os juízes mantiveram os réus presos durante o processo e no final essas pessoas foram colocadas em liberdade, ou foram absolvidas.

Na prática, prolongar a prisão provisória por um período demasiado é na melhor das hipóteses uma forma disfarçada de antecipar a execução da pena se o réu chegar a ser condenado ou pior ainda, uma medida irreparável de se promover a injustiça se no final do processo o réu restar absolvido.

Desta forma, é preciso promover o diálogo sobre a possibilidade de se promover a execução antecipada da pena, mas também sobre os efeitos deletérios de uma prisão provisória excessivamente prolongada.

Todavia, a partir desse momento passaremos a promover considerações apenas acerca dos votos dos ministros do supremo que entendem ser descabida a antecipação da execução da pena antes do trânsito em julgado. Assim é o entendimentos dos seguintes ministros:

Ministra Rosa Weber, Ministro Dias Toffoli , Ministro Lewandowski, Ministro Celso de Mello.[7]

Rosa Weber, não vê como não promover uma interpretação conforme a constituição e consagrar o princípio da não culpabilidade ou da presunção de inocência. Desta forma, não há como se promover a execução antecipada da pena. Neste sentido, André Estefam [8]  lembra que o ministro Celso de Melo esclareceu que : “Os princípios democráticos que informam o sistema jurídico nacional repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita”

Dias Toffoli por sua vez  entende que a Constituição Federal exige que haja a certeza da culpa para fim de aplicação da pena, e não só sua probabilidade. Segundo Fernando Capez[9] todos se presumem inocentes, cabe ao Estado provar sua culpa primeir e, só então, exercer seu jus puniendi.

Ministro Lewandowski também faz o apelo à norma constitucional e assevera  : “Não vejo como fazer uma interpretação contrária a esse dispositivo tão taxativo” o artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal é muito claro quando estabelece que a presunção de inocência permanece até trânsito em julgado.

Ministro Celso de Mello esclarece que  a presunção de inocência é conquista histórica dos cidadãos na luta contra a opressão do Estado. Trata-se de valor fundamental que tem estreita relação com o princípio da dignidade humana.

Quando ocorre um crime nasce para o Estado o direito de punir. O Direito Penal tem a pena como uma resposta proporcional a conduta delituosa do agente. As Teorias da pena, que são opiniões científicas sobre a pena, buscam justificá-las.

A pena se justifica, ora pela retribuição, ora pela prevenção: um estímulo negativo para que as pessoas se sintam desestimuladas a delinquir. Nesse sentido, a pena tem como uma das finalidades o firme propósitos de lembrar a lei[10]. É deixar claro que existe um regramento. Assim a pena seria uma garantia pública[11] uma maneira de garantir a lei. O direito penal faz previsão de condutas proibitivas[12] e a pena serve para trazer uma forma de proteção para a vítima.

 É inegável que a possibilidade de interposição de uma infinidade de recursos pode levar a uma sensação de impunidade. O fato é que o crime ocorreu, todavia o processo se estende quase que ad eterno e aquele que dispõe de recursos não apenas como um meio de defesa e inconformismo, mas um instrumento meramente protelatório.  

O Ministro Edson Fachin, o Ministro Roberto Barroso, o Ministro Teori Zavascki, o Ministro Luiz Fux, o Ministro Gilmar Mendes e a Ministra Cármen Lúcia. Firmam o entendimento que é possível o cumprimento antecipado da pena antes do trânsito em julgado.

O Ministro Edson Fachin entende que o início da execução criminal é coerente com a Constituição Federal quando houver condenação confirmada em segundo grau, salvo quando for conferido efeito suspensivo a eventual recurso a cortes superiores.

O Ministro Roberto Barroso entende como legítima a execução provisória da pena, entretanto após a decisão do segundo grau. Esclarece: “A Constituição Federal abriga valores contrapostos, que entram em tensão, como o direito à liberdade e a pretensão punitiva do estado”. Para ele a presunção de inocência é princípio, e não regra, e pode, nessa condição, ser ponderada com outros princípios.

O Ministro Teori Zavasck entende por sua vez que  o princípio da presunção da inocência não impede o cumprimento da pena. Ele assevera: “a dignidade defensiva dos acusados deve ser calibrada, em termos de processo, a partir das expectativas mínimas de justiça depositadas no sistema criminal do país” Ele também destaca que

se de um lado a presunção da inocência e as demais garantias individuais,  do outro há a necessidade de não se esvaziar o sentido público de justiça. Asseverou ainda:“O processo penal deve ser minimamente capaz de garantir a sua finalidade última de pacificação social”

O Ministro Luiz Fux entende que há necessidade de se dar efetividade à Justiça: “Estamos tão preocupados com o direito fundamental do acusado que nos esquecemos do direito fundamental da sociedade, que tem a prerrogativa de ver aplicada sua ordem penal”

O Ministro Gilmar Mendes  entende que a execução da pena com decisão de segundo grau não deve ser considerada como violadora do princípio da presunção de inocência. Ele esclarece que:“Há diferença entre investigado, denunciado, condenado e condenado em segundo grau”. Assim, o condenado em segundo grau pode cumprir a pena antecipadamente.

A Ministra Cármen Lúcia por sua banda entende que a prisão do condenado não tem aparência de arbítrio. Ela esclarece que “A comunidade quer uma resposta, e quer obtê-la com uma duração razoável do processo” Para ela de um lado há a presunção de inocência, mas do outro há a necessidade de preservação do sistema e de sua confiabilidade..

Quando o presente artigo foi concluído, por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal entendia que o artigo 283 do Código de Processo Penal não impederia o início da execução da pena após condenação em segunda instância.

Com a inovação interpretativa a prisão pena que por definição seria aquela em que o condenado deve suportar depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória deveria ter um novo conceito.

Na nossa singela opinião lamentável tal retrocesso. Em um Estado democrático os direitos e garantias constitucionais não gozam de imutabilidade.

Todavia, no momento da revisão do presente texto constatamos que o Supremo Tribunal Federal, por intermédio da ADC 54 voltou atrás e mudou o entendimento acerca do que configuraria uma presunção de inocência mitigada.

Concluímos que a mudança de entendimento foi uma atitude institucional acertada, posto que seja na literalidade do texto constitucional, seja na interpretação devem caminhar para um alargamento de proteção e não para uma restrição.

Por derradeiro e oportuno, é importante consignar que a prisão em flagrante delito, a prisão temporária e a prisão preventiva continuam sendo espécies de prisão cautelar ou precautelar. Nada mudaram acerca das suas necessidades e conveniências.

 


2] Habeas Corpus (HC) 126292

[3] SANTOS, Rogério Dutra (coord.). Excesso de Prisão Provisória no Brasil: um estudo empírico sobre a duração da prisão nos crimes de furto, roubo e tráfico (Bahia e Santa Catarina, 2008-2012). Série Pensando o Direito nº 54. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos, IPEA, 2015, p. 57 (Capítulo 2).

[6] INSTITUTO SOU DA PAZ. Monitorando a aplicação da Lei das Cautelares e o uso da prisão provisória nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Instituto Sou da Paz, 2014 Disponível em:<http://www.soudapaz.org/upload/pdf/pesquisa_lei_das_cautelares_comparativo_sp_e_rj.pdf>.

[8] Estefam, André

Direito penal esquematizado®: parte geral / André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves; coordenador Pedro Lenza. 5. ed. São Paulo:

Saraiva, 2016. (Coleção esquematizado®)

[10] GROS, Frédéric. Os quatro centros de sentido da pena. Capítulo 1. Punir é recordar a lei. In: GARAPON, Antoine. GROS, Frédéric. PECH, Thierry. Punir em democracia. E a justiça será. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.pág. 33

 é servidor público, bacharel em Direito e graduado em Gestão e Educação para o Trânsito, pós-graduado em Ciências do Trânsito.

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Opinião: A ilegalidade da cobrança do adicional ao RAT

A Contribuição para o Grau de Incidência de Incapacidade Laborativa decorrente dos Riscos Ambientais do Trabalho (GILRAT) é contribuição a cargo do empregador pessoa jurídica, exigido em face do risco advindo das atividades desempenhadas pelas empresas, cuja base de cálculo é a totalidade das remunerações pagas aos segurados empregados e trabalhadores avulsos, destinada ao financiamento da aposentadoria especial[1] e dos benefícios concedidos em decorrência dos riscos ambientais de trabalho[2], nos termos do art. 22, inciso II, da Lei nº 8.212/1991.

A contribuição ao RAT está vinculada ao custeio do direito dos trabalhadores ao seguro contra acidente de trabalho, nos termos do inciso XXVIII do artigo 7º[3] e do inciso I do artigo 201, ambos da Constituição Federal.

Por ser uma contribuição social com destinação específica, está submetida às regras do Sistema Constitucional Tributário e às normas gerais do Código Tributário Nacional e possuí as alíquotas básicas de 1%, 2% e 3%, fixadas segundo o grau de risco (grave, médio ou leve) vinculado à subclasse do CNAE correspondente à atividade preponderante de cada estabelecimento, considerada aquela que possui o maior número de empregados e trabalhadores avulsos vinculados. 

Além das alíquotas básicas do RAT, o §6º do art. 57 da Lei nº 8.213/91 institui também a obrigação ao recolhimento da Contribuição com base no acréscimo das alíquotas em 6%, 9%, 12%, nos casos em que o trabalhador estiver sujeito a condições de trabalho que lhe outorgue o direito à aposentadoria especial de 15, 20 ou 25 anos de contribuição.

A partir de abril de 1994, a legislação previdenciária passou a exigir a comprovação do tempo trabalhado cumulada com a exposição do segurado à agentes nocivos, exigindo-se a apresentação de formulários emitidos pelo empregador, exceto para ruído, que demandava além do referido formulário à apresentação de laudo técnico (LTCAT).

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE 664.335 RG, em dezembro de 2014, analisou discussão a respeito da negativa de concessão do benefício, sob o argumento de que a empresa fornecia ao segurado EPI inibidor de ruído, fixando duas importantes teses: (i) o direito à aposentadoria especial pressupõe efetiva exposição do trabalhador a agente nocivo, de modo que se o EPI for capaz de neutralizá-lo, não haverá direito ao benefício; (ii) na hipótese de exposição do trabalhador a ruído acima dos limites legais de tolerância, a declaração do empregador da eficácia do EPI não descaracteriza o tempo de serviço especial.

Contudo, existem questões que colocam em xeque a constitucionalidade da cobrança da alíquota adicional da Contribuição ao RAT e que merecem ser objeto de avaliação por parte da doutrina e, principalmente, do Poder Judiciário.

Primeiramente, deve-se avaliar se a aposentadoria especial é um benefício previdenciário cujo custeio valide a cobrança de uma alíquota adicional à Contribuição ao RAT.

A contribuição ao RAT, como já consignado, tem como função o custeio dos benefícios previdenciários vinculados à acidentes ou enfermidade decorrentes do exercício da atividade laboral. Os benefícios vinculados a eventos acidentários laborais são: a) Pensão por morte acidentária (código B93 – art. 74 da Lei nº 8.213/91); b) Aposentadoria por invalidez acidentária (código B92 – art. 42 da Lei nº 8.213/91); c) Auxílio-acidente (código B94 – art. 86 da Lei nº 8.213/91); d) Auxílio-doença acidentário (código B91 – art. 59 da Lei nº 8.213/91).

Entretanto, a aposentadoria especial é um benefício previdenciário que, apesar de vinculado à exposição de agentes nocivos, não é decorrente de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho, mas concedida em face da exposição do segurado a agente nocivo, no ambiente de trabalho, por um determinado prazo.

Não se vislumbra pertinência entre o custeio da aposentadoria especial e a Contribuição ao RAT, inclusive antes de 1998 não havia a cobrança da alíquota adicional. O direito à aposentadoria especial decorre da previsão expressa do texto constitucional, sendo que a Carta Magna não trouxe a previsão de seu financiamento por uma alíquota adicional à antiga Contribuição ao Seguro do Acidente do Trabalho (SAT).

Tal contexto reforça o entendimento de que o custeio da aposentadoria especial deve estar vinculado ao recolhimento da contribuição patronal de 20% do total da remuneração e da contribuição do segurado, nos termos dos artigos 22 e 20 da Lei nº 8.212/91.

Inexistindo pertinência entre a Contribuição ao RAT e o financiamento da aposentadoria especial, a alíquota adicional tem, na realidade, a natureza de uma contribuição específica para o financiamento da aposentadoria especial.

Essa “nova” contribuição, contudo, se adequa ao disposto no Texto Constitucional, por não decorrer de Lei Complementar e, principalmente, por ter o mesmo fato gerador e base de cálculo da Contribuição ao RAT, violando o disposto no §4º do artigo 195, conjugado com o inciso I do artigo 154 da Constituição.

Além disso, deve-se avaliar se é proporcional exigir do empregador o recolhimento dessa alíquota adicional.

As empresas recolhem a Contribuição ao RAT à alíquota de 1%, 2% ou 3%, moduladas pelo FAP (que pode majorar a alíquota básica em até 100%), independentemente da existência de evento acidentário.

Considerando o recolhimento por empresa, é possível deduzir que, na maioria dos casos, o sistema de custeio acidentário seja superavitário, com o total de recolhimento do RAT sendo superior ao custeio acidentário ocorrido no ambiente laboral do contribuinte.

Como as empresas recolhem a Contribuição ao RAT sobre a remuneração de todos os seus empregados, sendo que a maioria, muito provavelmente, nunca receberá provento acidentário. Haverá, nesse contexto, um superávit de arrecadação, caso seja considerado o conjunto dos empregados da mesma empresa e o total de benefícios acidentários pagos a estes segurados.

Por fim, existe uma nova situação, trazida pela Reforma da Previdência que torna ainda mais questionável a validade da cobrança do adicional ao RAT.

A Emenda Constitucional nº 103/19, que introduziu a Reforma da Previdência Social, alterou o sistema de aposentadoria especial, principalmente para aqueles que entrarem no sistema previdenciário após a sua entrada em vigor, ao vincular o seu gozo a requisito de idade mínima do segurado. Antes da Reforma da Previdência, o direito à aposentadoria especial estava vinculado, exclusivamente, ao tempo de exposição ao agente nocivo, sendo: (i) 25 anos de atividade especial de risco baixo; (ii) 20 anos de atividade especial de risco médio; (iii) 15 anos de atividade especial de risco alto.

Com a Reforma, essa sistemática foi alterada, com a instituição de duas possibilidades.

Primeiro, uma regra para quem já trabalhava antes da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 103/19, mas que não tinha reunido o tempo de atividade especial para se aposentar.

O cidadão que se encontrar nesta situação terá que comprovar que cumpre o requisito da pontuação referente à soma da idade com o tempo de atividade especial e tempo de contribuição, incluindo meses e dias, nos seguintes termos: (i) 66 pontos + 15 anos de atividade especial, para as atividades de alto risco; (ii) 76 pontos + 20 anos de atividade especial, para as atividades de médio risco; (iii) 86 pontos + 25 anos de atividade especial, para as atividades de baixo risco.

Por exemplo, um segurando que em 2019 tinha 40 anos de idade e que iria se aposentar em 2022 com uma aposentadoria especial de risco abaixo (considerando que continuaria na mesma atividade durante esse período), só atingirá os requisitos da aposentadoria especial em 2031.

Já para os segurados que ingressarem no sistema previdenciário após a Reforma é necessário cumprir o requisito da idade mínima, além do tempo de atividade especial. Para se aposentar, o segurado precisará ter: (i) 55 anos de idade + 15 anos de atividade especial, para as atividades de alto risco; (ii) 58 anos de idade + 20 anos de atividade especial, para as atividades de médio risco; (iii) 60 anos de idade + 25 anos de atividade especial, para as atividades de baixo risco.

A forma de fixação do valor do provento de aposentadoria especial também foi alterada. Na sistemática anterior, a aposentadoria especial era integral e equivalia a 100% da média salarial do trabalhador. A partir de novembro de 2019, com a vigência da Reforma, o benefício será de 60% da média para quem se aposenta com 15 anos de serviço insalubre, para mulheres e mineiros de subsolo, ou 20 anos, para homens. Cada ano a mais de contribuição acrescenta 2% da média salarial ao valor final da aposentadoria.

Com a vinculação do direito à aposentadoria especial também ao requisito da idade mínima, ocorreu uma desvirtuação do binômio custeio-benefício, o que afeta a própria justificativa jurídica do recolhimento do adicional do RAT pelo empregador, uma vez que não é mais o tempo de exposição do segurado ao agente nocivo que, exclusivamente, gerará o direito à aposentadoria especial, e o consequente custo ao sistema previdenciário.

Vejamos o seguinte exemplo: um trabalhador começou, em abril de 2020, com 20 anos de idade, a trabalhar numa atividade que lhe expõe ao agente nocivo ruído. Antes da Reforma, como se trata de um agente classificado como de risco baixo, após 25 anos de trabalho com a exposição, não tendo laborado em outra atividade, esse segurado poderia se aposentar. Pela nova sistemática, esse trabalhador terá que laborar 40 anos, até chegar aos 60 anos de idade, para que possa se aposentar, mesmo com a exposição ao agente nocivo. Caso ele trabalhe todo esse período na mesma função, o seu empregador ou empregadores, terão recolhido o adicional ao RAT, sob a alíquota de 6%, por 40 anos. 

Outro exemplo: um trabalhador que completar, em 2021, 25 anos de trabalho exposto ao agente ruído, não tendo trabalhado em outra atividade, e tiver 45 anos de idade, terá que trabalhar até 2029, quando completará 53 anos de idade e 33 anos de contribuição, perfazendo os 86 pontos exigidos. Neste caso, a contribuição adicional ao RAT terá sido recolhida por 33 anos.

Tais exemplos demonstram que a nova sistemática tornou inaplicável a norma de incidência do adicional ao RAT, uma vez que esta dispõe que: “O benefício previsto neste artigo será financiado com os recursos provenientes da contribuição de que trata o inciso II do art. 22 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, cujas alíquotas serão acrescidas de doze, nove ou seis pontos percentuais, conforme a atividade exercida pelo segurado a serviço da empresa permita a concessão de aposentadoria especial após quinze, vinte  ou vinte e cinco  anos de contribuição, respectivamente.

Com a Reforma, não existe mais, para a grande maioria dos trabalhadores, a possibilidade de ter o gozo da aposentadoria especial após 15, 20 ou 25 anos de contribuição, devido a inclusão do requisito da idade mínima.

O pressuposto da norma e justificação para o pagamento do adicional era que o segurado se aposentaria após um período menor de contribuição (25, 20 ou 15 anos), situação essa que não é mais viável, para a grande maioria dos casos. Isso porque somente no caso de os trabalhadores que começarem a laborar em atividade com exposição a agente nocivo, em idade mais avançada, será possível a aposentadoria após o tempo de exposição previsto na legislação.

Não é juridicamente justificado que se imponha ao empregador um ônus adicional, tendo em vista que este já recolhe as contribuições patronal e do RAT, que já cumprem o dever de solidariedade social, ao mesmo tempo que o legislador desnatura a figura da aposentadoria especial, desvinculando-a do seu fato gerador lógico, que é o tempo de trabalho do segurado com exposição a agente nocivo.

Impõe-se que a doutrina e a jurisprudência se debrucem sobre a legalidade da cobrança do adicional da Contribuição RAT, tendo em vista, principalmente, as alterações promovidas pela Reforma da Previdência. 

[3] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) XXVIII – seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa;

 é sócio do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogado, doutorando em Direito Público pela PUC/MG e mestre em Direito Tributário pela UFMG. Professor em cursos de pós-graduação do IBMEC, Faculdades Milton Campos e PUC/MG. Autor dos livros “O Dever Fundamental de Recolher Tributos no Estado Democrático de Direito” e “Estudos de Custeio Previdenciário”.

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Opinião: Adiamento da LGPD por MP traz insegurança jurídica

Em um país onde a atuação de um poder sobre as competências constitucionais do outro se torna recorrente, a Medida Provisória n°. 959, de 29 de abril de 2020, de forma inesperada, adiou a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei n°. 13.709/2018) para 03 de maio de 2021.

Ora, como o tema já vinha sendo devidamente tratado pelo Projeto de Lei n°. 1.179/2020 em trâmite na Câmara dos Deputados e já aprovado pelo Senado Federal, era de se esperar que referida norma seguisse seu curso normal. Ou seja, fosse apreciada pela Câmara dos Deputados e, uma vez aprovada, encaminhada para a sanção ou veto presidencial.

Mas, fomos todos surpreendidos com a edição do ato do poder executivo que, sem considerar a expectativa gerada e já incorporada pelo mercado, passou uma borracha no processo legislativo.

Afora a questão procedimental, nos termos do artigo 62 da Constituição Federal, as medidas provisórias se justificam para o tratamento de matérias de relevância e urgência. Não nos parece que um tema que verse sobre a data de vigência de uma lei, em estágio avançado de discussão no Congresso Nacional, estando aprovado pelo Senado Federal, apresente a relevância e a urgência constitucionalmente exigidas para uma medida provisória.  

É bem verdade, que a MP 959 trata de outro tema (operacionalização do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego), que, diante da crise sanitária, apresenta-se como relevante e urgente, mas não a postergação da entrada em vigor da LGPD.

Além disso, ressalta-se a insegurança jurídica provocada por tal ato. Uma medida provisória tem vigência de 60 dias, podendo ser prorrogada uma vez por igual período. Tem, portanto, validade de até 120 dias. Vencido esse prazo, sem aprovação pelo Congresso Nacional, ela perde eficácia.

Pois bem, no último dia 20 de abril de 2020, enfrentamos a edição da Medida Provisória n. 955/2020, cujo único objetivo foi revogar a Medida Provisória n. 905/2019, que tratava do programa verde e amarelo para relações de trabalho. A revogação se deu no último dia de sua vigência, uma vez que era evidente que não seria aprovada em tempo hábil.

Nesse contexto, não há qualquer garantia institucional de que a MP n. 959/2020 será aprovada no tempo legalmente previsto. E, se não o for?

Se não o for, não se descarta a hipótese de a LGPD entrar em vigor ainda em agosto de 2020.

E, com que cenário o mercado deve atuar?  

Diante de uma situação de incerteza, o ideal é que as empresas, para além das discussões normativas, procedimentais e políticas, adotem práticas adequadas de proteção de dados pessoais como parte de sua estratégia de negócios. Desta forma, mitigam não só os riscos de não conformidade, mas também a responsabilidade em situações vazamento ou tratamento indevido das informações. Lembrando que, já são representativas as decisões judiciais que protegem a pessoa titular dos dados.

Acrescentando que, empresas com operações no exterior, seja por suas matrizes, subsidiárias ou mesmo na condição de fornecedoras ou clientes em cadeias globais, podem estar sujeitas as regras de proteção de dados de outros países, como a GDPR (Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia), e, portanto, devem ter um nível de proteção adequado como condição de manutenção desses negócios.

Enfim, que a proteção de dados não fique à mercê da determinação de uma data, mas sim que as empresas reconheçam sua relevância na condução de suas atividades e, então, consolidem-na como parte da cultura empresarial de um país que quer crescer de forma robusta, responsável e sustentável!

 é sócia da Advocacia Correa de Castro e Associados (ACC), mestre em International Business Transactions and Comparative Law pela University of San Francisco (EUA) e pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atua há mais de 20 anos na área de estruturação de negócios, em projetos de Investimento Direto Estrangeiro e fomento à inovação.