Categorias
Notícias

Instituto de Direito Empresarial cria comissão de concorrencial

O Instituto Brasileiro de Direito Empresarial acaba de criar a Comissão de Direito Concorrencial, sob o comando do advogado Ademir Antonio Pereira Junior, sócio da Advocacia Del Chiaro, Fabio Nogueira Magalhães, diretor jurídico da Kimberly-Clark, e Suzana Fagundes Ribeiro de Oliveira, diretora jurídica da Localiza.

A comissão tem como objetivo contribuir para ampliação do conhecimento sobre Direito Concorrencial e aperfeiçoamento de práticas e procedimentos em temas que se sobrepõem com outras áreas do Direito Empresarial.

Categorias
Notícias

Jornalista Arimateia Azevedo é preso em Teresina

Crime de extorsão

Jornalista Arimateia Azevedo volta a ser preso em Teresina

O jornalista Arimateia Azevedo, proprietário do Portal AZ, foi preso em casa, no bairro de Todos os Santos, zona sudeste de Teresina, nas primeiras horas da manhã desta sexta-feira (12/6). O Grupo de Repressão ao Crime Organizado (Greco) do Piauí cumpriu mandado de prisão preventiva por crime de extorsão qualificada, expedido pela Justiça do estado.

Segundo o portal GP1,  o jornalista estaria extorquindo um médico de Teresina, publicando notícias contra o profissional que, depois de várias tentativas, realizou o pagamento de R$ 20 mil em dinheiro a um homem de confiança de Arimateia, identificado como Francisco de Assis Barreto, professor da Uespi (Universidade Estadual do Piauí), que também acabou sendo preso por força de um mandado de prisão preventiva

O crime teria ocorrido em meados do último mês de abril e, desde então, a Polícia Civil passou a investigar o caso e conseguiu reunir elementos que corroboraram com a denúncia apresentada pela vítima. Em razão disso, ainda segundo o GP1, o delegado Tales Gomes, responsável pelo inquérito, solicitou os mandados.

Outras vezes

Não é a primeira vez que Arimateia é preso sob acusação de extorsão. Em 2005, a ConJur publicou que ele também foi preso acusado coagir uma advogada, que representava pessoas que o processam. Dias depois acabou sendo solto por decisão do Superior Tribunal de Justiça.

Topo da página

Revista Consultor Jurídico, 12 de junho de 2020, 10h24

Categorias
Notícias

Agronegócio está na mira da fiscalização tributária

É fato incontroverso que o setor do agronegócio tem sido de fundamental importância para o desenvolvimento econômico e social brasileiro, seja pela sua representatividade no PIB e nas exportações, como ainda pela própria vocação existente em nosso país para seu exercício.

Da mesma forma, não resta dúvida de que sua tributação, por força de suas peculiaridades e propósitos, inclusive, constitucionais, deve ser regulada de forma a ser fomentada e incentivada, o que se concretiza por meio de instrumentos fiscais de incentivos e tratamento diferenciado, o que não se confunde com privilégio.[1]

Apesar de sua importância e necessidade de instrumentos fiscais de fomento e tratamento peculiar, percebe-se que as medidas tributárias nos tempos atuais têm entre seus objetivos alterar esta realidade, extinguindo, inclusive, com claro risco de aumento da carga fiscal.

Isto pode ser comprovado, por exemplo, por projetos que pretendem revogar tributação da cesta básica com alíquota zero de PIS e COFINS, Projetos de Reforma Tributária que tratam o setor como todos os demais, ignorando suas peculiaridades, necessidades e importância[2], além dos próprios incentivos de ICMS como é o caso do Convênio 100/97.

Também não devemos olvidar do atual movimento dos Municípios, os quais, após receberem a delegação quanto à fiscalização e cobrança do ITR, tem realizado medidas arbitrárias quanto à exigência deste imposto, sobretudo, com relação ao VTN, ônus da prova, competência territorial e lançamentos de ofícios.

Todavia, o movimento de agravamento em face do setor do agronegócio vai além de tais exemplos, uma vez, atualmente, quem pretende apontar sua mira é a Receita Federal.

A Receita Federal, como de costume, anualmente, faz a divulgação de seu “Plano Anual de Fiscalização”, onde temos os números do ano anterior e as ações que pretendem efetivar no ano corrente.

Neste sentido, ao divulgar o plano de ação de 2020, a Receita Federal esclarece que, entre as principais operações, estaria o fortalecimento dos tradicionais cruzamentos de dados das pessoas físicas, onde cita mais especificamente “Omissão de rendimentos e despesas fictícias da atividade rural exercida pelo contribuinte, utilizando também as informações das notas fiscais eletrônicas para identificar eventuais divergências”.

Portanto, o produtor rural pessoa física, no plano anual de fiscalização da Receita Federal de 2020, entra como um dos principais focos de fiscalização, seja quanto às receitas e respectivas despesas.

Diante a informatização e nova realidade existente, uma vez que, atualmente, temos SPED, Livro Caixa Digital do Produtor Rural, Nota fiscal eletrônica, Declaração de Ajuste Anual de IRPF, Declaração de ITR, GFIP, E-social, além das informações bancárias resultantes de movimentações financeiras, o produtor rural ficará exposto à uma nova realidade e rigores fiscais.

Com isso temos, duas consequências relevantes: (i) — além das tentativas de mudanças na legislação revogando o tratamento diferenciado tributário ao setor, sofreremos um maior rigor quanto às operações fiscais voltadas ao produtor rural; e (ii) – necessidade de maior gestão e organização do ponto de vista fiscal no controle e apuração de seus tributos, bem como planejamentos tributários.

Deste modo, cabe este alerta, pois sabemos que, ainda, não são todos os produtores rurais que estão devidamente estruturados para enfrentar a severa atuação da fiscalização tributária, especialmente, da Receita Federal.

E, por outro lado, o foco da não se encerra em face do produtor rural, na medida em que também consta entre os objetivos principais da fiscalização em 2020:

“Planejamento tributário internacional abusivo e erosão da base tributária do IRPJ

As exportações de commodities apresentam valores relevantes em nosso país. Entretanto, as informações declaradas revelam que os maiores adquirentes de tais mercadorias se localizam em paraísos fiscais ou países de tributação favorecida, enquanto que os destinos dos produtos nos embarques são efetivamente os maiores consumidores, em prática conhecida por “triangulação na exportação”.

Tais operações triangulares visam à transferência do lucro operacional para que sejam tributados em paraísos fiscais ou países com tributação favorecida, deixando-se de pagar o Imposto de Renda Pessoa Jurídica devido no Brasil.

Foram identificados contribuintes que realizam 100% de suas exportações por meio de tais triangulações simulando operações mercantis justamente para transferir ao exterior o lucro das verdadeiras operações de compra e venda.”

Naturalmente, por sua vocação exportadora e serem os produtos rurais em sua maioria comodities, mais uma vez o agronegócio ficará exposto à fúria da Receita Federal no tocante a tais operações, supostamente, denominadas de “planejamento tributário abusivo”.

Possível, assim, concluir que, infelizmente, um dos principais setores econômicos nacionais, o qual deve ser fomentado e garantido, tem sido objeto de “ataques tributários”, os quais somente prejudicarão à própria sociedade, economia nacional e participação do Brasil no cenário internacional.

Da mesma forma que muitos outros países tem orgulho e defendem suas vocações, está na hora de termos uma verdadeira defesa de um dos principais (para não dizer principal) segmentos econômicos do Brasil, com relevância inquestionável no cenário internacional.    

[1] https://www.conjur.com.br/2017-out-20/direito-agronegocio-tributacao-diferenciada-agronegocio-nao-privilegio

 é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.

Categorias
Notícias

Deepfakes embaralham a Justiça nos EUA

Os juízes, advogados e promotores dos Estados Unidos estão tentando se familiarizar com novas armadilhas tecnológicas que viabilizam a fabricação de provas falsificadas. São técnicas chamadas deepfakes (falsificações profundas) e cheapfakes (falsificações baratas).

Diretor Jordan Peele ‘dublou’ Barack Obama para fazer um alerta sobre as deepfakes
YouTube

Cheepfakes são obviamente mais fáceis de identificar porque, muitas vezes, são uma fabricação caseira de provas. Qualquer pessoa com algum conhecimento de computação pode adulterar um áudio, por exemplo, com a ajuda de algum software e de algum tutorial que encontra na internet.

Em uma disputa de guarda do filho na Grã-Bretanha, que repercutiu nos EUA, a mulher usou uma cheapfake para adulterar um áudio, que serviria de prova de que o ex-marido a ameaçava. Mas o advogado do marido contratou um perito para analisar o áudio e bastou um estudo de metadados na gravação para expor a adulteração.

Nos casos de deepfakes, o problema é muito maior para juízes, advogados e promotores que querem checar a autenticidade de vídeos, porque são bem feitas. A técnica usa tecnologias de aprendizagem de máquina e inteligência artificial para falsificar vídeos. Assim, é possível mostrar, em um vídeo, uma pessoa fazendo o que ela não fez ou falando o que ela não falou.

De acordo com um relatório da firma Deeptrace Labs, 96% dos vídeos manipulados na internet são pornográficos. Mas, de uns tempos para cá, os vídeos adulterados com a técnica de deepfake vem se infiltrando na política e também na justiça.

À medida que a tecnologia cresce em complexidade, tornando mais difícil identificar imagens adulteradas, os juízes, advogados e promotores terão mais dificuldades para identificar a falsificação e autenticar a prova. Como determinar o que é falso ou verdadeiro?

‘Os deepfakes podem corroer a confiança no sistema de justiça’, disse ao Jornal da ABA a diretora de vigilância e segurança do Centro para a Internet e Sociedade da Faculdade de Direito de Stanford, Riana Pfefferkorn.

Os autores de um estudo sobre deepfakes, Robert Chesney e Danielle Citron, também afirma que deepfakes podem minar a confiança pública nas instituições, incluindo o sistema de justiça. Afinal, se uma imagem (como uma fotografia) vale mais que mil palavras, um vídeo pode valer mais de um milhão.

Isso vai aumentar os custos de uma ação judicial, porque as partes terão de contratar especialistas para ajudar a autenticar as provas. E os jurados vão esperar que, nos casos em que houver uma disputa sobre se um vídeo é falso ou verdadeiro, elas usem o testemunho de peritos. Se não o fizerem, será porque a outra parte tem razão.

A situação vai se complicar ainda mais, porque a tecnologia evolui, se torna mais barata e disseminada e pode cair nas mãos de qualquer um que tenha um smartphone, disse ao Jornal da ABA o perito de ciência forense digital, Hany Farid. Vai chegar ao ponto em que detectar deepfakes será como uma “briga de gato e rato”.

Por enquanto, os peritos estão tomando uma atitude passiva, buscando inconsistências nos vídeos que outras pessoas não veem, tais como se a iluminação e as sombras são consistentes com toda a imagem. Mas vai chegar a um ponto em que as pessoas preocupadas em garantir, a qualquer tempo, a autenticidade de um vídeo, terão que colocar marcas d’água nele.

 é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

Categorias
Notícias

Paulo Queiroz: Manifesto contra o presidencialismo

O presidencialismo é uma loteria, uma aposta arriscada, com grande probabilidade de não dar certo, como nos mostra a história recente.

Com efeito, além de produzirmos em geral políticos medíocres, trata-se de uma aposta num único sujeito: o presidente. E grande é a chance de decepção. Quando eleito um presidente corrupto ou incompetente, a sociedade sangra por quatro anos, quando uma nova aposta tão arriscada quanto a anterior é feita. Ou tem início o desgastante processo de impedimento. O fracasso histórico dos presidentes é o fracasso do presidencialismo.

Além disso, é uma forma de governo que estimula o culto da personalidade e do populismo e a concentração de poder. Como escreve Ferrajoli, o método majoritário e o sistema presidencial favorecem inevitavelmente a autolegitimação da parte vencedora como expressão da soberania popular e seus infalíveis corolários populistas: a deslegitimação dos partidos, a ideia de que o consenso popular legitime qualquer abuso, a personificação do líder [1].

Também por isso, o presidencialismo é uma ameaça permanente à democracia, já que o presidente é o comandante supremo das Forças Armadas e há sempre a tentação de apelar-se à força quando lhe falta a capacidade de diálogo e o poder de impor uma determinada agenda política. De certo modo, o presidencialismo é um tipo de concessão que a democracia faz à tirania.

Também o parlamentarismo é uma aposta, mas uma aposta menos arriscada, pois elegemos muitos possíveis chefes (primeiro-ministro). Quando o eleito não dá certo, pode o Parlamento fazer uma nova eleição sem traumas. Tem ainda a vantagem de permitir uma filtragem das más escolhas populares.

Além disso, no parlamentarismo o primeiro-ministro nasce com maioria no Congresso e, pois, em boas condições de aprovar seus projetos. Já no presidencialismo o presidente é um estrangeiro, porque não integra o Parlamento e tem de fazer mil concessões para formar base parlamentar.

E, como nas democracias tudo tem de passar pelo Parlamento, e é impossível governar sem ele, também por isso o parlamentarismo que não é um sistema perfeito é preferível ao presidencialismo.

Evidentemente, a adoção do parlamentarismo não basta. Outras tantas reformas são importantes, como a abolição do voto obrigatório, a reforma dos partidos políticos, a redução do número de deputados, a extinção do Senado etc.

 

[1] Luigi Ferrajoli. Principia iuris, v. 2. Trotta: Madrid, 2011, p.172/173.

Categorias
Notícias

O sistema brasileiro de júri admite a absolvição por clemência?

A soberania dos vereditos do Tribunal do Júri está na agenda dos próximos debates do Plenário do Supremo Tribunal Federal. De um lado, discute-se se o princípio deve ser interpretado de modo a autorizar o cumprimento imediato da pena imposta por condenação pelo júri. Em outra via, analisa-se se a referida soberania impede que a absolvição fundada na resposta afirmativa dos jurados ao quesito genérico pode ser atacada em sede de apelação com base em alegada contrariedade à prova dos autos. Trata-se de verificar, em última análise, se é admitida no sistema brasileiro, com fundamento no princípio da soberania dos veredictos, a absolvição por clemência. É esta segunda perspectiva que será objeto da presente discussão.

A questão não é simples e eventuais conclusões não podem ser alcançadas sem a consideração séria de alguns fatores relevantes. Em primeiro lugar, é preciso determinar a função que o júri historicamente exerce nos Estados de Direito, e é sob essa perspectiva que deve ser analisada a ideia de absolvição por clemência.Em segundo lugar, importa examinar a configuração adotada pelo sistema brasileiro para a decisão dos jurados a partir da tormentosa separação entre questões de fato e questões de direito, ponderando-se em que medida a mesma influencia na recorribilidade da decisão e, em última análise, como essas variáveis se veem afetadas pelo princípio da soberania dos veredictos.

O direito ao julgamento pelos pares, proclamado originalmente em 1215 pela Magna Carta e solidificado no contexto norte-americano, é considerado um elemento simbólico e uma das grandes virtudes do juízo por jurados. Tal preceito tem como escopo assegurar que o réu seja julgado pelos membros de sua comunidade, os quais teriam a capacidade de compreender suas ações dentro de um dado contexto. Esta é uma funcionalidade especialmente importante para a participação cidadã no julgamento dos crimes mais graves: a necessidade de assegurar a integração do tribunal com aqueles que pertencem ao mesmo entorno cultural de quem será julgado.[3]

No contexto anglo-americano os jurados não somente carregam essas normas e valores comunitários em sua forma de avaliar os fatos, mas também desfrutam de uma independência constitucional em relação ao Estado que os permite negar aplicabilidade a determinados preceitos legais[4]em face da potencial produção de uma injustiça concreta — o que é conhecido como jurynullification a exemplo da pena capital —, até a convicção de que a promotoria possa ter se exacerbado na acusação, o que os leva a absolver o réu ainda que convencidos de sua culpa.[5]

O poder de nulificar a lei — que tem contornos próximos à ideia de absolvição por clemência — foi algo historicamente conquistado pelo júri ao longo da experiência inglesa e posteriormente transferido para as colônias, simbolizando o seu papel de resistência a um poder arbitrário e materializando o simbólico poder de impor a justiça concreta mesmo diante de uma lei injusta[6]. Não se trata de uma prerrogativa expressa, mas uma consequência da liberdade de decisão dos jurados associada à cláusula que proíbe que o cidadão seja julgado novamente pela mesma ofensa (doublejeopardyclause).

Como é sabido, o transplante do júri para acivil law foi promovido em meio à conjuntura da Revolução Francesa, motivado pelo intenso descrédito em seu próprio sistema de tarifação legal. Durante as discussões levadas a cabo em meio à Assembleia Constitucional de 1789, o modelo inglês era considerado um marco do fortalecimento da liberdade, representação que se conformava aos ideais almejados. Todavia, essa importação se concretizou a partir de uma malsucedida releitura da experiência inglesa, conjuntura que revelou uma nova ideia de liberdade de apreciação probatória que em muito se distanciou da versão original.

Um dos aspectos que marcaram esse distanciamento é a dinâmica adotada para a decisão dos jurados, ou o modelo de veredicto a ser proferido. De modo mais amplo, trata-se da forma na qual o sistema prevê a distribuição da função jurisdicional entre juiz e jurados. Entre as três funções essenciais a serem desenvolvidas (decidir sobre os fatos, aplicar a lei aos fatos e estabelecer a sentença) não restam dúvidas de que a primeira incumbe aos jurados e a terceira ao juiz. Quanto à segunda, tanto poderia ser atribuída aos jurados, formando juntamente com a análise fática o que pode ser definido como “questões de culpa”, ou ao juiz, no contexto das questões de pena.[7]

A ideia de separar a análise das questões de fato das questões de direito, de modo que o júri ficasse responsável apenas por apreciar as provas e determinar os fatos poderia parecer, à primeira vista, como a mais aceitável. Isso porque a capacidade prática, a experiência e o bom senso dos leigos seriam qualidades que os tornariam mais habilitados para a tarefa de descobrir a verdade sobre fatos controversos do que a mente mais abstrata e teórica do juiz profissional.[8] Estes últimos seriam, por outro lado, os mais capacitados para aplicar o direito justamente em face de tais atributos, considerando que deixar as questões relacionadas à culpa aos jurados seria problemático pelo seu desconhecimento das complexas matérias jurídicas pertinentes.

O modelo inglês historicamente delega aos jurados a função de decidir sobre a culpa do acusado em sentido amplo, o que fazem por meio dos chamados general verdicts — que se limitam a indicar se o réu é culpado ou inocente em cada imputação formulada. Deste modo, terão de analisar não somente questões puramente fáticas, mas, também, as classificações jurídicas relacionadas à conduta e as questões de direito interligadas com a caracterização do fato previsto na lei como punível. Entretanto, sobre todos esses pontos os cidadãos estarão sujeitos às instruções do juiz presidente.

Na civil law, a idealização de uma absoluta liberdade valorativa materializada na ideia de intime conviction não concebeu qualquer possibilidade de interferência por parte do juiz nessa atividade. O legislador francês acabou por interpretar de forma extremamente literal a ideia de separação entre fato e direito, ignorando, com isso, a dinâmica do procedimento inglês no que se refere aos papeis dos jurados e do juiz profissional. Partindo-se da premissa de que os jurados deveriam se engajar unicamente na decisão das questões fáticas e com base no alerta de Montesquieu de que aos mesmos se deveria submeter apenas um fato por vez[9], adotou-se um modelo de votação seriado composto por indagações sobre as questões de fato. A partir das respostas dos jurados, o juiz era responsável por determinar as consequências jurídicas aplicáveis.

Essa inovação teria acabado por trair a própria ideologia de contenção de poder que motivou a incorporação do júri no território francês, já que limitava a autonomia do órgão de modo a implicar o enfraquecimento do sentido político da instituição. Como aponta Donovan, o entusiasmo com o recém implantado sistema de júri teria durado pouco tempo até que os governos revolucionários começassem a subvertê-lo.[10] Por outro lado, o poder de decisão do júri acabou por se revelar mais forte do que se pensava: diante da incerteza sobre a posição dos juízes, os jurados passavam a responder negativamente às questões de fato que lhes eram submetidas, mesmo que convictos da prática da conduta punível.[11] Os altos índices de absolvição, muitos deles por crimes políticos no período revolucionário, eram vistos como uma resposta dos cidadãos às duras e rígidas penas previstas no CodePénal de 1791.[12]

Veja-se que, de uma forma ou de outra, é intrínseca ao júri e à própria ideia de participação popular na administração da justiça a prerrogativa de se valer de certa dose de clemência em seus julgamentos, ainda que isso importe negar a aplicação da lei em determinados casos. De qualquer forma, o modelo de decisão por questionário juntamente com as demais inovações francesas relativas à valoração e à (falta de) disciplina probatória predominou na Europa na medida em que o juízo por jurados veio a ser adotado pelos demais sistemas jurídicos do continente.

Trazendo a discussão para a problemática brasileira, importa analisar a dinâmica de quesitação instituída pela reforma de 2008 sob o manifesto propósito de atender a um clamor de simplificação já há muito anunciado. O sistema previsto anteriormente era considerado excessivamente complexo, atentando-se para diversos aspectos jurídicos relacionados à imputação ou ao afastamento da responsabilidade penal, ao invés de focar-se, em maior medida, nas questões fáticas. Por tal motivo, era visto como uma das principais fontes de nulidade dos julgamentos perante o júri. A solução adotada, por conseguinte, foi a previsão de questionário tratando, sucessivamente, da materialidade do fato, da autoria ou participação e, em terceiro lugar, uma indagação genérica sobre se o acusado deve ser absolvido. Esse quesito genérico é de formulação obrigatória na medida em que os dois primeiros tenham sido respondidos afirmativamente, e pretende abranger todo e qualquer conteúdo defensivo em favor da absolvição do acusado de modo a afastar a necessidade de individualização das respectivas teses em proposições específicas.

Veja-se que a nova sistemática acabou por mesclar as duas fórmulas de veredicto anteriormente analisadas. De um lado, contempla-se nos dois primeiros quesitos uma análise das questões fáticas envolvidas na verificação da materialidade do fato e sua autoria. Para tais quesitos, pressupõe-se que os jurados devam avaliar racionalmente as provas produzidas a fim de chegarem a uma decisão, a qual poderá plenamente ser objeto de apelação com base em suposta contrariedade à prova dos autos.

Por outro lado, o terceiro quesito aproxima-se ao modelo anglo-americano de veredicto genérico, na medida em que endereça aos jurados não somente questão de fato, mas também questão de direito — ou de forma mais ampla, questão de culpa, nos termos já discutidos. Envolve, por assim dizer, todo um raciocínio axiológico para dizer se a conduta do acusado está justificada ou, por outro lado, se merece reprovação penal. Deste modo, não se esgotando a indagação em uma questão fática e não sendo a prova, por tal motivo, a única fonte da decisão, tampouco é possível que o veredicto seja atacado, neste ponto, por suposta contrariedade a ela. É justamente a abertura axiológica deste quesito que legitima a decisão a partir da subjetividade de uma íntima convicção. Para as questões puramente fáticas, como autoria e materialidade, a ausência de motivação não afasta a exigência de racionalidade e tampouco impede eventual controle por outras vias.

Ademais, a obrigatoriedade de sua formulação também para os casos em que a negativa de autoria venha a ser a única tese defensiva sustentada deixa clara a prerrogativa do jurado de absolver o acusado por simples ato de clemência, o que, se assim não for, implica uma contradição expressa na dinâmica da votação. Intencionalmente ou não, o legislador estabeleceu um quesito que necessariamente terá lugar após o reconhecimento da autoria e materialidade pelos jurados, ainda que não tenha sido arguida qualquer tese de defesa em plenário.Sua redação é prefixada: “O jurado absolve o acusado?”A pergunta é clara, é pessoal(“o jurado”) e é genérica. Não há como afastar a legitimidade de uma absolvição por clemência nesses termos, especialmente na medida em que os princípios constitucionais da soberania dos veredictos e da plenitude de defesa se mostram em perfeita sintonia com tal compreensão. Se é legítimo o emprego de uma argumentação metajurídica em plenário e se a emoção se faz sempre presente na retórica calorosa dos debates, não parece coerente exigir apego à prova justamente no ponto em que o legislador parece ter aberto espaço para a misericórdia popular.

A racionalidade segue sendo necessária para a apreciação da prova de autoria e materialidade, questões fáticas cujo raciocínio deve se orientar por parâmetros epistemológicos válidos. No entanto, a fim de que o juízo popular cumpra verdadeiramente seu papel histórico de garantia do cidadão contra eventuais arbítrios do Estado, deve ter a seu dispor a prerrogativa de atenuar a severidade e insensibilidade da administração profissional da justiça, proporcionando, se assim entender cabível, alguma clemência ao acusado cuja conduta se veja justificável na ótica da sociedade. Este papel garante que a comunidade possa sempre respirar seus próprios valores e visão sobre a aplicação da justiça.[13][14]

Marcella Mascarenhas Nardelli é doutora em Direito Processual pela Uerj e professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Categorias
Notícias

Lei do DF que obriga governo a fazer Festa Junina é inconstitucional

Uma lei do Distrito Federal que criara o “Circuito de Quadrilhas Juninas do DF” foi declarada inconstitucional. A decisão é do Conselho Especial do TJ-DFT. O diploma (Lei distrital 5.633/16) atribuía ao Poder Executivo o dever de contratar quadrilhas juninas por meio da Secretaria de Estado da Cultura do Distrito Federal, além de organizar, divulgar e apoiar financeiramente o evento, a ser realizado anualmente durante o mês de junho.

Segundo a lei, Executivo deveria contratar quadrilhas juninas por meio da Secretaria de Estado da Cultura do Distrito Federal
Reprodução

A ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada pelo governador do DF, que pediu a concessão de medida cautelar para suspender a vigência da mencionada lei, sob o argumento de que a norma é formalmente inconstitucional, pois trata de tema que cria novas atribuições para órgão público do DF, interferindo na sua organização e funcionamento, com nítido aumento de despesas não previstas, matérias da competência privativa do Executivo distrital. Também alegou que a norma contém vício material, por violar os princípios da impessoalidade e moralidade administrativa.

A Câmara Legislativa do Distrito Federal manifestou-se em defesa da legalidade da norma e afirmou que a lei apenas sugere a contratação simplificada de pessoas para viabilizar a realização das festas juninas. A Procuradoria Geral do DF e o MP-DFT opinaram pela precedência do pedido para declarar a inconstitucionalidade da lei.

Ao analisarem o processo, os desembargadores vislumbraram a presença tanto de vicio formal de iniciativa, quanto de vício material, por afronta ao princípio da separação dos poderes.

Assim, por unanimidade, declararam a inconstitucionalidade da lei, com efeitos retroativos a sua data de publicação.

O colegiado concluiu que a obrigação de contratação de quadrilhas interfere na liberdade de atuação, organização e funcionamento do Executivo. “Assim, a norma impugnada, ao impor o dever de contratação de quadrilhas juninas pela Secretaria de Estado da Cultura do Distrito Federal, além da organização e da divulgação do evento, retira a liberdade de atuação do Poder Executivo em campo constitucionalmente atribuído a ele de modo privativo, qual seja, a sua organização e o seu funcionamento”. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-DFT.

0000643-25.2019.8.07.0000

Categorias
Notícias

Negros são somente 1% dos advogados dos grandes escritórios

Desde o final de maio deste ano, uma série de protestos contra o racismo ganharam força no mundo. O estopim foi a morte de George Floyd, um norte-americano negro assassinado por um policial branco em Minneapolis. 

Para Haderlann, dificuldades dos negros já começa na formação profissional
Reprodução

Dentre as inúmeras denúncias feitas de lá para cá, há uma já bastante conhecida: a quase ausência de negros em cargos considerados elitizados. E se essa é uma verdade em grande parte dos setores, não seria diferente nas bancas de advocacia e na magistratura. 

Um levantamento feito pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) em 2019 apontou, por exemplo, que os negros representam 1% dos advogados de grandes escritórios.  Na ocasião, a instituição avaliou, em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, nove bancas de São Paulo. 

Esse dado, se comparado com a porcentagem de negros na sociedade (aproximadamente 55%, de acordo com o IBGE), evidencia um problema: ou os escritórios contratam menos negros ou as disparidades sociais — que afetam a população negra com maior intensidade — acabam fazendo com que grande parte deles fique no meio do caminho.

Haderlann Chaves Cardoso, do Mudrovitsch Advogados, enfatiza o segundo ponto. Para ele, o baixo número de negros nos grandes escritórios tem relação com a desigualdade socioeconômica e com o seu reflexo na formação dos profissionais.

“Há uma série de filtros. Não raramente, a população negra está em condições socioeconômicas menos favorecidas e tem muita dificuldade de acesso às escolas privadas, em que o ensino costuma ser melhor. Isso, por sua vez, acaba impactando na hora de entrar em boas universidades, que muitas vezes são públicas. Apesar do sistema de cotas proporcionar mais acesso às universidades estaduais e federais, muitos negros acabam indo para as faculdades particulares, o que impõe um novo filtro: é preciso pagar e é caro. As que são mais baratas tendem a ter uma qualidade menor, o que impõe mais uma dificuldade: passar no exame da OAB”, diz.

Haderlann, que é negro, estudou a vida inteira em escolas públicas. Ele conta que concluiu a universidade graças a uma bolsa de 50%, obtida por meio do ProUni, programa criado em 2004 pelo Ministério da Educação.

Em 2012, quando estava no terceiro semestre de Direito, conseguiu estágio no escritório em que atua ainda hoje. Em 2015, no nono semestre, obteve aprovação no exame da Ordem. O advogado diz, no entanto, que ele é quase uma exceção. 

“Estudei em uma universidade que está entre as três melhores do Distrito Federal. Às vezes, era o único negro na sala de aula, mesmo tendo cerca de 10 turmas de Direito. Por todas as dificuldades que mencionei, os negros às vezes não chegam sequer a entrar nas universidades, o que impacta no número de advogados, mesmo que autônomos.”

Mercado

A advogada Angela Borges Kimbangu não ignora os impactos da desigualdade socioeconômica. No entanto, segundo ela, o mercado jurídico incorpora, sim, um número menor de negros.

Da esquerda para a direita, as advogadas Carmen Felippe, Giovana Mariano, Angela Borges Kimbangu e Maria Ferreira
Reprodução

“Eu comecei a conversar com as mulheres pretas — com os homens também — e percebi que todas elas passavam por grandes peneiras mas não eram contratadas. Quando você é preto no mundo e vira advogado, é como se parte da sociedade não quisesse que você estivesse em um lugar que sempre foi majoritariamente branco”, afirma. 

Pensando nisso, Angela se uniu a outras quatro colegas e fundou, no Rio de Janeiro, o Borges & Mariano Advogadas Associadas. Além dela, a banca foi concebida pelas advogadas Andrea NascimentoCarmen Felippe, Giovana Mariano e Maria Ferreira.  Em funcionamento desde o começo de 2019, o escritório atua em diversas áreas do Direito, como cível, empresarial e Direito de Família. 

“Por causa dessa dificuldade no mercado jurídico e pelo fato da gente ver que pretos não têm espaço nos grandes escritórios, cheguei à conclusão de que a gente tinha que criar o nosso. E está dando muito certo”, afirma. 

Sobre a atuação em uma área elitizada, conta que por vezes as pessoas não acreditam que ela é advogada. “Já me perguntaram até se eu sou advogada de verdade. Essa estrutura às vezes impede que olhem para mim e vejam que eu sou uma profissional e que posso fazer advocacia de qualidade como qualquer outra pessoa.”

Incluir Direito

Buscando ampliar a inclusão de estudantes negros em escritórios de advocacia, a Comissão de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), juntamente com a Fundação Arcadas, criaram o projeto Incluir Direito

A iniciativa permite a capacitação orientada de estudantes do terceiro ao oitavo semestre e o aprimoramento dos departamentos de recursos humanos dos escritórios filiados ao Cesa para promover a inserção dos beneficiados pelo programa.

Um advogado apontado pelo centro de estudos fica responsável pelo acompanhamento do estudante durante sua permanência no projeto, explica Carlos José Santos da Silva, presidente nacional do Cesa. 

“Dessa forma, será possível potencializar e direcionar as experiências, bem como aumentar a chance de sucesso desses alunos nas seleções dos escritórios envolvidos”, afirmou em março deste ano, quando o projeto foi anunciado.

A formação ocorre ao longo de um semestre, onde também são oferecidos cursos de idiomas aos participantes. Em contrapartida, eles devem assumir o compromisso de participar de ao menos três processos seletivos dos escritórios parceiros. 

Inicialmente o Incluir Direito beneficia um máximo de dez alunos. “Nas edições subsequente o número de beneficiários poderá aumentar”, diz o professor Flávio Batista, um dos responsáveis pela iniciativa na FDUSP.

Categorias
Notícias

Direito ao trabalho e liberdade ao trabalho na calamidade

A MP 945/20, que dispôs de medidas temporárias durante a pandemia no âmbito do setor portuário, considerando que o Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO) é responsável pela escala de trabalhadores avulsos, determinou a proibição de escala de trabalhadores com sintomas de Covid-19 e dos trabalhadores com idade igual ou superior a 60 anos, além de gestante, lactante ou trabalhadores que apresentem risco em razão de doença que menciona (art. 2º).

A questão é de saber se a proibição ao OGMO de escala de trabalho ofende direitos individuais fundamentais do trabalhador portuário, em especial a liberdade ao trabalho assegurada como um dos direitos sociais no art. 6º da Constituição Federal. Em palavras outras, se o momento emergencial de saúde pública permitiria à União medidas de proteção ao grupo de vulneráveis a ponto de excluir de modo temporário o exercício profissional.

A pandemia do Covid-19 obrigou a novos e visíveis comportamentos sociais tomados pela preocupação ou medo. As relações trabalhistas foram afetadas diretamente quer do ponto de vista econômico, com encerramento ou paralisação de empresas e perdas de importantes postos de trabalho, levando ao desemprego crescente. Também naquelas atividades essenciais ou que se ajustaram à adequação do momento, com redução de salário e jornada ou suspensão do contrato de trabalho a incerteza está presente.

O bem jurídico cuja proteção está na primeira linha de preocupação é de natureza coletiva, tanto no que diz respeito no direito à vida (art. 5º da CF “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade….”) como o direito à saúde de todos(artigo 196 da CF “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”),observando-se o princípio de solidariedade, do direito à saúde e da obrigação do Estado.

Para dar conta da emergência de saúde pública foi aprovada a Lei nº 13.979/20 que, dentre outras recomendações trata do isolamento de pessoas doentes ou contaminadas e da quarentena com separação de pessoas suspeitas de contaminação. Ainda assegura a lei (art. 3º) “o respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional…” (Decreto 10.212/20). Para o fim de expandir a garantia de cuidados pessoais com a saúde as ausências ao trabalho motivadas pelo coronavírus as faltas tanto no serviço público como nas atividades privadas passaram a ser justificadas.

Os cuidados nas atividades laborais caminharam até aqui em dois alicerces: (i) manutenção do emprego e da renda e (ii) preservação da saúde dos trabalhadores, evitando riscos de contaminação e isolando a população com vulnerabilidade, dentre eles aqueles trabalhadores com mais de 60 anos e gestantes.

Na esfera trabalhista, a referência aos grupos risco pela OMS e Ministério da Saúde de pessoas com mais de 60 anos, pessoas com doenças crônicas e doenças cardiovasculares e gestantes, exigiu que os empregadores afastassem do trabalho os que estivessem nesse quadro de vulnerabilidade, recomendando que ficassem em casa, prestando serviços, se possível à distância com redução de jornada e salário ou com a suspensão do contrato.  Nestas hipóteses o empregado se habilitaria ao Programa Emergencial de Manutenção de Emprego e da Renda, recebendo o Benefício Emergencial e efeito na garantia de emprego (MP 936/20).

Assim, colocado o tema, equacionado bem ou mal sob o plano trabalhista como socorro emergencial de suporte do Estado para as empresas e empregados, de fato, no âmbito dos trabalhadores avulsos que, pela Constituição Federal (art. 7º, XXXIV) têm equiparados seus direitos ao empregado com vínculo empregatício permanente, não poderiam ficar desamparados em razão das dificuldades econômicas próprias do setor de atividade. Esta a razão da MP 945 que dispõe no art. 2º:

Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, o Órgão Gestor de Mão de Obra não poderá escalar trabalhador portuário avulso nas seguintes hipóteses:

I – quando o trabalhador apresentar os seguintes sintomas, acompanhados ou não de febre, ou outros estabelecidos em ato do Poder Executivo federal, compatíveis com a covid-19:

a) tosse seca;

b) dor de garganta; ou

c) dificuldade respiratória;

II – quando o trabalhador for diagnosticado com a covid-19 ou submetido a medidas de isolamento domiciliar por coabitação com pessoa diagnosticada com a covid-19;

III – quando a trabalhadora estiver gestante ou lactante;

IV – quando o trabalhador tiver idade igual ou superior a sessenta anos; ou

V – quando o trabalhador tiver sido diagnosticado com:

a) imunodeficiência;

b) doença respiratória; ou

c) doença preexistente crônica ou grave, como doença cardiovascular, respiratória ou metabólica.

Chama a atenção especialmente a proibição ao OGMO de escalar trabalhador em faixa etária superior a 60 anos. Inegável que o Estado está cumprindo o dever de natureza coletiva e preventiva da saúde da população no caso da emergência atual e de acordo com as melhores recomendações médicas.

A regra de proteção da saúde não permitiria alegações de violação de direitos individuais subjetivos porque apresenta concepção de ordem coletiva e as normas que buscam a prevenção de todos na sociedade parece ter preferência em relação a direitos individuais. A resistência ao cumprimento da norma rompe com a natureza coletiva do exercício público cujo objetivo é  dar efetividade à proteção da saúde da população.

Frise-se que, assim como outros direitos chamados fundamentais, o direito ao trabalho não é absoluto e não são poucos os exemplos que o direito do trabalho impõe restrições legais quanto à pessoa ou condições de trabalho em vista da proteção da saúde dos empregados. Da mesma forma, o direito à saúde, garantido pela Constituição, é pretensioso na expectativa que gera e o Estado seja onde for, encontra dificuldades na sua efetivação. Assim, resta ao direito da saúde estabelecer normas de proteção e de saúde pública de natureza coletiva mesmo que, em nome do bem jurídico da proteção da vida, exclua, tal como no caso, grupos de vulnerabilidade e que poderiam comprometer a própria saúde e dos demais com que convive.

 é advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas.

Categorias
Notícias

O status oecologogicus e o direito à participação

Quando se percebe que lamentavelmente não sou poucos, mundo afora, os ataques assacados contra a Democracia e suas Instituições, nunca é demais, seja qual for a perspectiva, abordar tema que diga respeito ao desenvolvimento de instrumentos para o seu (da Democracia) fortalecimento. Tratando-se, como no presente caso, simultaneamente de instrumentos de democracia participativa e de promoção da proteção do meio ambiente, portanto, de dois dos esteios do que se pode chamar de um Estado Democrático, Social e Ecológico de Direito, o tema vale ainda mais a pena, lembrando-nos que faz exatamente uma semana que se comemorou o Dia Internacional do Meio Ambiente (05.06 p.p.).

Legenda

O mote desse breve ensaio, desta feita um tanto mais teorético do que o habitual, em relação ao que se roga por compreensão, é um texto, publicado no ano de 2011, em homenagem ao centenário da morte do jurista alemão Georg Jellinek, de autoria do Professor Winfried Brugger, da Universidade de Heidelberg (falecido no ano de 2010 e, portanto, antes mesmo da publicação do texto).

No seu artigo, Brugger propôs uma leitura atualizada da clássica “Teoria do(s) Status” (Statuslehre) de Jellinek[1], abordada na sua obra System der subjektiven öffentlichen Rechte[2] (“Sistema de Direitos Públicos Subjetivos”), de 1892 (com 2ª edição revisada de 1905). A obra de Jellinek, entre outros aspectos, aborda a relação entre indivíduo e Estado no âmbito do Direito Público, estabelecendo as esferas de domínio de cada um. Pela ótica dos direitos públicos subjetivos (expressão ainda hoje recorrente para descrever os direitos fundamentais, notadamente pela perspectiva da sua dimensão subjetiva[3]), a Teoria do(s) Status estabeleceu, em alguma medida, os pilares fundantes de aspectos da teoria dos Direitos Fundamentais contemporânea, como é fácil de perceber na análise do conteúdo e função de cada status.[4]

Segundo Jellinek, os “direitos públicos subjetivos” (na época ainda não se tratava propriamente de direitos fundamentais) apresentariam — para além de um status em que o indivíduo se encontra subordinado ao poder estatal — três funções básicas (hoje funções atribuídas aos direitos fundamentais) representadas pelos seguintes status: 1) status negativus; 2) status positivus; e 3) status activus.

Trasladando-se tal esquema aos direitos fundamentais, vale dizer: no caso do status negativus, os direitos fundamentais são tomados como direitos de defesa. O status positivus, por sua vez, configura-se como a função prestacional dos direitos fundamentais. Já o status activus caracteriza os direitos fundamentais como direitos de participação ativa, como, por exemplo, na esfera politica, caracterizando a própria configuração da cidadania política.

O status activus já havia recebido uma releitura contemporânea feita por Peter Häberle, denominando-o de status activus processualis[5] (uma espécie de cidadania processual) o que está de acordo com a dimensão organizacional e procedimental dos direitos fundamentais ou mesmo com a ideia de proteção dos direitos fundamentais por meio do(s) procedimento(s) (Grundrechtschutz durch Verfahren[6]).

A função outorgada aos direitos fundamentais como parâmetro para a configuração de organizações (ou instituições) estatais e procedimentos voltados à sua proteção e efetivação é tida pela doutrina como desdobramento da perspectiva ou dimensão objetiva de tais direitos, o que permite não só, com base no conteúdo das normas de direitos fundamentais, que se extraiam consequências para a aplicação e interpretação das normas procedimentais, mas também uma formatação do direito organizacional e procedimental que auxilie na efetivação da proteção aos direitos fundamentais.[7]

O jurista alemão Konrad Hesse destaca o desenvolvimento da dimensão organizacional e procedimental dos direitos fundamentais, por conta da preocupação com a sua realização e efetividade.[8] A importância de tal perspectiva resulta do fato de que a efetivação dos direitos fundamentais depende, em grande parte, da implementação por parte dos poderes públicos de estruturas organizacionais e procedimentos (administrativos, judiciais etc.) capazes de garantir o seu pleno exercício e gozo por parte de seus titulares.

Mas Jellinek não parou por aí. Ele também destacou, como já referido, um quarto status: o status subiectionis ou statuspassivus, o qual estaria relacionado à esfera dos deveres e responsabilidades do indivíduo para com o Estado e, de certa forma, para com o conjunto da sociedade. A faceta contemporânea de tal status pode ser caracterizada – ao menos em parte — mediante o reconhecimento de deveres fundamentais[9], balizando, inclusive, como é peculiar ao Direito, os limites para o exercício, pelo individuo, do seu status libertatis num quadrante comunitário, como, aliás, é característico da natureza de direito-dever fundamental que caracteriza o regime constitucional de tutela ecológica consagrado na CF/1988 (art. 225).

Além dos “quatro status” propostos por Jellinek, Brugger explora dois novos status na perspectiva da relação Estado-Cidadão: o status oecologicus e o status culturalis. Igualmente, para além da clássica relação Estado Nacional-Cidadão, o autor também aborda outros dois: o status europeus e o status universalis. No caso do status oecologicus, que particularmente nos interessa aqui, tal decorreria, num primeiro plano, da nova tarefa ou objetivo atribuído ao Estado, tal como estabelecido no artigo 20ª da Lei Fundamental alemã desde 1994 (e, no caso da Constituição brasileira, no art. 225, com o plus do reconhecimento também de um direito fundamental ao meio ambiente, diferentemente do que ocorre na norma constitucional germânica), bem como da imposição de toda uma nova legislação infraconstitucional voltada à proteção ecológica[10] (ou da Natureza).

De acordo com Brugger, não obstante a rejeição expressa que o autor faz ao reconhecimento e atribuição de “direitos” próprios à Natureza ou aos elementos naturais, o Estado, ao regular a matéria, por exemplo, no uso e exploração do solo, da água e do ar,  deve deixar claro ao cidadão a esfera e os limites para o exercício do seu status libertatis e a partir de onde o Estado imporá e exigirá o respeito ao seu status subiectionis, o que tornaria possível, a partir de tal ótica, o reconhecimento de um status oecologicus[11].

O status oecologicus proposto por Brugger alinha-se, em alguma medida, com o pensamento de Robert Alexy, ao reconhecer a faceta “multidimensional” da tutela ecológica em sede constitucional, exigindo o seu lugar de destaque, dada a relevância comunitária e mesmo existencial do bem jurídico ecológico, no âmbito da Teoria dos Direitos Fundamentais contemporânea.

Segundo Alexy, o direito fundamental ao meio ambiente se configura como um direito fundamental em sentido amplo ou como um todo, contemplando um feixe complexo e abrangente de posições jurídicas. Juntamente com as posições jurídicas derivadas da sua configuração como direito de defesa (dimensão negativa ou em face do Estado para que se abstenha de degradar o ambiente), como direito à proteção (imposta ao Estado frente a intervenções lesivas ao ambiente praticadas por terceiros) e como direito à prestação fática (dimensão positiva ou prestacional imposta ao Estado para promover medidas fáticas voltadas à tutela ecológica), emerge do regime jurídico-constitucional do direito fundamental ao meio ambiente também a sua dimensão como direito a procedimentos, ou seja, “um direito a que o Estado inclua o titular do direito fundamental nos procedimentos relevantes para o meio ambiente”.[12]

Compreendido em sentido amplo, o direito fundamental ao meio ambiente apresenta tanto uma feição defensiva quanto outra prestacional, no sentido de poder ser decodificado, notadamente na sua dimensão subjetiva, em um complexo heterogêneo de posições subjetivas de natureza “negativa” e “positiva”, expressa ou implicitamente asseguradas no plano constitucional.

Outra dimensão que deve ser compreendida como inerente ao status oecologicus, inclusive como expressão de uma cidadania e democracia participativaecológica, tal como se pode apreender do conteúdo normativo do caput do art. 225 da CF/1988, diz respeito aos“direitos ambientais de participação ou procedimentais”[13], como faceta da própria proteção constitucional ecológica e da sua natureza de direito-dever fundamental (e dimensão organizacional e procedimental).

O escopo maior dos direitos ambientais de participação reside justamente na efetivação da legislação ambiental por meio de uma participação mais ativa da sociedade, exercendo maior controle sobre as práticas poluidoras (ou potencialmente poluidoras) do meio ambiente perpetradas tanto por agentes públicos quanto privados.

A consolidação dos direitos ambientais de participação é derivada de avanços verificados originariamente no plano internacional, ou seja, no âmbito do Direito Internacional do Meio Ambiente. A gênese normativa de tais direitos pode ser atribuída ao Princípio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992). Posteriormente, a Convenção de Aarhus sobre Acesso à Informação, Participação Pública na Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (1998), muito embora o seu espectro limitado inicialmente ao âmbito europeu (mas posteriormente ampliada para o plano global), tratou de forma paradigmática sobre o tema, consagrando a chamada “tríade” dos direitos ambientais procedimentais: acesso à informação, participação pública na tomada de decisão e acesso à justiça.

Mais recentemente, os direitos ambientais de participação foram consagrados, com força vinculante, no Acordo Regional de Escazú para América Latina e Caribe sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (2018), o qual foi elaborado no âmbito da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) da ONU. Igualmente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no âmbito da Opinião Consultiva 23/2017 (“Meio Ambiente e Direitos Humanos’), estabeleceu importante diretriz normativa acerca das obrigações dos Estado e na efetivação e salvaguarda dos direitos ambientais de participação.[14]

No cenário jurídico brasileiro, a conformação normativa tanto dosdireitos ambientais de participaçãoquanto de um status oecologicuspode ser extraída da própria CF/ 1988, mais precisamente do conteúdo expresso do seu art. 225. Ao consagrar os deveres de proteção estatais e o direito fundamental ao meio ambiente, o caput do dispositivo em questão enuncia, para além do direito em si, o dever fundamental da sociedade, ou seja, dos particulares “de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Não por outra razão, a doutrina identifica a natureza de direito-dever fundamental inerente ao regime constitucional de proteção ecológica. Há, em outras palavras, verdadeiro dever jurídico (e não apenas moral) de proteção ecológica atribuído aos cidadãos (e, portanto, não apenas ao Estado), o qual deve ser exercido por meio de uma maior participação e controle pela sociedade sobre as práticas que atentam contra o equilíbrio ecológico, o que, a nosso ver, é um componente nuclear do status oecologicus, de modo a reforçar um modelo de cidadania e democracia participativa de feição ecológica.

Tudo somado, o valor agregado representado pela leitura proposta por Brugger, ainda que não se utilize tal terminologia, guarda perfeita sintonia com os novos desenvolvimentos do direito internacional e constitucional ecológico compreendido na perspectiva de uma responsabilidade compartilhada entre Estado e Sociedade, mas sempre afinada com as exigências da Democracia e voltada, ao fim e ao cabo, ao seu aperfeiçoamento.


[3] A titulo de exemplo, a CF/1988 utiliza tal expressão ao assinalar, no art. 208, § 1º, que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”.

[7] SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais : uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, pp. 156 e ss.

[8] HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 287.

[12]ALEXY, Theorie der Grundrechte..., pp. 403-404.

[13]A doutrina também utiliza a expressão “direitos humanos procedimentais” (procedural human rights), destacando a tríade de direitos relacionados a tal conceito: acesso à informação, participação pública e acesso à justiça (ANTON, Donald K.; SHELTON, Dinah L. Environmental protection and human rights. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, pp. 356 e ss.). Na doutrina brasileira, acerca dos direitos ambientais de participação ou procedimentais, v. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011.

 é professor, desembargador aposentado do TJ-RS e advogado.

 é defensor público no estado de São Paulo. Doutor e mestre em Direito Público pela PUC-RS, com pesquisa de doutorado-sanduíche junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social e Política Social de Munique, na Alemanha. Autor da obra Defensoria Pública na Constituição Federal. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2017.