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Miranda da Silva: Contratos de locação comercial e a Covid-19

As medidas de contenção que visam evitar a propagação do novo coronavírus no Brasil, que foram tomadas pelo Governo Federal, Estadual e Municipal, suspendeu e limitou a atividade comercial em vários ramos da economia, inviabilizando a obtenção regular de lucro ou até mesmo a cessando por completo. Isto se deu não só pelos decretos que impediram a abertura dos estabelecimentos em todo país, mas também à recomendação de permanência dos consumidores em suas residências, fato que por si só já prejudicou os negócios desenvolvidos em razão da queda na procura por bens e serviços.

Assim, as medidas afetaram diretamente grandes e pequenos empreendedores no sentido de que honrassem seus contratos, afetando inclusive aquela religiosa quantia destinada mensalmente ao pagamento do aluguel do imóvel compreendido como estabelecimento comercial. Com o impacto econômico que tem dificultado o cumprimento das obrigações por parte desses comerciantes, como o Poder Judiciário Brasileiro tem enfrentado as demandas decorrentes da situação controvertida entre locatários e locadores?

Obviamente, não têm sido pequena a quantidade de dúvidas contratuais levantadas durante a pandemia provocada pela Covid-19. Do mesmo modo, são inúmeros os estudos que objetivam diminuir as dúvidas surgidas neste campo. De acordo com o Código Civil, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. A partir da análise, vislumbra-se na doutrina que para a configuração do caso fortuito ou força maior, é necessário que sejam verificados os seguintes requisitos: o fato deve ser necessário, não determinado por culpa do devedor, pois, se há culpa, não há caso fortuito; a reciprocamente, se há caso fortuito, não pode haver culpa, na medida em que um exclui o outro; o fato deve ser superveniente e inevitável; e de que o fato deve ser irresistível, fora do alcance do poder humano.

Sendo assim, podemos concluir que, diante de hipóteses de exclusão de responsabilidade civil, é possível que seja reconhecida, em favor de ambos os contratantes, a exclusão de responsabilidade civil, motivada pela inevitabilidade e imprevisibilidade das circunstâncias, como no caso da pandemia causada pela Covid-19, pois, conforme prevê o Código Civil, o nexo causal nas obrigações e responsabilidades advindas das relações locatícias diretamente afetadas pela pandemia seria rompido, afastando, inclusive, a constituição do devedor em protesto.

Pois bem. Antes de verificar a aplicabilidade dessas hipóteses (de exclusão de responsabilidade) na atual crise provocada pela pandemia na seara contratual, convém relembrar que nos moldes do artigo 18 da Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato) tem-se a expressa previsão de que as partes em comum acordo podem renegociar um novo valor de aluguel, o qual também as dá a prerrogativa de modificar a cláusula de reajuste do valor. Assim, com base na boa fé e no bom senso face à pandemia instaurada, entendidas aqui como uma obrigação que se estende a todos os indivíduos nas relações civis, sejam estes pessoas físicas ou jurídicas, o que se espera é que tal acordo seja gesticulado no âmbito administrativo e extrajudicial, onde as partes em consenso poderão flexibilizar as regras obrigacionais decorrentes do contrato de locação, para que todos juntos alcancem o objetivo principal dos tempos atuais: a superação da crise.

Deste modo, sem que haja maiores prejuízos e utilizando para isto o debate, a cooperação e a conciliação desses contratos pode levar em consideração o fato de que muitos estabelecimentos tiveram seu faturamento zerado e, por outro lado, a situação econômica dos locadores de estabelecimentos comerciais, que muitas vezes tem no valor que lhes é pago a título de aluguel como renda primária, não podendo simplesmente dispor dessas quantias em razão de estarem elas vinculadas diretamente à sua subsistência.

Mas se a negociação entre o locador e locatário não tiver resultados positivos, mesmo explícitos os motivos que justificariam tal acordo? A temática se torna densa neste ponto, pois indubitavelmente não restará alternativa senão a provocação do Poder Judiciário para dirimir a controvérsia. As partes podem propor ação revisional de aluguel, cujo requisito temporal é de três anos de vigência de contrato ou do acordo anteriormente realizado entre as partes, nos moldes da Lei do Inquilinato, requisito temporal que pode ser afastado face à excepcionalidade de força maior ou caso fortuito, com base na Teoria da Imprevisão, que considera que quando, por motivos imprevisíveis, acontecer uma desproporção entre o valor da prestação devida e o momento de sua execução, o juiz poderá corrigir o valor. No mesmo sentido, o Código Civil determina que nos contratos de execução continuada, se a prestação se tornar excessivamente onerosa para uma das partes, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, é possível pleitear por sua revisão.

Pioneira na análise de pedidos de redução do valor da prestação de aluguel por motivo da pandemia causada pela Covid-19, a 25ª Vara Cível de Brasília concedeu tutela antecipada para limitar o adimplemento do contrato de aluguel apenas no contexto de faturamento da empresa requerente. Também no mesmo sentido, a 22ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo concedeu a redução de 70% do valor do aluguel ao inquilino. Analisando as primeiras decisões, ficou claro que a flexibilização na prestação dos aluguéis depende do fato de a atividade desenvolvida pelo locatário, no imóvel locado, ter sido diretamente atingida com o caso fortuito/força maior em razão da pandemia. Nas decisões avaliadas foram consideradas circunstâncias como: a queda no faturamento da empresa por conta de ato oficial que impediu sua atividade; as condições financeiras do locatário diante da situação pandêmica, isto é, se ele de fato não conseguiria adimplir o aluguel; a situação do locador, se pessoa física ou empresa e a sua dependência em relação aos valores auferidos a título do aluguel do imóvel; e se há outras obrigações a serem cumpridas e que são consideradas de maior urgência, como contratos trabalhistas.

Diante dos fatos expostos, ressalta-se da importância de cooperação entre as partes nos contratos de aluguel comercial, sobretudo para que se evite uma quantidade exorbitante de ações no Poder Judiciário, já sobrecarregado, para que se estabeleça um consenso que pode muito bem ser ajustado entre locador e locatário. Vivemos em tempos de crise e isto não compõe novidade. A Ciência do Direito tem por base as relações fundadas nas ciências sociais, esta que vê no indivíduo e na sua conduta a principal causa para sistematizar paradigmas e estabelecer princípios. Considerando isso, é legítima e necessária, nos tempos atuais, a afirmação de necessidade de cooperação nos contratos de locação de imóveis, sobretudo aos destinados ao comércio, considerando o desequilíbrio inevitavelmente instaurado em diversos institutos da seara contratual por conta da Covid-19.

Rafael S. Miranda da Silva é advogado especialista em Direito do Consumidor e atua no Escritório Ribeiro, Goulart, Iurk & Ferreira da Costa Advogados.

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Roberto Wanderley Nogueira: O “AI-5” judiciário

Eis que se calardes, até as pedras falarão.” (Lucas 19:40)

No último dia 13 de dezembro, o país fez memória do Ato Institucional nº 5 (AI-5), um diploma normativo que data de mais de 45 anos, o qual tinha força de norma constitucional, mas compunha uma topografia legal paralela, metajurídica. Era como que uma constituição à parte da Constituição Federal e que, na prática, valia talvez mais do que a outra, muito em função do autoritarismo à época estabelecido, institucionalmente, no Brasil.

Em verdade, o seu valor atual é menos histórico que arqueológico, motivo pelo qual o título deste artigo é apenas uma alegoria, tanto quanto se tem reverberado nos últimos dias pela crônica política da Nação.

Felizmente, deu-se a redemocratização do país, editou-se a Constituição Federal de 1988 – chamada de “cidadã” por Ulysses Guimarães — e mais não existe o traço formal do autoritarismo do passado, embora nossa democracia insista na incipiência de seus fundamentos e no primitivismo corporativista, patrimonialista e fisiológico de suas relações, decorrentes do “constitucionalismo semântico” referenciado por Karl Loewenstein em sua “Teoria da Constituição”.

Nada obstante, hoje em dia, o papel de editar comandos normativos com aspectos de “AI-5” parece ter se transferido às atribuições dos juízes, sobretudo os das Cortes Superiores. Vez ou outra, num crescendo atitudinal que já se convencionou denominar de “ativismo judicial”, eles adotam decisões inteiramente descoladas do sistema jurídico (normativo), atropelando funções próprias dos demais poderes de Estado e vão muito além dos limites das lides, haja vista motivos conjunturais e até estatísticos dos quais não se costuma fazer cerimônia. É prática arraigada.

Sobre isso, há quem na outra ponta do exercício jurisdicional, locupletando-se dessa estranha atmosfera, proponha demandas ao talante de construções voluntarísticas e estritamente subjetivas (chicanas) que, em vez de refutadas, acabam de algum modo acolhidas para a perplexidade das partes e da Nação impactada. É como se múltiplos subsistemas estivessem ativados e em operação mais eficaz do que o próprio sistema de normas em vigor.

A hermenêutica pode operar milagres, quando arbitrariamente gerenciada, o mesmo que acontecia ao tempo dos Militares. Convém lembrar que isso não é exclusividade de instância judiciária alguma, em particular. Nas instâncias inferiores podem-se considerar dois outros fatores igualmente importantes: 1) o desconhecimendo de causa (despreparo e disfuncionalidade associadas ao processo de seleção e de fiscalização dos Magistrados, tudo associado ao volume da demanda e à escassez de recursos para enfrentá-la); e 2) o carreirismo, que açula o receio de impopularidade e o anseio de promoção com a possibilidade de graves prejuízos à prestação jurisdicional devida aos cidadãos.

De fato, a pretextos diversos, interpretação extensiva, historicista, sociológica, conforme ao que se julga ser ou não ser constitucional, dentre outros truísmos, menos o que se revela juridicamente válido em sua literalidade e no seu sentido próprio, adotam-se decisões inteiramente inusitadas em relação à Ordem Constitucional, retarda-se a eficácia de dispositivos superiores, enquanto outros são substituídos por diversos procedimentos de vernissage, assim encarada, referida Ordem, na literalidade de seus conteúdos normativos quanto no seu sentido. Tudo isso sem risco de controle político, jurídico e social, sobretudo quando os veredictos são de última ou única instância. A Constituição até que preconiza remédios sanadores desses quadros e dessas atitudes, mas, no momento, não há atores dispostos a executarem suas regras. A interdependência entre os poderes do Estado brasileiro cedeu, na prática, ao temor reverencial.

A democracia, desse modo, é, paradoxalmente, o cenário político mais favorável à denominada “Ditadura do Judiciário” na qual o primado da ignorância e da prepotência ressurge com força e esmerada aplicação tática, quer no âmbito da jurisdição, propriamente dita, quer na atividade censória dos Tribunais e do Conselho Nacional de Justiça, que é o órgão que encara um suposto controle externo do Poder Judiciário, criado à luz da Emenda Constitucional nº 45/2004. Esse dispositivo (artigo 103-B, § 4º, da CF/EC 45) não faz acepção de Juiz algum, mas se convencionou que os Ministros do Supremo Tribunal Federal não se submetem a ele.

Pois bem. Sobre a iniciativa regulatória das atividades dos juízes nas redes sociais por parte do CNJ, destaco, em primeiro lugar, que o STF não é instância constituinte e nem o CNJ, legisferante. Tratam-se de órgãos constituídos que devem, por isso mesmo, ater-se ao Ordenamento Jurídico, tal como se encontra positivado (“In claris cessat interpretatio”).

A consciência de limites dos seus agentes é fundamental ao Estado de Direito. Se lhes falta essa virtude, dessume-se ser chegada a hora exata de reciclar atores e procedimentos em razão da necessidade de manutenção da higidez do seu sistema de normas, que não deve sofrer abalos idiopáticos ou voluntarísticos de quaisquer espécies, haja vista tratar-se de uma estrutura lógica com unidade de sentido e autopoiética (que se basta a si mesma).

O esforço de regular o que já se acha regulado traduz uma inutilidade jurídica clarificada, no caso, em função da disciplina judiciária preexistente, nos termos da Constituição e da LOMAN. Se a LOMAN, norma específica, que data dos dias de ferro do militarismo, vem se revelando, todavia, hipossuficiente ou inadequada ao justo, democrático e ponderoso regulamento da ação judicial nos dias que correm e da Magistratura Nacional, seria o caso de se enviar ao Congresso a última das disciplinas para carreira de Estado ainda represada pelo burocratismo judiciário da República: o novo Estatuto da Magistratura, cujo projeto foi o constituinte de 1988 que atribuiu ao STF a responsabilidade de empreendê-lo e encaminhá-lo, mesmo que sem data aprazada. Há 31 anos foi passado esse comando, mas até agora ele não foi obedecido e a Magistratura Nacional segue como a última carreira de Estado ainda não regulada sob o pálio da Constituição Federal de 1988.

Com efeito, o CNJ não substitui o STF nessa dinâmica de obediência jurídica à vontade do legislador constituinte, ainda que por vias transversas ou pretextos de um pseudoadministrativismo expresso em resoluções, provimentos, portarias e demais atos autoconsiderados “interna corporis”, mas que disso não se trata em absoluto. A natureza jurídica de certas resoluções do CNJ tem, sim, caráter de legislação primária e isso lhe é vedado pela Constituição Federal. Corre-se, pois, o risco de autoritarismos. Desse modo é que não pode parecer estranho à Nação, crescentemente impactada, que ainda haja dignitários em atividade que exortem, com toda convicção e nenhuma cerimônia, para um suposto caráter “divinal” dos Magistrados, eis que “julgam pessoas”, não condutas. Só acreditei nessa manifestação porque a fonte da informação era boa, mais tarde comprovada, mas se trata, na realidade, de um nada cognitivo. Tempos estranhos, muito estranhos… O fato é que os juízes são tão mortais quanto a quaisquer outras pessoas e estão do mesmo modo sujeitos às misérias desta vida.

A tal exortação pública, outrossim, evoca uma outra tragédia do Poder Judiciário Nacional: o formato personalista e antirrepublicano de como suas composições são comumente eleitas e as brechas legais que permitem serem elevados aos Tribunais quadros inteiramente inusinados à função jurisdicional e à vida dos pretórios. Ora, não é difícil especular acerca das razões de certos experimentalismos que são comumente observados no sistema de Justiça brasileiro, e pelos quais a imprevisibilidade resulta bem aflorada na vida forense com alguns adminículos corporativos altamente perniciosos à boa imagem da Magistratura Nacional, a exemplo do carreirismo judiciário e de um espectro de emulações na evolução dessas carreiras e até mesmo de seus cargos isolados. O apego ao poder, sobretudo nas esperas mais acima da jurisdição, parece patológico ao ponto de atropelar dispositivos constitucionais muito específicos como os resultantes da Emenda Constitucional nº 88/2015 (“PEC da Bengala”), que obrigou os membros dos Tribunais Superiores a se submeterem a uma sabatina de retenção de seus cargos perante o Senado Federal, ao ensejo de completarem a idade limite de 70 anos para fins de permanência na atividade por mais um lustro. Essa regra, todavia, continua sendo negligenciada por força de decisão liminar adotada, por maioria, pelo próprio STF, que a considerou contrária às garantias da Magistratura, desconsiderando, outrossim, que o tema era outro: Regime Jurídico da Administração Pública Judiciária para o quê não há direito adquirido, inclusive (ADI nº 5.316).

Ao fim, a estrutura das liberdades públicas, mesmo aquelas que dizem respeito aos Juízes, é intocável por meio de medidas administrativas, não previstas em lei. Ainda, aos Juízes é deferida essa pauta de liberdades, nos termos do que a lei e somente a lei delimita. A Magistratura, sobre restringir algumas condutas de seus membros, “ex-vi-legis”, não retira dos Juízes a própria cidadania. Pensar diferente é idiossincrático, quando não traduzir abuso.

O juiz que não se sente livre na sociedade em que atua, simplesmente não decide coisa alguma, guardados os limites que a lei lhe impõe por dever de seu ofício. O valor da liberdade forja os talentos mais necessários à arte de julgar. O juiz que não se sente livre, porém, jamais estará apto a decidir os destinos de seus semelhantes.

Desse modo, a iniciativa do CNJ em regular ou restringir, para além dos limites legais, a liberdade do juiz quanto ao uso das redes sociais, é de fato um monumental contrassenso, para dizer o mínimo. Estamos, pois, diante da possibilidade de cerceamento da liberdade de expressão dos Juízes, predicado da cidadania, para além do que preconizam a Constituição Federal e a Loman. Esse tipo de experimentalismo judiciário diverge do Estado de Direito e conduz o sistema de controle da Magistratura ao arbítrio. Sobre isto, o Poder Judiciário precisa ser revisto nos mecanismos de formação de seus quadros e o controle externo da Magistratura Nacional deve ser social e jamais corporativo.

Nada obstante, cada qual deve fazer a autorregulamentação da própria atividade, justamente à luz da Constituição e da Loman. O CNJ e as Corregedorias de Justiça sempre exercerão o controle censório da disciplina judiciária, fenômeno bem distinto daquele que se intenta agora proceder sem amparo jurídico e por argumento de pura autoridade.

Diante de todo o exposto, pode-se concluir que os Juízes estão fazendo na democracia (“ativismo judicial”) o mesmo papel que os Militares fizeram na ditadura (“AI-5”).

Roberto Wanderley Nogueira

Doutor em Direito

 é juiz federal em Recife e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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Camilla da Silva: A cultura da integridade é fundamental

Falar de integridade é sempre relevante, mesmo em tempos cujo foco mundial é o combate à pandemia que assombra a humanidade. Contudo, é possível vislumbrar como a cultura da integridade empresarial pode mudar a forma de enfrentamento desse cenário, bem como as empresas que adotam posturas éticas como seu grande vetor podem se destacar nesse momento onde quase não se vê luz no fim do túnel.

Pode-se destacar a importância do Código de Ética nesses momentos de crise, o qual vai nortear a empresa para que sejam tomadas decisões sem desviar da sua missão, visão e de seus valores. Isso traz segurança de seus colaboradores e diretoria, bem como a certeza de que a empresa enfrentará seus desafios pautada nos preceitos de ética e moral, o que é conhecido e aceito por toda sua equipe.

Se a empresa não tem um código de ética efetivo, é a oportunidade de repensar, mapear riscos, fazer as devidas análises, planejar treinamentos e outras medidas aplicáveis, com foco em elaborar e colocar em prática um código de ética para orientação da conduta da empresa em todos os momentos, inclusive  em tormentas dão delicadas como esta que vivenciamos.

Com a legislação determinando a implementação de programas de compliance e integridade, não restam dúvidas de que o tema é de grande relevância no meio empresarial e que a implementação de códigos de ética, treinamentos e a introdução de uma cultura de integridade devem conquistar espaço na lista de prioridades das empresas.

Assim, nasce a cultura da integridade, que não se trata de simples cumprimento legal, mas sim de uma mudança de comportamento, da atuação efetiva da conformidade com as normas legais a fim de evitar, detectar e tratar quaisquer desvios que possam ocorrer.

Quando se fala de integridade, remete-se automaticamente ao conceito de ética e moral. Marcelo Zenkner, autor da espetacular obra “Integridade governamental e empresarial: um espectro da repressão e da prevenção à corrupção no Brasil e em Portugal”, hoje Chief Governance and Compliance Executive Officer da Petrobrás, traz um excelente conceito para integridade:

“De um modo mais direto e específico, a integridade implica a exata correspondência entre os relevantes valores morais e a realização  desses valores no momento em que, diante da situações-problemas do dia a dia, uma escolha é reclamada a fim de que uma ação ou uma omissão sejam realizadas. A integridade, já por esse aspecto, se diferencia da ética: enquanto esta traz conotações mais filosóficas e intangíveis, a primeira se preocupa mais com o comportamento diário das pessoas e com o processo de tomadas de decisões” (ZENKNER, Marcelo. Integridade governamental e empresarial: um espectro da repressão e da prevenção à corrupção no Brasil e em Portugal. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p.46.).

Essa conceituação leva a crer que a integridade está muito mais ligada à prática do que à teoria propriamente dita, pois deixa de lado a parte filosófica da ética e determina uma mudança de comportamento em que são levados em consideração os valores que a ética e a moral propõem.

O indivíduo íntegro é aquele que vai agir em conformidade não só com a lei e por medo da punição, mas de acordo com o que é certo, independentemente das circunstâncias, se é um ambiente público, privado, se há pessoas observando ou se está sozinho. E esse comportamento é constante e coerente com os preceitos que o indivíduo acredita, jamais agindo de forma contrária ao valores que ele mesmo cultua.

Os programas de integridade vão muito mais adiante do que a simples implementação de um programa de compliance. Além de cumprir com a determinação legal, prevê a real mudança na cultura da empresa, com a perpetuação de valores éticos como algo essencial e não apenas formal.

É no Decreto nº 8.420/2015, que regulamenta a Lei nº 12.846/2013, que estão contidas as diretrizes para a implementação dos programas de integridade. A intenção é de que os programas não sejam meramente “de fachada”, ou seja, com o intuito de apenas cumprir o que determina a lei, mas, sim, que efetivamente façam a diferença no aculturamento empresarial, o que trará benefícios à empresa e à sociedade como um todo.

Para que o programa de integridade se consolide é necessário envolvimento de todos os colaboradores, além da alta administração. Deve-se focar não apenas em treinamentos e teoria, mas na essência do ser humano envolvido na atividade. Somente com esse novo olhar será possível alcançar o grande objetivo deste mecanismo, que é a mudança de comportamento, o aculturamento.

Além das regras que devem ser observadas e cumpridas, deve existir uma preocupação com valores e a sua introdução no cotidiano não só do funcionário ou gestor, mas do própria atividade empresarial. Segundo André Franco Montoro: “Quanto mais voluntária e espontaneamente empresas e indivíduos adotarem um comportamento ético, menor será a propensão a transgredi (MONTORO, O Valor Econômico do Comportamento Ético. In: CARDOSO, F.H.; MOREIRA, M.M. (Coord). Cultura das Transgressões no Brasil  – Lições da História. 2.ed.São Paulo: Saraiva, 2008, p.12.).

Esses mecanismos de integridade podem ser desenvolvidos dentro da empresa levando-se em consideração não só a norma legal, mas o contexto institucional, social e cultural. Ou seja, cada corporação deve ter um programa de integridade específico e único tendo em vistas ser ímpar.

Parafraseando o CEO da Porsche, Peter Schutz, “contrate caráter, treine habilidades”. Se houver a identificação de valores éticos e morais no indivíduo antes mesmo de ingressar na empresa, será muito mais fácil a absorção dos preceitos de integridade nos quais a empresa se pauta. A probabilidade da transgressão de uma conduta ética com toda certeza é diminuta. Quanto mais funcionários íntegros ou em formação de integridade estiverem realmente dispostos a assimilar o comportamento voltado aos preceitos éticos e morais, menor será a necessidade de regulamentação rígida e fiscalização, conduzindo a empresa à saúde econômica de alta qualidade, pois estará longe de condutas que envolvam corrupção e demais ilícitos.

Sem dúvida alguma o melhor caminho a ser trilhado é aquele que conduz à integridade. A implementação de uma forma efetiva e verdadeiramente vivida dos programas de integridade beneficia a empresa como um ente personificado, seus colaboradores em todas as escalas e toda a sociedade, tendo em vista que a cultura da integridade proporciona a transparência, a verdade, a prática da ética e dos valores morais.

Essa contribuição vem com a mudança nos processos adotados pelas empresas, não em virtude de uma determinação legal visando a não ser punida , mas, sim, de uma ampliação na visão negocial, em que quem ganha é quem faz o correto, é quem age com lealdade, é quem se preocupa com os ser humano que integra seu quadro de colaboradores e com todos os participantes dessa cadeia de trabalho.

A empresa se beneficia por se destacar perante as demais, pois o programa de integridade traz a elevação moral do negócio, previsibilidade de suas ações e confiança para seus colaboradores e com quem se relaciona. Além disso, a sociedade como um todo ganha por ter um empreendimento voltado ao combate a atos ilícitos e de corrupção, que hoje são o “câncer” do mundo.

Quanto mais corporações se envolverem na cultura da integridade, mais os seres humanos serão valorizados e adotarão condutas íntegras como sendo inerente às suas ações, tanto profissionais quanto pessoais.

E nesse momento de crise que o mundo enfrenta, que irá mudar a economia em muitos aspectos, a cultura da integridade traz o diferencial para as empresas, pois o enfrentamento torna-se mais coerente e seguro. A saúde econômica e financeira de empresas que estão inseridas em uma cultura da integridade, baseada em valores éticos sólidos, que tem riscos mapeados, com frentes para gerenciar crises e valores nos quais possa se pautar, irá encarar esse grande desafio de forma mais adequada e lógica, com decisões pautadas em valores éticos levando-se em consideração acima de tudo o ser humano, protagonista nesse palco.

 

Referências bibliográficas
ZENKNER, Marcelo. Integridade governamental e empresarial: um espectro da repressão e da prevenção à corrupção no Brasil e em Portugal. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p.46.

MONTORO, O Valor Econômico do Comportamento Ético. In: CARDOSO, F.H.; MOREIRA, M.M. (Coord). Cultura das Transgressões no Brasil  – Lições da História. 2.ed.São Paulo: Saraiva, 2008, p.12.

 é advogada, sócia do escritório Carreira e Ribas Advogados, especialista em Direito Civil e Empresarial e Master of Business Administration em Compliance e Gestão de Risco.