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Iolete Silva: O STF e os direitos de crianças e adolescentes

O Brasil possui um marco legal específico para a infância e adolescência que contemplou a constituição de conselhos paritários e deliberativos na área das políticas para crianças e adolescentes, assim como a estruturação de conselhos tutelares eleitos pelas próprias comunidades. Foi no contexto de redemocratização do país e de incentivo à participação da sociedade nas decisões governamentais sobre políticas sociais, bem como no controle da implementação destas, que o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) foi criado. Trata-se de um órgão colegiado deliberativo das políticas de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente ECA (Lei 8.069, de 1990) e instituído pela Lei 8.242, de 1991.

Esse conselho de composição paritária é integrado por 28 conselheiros, sendo 14 representantes de órgãos que executam as políticas sociais básicas, como os ministérios e secretarias nacionais, e 14 representam entidades da sociedade civil que possuem atuação em âmbito nacional na promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes.

O surgimento do Conanda somente foi possível em função de lutas sociais que resultaram na construção de uma nova visão sobre os direitos de crianças e adolescentes no país e nesses 29 anos de criação do Conanda já foram aprovadas mais de 200 resoluções, diversos manifestos e notas públicas que regulamentaram o funcionamento do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes. Destaca-se a construção da política nacional, plano decenal e planos nacionais setoriais abordando diversos temas, entre eles: o enfrentamento à violência e exploração sexual praticada contra crianças e adolescentes; o sistema nacional socioeducativo, a prevenção e erradicação do trabalho infantil e proteção do trabalhador adolescente; a promoção e a defesa dos direitos de crianças e adolescentes indígenas, quilombolas, crianças e adolescentes com deficiência; a criação de parâmetros de funcionamento e ação para as diversas partes integrantes do sistema de garantia de direitos; e o acompanhamento de projetos de lei em tramitação no congresso nacional referentes aos direitos de crianças e adolescentes.

Em 2019, o Conanda sofreu um ataque brutal do governo federal, tendo no primeiro semestre daquele ano enfrentado obstáculos ao seu funcionamento quando o MMFDH não convocou as reuniões de forma regular, nem viabilizou a participação de representantes da sociedade civil, alegando que era caro e desnecessário realizar reuniões mensais, como se a pauta da infância não exigisse ações contínuas no Brasil. No segundo semestre, em setembro, o atual presidente da República publicou o Decreto 10.003/2019, cassando o mandato dos conselheiros da sociedade civil, legitimamente eleitos, e alterando drasticamente o funcionamento do Conanda.

Esse decreto reduziu o número de conselheiros titulares de 28 para 18, as reuniões mensais presenciais foram substituídas por trimestrais via videoconferência, a escolha de conselheiros da sociedade civil passou a ser por processo seletivo realizado pelo governo, ao invés de eleições, a presidência do conselho passaria a ser indicada pelo presidente da República, em vez de eleita, além de ter direito a voto extra em caso de empate em deliberações.

Como reação a esse decreto, a sociedade civil ingressou com um mandado de segurança no STF a fim de garantir os direitos da infância e adolescência, pois enfraquecer o Conanda é enfraquecer a proteção de crianças e adolescentes brasileiros.

Defendemos que seja dado provimento ao mandado de segurança para reafirmar o compromisso que o Brasil assumiu com a garantia e primazia dos direitos da infância e adolescência. São muitas as ações já realizadas pelo Conanda que têm orientado a atuação da rede de proteção e muitas ações que ainda devem ser realizadas dados os indicadores sociais que apontam crianças/adolescentes com as principais vítimas de violência no país.

Logo nos primeiros anos de funcionamento, o Conanda atuou em casos emblemáticos de violação dos direitos de crianças e adolescentes, como a “chacina da Candelária”, exigindo a apuração de responsabilidades e lutando por uma política de assistência para crianças e adolescentes em situação de rua e vem se mantendo vigilante quanto às diferentes violações que continuam a ocorrer por ausência de políticas de estado. Destaco como exemplo o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, aprovado pelo Conanda, e que é referência importante para a organização de políticas públicas, programas e serviços nessa área. São inúmeras ações exercidas enquanto órgão guardião dos direitos de crianças e adolescentes e órgão de controle das políticas realizadas pelos gestores públicos.

A participação da sociedade civil qualifica esse processo de construção. Reduzir essa participação a partir dos mecanismos propostos pelo decreto presidencial é fragilizar o Conanda e reduzir as possibilidades de controle social das políticas de proteção a crianças e adolescentes brasileiros, que não têm sido tratados com prioridade pelos governos. A participação social diversa e democrática é imprescindível para a construção de políticas que atendam às demandas sociais e para qualquer governo que tenha compromisso com a proteção social.

Iolete Ribeiro da Silva é conselheira pelo Conselho Federal de Psicologia e presidente do Conanda.

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Roberto Wanderley Nogueira: O “AI-5” judiciário

Eis que se calardes, até as pedras falarão.” (Lucas 19:40)

No último dia 13 de dezembro, o país fez memória do Ato Institucional nº 5 (AI-5), um diploma normativo que data de mais de 45 anos, o qual tinha força de norma constitucional, mas compunha uma topografia legal paralela, metajurídica. Era como que uma constituição à parte da Constituição Federal e que, na prática, valia talvez mais do que a outra, muito em função do autoritarismo à época estabelecido, institucionalmente, no Brasil.

Em verdade, o seu valor atual é menos histórico que arqueológico, motivo pelo qual o título deste artigo é apenas uma alegoria, tanto quanto se tem reverberado nos últimos dias pela crônica política da Nação.

Felizmente, deu-se a redemocratização do país, editou-se a Constituição Federal de 1988 – chamada de “cidadã” por Ulysses Guimarães — e mais não existe o traço formal do autoritarismo do passado, embora nossa democracia insista na incipiência de seus fundamentos e no primitivismo corporativista, patrimonialista e fisiológico de suas relações, decorrentes do “constitucionalismo semântico” referenciado por Karl Loewenstein em sua “Teoria da Constituição”.

Nada obstante, hoje em dia, o papel de editar comandos normativos com aspectos de “AI-5” parece ter se transferido às atribuições dos juízes, sobretudo os das Cortes Superiores. Vez ou outra, num crescendo atitudinal que já se convencionou denominar de “ativismo judicial”, eles adotam decisões inteiramente descoladas do sistema jurídico (normativo), atropelando funções próprias dos demais poderes de Estado e vão muito além dos limites das lides, haja vista motivos conjunturais e até estatísticos dos quais não se costuma fazer cerimônia. É prática arraigada.

Sobre isso, há quem na outra ponta do exercício jurisdicional, locupletando-se dessa estranha atmosfera, proponha demandas ao talante de construções voluntarísticas e estritamente subjetivas (chicanas) que, em vez de refutadas, acabam de algum modo acolhidas para a perplexidade das partes e da Nação impactada. É como se múltiplos subsistemas estivessem ativados e em operação mais eficaz do que o próprio sistema de normas em vigor.

A hermenêutica pode operar milagres, quando arbitrariamente gerenciada, o mesmo que acontecia ao tempo dos Militares. Convém lembrar que isso não é exclusividade de instância judiciária alguma, em particular. Nas instâncias inferiores podem-se considerar dois outros fatores igualmente importantes: 1) o desconhecimendo de causa (despreparo e disfuncionalidade associadas ao processo de seleção e de fiscalização dos Magistrados, tudo associado ao volume da demanda e à escassez de recursos para enfrentá-la); e 2) o carreirismo, que açula o receio de impopularidade e o anseio de promoção com a possibilidade de graves prejuízos à prestação jurisdicional devida aos cidadãos.

De fato, a pretextos diversos, interpretação extensiva, historicista, sociológica, conforme ao que se julga ser ou não ser constitucional, dentre outros truísmos, menos o que se revela juridicamente válido em sua literalidade e no seu sentido próprio, adotam-se decisões inteiramente inusitadas em relação à Ordem Constitucional, retarda-se a eficácia de dispositivos superiores, enquanto outros são substituídos por diversos procedimentos de vernissage, assim encarada, referida Ordem, na literalidade de seus conteúdos normativos quanto no seu sentido. Tudo isso sem risco de controle político, jurídico e social, sobretudo quando os veredictos são de última ou única instância. A Constituição até que preconiza remédios sanadores desses quadros e dessas atitudes, mas, no momento, não há atores dispostos a executarem suas regras. A interdependência entre os poderes do Estado brasileiro cedeu, na prática, ao temor reverencial.

A democracia, desse modo, é, paradoxalmente, o cenário político mais favorável à denominada “Ditadura do Judiciário” na qual o primado da ignorância e da prepotência ressurge com força e esmerada aplicação tática, quer no âmbito da jurisdição, propriamente dita, quer na atividade censória dos Tribunais e do Conselho Nacional de Justiça, que é o órgão que encara um suposto controle externo do Poder Judiciário, criado à luz da Emenda Constitucional nº 45/2004. Esse dispositivo (artigo 103-B, § 4º, da CF/EC 45) não faz acepção de Juiz algum, mas se convencionou que os Ministros do Supremo Tribunal Federal não se submetem a ele.

Pois bem. Sobre a iniciativa regulatória das atividades dos juízes nas redes sociais por parte do CNJ, destaco, em primeiro lugar, que o STF não é instância constituinte e nem o CNJ, legisferante. Tratam-se de órgãos constituídos que devem, por isso mesmo, ater-se ao Ordenamento Jurídico, tal como se encontra positivado (“In claris cessat interpretatio”).

A consciência de limites dos seus agentes é fundamental ao Estado de Direito. Se lhes falta essa virtude, dessume-se ser chegada a hora exata de reciclar atores e procedimentos em razão da necessidade de manutenção da higidez do seu sistema de normas, que não deve sofrer abalos idiopáticos ou voluntarísticos de quaisquer espécies, haja vista tratar-se de uma estrutura lógica com unidade de sentido e autopoiética (que se basta a si mesma).

O esforço de regular o que já se acha regulado traduz uma inutilidade jurídica clarificada, no caso, em função da disciplina judiciária preexistente, nos termos da Constituição e da LOMAN. Se a LOMAN, norma específica, que data dos dias de ferro do militarismo, vem se revelando, todavia, hipossuficiente ou inadequada ao justo, democrático e ponderoso regulamento da ação judicial nos dias que correm e da Magistratura Nacional, seria o caso de se enviar ao Congresso a última das disciplinas para carreira de Estado ainda represada pelo burocratismo judiciário da República: o novo Estatuto da Magistratura, cujo projeto foi o constituinte de 1988 que atribuiu ao STF a responsabilidade de empreendê-lo e encaminhá-lo, mesmo que sem data aprazada. Há 31 anos foi passado esse comando, mas até agora ele não foi obedecido e a Magistratura Nacional segue como a última carreira de Estado ainda não regulada sob o pálio da Constituição Federal de 1988.

Com efeito, o CNJ não substitui o STF nessa dinâmica de obediência jurídica à vontade do legislador constituinte, ainda que por vias transversas ou pretextos de um pseudoadministrativismo expresso em resoluções, provimentos, portarias e demais atos autoconsiderados “interna corporis”, mas que disso não se trata em absoluto. A natureza jurídica de certas resoluções do CNJ tem, sim, caráter de legislação primária e isso lhe é vedado pela Constituição Federal. Corre-se, pois, o risco de autoritarismos. Desse modo é que não pode parecer estranho à Nação, crescentemente impactada, que ainda haja dignitários em atividade que exortem, com toda convicção e nenhuma cerimônia, para um suposto caráter “divinal” dos Magistrados, eis que “julgam pessoas”, não condutas. Só acreditei nessa manifestação porque a fonte da informação era boa, mais tarde comprovada, mas se trata, na realidade, de um nada cognitivo. Tempos estranhos, muito estranhos… O fato é que os juízes são tão mortais quanto a quaisquer outras pessoas e estão do mesmo modo sujeitos às misérias desta vida.

A tal exortação pública, outrossim, evoca uma outra tragédia do Poder Judiciário Nacional: o formato personalista e antirrepublicano de como suas composições são comumente eleitas e as brechas legais que permitem serem elevados aos Tribunais quadros inteiramente inusinados à função jurisdicional e à vida dos pretórios. Ora, não é difícil especular acerca das razões de certos experimentalismos que são comumente observados no sistema de Justiça brasileiro, e pelos quais a imprevisibilidade resulta bem aflorada na vida forense com alguns adminículos corporativos altamente perniciosos à boa imagem da Magistratura Nacional, a exemplo do carreirismo judiciário e de um espectro de emulações na evolução dessas carreiras e até mesmo de seus cargos isolados. O apego ao poder, sobretudo nas esperas mais acima da jurisdição, parece patológico ao ponto de atropelar dispositivos constitucionais muito específicos como os resultantes da Emenda Constitucional nº 88/2015 (“PEC da Bengala”), que obrigou os membros dos Tribunais Superiores a se submeterem a uma sabatina de retenção de seus cargos perante o Senado Federal, ao ensejo de completarem a idade limite de 70 anos para fins de permanência na atividade por mais um lustro. Essa regra, todavia, continua sendo negligenciada por força de decisão liminar adotada, por maioria, pelo próprio STF, que a considerou contrária às garantias da Magistratura, desconsiderando, outrossim, que o tema era outro: Regime Jurídico da Administração Pública Judiciária para o quê não há direito adquirido, inclusive (ADI nº 5.316).

Ao fim, a estrutura das liberdades públicas, mesmo aquelas que dizem respeito aos Juízes, é intocável por meio de medidas administrativas, não previstas em lei. Ainda, aos Juízes é deferida essa pauta de liberdades, nos termos do que a lei e somente a lei delimita. A Magistratura, sobre restringir algumas condutas de seus membros, “ex-vi-legis”, não retira dos Juízes a própria cidadania. Pensar diferente é idiossincrático, quando não traduzir abuso.

O juiz que não se sente livre na sociedade em que atua, simplesmente não decide coisa alguma, guardados os limites que a lei lhe impõe por dever de seu ofício. O valor da liberdade forja os talentos mais necessários à arte de julgar. O juiz que não se sente livre, porém, jamais estará apto a decidir os destinos de seus semelhantes.

Desse modo, a iniciativa do CNJ em regular ou restringir, para além dos limites legais, a liberdade do juiz quanto ao uso das redes sociais, é de fato um monumental contrassenso, para dizer o mínimo. Estamos, pois, diante da possibilidade de cerceamento da liberdade de expressão dos Juízes, predicado da cidadania, para além do que preconizam a Constituição Federal e a Loman. Esse tipo de experimentalismo judiciário diverge do Estado de Direito e conduz o sistema de controle da Magistratura ao arbítrio. Sobre isto, o Poder Judiciário precisa ser revisto nos mecanismos de formação de seus quadros e o controle externo da Magistratura Nacional deve ser social e jamais corporativo.

Nada obstante, cada qual deve fazer a autorregulamentação da própria atividade, justamente à luz da Constituição e da Loman. O CNJ e as Corregedorias de Justiça sempre exercerão o controle censório da disciplina judiciária, fenômeno bem distinto daquele que se intenta agora proceder sem amparo jurídico e por argumento de pura autoridade.

Diante de todo o exposto, pode-se concluir que os Juízes estão fazendo na democracia (“ativismo judicial”) o mesmo papel que os Militares fizeram na ditadura (“AI-5”).

Roberto Wanderley Nogueira

Doutor em Direito

 é juiz federal em Recife e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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Entrevista: Rubens Ricupero, diplomata e ex-ministro da Fazenda

Em 2004, quando deixou sua carreira diplomática, Rubens Ricupero — diplomata e ministro da Fazenda quando da implantação do Plano Real — tinha se acostumado com a posição de prestígio alcançada pela política externa brasileira. Historiador e formado em Direito pela USP, ele deu entrevista à ConJur, por telefone, analisando a política externa brasileira e o legado da “lava jato”.

Desde a redemocratização, em 1985, o modo que o país encontrou para se projetar internacionalmente foi regido pelo mesmo princípio: diplomacia é a busca da autonomia por meio da participação. 

O conceito, segundo o diplomata, começou a cair por terra quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência. De lá para cá, diz, a política externa se tornou cada vez mais alinhada ao governo de Donald Trump e contrária a Pequim.

Mas política externa, antes de vir ao mundo, é gestada intestinamente. Em 2016, Ricupero afirmou que existia à época um “partido togado”, que podia interromper o jogo político a qualquer momento — em referência à força das autodenominadas “operações” que se arvoraram como combatentes da corrupção. 

Revisitando o assunto, Ricupero disse que a “lava jato” perdeu força no decorrer dos anos e dá seus últimos suspiros. “Aqueles filhotes da ‘lava jato’ que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a ‘lava jato’ hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade”, afirma. A conversa ocorreu antes de Sergio Moro deixar o Ministério da Justiça. 

Se a “lava jato” é passado, o “partido da toga” legou ao país um novo presidente — e sua nova política externa, conduzida por agentes que negam o isolamento social como saída para enfrentamento da epidemia de Covid-19, mas que aceleram o isolamento do país no mundo.

“O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas”, afirma.

Confira a entrevista na íntegra: 

ConJur — Em entrevista concedida ao El País, o senhor afirmou que havia dois teatros durante a ditadura: o da vida política e o dos bastidores. Os fardados podiam intervir, interrompendo a peça a qualquer momento. De lá para cá, referindo-se à “lava jato” em Curitiba, disse que o partido fardado deu espaço ao partido togado. Ainda vê essa força toda emanando da “lava jato”?

Rubens Ricupero —
Vejo uma espécie de esgotamento natural da operação, em parte por mudanças políticas — a eleição do Bolsonaro, a decisão de Moro aceitar ser ministro da Justiça, as revelações [do site] Intercept e toda a desmoralização que veio disso. A “lava jato” acabou. Ela continua existindo em tese, porque há condenações pendentes, assim como os recursos relativos ao Lula. Muito está por resolver, mas a “lava jato” acabou, assim como a “mãos limpas” acabou na Itália. O juiz que substituiu Moro não tem, nem de longe, aquele tipo de ativismo jurídico que o Moro tinha, ou aquele entendimento com os procuradores. Houve também uma certa aversão do STF e de outras instâncias. Aqueles filhotes da “lava jato” que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a “lava jato” hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade. 

ConJur — O senhor já afirmou em algumas ocasiões que o confronto inicial gerado pela “lava jato” teve importância e gerou consequências positivas. Hoje, com tudo que se sabe sobre a atuação do ex-juiz Sergio Moro e dos procuradores, mantém essa opinião?

Rubens Ricupero —
Como consequência política, a “lava jato” teve um impacto enorme na história brasileira. É responsável por boa parte do que aconteceu nos últimos anos. Basta ver que os escândalos de corrupção colocaram fim ao período de hegemonia do PT. Até hoje o PT não se reergueu do golpe que levou. Por outro lado, sempre tive dúvidas sobre a duração da “lava jato”, que parecia exagerada enquanto operação judiciária. Além desse aspecto, a operação, em essência, pela própria natureza do Judiciário, continha uma limitação que, cedo ou tarde, acabaria por comprometê-la: operações policiais e judiciárias podem ser importantes para trazer luz sobre esquemas de corrupção, mas não conseguem por fim a eles. Isso acontece porque as soluções só podem ocorrer por meio de mudanças legislativas, algumas até de ordem constitucional, já que o que existia na raiz da corrupção eram problemas que apontavam para as imperfeições das instituições, para os defeitos que vão desde a politização das estatais até a ineficácia dos mecanismos de fiscalização. 

O saldo da “lava jato” é que algumas pessoas foram punidas, com grau maior ou menor de adequação, mas as raízes do problema não foram removidas. Esse problema permanece, tanto que uma das suas consequências foi a de dar ao presidente Jair Bolsonaro a justificativa de não tentar fazer um presidencialismo de coalizão, negociando com os partidos políticos ministérios, verbas e cargos de estatais. Por outro lado, isso cria um conflito maior com o Congresso, o que, novamente, demonstra o quanto as instituições são defeituosas. Em resumo, vejo a “lava jato” como uma tentativa de atacar os sintomas, não as causas da doença. Talvez tenha conseguido inibir os sintomas por um tempo, mas não removeu as causas profundas e não fez isso porque não podia fazer. A operação teve um papel histórico, mas, por todos os defeitos práticos, e em certos momentos deixando visível um ativismo jurídico muito grande, a “lava jato” deixou de existir.

ConJur — Falando agora de política externa: é possível resumir a diplomacia brasileira, a partir da redemocratização, como a busca da autonomia por meio da participação. Com essa atuação, o país conquistou prestígio. Agora, a marca definidora da política externa é o alinhamento com os Estados Unidos. Quais os impactos disso?

Rubens Ricupero —
É mais do que isso. Não é um alinhamento com os EUA, mas com o governo de Donald Trump, que, por sua vez, conduz uma campanha sistemática contra todas as instituições do sistema internacional criado no pós-guerra — o multilateralismo, um sistema que funciona na base de normas, de leis, não da força. Ao se alinhar com esse governo, o Brasil trabalha contra o seu próprio interesse, pois os EUA têm muito poder. Já o Brasil é um país com pouco poder, que pode se tornar vítima da força alheia. Nosso país não é uma potência econômica e militar. Mas tem poder brando, que é a diplomacia do convencimento, da persuasão, da negociação. Ao se alinhar com os EUA, abrimos mão disso e nos subordinamos a um país que, esse sim, tem poder e que pode utilizá-lo de maneira deflagradora, sem nenhum limite. 

O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas.

ConJur — Outra consequência apontada é o esgarçamento da relação com a China. Essas relações podem se desgastar ainda mais?

Rubens Ricupero —
Essa deterioração é, em grande parte, culpa daquele núcleo mais ideológico, mais fanatizado do governo brasileiro. Mas, para além disso, há uma competição estratégica entre EUA e China, em todos os sentidos — militar, econômico, político etc. Quando o Brasil se alinha a Trump, ele está comprando a agenda norte-americana, que vem com todas as inimizades que os Estados Unidos têm: contra a China, Rússia, Irã, Cuba, e assim por diante.

Portanto, sem nenhuma justificativa para isso, o Brasil está no momento em posição antagônica a todos esses países que constituem grandes mercados para as nossas exportações. É claro que de imediato a China não vai, por exemplo, deixar de comprar soja do Brasil, pois não há uma alternativa fácil para nos substituir como fornecedores de alguns produtos. Mas, no médio e longo prazo, as relações comerciais ser tornarão cada vez mais difíceis. O Brasil está jogando todas as suas esperanças em um país [EUA] do qual ele não pode esperar nada. Nem mercado, nem investimento. 

ConJur — Se não há justificativas, essa postura brasileira com relação à China ocorre por uma questão meramente ideológica?

Rubens Ricupero —
Puramente ideológica. É o equívoco de uma maneira de ver o mundo. O Brasil vê o mundo com os olhos da guerra fria. É uma visão completamente fora do tempo histórico, anacrônica, porque o país se comporta hoje em relação à China como o governo militar do Castelo Branco em 1964 se comportava em relação à União Soviética. O Brasil vê a China como o centro do comunismo mundial, uma espécie de “origem do mal”, quando nada disso corresponde à realidade internacional. 

ConJur — O senhor disse que os EUA — e agora o Brasil — se portam de modo contrário ao sistema criado no pós-guerra, indo no caminho do anti-multilateralismo. Agora o mundo passa por uma pandemia. O coronavírus matou o multilateralismo?

Rubens Ricupero —
O que está acontecendo com a pandemia é que quase todas as reações têm sido majoritariamente de tipo nacional, infelizmente. Em um primeiro momento, é até compreensível que seja assim, porque diante de uma emergência cada nação reage da forma mais rápida que pode e isso quase sempre é mais fácil no plano nacional. Mas deveríamos rapidamente passar a uma fase de coordenação internacional, tanto para combater a doença quanto para combater as consequências econômicas dela. Há algum esboço para utilizar o Grupo dos Vinte [G20, formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das maiores economias do mundo] para sustentar a dívida dos países mais pobres durante um ano. Mas são reações fracas.

Mesmo na União Europeia, os países mais afetados pelo coronavírus, como a Itália e a Espanha, não receberam uma ajuda significativa da comunidade europeia. A Itália recebeu mais ajuda da China do que dos seus vizinhos no começo. Agora a União Europeia começa a reagir, mas o panorama é de sombras e luzes — mais de sombras. Existe algum grau de cooperação, mas é pequeno. E existe muitos, infelizmente muitos exemplos de egoísmo nacional, inclusive esses que afetaram o Brasil, de países que se atravessaram para comprar equipamentos que já tinham sido negociados. Então, sem dúvidas, o multilateralismo está em crise. Mas não desespero dele, porque acho que existem inúmeras perspectivas de que isso melhore. Por exemplo, ainda é incerto o que vai acontecer na eleição dos EUA. É possível que, devido a tudo isso, as eleições acabem enfraquecendo o atual presidente e ele não consiga se reeleger. Se ele não se reeleger, teremos condições de recuperar muito do que se perdeu em matéria de multilateralismo, porque 90% ou mais do que está acontecendo é praticamente resultado da ação do governo Trump. 

ConJur — Dentro desse cenário de pandemia, o senhor vislumbra a possibilidade de que surja uma nova ordem econômica e jurídica?

Rubens Ricupero —
Sobre isso eu tenho dúvidas. Pandemias e epidemias, mesmo as muito mais graves que essa, em geral nunca mudaram o sistema econômico-político. Quando elas foram muito fortes, elas afetaram tendências que já existiam. Mas mesmo a peste negra, a peste bubônica, assim como as pestes que se seguiram, nunca afetaram o sistema político das monarquias da época. As tendências, as rivalidades que existiam, assim como os sistemas econômicos de troca, permaneceram iguais. Os sistemas econômicos, políticos e jurídicos obedecem à ação de forças profundas.

O que podem ocorrer são mudanças de curto prazo, que às vezes se seguem quando há acontecimentos suficientemente poderosos. Eu não ficaria surpreso, por exemplo se, passada essa crise, os países buscarem adquirir uma certa autonomia, uma certa autossuficiência em matéria de produtos farmacêuticos e médico-hospitalares. As nações podem buscar reduzir a dependência sobre esses produtos que existe com relação à China e outros países asiáticos. Isso pode acontecer, mas não vejo a possibilidade de uma reforma profunda na estrutura do capitalismo ou do sistema político que temos hoje. 

ConJur — Com o avanço do novo coronavírus, aliás, foram adotadas algumas medidas emergenciais. O Senado aprovou, por exemplo, o PL 1.179/20, que, entre outras coisas, flexibiliza dispositivos do Código Civil. O que acha de medidas como essa?

Rubens Ricupero —
A ideia básica de tentar encontrar uma solução para o momento é correta. Há um abalo muito grande até no sistema normal de pagamentos. Muitas empresas e indivíduos não são capazes de cumprir suas obrigações. Em certos casos, as regras precisam ser suspensas, da mesma forma como está se fazendo com regras de contrato de trabalho, flexibilização que busca manter a existência do emprego. Portanto, acredito que essas iniciativas são necessárias. Não me refiro especificamente ao PL citado, mas à tentativa de dar uma resposta ao que está acontecendo. Os contratos são vigentes enquanto mantidas as condições em que eles foram celebrados. Quando as condições se alteram de modo muito radical, muitas vezes não há a possibilidade de manter os termos tal como foram acordados. 

ConJur — Nos últimos anos, uma série de conflitos entre Legislativo e Executivo acabaram sendo resolvidos pelo Judiciário. O que pensa a respeito dessa judicialização?

Rubens Ricupero —
Eu tenho a impressão de que esse fenômeno coincide com o agravamento da crise institucional. Vivemos uma crise prolongada, que começa no primeiro governo da Dilma Rousseff e que se prolonga até hoje. O impeachment não resolveu a crise e em cada governo surgem problemas novos. No fundo, o quadro é de mau funcionamento das instituições. O sistema presidencialista tem uma rigidez que não permite a solução de problemas quando há impasse entre Executivo e Legislativo — e a tendência é a de que esses poderes entrem cada vez mais em conflito.

Um exemplo que vem logo à mente é a incapacidade que o Legislativo tem de resolver problemas com conteúdos ligados à questões de tipo moral: moral familiar, moral sexual, aborto, casamento entre homossexuais etc. O Legislativo fica paralisado diante dessas questões porque há uma representação grande de grupos religiosos. Então, embora sejam claramente do âmbito do Legislativo, esses temas acabam indo ao Judiciário. Quase todas as grandes decisões envolvendo temas como esses — o aborto no caso de fetos anencéfalos, casamento homoafetivo — foram talhadas pelo Judiciário. Creio que isso continuará acontecendo, porque a solução definitiva é fazer uma reforma profunda do sistema político, o que não parece estar no horizonte. Assim, as pautas continuarão indo ao Judiciário. 

ConJur — Em casos como esses, em que o Legislativo deixa um vácuo ao não tratar de certas questões, é justificável a atuação do Judiciário?

Rubens Ricupero —
Existe a necessidade colocada pelo próprio sistema político. Não se pode conviver com o vácuo de poder. Há decisões que precisam ser tomadas. Se não forem pelas instâncias que normalmente deveriam resolver o problema, acabam indo aos tribunais. Nesse sentido, a necessidade justifica as decisões judiciais. Não é o ideal, mas não vejo outra saída.