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Direitos instituídos na nova lei trabalhista e o PLC 15/2020

O presente artigo tem por escopo rápida e objetiva abordagem dos principais trechos do Projeto de Lei de Conversão 15 de 2020 (fruto da MP 936), após a aprovação pelo Congresso, a fim de oferecer visão trabalhista panorâmica e estratégica aos gestores de empresas e operadores do direito, assim como dar conhecimento aos trabalhadores de direitos instituídos.

A Medida Provisória 936, do último dia 1º de abril, teve por objeto a instituição do Programa Emergencial do Emprego e da Renda e dispôs acerca de medidas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública, nomeadamente instituição do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, combinada com a redução proporcional de jornada e de salários e/ou a suspensão temporária do contrato de trabalho. 

Durante o trâmite legislativo, já convertida no Projeto de Lei de Conversão 15 de 2020, passou a tratar em seu art. 32, de matérias abarcadas pela MP 905[3]. Tais temas, no entanto, foram impugnados ao argumento de tratar-se de assuntos estranhos ao escopo da MP 936, ficando rejeitados por maioria.

Acabou por abarcar, no entanto, a Lei 10.101 de 2000, que cuida da participação nos lucros e resultados, especialmente para autorizar a instituição de programa de resultados para entidades do terceiro setor, tal como já defendíamos dado o direito constitucional do empregado de tais entidades.[4]

O principal ponto do PLC 15, contudo, diz respeito à possibilidade de ampliação do prazo das medidas emergenciais previstas na MP 936, consoante se passa a abordar.

Possível ampliação do período das medidas
A MP 936, consoante redação dos arts. 7º e 8º, prevê a redução de jornada e salário proporcionais por até 90 (noventa) dias e a suspensão dos contratos de trabalho por até 60 (sessenta) dias, respectivamente. Tais medidas podem ser combinadas, desde que respeitado o prazo máximo de 90 (noventa) dias.

A novidade do aprovado PLC 15 está nos artigos 7º, §3º; 8º, §6º; 16; 16, parágrafo único; e 18, parágrafo único, que outorgam ao Executivo a faculdade de prorrogar o prazo máximo de redução proporcional de jornada de trabalho e de salário e/ou suspensão de contratos inicialmente previstos, o que espera-se seja levado a efeito já nos próximos dias[5], após a sanção da lei pelo Presidente da República.

Aplicação setorial das medidas
O texto final aprovado pelo Congresso espanca qualquer dúvida quanto à possibilidade de uso das medidas de redução proporcional de jornada de trabalho e de salário e/ou suspensão de contratos, de forma setorial, departamental, parcial ou na totalidade dos postos de trabalho, tal como previsto em seus arts. 7º e 8º, o que confere ao empregador a possibilidade de gerir o negócio por área ou setor, de acordo com as necessidades do mercado, tomando-se o cuidado com práticas que possam ter conotação discriminatória ou não isonômica.  

Contribuição do segurado
O art. 7º, § 2º do PLC 15 permite a complementação dos valores de recolhimento pelo segurado do INSS durante a redução da jornada de trabalho e de salário, ou mesmo o recolhimento como segurado facultativo nos casos de suspensão de contrato de trabalho.

Dedução de IR no pagamento da ajuda compensatória
A exemplo da previsão constante do texto original da MP 936, voltada à empresa que recolhe imposto de renda com base no lucro real, os valores da ajuda compensatória podem também ser deduzidos para efeito de apuração de IR quando se trata de rendimentos do trabalho não assalariado da pessoa física,[6] empregador doméstico e o resultado da atividade rural.[7]

Gestante
O art. 22, a exemplo do art. 10 do texto aprovado, deixa indene de dúvidas a possibilidade de a empregada gestante, inclusive a doméstica, participar do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, observadas as condições estabelecidas no PLC 15.

Na forma dos §§ seguintes, e por evidente, se ocorrido o evento caracterizador do início do benefício de salário-maternidade, o empregador deverá comunicar ao Ministério da Economia, e a empregada ingressará em auxílio maternidade, pago com base no salário de contribuição, considerado para tanto o valor relativo ao período anterior à redução de jornada e salário e/ou suspensão de contrato, valendo a mesma regra, na forma do art. 22, para a adoção de criança.

Garantia de emprego gestante
A garantia de emprego prevista pela MP 936, relativa ao período de aplicação das medidas de redução de jornada e salário e/ou suspensão de contratos, deve ser computada para a gestante, na forma do art. 10, inciso III, a partir do término da garantia legal de emprego já existente nesta condição, ou seja 5 meses após o parto, consoante alínea b do inciso II do caput do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Impossibilidade de negociação individual
Empresas com faturamento superior a R$ 4.800.000
Em sua redação original, a MP 936 previa que o acordo poderia ser firmado com qualquer empregado, desde que limitada a 25% de redução de jornada e salário, ou sem essa limitação, desde que o empregado percebesse menos do que três salários mínimos (R$ 3.145) ou detivesse a condição de autossuficiente (salários superiores a dois valores do RGPS e portador de diploma de nível superior).

Há importante modificação no texto final aprovado. Com efeito, consoante art. 12, fica vedado o acordo individual para empregado com salário igual ou inferior a R$ 2.090, na hipótese de o empregador ter auferido, no ano-calendário de 2019, receita bruta superior a R$ 4.800.000, observada a ressalva do §1º do mesmo artigo.

Com efeito, ainda que não enquadrado nas condições admissíveis para o acordo individual, este pode ser firmado quando do acordo não resultar diminuição do valor total recebido mensalmente pelo empregado, incluídos neste valor o Benefício Emergencial, a ajuda compensatória mensal e, em caso de redução da jornada, o salário pago pelo empregador.

Aposentados
Considerada a regra de vedação de percepção do BEm (Benefício Emergencial) pelos aposentados, e conforme art. 12, § 2º, a redução de jornada e salários e/ou suspensão de contratos só será admitida para empregados em gozo de aposentadoria quando, além do enquadramento em alguma das hipóteses de autorização do acordo individual de trabalho, o empregador pagar ajuda compensatória mensal, equivalente no mínimo ao benefício que o empregado receberia se não houvesse a vedação ao percebimento, tomando o seguro desemprego como base de cálculo.

Já se a empresa teve faturamento superior a R$ 4.800.000 em 2019, a ajuda compensatória mensal deverá ser no mínimo igual aos 30% que o empregador já deveria arcar, somado ao valor da ajuda compensatória equivalente ao seguro desemprego que caberia não fosse a vedação.

Digitalização
Observado o cenário de digitalização, inaugurado mais fortemente com a Lei da Liberdade Econômica, e na forma do Decreto 10.278, somado ao isolamento social, o art. 12, § 3º, expressamente prevê que os acordos individuais escritos poderão ser realizados por quaisquer meios físicos ou eletrônicos eficazes.

Conflito de conteúdo entre normas coletivas e acordos individuais
O art. 12, §5º, do PLC 15, expressamente prevê que o acordo individual produz seus efeitos até que sobrevenha norma coletiva, passando a partir de então a se observar o teor do acordo coletivo de trabalho ou convenção coletiva de trabalho, salvo se o acordo individual for mais benéfico, quando este prevalecerá.

Ultratividade da norma coletiva
Consoante art. 17 do texto aprovado, as cláusulas das convenções coletivas ou dos acordos coletivos de trabalho vencidos ou vincendos[8] no período do estado de calamidade pública, permanecerão sendo aplicados aos contratos individuais de trabalho, salvo se sobrevier novo instrumento coletivo.

Vedação da dispensa de pessoa com deficiência
Como norma de proteção, o art. 17, inciso V, expressamente veda a dispensa sem justa causa do empregado pessoa com deficiência. Antes da MP 936, a dispensa já poderia ser objeto de discussões judiciais, especialmente quando implicasse em descumprimento de cota. Com a medida, gera-se uma obrigação inescusável para o empregador em prol do social.

Opção pelo melhor benefício

Como se sabe, é vedada a cumulação do BEm (Benefício Emergencial para Manutenção do Emprego e da Renda) com auxílio emergencial. Disciplina, no entanto, o art. 18, § 5º, a garantia do direito ao melhor benefício.

Cancelamento do aviso prévio
Nem precisaria, pois já albergado pela autonomia da vontade,  mas o art. 23 do PLC 15 expressamente prevê que empregador e empregado podem, em comum acordo, optar pelo cancelamento de aviso prévio em curso.

Repactuação de operações bancária
Visando preservar a dignidade dos trabalhadores atingidos por medidas de redução de jornada e salário e/ou suspensão de contratos de trabalho, ou mesmo contaminado pela Covid-19,[9] o art. 25 do PLC 15 prevê durante a vigência do estado de calamidade pública, a opção pela repactuação das operações de empréstimos, de financiamentos, de cartões de crédito e de arrendamento mercantil contraídas com o desconto em folha ou remuneração, de que trata a Lei nº 10.820.

E ainda, se repactuado, garantido o direito à redução das prestações na mesma proporção da redução salarial, com carência de até 90 (noventa) dias, e mantidas as condições financeiras de juros e encargos, ou mesmo diminuídas se a instituição assim entender.

Empregados dispensados até 31 de dezembro de 2020, a seu turno, terão direito à novação das operações para um contrato de empréstimo pessoal, com o mesmo saldo devedor anterior e as mesmas condições de taxa de juros, encargos e garantias originalmente pactuadas, acrescida de carência de até 120 dias.

Garantia de mínimo existencial
Na forma do art. 28 do PLC 15, o empregado, inclusive o doméstico, dispensado sem justa causa durante o estado de calamidade pública, perceberá o valor de R$ 600 durante três meses, se não preencher os requisitos de habilitação ao seguro-desemprego.[10]

Na mesma esteira de garantia de um mínimo existencial, o beneficiário que tenha direito à última parcela do seguro-desemprego, nas competências de março ou abril do ano de 2020, fará jus ao recebimento do benefício emergencial, no valor de R$ 600 mensais, pelo período de três meses a contar da competência de recebimento da última parcela.

Fato do Príncipe — Inaplicabilidade
Lembram da manifestação do Presidente da República de que “se o governador ou prefeito mandarem fechar o comércio … tem um artigo lá na CLT que diz que eles pagam a conta!”

Referia-se o Presidente ao art. 486 da CLT, que cuida do fato do príncipe, utilizado por várias empresas que demitiram trabalhadores sequer observando o pagamento das verbas rescisórias previstas no diploma que trata da matéria.

Pois bem, o art. 30 do texto aprovado deixa claro que o art. 486 da CLT não se aplica na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, para o enfrentamento do estado de calamidade pública.

Benefícios fiscais
O PLC 15 trata ainda da prorrogação dos benefícios fiscais de 17 setores, dentre os quais tecnologia e construção civil, o que servirá, espera-se para auxiliar as empresas na manutenção de empregos e da atividade econômica, e na retomada do crescimento.

Considerações finais
Em rápidas pinceladas, sem a menor ousadia de esgotar a matéria, julga-se cumprida a missão de oferecer um panorama geral sob o viés trabalhista quanto ao texto aprovado no Projeto de Lei de Conversão 15, de 2020.

[3] Que foi retirada de pauta pelo Governo ante o anúncio do Senado de que não a votaria dentro do prazo legal. Dentre as medidas, alteração da jornada dos bancários, compensação dos valores pagos a título de gratificação de função para bancários, na hipótese de deferimento de horas extras, regras de negociação coletiva para os bancários; além de alteração do art. 457 e outros dispositivos da CLT a fim de deixar clara a natureza não salarial da alimentação; assim como fixação da correção monetária dos débitos trabalhistas para após a sentença; previsão expressa de uso do depósito recursal para diminuição de valores de condenação trabalhista e substituição do depósito recursal a qualquer tempo por fiança bancária ou seguro judicial, sem exigência de acréscimo no valor do depósito, dentre outros.

[8] salvo as que dispuserem sobre reajuste salarial e sua repercussão nas demais cláusulas de natureza econômica,

[10] Já o intermitente, diante das regras próprias do art. 18, não perceberá o benefício emergencial na hipótese de extinção de contrato de trabalho.

Célio Pereira Oliveira Neto é doutor, mestre e especialista em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor em cursos de pós-graduação, membro do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior (IBDSCJ), da Comunidad para la Investigación y el Estudio Laboral y Ocupacional, coordenador do Conselho de Relações do Trabalho da Associação Comercial do Paraná, do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Recursos Humanos do Paraná, diretor jurídico da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades, vice-presidente da Comissão da Agenda 2030 do IAB, presidente do Instituto Mundo do Trabalho (IMT) e sócio fundador da Célio Neto Advogados.

 é mestre em Direito pela PUC-SP; professor de Direito do Trabalho da FMU; especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais; organizador do e-book digital “Coronavírus e os Impactos Trabalhista” (Editora JH Mizuno); coordenador do e-book “Nova Reforma Trabalhista” (Editora ESA OAB/SP, 2020); organizador das obras coletivas “Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista” (Editora LTr, 2019) e “Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada” (Editora JH Mizuno, 2019); coordenador do livro digital “Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões” (Editora Eduepb, 2018); palestrante e instrutor de eventos corporativos “in company” pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe.

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Alessandro Leite: A procuradoria municipal na crise

Historicamente, o primeiro registro da advocacia pública no Brasil remonta ao 1º Foral de Olinda, datado de 1537, que trouxe a figura do procurador do Conselho da Villa de Olinda. Quase meio milênio depois, verifica-se que o déficit de procuradores municipais no cenário jurídico pátrio ainda é extremamente preocupante, o que não deixa de ser um grande paradoxo, tendo em vista que, apesar de sermos os primogênitos da advocacia pública brasileira, seremos, certamente, os últimos a ser instituídos na integralidade.

Indispensável pontuar nesse contexto o papel da Associação Nacional de Procuradores Municipais (ANPM), que vem há mais de duas décadas fomentando a instituição e o fortalecimento das Procuradorias Municipais no país, atendendo, desta forma, ao pórtico do artigo 132 da Carta Magna, que prevê a advocacia pública como função essencial à Justiça.

Há 17 anos, tramita no Congresso Nacional a PEC que constitucionaliza expressamente a carreira dos procuradores municipais. Aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados, atualmente a PEC encontra-se no Senado Federal, esperando pauta para votação. Nesse longo período de tempo, várias foram as tratativas e articulações no meio político. A aprovação ainda não veio, é bem verdade, mas ainda assim os avanços continuam e são inegáveis.

Em 2019, tivemos uma grande vitória no Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do RE 663696. impetrado pelos destemidos colegas da Procuradoria de Belo Horizonte. Nos autos, discutia-se o teto remuneratório dos procuradores municipais. No mérito, obtivemos a confirmação, por meio da Egrégia Corte, em sede de repercussão geral, de que estávamos insertos no seleto rol das funções essenciais à Justiça previstas no Capítulo IV, Título IV, da Constituição Federal.

Com efeito, tem a ANPM buscado a criação de procuradorias nos 5.570 municípios brasileiros. São abnegados colegas, figurando ora como delegados, ora na diretoria, ou mesmo integrando o Conselho Deliberativo através da presidência das várias associações locais, além de contar com voluntários que se espalham pelo país em busca do fortalecimento das procuradorias e das carreiras de procurador municipal.

Na Paraíba, por exemplo, avançou-se muito nos últimos dois anos com a celebração de cerca de 185 termos de ajustamento de conduta pelo Ministério Público Estadual, fato que propiciará a realização de mais de cem concursos para procurador municipal no Estado. O caso foi tão exitoso e teve tamanha repercussão que foi apresentado no último Congresso Nacional de Procuradores Municipais, realizado em Brasília, em outubro de 2019, culminando com a promessa de que a experiência seria replicada pelos colegas em outras regiões do país.

Com a decretação da Pandemia da Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde no mês de março do ano corrente, a situação jurídico- institucional dos entes federados e de seus respectivos servidores foi profundamente modificada. O advento do teletrabalho como regra, a edição quase que diária de atos normativos para disciplinar o período extraordinário, a intensa litigiosidade entre os entes… Além disso, outros grandes debates emergiram. Costuma-se dizer que o Direito está sendo literalmente reescrito nos dias atuais.

Nesse passo, entre as discussões acima mencionadas, destaca-se no contexto associativo da ANPM a que trata da viabilidade ou não da realização das eleições municipais neste ano. Há várias correntes de pensamento sobre o tema, bem como PECs tramitando no Congresso Nacional para tratar do assunto, dada a relevância e urgência da matéria.

Desta feita, em apertada síntese, três possibilidades surgiram:

I ) Realização do pleito em outubro, como normalmente ocorre;

II) Adiamento do pleito para dezembro;

III) Cancelamento do pleito e, consequentemente, a unificação dos mandatos e das eleições para todos os cargos eletivos em 2022.

Tem ganhado corpo no mundo político/jurídico e tem sido defendida, inclusive, pelo presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, a tese estabelecendo que as eleições municipais devem ser realizadas neste ano, sendo adiadas para o mês de dezembro. Segundo essa possibilidade, teríamos o chamado primeiro turno no primeiro domingo de dezembro e o segundo no terceiro domingo, às vésperas do Natal. No tocante aos novos mandatos, não teríamos mudanças, eles iniciariam em 1º janeiro de 2021.

Ressalte-se, por oportuno, que nos municípios brasileiros temos eleições bastante acirradas, com envolvimento direto dos munícipes nos pleitos. É preciso lembrar ao leitor, também, o caráter extremamente heterogêneo dos municípios brasileiros. Enquanto temos de um lado cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, com alguns milhões de habitantes, temos também Araguainha, Borá e Serra da Saudade, que não completam sequer o primeiro milhar de habitantes, de acordo com os dados oficiais.

É prática comum nos municípios brasileiros a não efetivação da chamada transição democrática entre antecessores e sucessores. Não obstante o aperfeiçoamento e o fortalecimento dos órgãos de controle, bem como das recomendações dos Tribunais de Contas e do monitoramento dos Ministérios Públicos Estaduais, o que se vê é a sonegação desenfreada de informações, a exclusão de dados em sistemas, o sumiço de materiais e equipamentos, entre outras atitudes capazes de inviabilizar a futura gestão.

Isso num cenário em que os “novos gestores” tinham 60 ou 80 dias para se inteirar da realidade que encontrariam no primeiro dia de mandato. Imagine em um cenário de 10 dias de transição, com as festividades de fim de ano entre eles.

Nessa difícil, mas provável, conjuntura que se avizinha, emerge a importância cada vez maior da figura do procurador municipal de carreira, nomeado após concurso público de provas e títulos. Detentor de parte da memória jurídica do município, ele certamente facilitará os primeiros dias da gestão, propiciando que esta possa ter conhecimento da realidade “intra muros”, permitindo o compartilhamento de informações e auxiliando o novo gestor nos primeiros passos do mandato.

É pelos procuradores municipais que o novo gestor saberá quais os programas estão sendo executados e não poderão sofrer interrupções, mormente em razão da sucessão do gestor. Além disso, a PGM vai instruir, juridicamente, os primeiros atos do governante, como elaboração de leis decretos, portarias, etc. Importante lembrar que o município poderá estar sujeito a alguma obrigação imposta pelo Judiciário e, neste caso, somente o procurador poderá informar como o novo prefeito deverá proceder diante de uma sentença judicial.

O escolhido nas eleições não pode ter ciência de todos esses fatores apenas depois do início do seu mandado. Esse conhecimento deve acontecer antes da sua posse, mesmo porque alguma informação poderá e deverá influir nos primeiros atos da nova gestão. Nesse ponto, ressalta-se a importância de uma transição de mandatários clara, amistosa e em sintonia com os melhores interesses dos administrados, o que resta prejudicado com a sensível diminuição do período desta passagem, mas o que se tornaria impraticável sem a iluminação jurídica emanada dos essenciais procuradores municipais, os quais preexistem a qualquer governante e permanecem na Administração após o término do mandato.

Não se sugere no presente que o procurador seja a panaceia para os tempos de tormenta a serem enfrentados pelo gestor, mas certamente dividir o fardo com uma procuradoria instituída e qualificada facilitará a travessia.

É tempo de fortalecer as instituições, elas são o fundamento do Estado democrático de Direito e esse é o porto seguro para efetivação de valores fundamentais previstos na Constituição Cidadã.

 é procurador do município de Campina Grande (PB) e diretor da ANPM.

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Demócrito Reinaldo Filho: Prorrogação da LGPD é risco à sociedade (página 1 de 3)

Edição extra do Diário Oficial da União foi publicada na noite do dia 29 de abril contendo o texto da Medida Provisória 959/2020, que prorroga a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para o dia 3 de maio de 2021. A MP foi editada para facilitar o pagamento de benefícios instituídos como ajuda financeira para os brasileiros durante o período da pandemia do coronavírus a Caixa Econômica Federal perde a exclusividade no pagamento dos benefícios, que agora podem ser recebidos também nas agências do Banco do Brasil —, mas destinou um único artigo para ampliar a vacatio legis da Lei nº 13.709/2018 (LGPD)[1], que entraria em vigor em 16 de agosto deste ano.

A medida pegou a todos de surpresa, pois atropelou o Congresso, onde tramita projeto de lei (PL 1179/2020), já aprovado pelo Senado e em análise na Câmara Federal, que prorroga a vigência da LGPD para janeiro de 2021 [2]. No dia 29, mesmo dia da publicação da MP, havia inclusive sido aprovado regime de urgência para tramitação do PL [3].  

O adiamento da vigência da LGPD constitui grave erro e acentuado risco para a sociedade brasileira, no atual momento.

É bastante frágil o argumento de natureza econômica, utilizado pelos defensores da prorrogação da vigência da LGPD. Alega-se que as empresas brasileiras não tiveram tempo de se adaptar à lei e ainda serão obrigadas a realizar despesas para se adequar às suas exigências. Sobrecarregá-las num momento desses, em que se inicia uma recessão econômica profunda, como decorrência da crise de saúde, vai dificultar a recuperação da economia brasileira. As empresas terminarão sofrendo com as pesadas multas previstas na nova LGPD, inviabilizando a recuperação em tempos extremamente difíceis, concluem.

Essa visão não espelha a realidade, do ponto de vista jurídico. As empresas não deixarão de ser responsabilizadas pelos danos que causarem por manipulação ou uso indevido de dados pessoais durante o período da pandemia. O nosso ordenamento jurídico já dispõe de diversos instrumentos normativos que atribuem responsabilização por danos causados a consumidores de produtos e serviços. A Constituição, o Código Civil (Lei nº 10.406/2002), o CDC (Lei 8.078/90), o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a Lei 12.414/2011 (que disciplina bancos de dados com informações de crédito) são suficientes para atribuir dever de reparação por danos causados por qualquer empresa que, no desenvolvimento de atividade de tratamento de dados, cause danos a consumidores ou terceiros. Em caso de vazamento de informações, manipulação indevida de dados de saúde, compartilhamento não autorizado de dados ou qualquer acidente informacional, que ocorra durante o período ou logo após a pandemia, o controlador não conseguirá fugir à responsabilização pelos danos causados (quer sejam de ordem material ou moral). Poderá ser responsabilizado na esfera judicial e também sofrer a imposição de multas. É bom não esquecer que o artigo 12, II (c/c artigo 11), do Marco Civil (Lei nº 12.965/2014) prevê multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício”, por acidente que ocorra “em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet”. Com base no Marco Civil e no CDC, o Procon-SP multou ano passado a Google e a Apple em R$ 10 milhões e R$ 7,7 milhões, respectivamente, pela distribuição de um aplicativo que compartilhava os dados dos usuários com terceiros [4].

As empresas tiveram, sim, tempo para se adaptar e conhecer o conteúdo da LGPD. O projeto de lei tramitou durante anos no congresso nacional até se transformar na Lei nº 13.709/2018 e, antes mesmo da iniciativa legislativa, o debate sobre a proteção de dados pessoais no Brasil já se tinha iniciado sob a coordenação do Ministério da Justiça. O prazo de vacatio legis estipulado inicialmente já foi bastante extenso –— de 18 meses a partir da publicação da lei [5]. Depois, foi estendido para 24 meses [6] e agora a MP o alongou para 32 meses e 18 dias. Nem códigos inteiros tiveram prazo de vacatio tão amplo. Se a prorrogação estipulada na MP 959/2020 for mantida, a LGPD se tornará a lei de maior vacatio legis na história do país, desde a instituição da República.

Com a prorrogação da vigência da LGPD, as empresas continuarão a ser responsabilizadas, mas com base em legislação não especializada (em proteção de dados pessoais). Os intérpretes e julgadores trabalharão com princípios e normas mais abstratas, gerando mais insegurança jurídica. Por isso é muito importante para as próprias empresas, que desenvolvem atividades de tratamento de dados, que a LGPD entre em vigor. A nova LGPD traz diversos conceitos e estabelece os limites para uso dos dados pessoais. Assegura mais transparência e dá mais segurança para os controladores de sistemas informatizados, ao indicar as situações em que dados sensíveis podem ser tratados e para quais finalidades. No período da pandemia, é fundamental para o setor público e o setor privado poder contar com texto legal que esclareça o que pode e o que não pode ser feito em termos de coleta e processamento de dados de saúde. Postergar a entrada em vigor da LGPD nos deixará em um ambiente de insegurança jurídica, o que é pior para os negócios do que a própria pandemia.

No período da pandemia os mecanismos e ferramentas de vigilância disseminam-se numa velocidade nunca antes experimentada [7]. Para combater a expansão do coronavírus, empresas privadas estão desenvolvendo sistemas de monitoramento e realizando vasta coleta de informações pessoais. Assistimos a uma proliferação de aplicativos [8] e plataformas de coleta de dados de saúde, sem prévia autorização de órgãos sanitários ou teste de condições de segurança, proteção de dados e eficácia [9]. Dados de geolocalização estão sendo utilizados para mapeamento da concentração de pessoas e controle dos movimentos [10]. A privacidade das pessoas está em risco como nunca esteve antes, pois empresas privadas adquiriram o discurso que lhes faltava para se apropriar dos dados de saúde: o combate à pandemia.

Uma legislação para a proteção de dados é necessária para estabelecer as bases e limites do tratamento de dados, como atividade necessária para uma adequada biopolítica de combate à pandemia. Sem ela, as consequências nefastas da biovigilância serão sentidas no futuro, quando talvez não se tenha como revertê-las. Se as ferramentas de vigilância em massa (mass surveillance) proliferarem sem limites ou supervisão regulatória adequada, estaremos criando uma doença social muito maior e com efeitos inimagináveis para a sociedade futura.