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Raphael Torti: O transporte marítimo na Covid-19

Em um cenário de crise sanitária e econômica mundial, o transporte marítimo, responsável por 95% [1] das cargas importadas e exportadas pelo Brasil, demanda especial atenção e proteção estatal. Nesse prisma, por meio do Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, e da posterior Medida Provisória 945/20, de 4 de abril do corrente ano, a atividade de transporte aquaviário e a operação portuária, respectivamente, foram incluídas pelo governo federal entre os serviços essenciais.

Seguindo a mesma linha, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) publicou a Resolução nº 7.653/20, por meio da qual foram vedadas práticas de restrição à circulação de trabalhadores e cargas portuárias que possam afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, além de acarretar o desabastecimento de gêneros necessários à população.

Contudo, ao mesmo tempo em que tais normas definem que as atividades portuárias e de transporte aquaviário de cargas não podem ser obstaculizadas, preveem também a aplicação de medidas de controle sanitário, visando a segurança da prática a todos os agentes envolvidos.

Nesse contexto, a Anvisa, por meio da Norma Técnica nº 47, além de reapresentar as exigências de cunho sanitário já previstas pelas Resoluções da Diretoria Colegiada (RDCs) de nº 72, 56 e 21, trouxe novas precauções com o fito de evitar novas contaminações.

Dessa forma, administradoras portuárias, trabalhadores portuários, empresas marítimas de carga ou de transporte de passageiros, equipes embarcadas em plataformas marítimas e, inclusive, os próprios servidores de fiscalização sanitária nos portos precisam estar atentos ao cumprimento tanto das antigas quanto das novas cautelas de segurança.

Assim, além do uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), do afastamento dos trabalhadores integrantes do grupo de risco, da aplicação de exames médicos admissionais, da higienização dos locais e equipamentos, bem como de outras medidas de controle aplicáveis aos que circulam pelo porto, insta destacar que, caso uma embarcação provenha de país considerado de risco, devem os tripulantes e passageiros aguardar o término de 21 dias de quarentena, contados desde a saída do local de origem, para então desembarcar.

Destaque-se que o Livro Médico de Bordo passou a ser documento obrigatório para a emissão do Certificado de Livre Prática, por ser nele onde o comandante deve registrar as ocorrências a bordo, devendo ser apresentado junto com a Declaração Marítima de Saúde, a Lista de Viajantes e a cópia do Certificado de Controle Sanitário de Bordo ou do Certificado de Isenção de Controle Sanitário de Bordo.

É de se ressaltar, por fim, que tais medidas mostram-se necessárias, uma vez que os portos configuram-se como áreas de fronteira, sendo vitais tanto para viabilidade econômica do país como para o combate à entrada de novos casos de contaminação em território nacional.

[1] https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/infraestrutura/comercio-maritimo-resiste-no-trimestre-mas-e-preciso-garantir-operacoes-para-enfrentar-pandemia/

 é advogado especialista em Contencioso Cível Geral no escritório Martorelli Advogados.

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Néfi Cordeiro: A pandemia e as tecnologias na persecução criminal

A pandemia da Covid-19 a todos surpreendeu pela gravidade da doença e pela necessária mudança de hábitos: o isolamento social muda pessoas, muda o Direito.

É momento de crescente preocupação legislativa com um Direito Penal mais eficiente, que para isso usa de mais e mais tipos penais, tentando controlar a sociedade pelo medo da pena, em crimes com inseguras delimitações e com provas mais invasivas.

O mundo ocidental se foca em um Direito Penal coletivo, em que os danos individualizados mesmo gravemente violadores à pessoa tornam-se socialmente menos relevantes do que os danos generalizados e perenes. Muda o prisma de proteção à honra, à propriedade e mesmo à vida, para a proteção de todos, do hoje e do futuro: crimes tributários e financeiros, crimes empresariais e contra a saúde pública, crimes informáticos e ambientais.

O Direito Penal perde em segurança individual, pela tendência a tipos penais abertos (sem plena delimitação do conteúdo normativo) e de perigo evitando não proteger condutas socialmente gravosas, mas ainda imprecisas (como poluição ou temeridade de gestão empresarial) e evitando a dificuldade probatória (como na entrega de veículo automotor a pessoa não habilitada [1]). Ganha a eficiência persecutória, perdem os cidadãos na garantia da legalidade — crime é conduta vaga e da lesividade, pois no crime de perigo, especialmente quando abstrato, o agir é incriminado, independentemente de seu resultado.

Provas cada vez mais invasivas e potencialmente destrutivas são criadas em desfavor do perseguido. Passam a ser admitidas violações à privacidade no domicílio, na vida bancária e fiscal, nas conversas profissionais e íntimas, em não raros momentos sem qualquer exigência de motivação da imprescindibilidade dessa prova ou de gravidade social do crime.

A proteção ao domicílio do cidadão, último resguardo de soberania individual, é na Constituição Federal excepcionada justamente para a proteção dos moradores: desastre, socorro ou flagrante delito salvo ordem judicial. Do ingresso no domicílio para proteger moradores contra crimes, passou-se a usar da norma protetiva para perseguir ao morador. A norma de proteção transformou-se em norma de coerção.

Resgata a jurisprudência atual um mínimo de proteção ao exigir uma justa causa para a invasão, nela não enquadráveis denúncias anônimas, hipóteses do raciocínio policial, presunções ou forjadas autorizações de acesso [2].

O próprio flagrante se altera em favor da eficiência, ao ser permitida sua prorrogação, como é mostra a Lei do Crime Organizado (Lei nº 12.850/2013, artigo 8º). Da exigência legal de prévia autorização judicial, passa a prática a autorização nenhuma, do flagrante caracterizado passam-se a situações onde sequer mais há crime em desenvolvimento tudo pela eficiência…

A infiltração policial (Lei nº 12.850/2013, artigo 10) que apenas acompanharia ações criminais tende a provocar crimes (o Estado contentor sendo o motivador da criminalidade) [3], a colaboração premiada é passível de direcionamento contra pessoas ou partidos políticos, pela possibilidade ilegalmente admitida [4] de acordos premiando notícias de crimes quaisquer, contra pessoas quaisquer então escolhidas por alguém, delator ou representante estatal da negociação. Enfim, a busca pela proteção social coletiva e por uma maior eficiência penal levam nosso Direito Penal a soluções aplaudidas no momento, mas preocupantes na estabilidade do Direito, porque reducionistas das garantias processuais.

A prova que surge para uso restrito, por seu alto grau de invasão da intimidade, tende a proliferar. A eficiência da quebra de sigilo telefônico, prova subsidiária para crimes de reclusão (Lei nº 9.296/96, artigo 2°), levou seu uso para mais cedo e com menos provas prévias (a imprescindibilidade apenas como justificação retórica), permitindo um aproveitamento amplo do resultado pela serendipidade, mesmo crimes de detenção e até infrações administrativas usam da prova de escuta telefônica [5]. É a criação de uma bomba atômica às garantias pela justificativa de uso restrito a gravíssimos danos sociais, que passa a ser rotineiramente usada para danos quaisquer, mesmo leves.

No combate à tecnologia dos crimes, crescentes e inovadores, surgem os correspondentes mecanismos de investigação e prova estatais. Usa, sim, o crime de comunicações sigilosas em sistemas de comunicação criptografados e na deep web, usa, sim, de criptomoedas, da captação coletiva de valores por mecanismos internacionais de pirâmides virtuais. Ampliam-se os danos criminais no espaço internacional.

Como reação, as provas tecnológicas são novidades que encantam e assustam: acompanhamento eletrônico e por satélite de pessoas (sem ficção ou exagero), programas de reconhecimento visual (com graves defeitos de qualidade, geradores perigosos do falso reconhecimento); malwares implantados pela polícia (CAPRIOLI, Francesco. Il “captatore informatico” come strumento di ricerca della prova in Italia); provas colhidas no anônimo e não controlado meio eletrônico. Interessante foi recente precedente em que o Superior Tribunal de Justiça reconheceu nulidade da colheita de conversas através do programa WhatsApp Web, instalado sigilosamente pela polícia no celular de investigado, mesmo judicialmente autorizado não haveria como identificar quais as conversas emitidas pelo proprietário do celular e quais as que poderiam em tese ter sido emitidas, em seu nome, pelo computador da polícia [6].

O próprio acesso aos celulares de presos é medida rotineira, não raras vezes com duvidosa autorização do suspeito. A pretexto de segurança ou de prova do crime flagrado, são os celulares devassados sem autorização judicial, revelando não somente se há crime, mas toda a vida do suspeito. A jurisprudência nacional já reconhece a invalidade dessa prova [7], mas a prática da invasão da privacidade não desaparece.

As infiltrações policiais agora acontecem virtualmente, em mídias sociais, buscando descobrir (espera-se não fazendo surgir) pedófilos ou criminosos sexuais, traficantes de drogas e pessoas…

Há necessidade da sofisticação e modernização dos meios de prova na realidade de crimes em que tende a ser menos importante a prova oral, mas releva a prova informatizada. O risco é a acomodação a crescentes patamares de perda da privacidade. O grande irmão de Orwell (ORWELL, George. Mil Novecentos e Oitenta e Quatro) está presente no acompanhamento da movimentação de pessoas por seus celulares, no reconhecimento facial e pelas impressões digitais em locais públicos e privados, em campos de futebol e nas alfândegas, está presente na disponibilização antecipada de material genético (Lei nº 12.037/2009, artigo 5º-A), na gestão da tropa policial por mapeamento digital de ocorrências criminais… É a vida crescente e involuntariamente publicizada.

No processo, também a tecnologia revoluciona. A pandemia forçou o isolamento pessoal e a interação virtual: vivemos a realidade do home office, do processo integralmente eletrônico, de sessões online, sustentações orais gravadas ou à distância e atendimentos por chamadas (de voz ou com imagem). Mecaniza-se o procedimento, reduz-se o sentimento.

A partir desse momento extraordinário, em que a falta de alternativas torna quase incontroversa a necessidade do trabalho no lar, da não postergação de justiça pelos julgamentos remotos, muito se há de pensar sobre a continuidade dessas medidas. Não há como negar a crescente capacidade dos contatos virtuais desenvolverem também emoções, de permitirem a aferição e repetição de detalhes invisíveis ao contato pessoal (com aproximação e repetição de imagens…), mas não há sentimento igual ao olho no olho, à pele na pele.

A realização dos atos judiciais remotamente reduz custos e facilita a produtividade, mas perde na emoção, imprescindível a momentos marcantes do processo, como na prisão, no interrogatório e no julgamento. Não há como substituir-se o dia do acusado na corte, frente a seu juiz, pelo dia do acusado frente à tela do computador…

Como tendência, mecanizam-se também processos e decisões: o copiar/colar acontece em petições e também em decisões judiciais, com aproveitamento de decisórios passados, de outras instâncias ou mesmo de um parecer ministerial. As decisões mais e mais se padronizam, com riscos da perda dos detalhes de provas e razões em cada diferente processo. Súmulas e enunciados repetitivos padronizam até o que não é igual, a exigir casuística distinção [8], limitam recursos e podem dificultar a própria realização da justiça.

Em tempos de pandemia, seja o isolamento social o único admitido e não o isolamento das emoções ou da compreensão no outro. A modernização na persecução criminal é imprescindível, mas o meio eficiente não pode significar elisão das garantias.

 


[1] Súmula 575 do STJ: “Constitui crime a conduta de permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa que não seja habilitada, ou que se encontre em qualquer das situações previstas no artigo 310 do CTB, independentemente da ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na condução do veículo”.

[2] RE 603616, Tribunal Pleno, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Publicação: 10/5/2016.

Decisão: repercussão geral, por maioria e nos termos do voto do Relator, negou provimento ao recurso e fixou tese nos seguintes termos: “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente”.

[3] Torna-se cada vez mais difícil descobrir se o agente infiltrado revela crimes que soube ou que provocou — Súmula 145/STF: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.

[4] Além de violar a regra da utilidade, estável em todas as leis de colaboração premiada, incide agora em proibição expressa:

Lei nº 12.850/2013, artigo 3º-B, § 3º: “No acordo de colaboração premiada, o colaborador deve narrar todos os fatos ilícitos para os quais concorreu e que tenham relação direta com os fatos investigados.”

[5] “AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA LICITAMENTE CONDUZIDA. ENCONTRO FORTUITO DE PROVA DA PRÁTICA DE CRIME PUNIDO COM DETENÇÃO. LEGITIMIDADE DO USO COMO JUSTA CAUSA PARA OFERECIMENTO DE DENÚNCIA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal, como intérprete maior da Constituição da República, considerou compatível com o artigo 5º, XII e LVI, o uso de prova obtida fortuitamente através de interceptação telefônica licitamente conduzida, ainda que o crime descoberto, conexo ao que foi objeto da interceptação, seja punido com detenção. 2. Agravo Regimental desprovido”. (AI 626214 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 21/9/2010, DJe-190 DIVULG 07-10-2010 PUBLIC 08-10-2010)

[7] “PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. NULIDADE PROCESSUAL. ACESSO AOS DADOS DO APARELHO CELULAR DO RÉU. AUSÊNCIA DE ORDEM JUDICIAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL VERIFICADO.

DECISÃO RECONSIDERADA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.

1. Esta Corte Superior de Justiça considera ilícita o acesso aos dados do celular extraídos do aparelho celular apreendido em flagrante, quando ausente de ordem judicial para tanto, ao entendimento de que, no acesso aos dados do aparelho, se tem a devassa de dados particulares, com violação à intimidade do agente.

Precedentes.

2. É reconsiderada a decisão inicial porque não se trata de implícita autorização de quebra do sigilo de aparelho com dados cuja busca se determinou. O que se tem é mandado de busca de drogas, que não traz implícita ordem de apreensão de arquivos de dados e seu acesso.

3. Agravo regimental provido para declarar a nulidade das provas obtidas no celular sem autorização judicial, cujo produto deve ser desentranhado dos autos, cassando os atos de natureza decisória das instâncias de origem, a fim de que se realize novo julgamento. (AgRg no HC 542.940/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 5/3/2020, DJe 10/3/2020)

[8] Exemplificativamente, logo após aprovada a Súmula 599/STJ (O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública. CORTE ESPECIAL, julgado em 20/11/2017, DJe 27/11/2017), a 6ª Turma aplicou esse princípio a “a um crime contra a administração pública com base nas peculiaridades do caso: o réu era primário, com mais de 80 anos, e o dano causado teria um custo de cerca de R$ 20″. https://www.conjur.com.br/2018-set-02/stj-aplica-principio-insignificancia-crime-administracao Acesso em 1º/6/2020.

Néfi Cordeiro é ministro do Superior Tribunal de Justiça, presidente da 6ª Turma (matéria criminal), doutor e mestre em Direito pela UFPR, com concentração na área criminal.

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Defensoria Pública é essencial ao controle de convencionalidade

A Defensoria Pública — assim como as demais Instituições Essenciais à Justiça, o Parlamento e o Poder Executivo — é protagonista de fundamental importância para o regime republicano e o Estado Democrático de Direito, e este é um aspecto pouco referido no trato do assunto no que diz respeito ao exercício do controle de convencionalidade das leis.

Esse papel protagonista veio à luz no Brasil desde o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, quando foi possível identificar que os tratados de direitos humanos passaram a ter assento constitucional tanto por um viés (i) exclusivamente material, por versarem direitos e garantias fundamentais (CF, art. 5º, § 2º), quanto (ii) por um prisma material e formal, por equivalerem às emendas constitucionais, pois internalizados (neste caso) por processo legislativo com rigor idêntico ao das emendas, com a aprovação, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos seus respectivos membros (CF, art. 5º, § 3º).

No que tange a este último aspecto, ainda que os tratados assim incorporados não se tornem verdadeiras “emendas” — segundo o texto constitucional, eles terão “equivalência de emendas” — que se incorporariam na letra constitucional propriamente dita, certo é que sua equivalência às emendas (trata-se de normas “constitucionais” fora do texto da Constituição, como se nota) lhes garante serem paradigmas de controle — de convencionalidade concentrado, para além de difuso — da normatividade interna no Brasil.

Portanto, ao lado do clássico controle de constitucionalidade, que se exerce invalidando as leis internas tendo como paradigma a Constituição, surge no ordenamento brasileiro uma nova modalidade de controle das normas do Direito interno: o controle de convencionalidade das leis, nos casos de (in)compatibilidade legislativa com os tratados de direitos humanos (formalmente constitucionais ou não) em vigor no Brasil.

Não obstante os tratados que veiculem normas de direitos humanos poderem ser (i) materialmente constitucionais (art. 5º, § 2º) ou (ii) material e formalmente constitucionais (art. 5º, § 3º), não há dúvidas de que o exercício de compatibilidade vertical que se exerce em razão deles não se traduz num controle de constitucionalidade propriamente, dado que o texto constitucional pode permanecer incólume em vários casos, notadamente quando a violação legislativa se dirige ao tratado internacional de direitos humanos e não ao texto da Constituição. Assim, é equivocado dizer que o controle de convencionalidade desembocaria no próprio controle de constitucionalidade, pois há casos (vários deles) em que o texto constitucional permanece intocável e o que se atinge é, propriamente, a norma internacional em vigor no Estado.

Tanto o controle de constitucionalidade quanto o de convencionalidade, embora distintos, têm o mesmo poder de invalidar leis (menos benéficas) que contrariem ou o texto constitucional ou o tratado de direitos humanos em vigor. Tal é consequência lógica – no caso do art. 5º, § 3º, da Constituição — da aprovação do tratado pelo Parlamento com a mesma dificuldade com que se aprovam as emendas constitucionais stricto sensu, pelo que passam a integrar indeclinavelmente o processo de compatibilização vertical das normas domésticas com os comandos encontrados nas convenções de direitos humanos vigentes no Estado. E, neste caso, passam tais tratados a serem paradigma do controle concentrado de convencionalidade perante o STF.

São as instituições essenciais à Justiça — Defensoria Pública, Ministério Público, Advocacia Pública e Privada — que têm provocado a realização do controle de convencionalidade no Brasil, de forma a compatibilizar as leis domésticas com o conteúdo das normas internacionais de direitos humanos em vigor no País, embora não haja dúvidas de que tal controle deve ser exercido pelos órgãos da Justiça nacional ex officio.

Tal controle pode se dar (i) em caráter difuso, quando provocado de forma incidental pelas instituições essenciais à Justiça, de maneira similar ao controle difuso de constitucionalidade, em relação aos tratados que forem sendo incorporados ao direito pátrio, ou (ii) em caráter concentrado no STF, na hipótese dos tratados de direitos humanos (e somente eles) aprovados pelo rito do art. 5.º, § 3.º, da CF/1988, ou seja, por maioria qualificada nas duas Casas do Congresso Nacional, em dois turnos, provocada pelos legitimados explícitos e implícitos inscritos na Constituição, em especial no art. 103.

Verifica-se, portanto, a nítida desnecessidade de qualquer alteração constitucional ou legislativa para que os magistrados de primeiro grau, tribunais locais ou superiores realizem o controle difuso da convencionalidade das normas do direito interno, a partir da provocação da Defensoria Pública ou das demais Instituições Essenciais à Justiça.

Tal controle, inclusive, é um dever que decorre diretamente da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, desde o julgamento do caso Almonacid Arellano e Outros Vs. Chile, em 2006, vem entendendo que o controle de convencionalidade interno é o principal a ser exercido no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, sendo o controle internacional apenas mediato ou secundário, levado a efeito se os sistemas nacionais de justiça não lograrem controlar a convencionalidade das leis de maneira adequada.

Quanto ao controle concentrado da convencionalidade pelo STF, nos casos dos tratados de direitos humanos que entraram em vigor no Brasil com a referida “equivalência de emenda constitucional” (CF, art. 5º, § 3º), este nascera apenas com a promulgação da EC 45, em 30 de dezembro de 2004, e para que haja integridade e coerência com as demais normas constitucionais, é necessário um aprimoramento interpretativo e possivelmente algumas alterações normativas, como se verá.

Como dito, tanto a Defensoria Pública como as demais instituições essenciais à Justiça, cujo elenco se encontra no Capítulo IV do Título IV, da Constituição, têm papel importante a ser desempenhado no controle de constitucionalidade/convencionalidade das normas do Direito interno, e cada qual no âmbito de suas missões institucionais-constitucionais participam do controle difuso (apresentando as ações em nome próprio ou em representação processual dos seus constituídos) e concentrado de normas, além da possibilidade de atuação extrajudicial nesse sentido.

Especificamente no que tange à Defensoria Pública, alçada à condição de instituição permanente e essencial, corresponsável pela construção do regime democrático, percebe-se não ter autorização expressa para o ajuizamento de ações de controle concentrado perante o STF, não obstante o tenha no âmbito de alguns dos Tribunais de Justiça dos Estados (v.g., Ceará, Mato Grosso e Rio de Janeiro). Contudo, à Defensoria Pública é possível participar do controle concentrado de constitucionalidade como amicus curiae ou como custos vulnerabilis.

Conforme observação colhida da práxis da Defensoria Pública em ações coletivas — ação civil pública, habeas corpus coletivo, Reclamação Constitucional coletiva etc — junto ao Poder Judiciário, uma mutação interpretativa é necessária e alguma alteração constitucional é desejável à explicitação das competências, atribuições e instrumentos para que sirvam ao aprimoramento do controle de convencionalidade, quer difuso ou concentrado em nosso País, inclusive pelo que o seguimento da jurisprudência internacional (Corte Interamericana de Direitos Humanos) se impõe firmemente nessa matéria.

Importante, por exemplo, seria deixar expressa a regra de “diálogo” (ou “cláusula de retroalimentação”) segundo a qual, assim como os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados em que a República Federativa do Brasil seja parte, também os direitos e garantias expressos nos tratados de direitos humanos em vigor no Brasil não excluiriam ou mitigariam outros direitos ou garantias decorrentes de leis nacionais, do regime e dos princípios adotados na Constituição. Bem assim, também seria importante explicitar as competências dos órgãos do Poder Judiciário para o controle difuso, tal a questão da reserva de plenário para a decretação da inconvencionalidade nos Tribunais.

A par dessas propostas, seria também imprescindível a normatização para o controle concentrado de constitucionalidade/convencionalidade, consistente na implementação de mecanismos de maior participação da Defensoria Pública, e, por conseguinte, a inclusão democrática e a multiplicidade das formas de expressões dos indivíduos e grupos vulneráveis, democratizando o processo, ampliando e qualificando o diálogo jurídico para todos os estratos sociais que têm sua voz ampliada pela Instituição.

A explicitação da participação da Defensoria Pública como autora das ações concentradas, e interventora obrigatória nos demais casos, é inadiável, mesmo diante do reconhecimento de que a Instituição já é detentora dessas legitimidades a partir da alteração implementada pela Emenda Constitucional nº 80/2014, que a ressignificou como corresponsável pela promoção dos Direitos Humanos, alçando-a também à condição de expressão e instrumento do regime democrático.

Em suma, essa é a tendência tanto do constitucionalismo quanto do internacionalismo contemporâneo: fazer prevalecer o dialogismo (inclusão) em detrimento da dialética (exclusão) na proteção dos direitos humanos, e a pluralização das Instituições que assegurem sua observância.

Nesse sentido, a instituição Defensoria Pública é um pilar importante à democracia brasileira e à proteção dos vulneráveis, tornando a plataforma emancipatória do nosso tempo mais próxima da realidade desejada.


Sobre o controle de convencionalidade, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 5. ed. rev., atual, e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

Art. 5º (…) § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte

Art. 5º (…) §3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Para detalhes, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 5. ed. rev., atual, e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direitos humanos. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2020, p. 205 e ss.

ROCHA, Jorge Bheron; GONÇALVES FILHO, Edilson Santana; CASAS MAIA, Maurílio. Custos vulnerabilis: a Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: CEI, 2020.

Conforme I Relatório Nacional de Atuações Coletivas da Defensoria Pública: um estudo empírico sob a ótica dos ‘consumidores’ que pode ser lido em https://www.anadep.org.br/wtksite/I-RELAT_RIO-NACIONAL.pdf; e o II Relatório Nacional de Atuações Coletivas da Defensoria Pública, encontrado em https://www.anadep.org.br/wtksite/Preview_Livro_Defensoria_II_Relat_rio(1).pdf

Na jurisprudência STF HC 143.641. E na doutrina ROCHA, Jorge Bheron. Habeas Corpus coletivo: uma proposta de superação do prisma individualista. ConJur https://www.conjur.com.br/2017-mai-30/tribuna-defensoria-hc-coletivo-proposta-superacao-prisma-individualista

Na jurisprudência STF RCL 29.303 e na doutrina JANUÁRIO, Eduardo Newton; ROCHA, Jorge Bheron. ConJur https://www.conjur.com.br/2019-abr-16/tribuna-defensoria-uso-reclamacao-constitucional-coletiva-defensoria-publica

 é professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), membro consultivo da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) e doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Jorge Bheron Rocha é defensor público do estado do Ceará, professor de Direito e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Constitucional. Membro Consultor da Comissão Nacional de Acesso à Justiça do CFOAB.