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Suzane Prado: Abuso de autoridade e a Lei 13869/19

Com a edição da Lei 13.869/2019, houve a expressa revogação da antiga Lei de Abuso de Autoridade (Lei 4.898/65), conforme dispõe o artigo 44 daquela. Num breve retrospecto, sabe-se que a Lei 4898/65 [1] penalizava em três searas civil, administrativa e criminal condutas de autoridades consideradas abusivas. Autoridade para o fim dessa Lei era “quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração” (artigo 5º).

E as condutas passíveis de enquadramento como abusiva estavam nos artigos 3º e 4º da 4898/65. No primeiro deles, dizia constituir abuso de autoridade qualquer atentado (essa expressão é muito importante; quer dizer que não precisava a ocorrência efetiva de algum dano, não admitindo tentativa) às liberdades de locomoção, de consciência, de crença, de culto religioso, de associação, mais à inviolabilidade de domicílio, ao sigilo de correspondência, aos direitos e garantias assegurados ao exercício do voto, ao direito de reunião e aqueles assegurados ao exercício profissional e, por fim, mas não menos importante, à incolumidade física do indivíduo.

No artigo 4º, mais dez hipóteses de abuso de autoridade descrevendo condutas tanto comissivas quando omissivas. A saber:

a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;

b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;

c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa;

d) deixar o juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada;

e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei;

f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor;

g) recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa;

h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;

i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade.

Sempre que constatada a prática de alguma destas condutas, a ação penal era pública incondicionada (Lei 5249/67, excluindo necessidade de representação mencionada no artigo 1º da Lei 4898/65), e a pena de detenção, de dez dias a seis meses (artigo 6º, § 3º, “b”).

Ainda, em havendo resultado penalmente relevante quando da prática de alguma das condutas incriminadas, dava-se o concurso material. Isso porque, para além do  bem jurídico protegido pela Lei Especial a regularidade da prestação do serviço público e o exercício dos direitos constitucionais o agente também viria a ofender, por exemplo, a integridade física do ofendido, atingindo bem jurídico diverso. A propósito, “a Lei nº 4.898/65, cuidando da questão referente ao abuso de autoridade, definiu, caso a caso, as sanções administrativa, civil e penal aplicáveis de acordo com a gravidade do abuso cometido. Desta forma, o abuso de autoridade passou a ser punido independentemente de responder o agente, em concurso material, por outros delitos que da sua ação resultar” [2].

Na nova lei encontramos como atos suscetíveis de configurar abuso de autoridade, em termos penais, aqueles previstos nos artigos 9º a 38, descritos de forma mais pormenorizada, se comparados com os tipos da lei anterior. Assim como o conceito de agente público, praticamente repetido no caput e parágrafo único, mas especificando carreiras de Estado, no artigo 2º.

O que motivou essa escrita foi o fato de encontrar-se em trâmite nos Juizados Especiais Criminais de nossa atribuição, termos nos quais se investiga o abuso de autoridade cometido quando da prisão do sujeito, de regra, pelo atentado à incolumidade física da pessoa (artigo 3º, “i”). A primeira indagação foi: houve continuidade normativo-típica?

Discorrendo sobre o princípio da continuidade normativo-típica, Luiz Flávio Gomes [3] começa falando da abolitio criminis pela revogação da lei que considerava típico um fato determinado, por outra lei. Esta, por ser mais benéfica deve ser aplicada de imediato e, de regra, leva à extinção da punibilidade (artigo 2º, parágrafo único, e 107, III, ambas do CP). Todavia, o autor faz a ressalva: “Essa revogação nem sempre culmina na abolitio criminis. Isso porque a conduta descrita na norma revogada pode continuar tipificada em outro diploma legal. E esse fenômeno é denominado pela doutrina como princípio da continuidade normativo-típica”.

Embora o enquadramento típico vá migrar da lei revogada para outra, na qual o tipo penal subsista (de regra, com alteração de pena ou inserção de qualificadora), é a lei do tempo do fato que determina a sanção penal a que está sujeito o agente e a forma de execução da mesma. A propósito, o HC 106155, julgado em 04/10/2011, relator para o acórdão ministro Luiz Fux, determinando a aplicação da pena prevista na lei anterior e a tipificação da conduta na lei que sucedeu [4].

No questionamento feito sobre os processos de abuso de autoridade por atentado à incolumidade física da pessoa, algumas questões devem ser postas, frente a redação do artigo 13 da nova lei.

“Artigo 13   Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a:

I exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública;

II submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei;

III produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro:

(Promulgação partes vetadas)

Pena detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência”.

De regra, o conteúdo apurado nos termos circunstanciados em andamento é a violência usada quando da prisão, para além do necessário (quando foi necessário), sem as finalidades constantes do artigo 13 da nova Lei (o dito “corretivo” no jargão popular). Assim, se praticado o ato antes da vigência da Lei 13869/19, sem resultado material e sem qualquer das hipóteses previstas nos incisos do artigo 13, estando a conduta enquadrada tão somente na Lei 4898/65, salvo engano, é de se reconhecer a abolitio e, por consequência, aplicar o artigo 107, III, do CP. Ou, havendo resultado material, mas sem estar delineada qualquer das hipóteses acima, continua com o termo (seja na fase investigatória, instrutória ou executória), mas tão somente com relação ao crime conexo.

Por fim, se presente na conduta qualquer das finalidades do artigo 13 e incisos, continua com o termo, mas tendo por baliza o sancionamento anterior (detenção, de dez dias a seis meses, enquanto aqui se tem de um a quatro anos).

Doutra banda, encontram paralelo, sempre a depender da criteriosa análise do caso concreto, na Lei 13.869/19, as alíneas do artigo 3º, sendo de se prosseguir o feito, observadas as normas punitivas da legislação anterior as alíneas do artigo 3º da Lei 4898/65:

“a”  atentado à liberdade de locomoção nos artigos 9º, 10, 18, 19 e 37;

“b”  à inviolabilidade de domicílio no artigo 22;

“d”  à liberdade de consciência e de crença no artigo 15;

“i”  à incolumidade física do indivíduo no artigo 13.

Do artigo 4º, sem pretensão exauriente e lembrando da inafastável análise à vista do caso concreto, pode-se dizer da continuidade normativo-típica das alíneas:

“a”  ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder nos artigos 16 e 20;

“b”  submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei  nos artigos 13, 31 e 38;

“c”  deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa nos artigos 12 e 19;

“d”  deixar o juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada nos artigos 12, IV, e 19, parágrafo único;

“f”  cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor no artigo 33;

“h”  o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal no artigo 36;

“i”  prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade nos artigos 12 e 19.

Esses seriam, em tese, os tipos penais sobreviventes da Lei 4898/65, a serem considerados em cotejo com os trazidos pela Lei 13869/65. Superado esse exercício quanto aos procedimentos em curso (delitos praticados antes de 26 de março), e mantendo a vista na “incolumidade física do indivíduo”, como tratar, a partir dali, os abusos de autoridade (uso de violência, de regra) contra os detentos que não se encaixem nas hipóteses do artigo 13?

Pensamos que, havendo prova da materialidade do delito e indícios bastante de autoria, o socorro vai para o Código Penal (por exemplo, artigos 121, 129 e 132, observada a agravante genérica do artigo 61, II, “f”) ou, para a Lei de Tortura, se presente qualquer das hipóteses do artigo 1º [5] da Lei 9.455/97, que escape àquelas do artigo 13 da Lei 13869/19.

 é promotora de Justiça titular da 9ª PJ da comarca de Ponta Grossa (PR) e mestre em Direito Penal Econômico pela PUC–PR.

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Felipe de Lara: Os Juizados Especiais Cíveis

Cumpre esclarecer, inicialmente, que entrou em vigor em 24 de abril de 2020 a Lei 13.994, que alterou os artigos 22 e 23 da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis) a fim de possibilitar a conciliação não presencial no âmbito dos JECs.

Denota-se que a lei não facultou, mas, sim, obrigou as partes a aderir às audiências de conciliação por videoconferência.

E, como sabido, os Juizados Especiais se norteiam pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, conforme previsto no artigo 2º da Lei 9.099/95, sendo que a alteração em vigor se coaduna com os princípios da informalidade e da celeridade.

Isso porque, de acordo com o novo teor do artigo 23, caso o demandado/réu não compareça ou se recuse a participar da tentativa de conciliação não presencial, o juiz togado proferirá sentença. Isso significa que, na prática, o servidor e/ou auxiliar que intimar a parte ré sobre a designação da audiência conciliatória não presencial deverá certificar, nos autos, que não houve consenso do réu a fim de participar da autocomposição do litígio de forma virtual. Ato posterior, o processo deverá ser concluso, a fim de ser reconhecida a revelia.

Impende ressaltar que o reconhecimento da revelia diverge da aplicação dos seus efeitos (artigo 20 da Lei 9.099/95).

Caso o juiz togado tenha plena convicção dos fatos ali alegados, proferirá sentença. De outro viés, caso entenda ser necessária a comprovação de algum fato ou diligência, poderá designar audiência de instrução e julgamento, conduzida por juiz togado ou leigo.

Por fim, saliente-se apenas que os Juizados Especiais deverão observar a disponibilidade de salas ou outro meio para atender aos jurisdicionados que não possuem mecanismos suficientes para a realização do ato.

Anote-se, ainda, que a vigência da lei se deu em meio a uma pandemia (Covid-19), o que torna ainda mais difícil a elaboração de projetos dos tribunais para se adequar à nova realidade, o que deverá unir a Ordem dos Advogados do Brasil e os Tribunais de Justiça a fim de consentir sobre o assunto.

 é advogado, juiz leigo, representante dos juízes leigos e conciliadores e membro do Conselho de Supervisão dos Juizados Especiais.

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Opinião: CNJ acerta ao dar celeridade a falências

O impacto resultante da adoção das necessárias medidas de isolamento durante a pandemia de Covid-19 já pode ser sentido pelas empresas, sobretudo as pequenas e médias, e também tem repercussões jurídicas que já podem ser conhecidas.

Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça editou um ato normativo (de número 0002561-26.2020.2.00.000) contendo orientações aos juízes para criar condições especiais, durante a crise sanitária, para as empresas em processos de falência e recuperação judicial. As decisões nesse tipo de processo, afirma o CNJ, devem ser priorizadas.

A necessidade de proteger a saúde financeira das empresas e do mercado brasileiro justifica a recomendação feita pelo CNJ e demonstra que a cúpula do Judiciário está atenta às necessidades reais do país. Trata-se de um ato normativo que vêm, felizmente, para garantir eficácia e celeridade aos procedimentos de recuperação judicial.

As orientações em questão estão, cabe lembrar, alinhadas com o conteúdo da resolução 313/2020/CNJ, que estabeleceu, no âmbito do Poder Judiciário, o regime de Plantão Extraordinário, para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio pelo novo coronavírus, e garantir o acesso à Justiça neste período emergencial. As recomendações, salvaguardam os Órgãos Jurisconsultos, na medida que autorizam a condução processual das recuperações judiciais de forma célere, garantindo a eficácia das tutelas jurisprudenciais pretendidas nas ações dessa natureza.

O ato normativo tem por finalidade mitigar dos efeitos econômicos decorrentes das medidas recomendadas pelas autoridades sanitárias e governamentais para o controle da pandemia. Ele visa, portanto, a sugerir medidas voltadas à modernização e à efetividade da atuação do Poder Judiciário nos processos de recuperação empresarial e de falência.  

De forma objetiva, as medidas propostas orientam, topicamente, os juízos para a adoção de procedimentos voltados para a celeridade dos processos de recuperação empresarial e de decisões que tenham por objetivo primordial a manutenção da atividade empresarial, com direto impacto na circulação de bens, produtos e serviços essenciais à população, e na preservação dos postos de trabalho e da renda dos trabalhadores.

Cabe, aqui, elencar as recomendações do CNJ para os casos de falência e recuperação judicial:

•    Priorizar a análise e decisão sobre levantamento de valores em favor dos credores ou empresas em Recuperação judicial; 

•    Suspender a realização das Assembleias Gerais de Credores presenciais agendadas, autorizando a realização de reuniões virtuais quando necessária para a manutenção das atividades empresariais da devedora e para o início dos pagamentos aos credores; 

•    Prorrogar o período de suspensão previsto no art. 6º da Lei de Falências quando houver a necessidade de adiar a Assembleia Geral de Credores; 

•    Autorizar a apresentação de plano de recuperação modificativo quando comprovada a diminuição na capacidade de cumprimento das obrigações em decorrência da pandemia da Covid19, incluindo a consideração, nos casos concretos, da ocorrência de força maior ou de caso fortuito antes de eventual declaração de falência (Lei de Falências, art. 73, IV); 

•    Determinar aos administradores judiciais que continuem a promover a fiscalização das atividades das empresas em Recuperação Judicial, de forma virtual ou remota, e a publicar na Internet os Relatórios Mensais de Atividade; e 

•    Avaliar com cautela o deferimento de medidas de urgência, despejo por falta de pagamento e atos executivos de natureza patrimonial em ações judiciais que demandem obrigações inadimplidas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6 de 20 de março de 2020.

Janildo Maiga Azevedo de Souza é advogado do Rueda & Rueda Advogados e especialista em direito empresarial e contratos.