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Celso Vilardi: Agradecimento ao Ministro Marco Aurélio

“Preservai, juízes de amanhã, preservai vossas almas juvenis desses baixos e abomináveis sofismas. A ninguém importa mais que à magistratura fugir do medo, esquivar humilhações, e não conhecer a cobardia” (Rui Barbosa, “Oração aos Moços”)

Faço neste ano 30 anos de formado. Não conheci, portanto, o Supremo Tribunal Federal sem o Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, que completa agora exatamente três décadas no Pretório Excelso. Num primeiro momento, tive uma certa desconfiança porque eu era um estudante esquerdista da PUC que antipatizava com o presidente Collor e me opunha a todos os seus atos, inclusive à sua indicação ao Supremo. O tempo, no entanto, me fez pagar a língua. O ministro faz parte da minha vida profissional, o que representa um grande privilégio, dado que o considero um dos melhores ministros da história da Corte.

Alguns o criticam pela importância dada à liturgia do cargo, sem se darem conta de que se trata de uma homenagem à importância do Supremo Tribunal ou, mais precisamente, uma forma que ele próprio adota para prestigiar e demonstrar seu respeito às altas funções da corte. Aliás, impressiona, também, o respeito que tem pelos advogados: sempre nos trata com lhaneza; está sempre atendo às sustentações, seja em audiências em seu gabinete, seja no plenário. Sem falar no habitual cumprimento antes das seções de julgamento, quando se apresenta pontualmente, demonstrando a consideração aos presentes e que o atraso não pode lhe ser atribuído.

Conhece-se um homem pelo que ele faz, e não pelo que ele diz. Falar, como diziam os antigos, é fácil. Difícil é agir, concretizar a palavra. Em suas entrevistas, o Ministro Marco Aurélio consagrou algumas expressões inesquecíveis: “paga-se um preço módico para viver no Estado democrático de Direito: o cumprimento da lei”; “deve-se guardar a Carta da República, doa a quem doer”; e “processo não tem capa”. São expressões fáceis de serem ditas e, aliás, juízes, de forma geral, sem utilizar exatamente essas palavras, costumam defender esses mesmos ideais.

Nestes 30 anos de advocacia, aprendi, a duras penas, que na hora de julgar não é fácil verificar juízes aplicando na prática essas expressões bonitas. Infelizmente, a capa do processo muitas vezes é observada e de forma cada vez mais frequente alguns juízes preocupam-se com a repercussão do julgamento junto à sociedade, o que faz, em alguns casos, com que a lei e a Constituição não prevaleçam. Em 30 anos, com o Ministro Marco Aurélio, isso não ocorreu.

Processo para ele, realmente, nunca teve capa. Soltou e manteve presas centenas de pessoas, sem que nunca o nome do acusado fosse um fator importante. Nunca importou o estrondo que eventual soltura iria causar: houvesse direito, a liberdade estaria garantida. Quem não se lembra da correta decisão que proferiu no “caso Cacciola”, pela qual foi cobrado por anos, porque concedeu liberdade provisória aplicando os estritos termos da lei e o acusado, depois da decisão, fugiu durante anos da Justiça.

Ao longo de sua carreira, prestigiou o Habeas Corpus, que está sendo ferido de morte em muitos tribunais do país. O volume de casos e o excesso de trabalho jamais foram impeditivos para desfazer uma injustiça e impedir a liberdade.

O processo não tinha capa e o estrondo que o julgamento poderia causar nunca intimidou o Ministro Marco Aurélio, doesse a quem doesse. No auge da polarização vivida no país, não se conformou que com o julgamento que reviu o posicionamento da corte em relação ao princípio da presunção de inocência. Não se conformou com a forma adotada (e que, realmente, era equivocada) e não sossegou até que o caso fosse revisto, por meio do julgamento das ações diretas de constitucionalidade, cujo resultado voltou a impedir a execução provisória da pena e a consagrar o princípio da presunção de inocência, inscrito na Constituição Federal. Desagradou boa parte da população brasileira, mas cumpriu sua palavra ao defender a Carta Política da República. O garantismo, para ele, não é e nunca foi uma teoria a ser estudada ou debatida, mas um conjunto de normas previstas na Constituição que devem ser cumpridas, e não alteradas pelo Judiciário, mesmo que desagradando a alguns.

E para quem age assim, pouco importa ser vencido. Com a experiência de quem já viu que o confronto de ideias só engrandece o tribunal, foi contramajoritário inúmeras vezes, sem se melindrar por isso. E mais: já teve a oportunidade de verificar seu posicionamento vencido triunfar tempos depois, pois, como disse outro gigante do Supremo, o Ministro Celso de Mello, a discordância muitas vezes é “a semente de grandes transformações”.

Com essas atitudes, demonstrou, na prática, que é realmente módico o preço pago para se viver num Estado democrático de Direito. E que, principalmente, é possível respeitar a Constituição e as leis fazendo Justiça, sem perder o humanismo e o senso de justiça. Foi assim, no julgamento dos fetos anencéfalos, um dos mais importantes casos relatados pelo Ministro Marco Aurélio, em que, após proferir uma verdadeira aula sobre o Estado laico, fez constar um dos pilares que sustentaram seu voto e, ao mesmo tempo, o definem: “O sofrimento dessas mulheres pode ser tão grande que estudiosos do tema classificam como tortura o ato estatal de compelir a mulher a prosseguir na gravidez de feto anencéfalo”. Essa frase basta para explicar o resultado do julgamento.

Ainda neste julgamento, outra frase, esta inspirada em Padre Vieira, que foi utilizada para sustentar sua posição, mas na realidade define seu próprio modo de ser: “O tempo e as coisas não param. Os avanços alcançados pela sociedade são progressivos. Inconcebível, no campo do pensar, é a estagnação. Inconcebível é o misoneísmo, ou seja, a aversão, sem justificativa, ao que é novo”.

É triste pensar na sua aposentadoria no ano vindouro. Passados 30 anos, ainda é muito cedo para isso. E é cedo porque ele seguiu Rui Barbosa e preservou sua alma juvenil. Não teve medo, respeitou a todos e jamais foi covarde. Após 30 anos, apenas uma palavra: obrigado!

 é advogado, mestre em Direito Penal pela PUC-SP e professor e coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal Econômico da FGV.

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Lawtechs despertam interesse do mercado jurídico na epidemia

Setor das lawtechs despertou interesse de escritórios durante a epidemia de Covid
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A tecnologia tem modificado a economia e as relações de trabalho. E a Justiça não é imune a esse movimento. Soluções tecnológicas já fazem parte do vocabulário corriqueiro de operadores do Direito nos tribunais e escritórios de advocacia.

E o cenário imposto pela pandemia de Covid-19 no Brasil teve como aspecto secundário minar resistências aos produtos e serviços oferecidos pelas lawtechs. O diagnóstico é de Daniel Marques, presidente da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L).

A grosso modo, termo lawtech ou legaltech usa-se para nomear startups que criam produtos e serviços de base tecnológica para melhorar o setor jurídico. Numa definição mais ampla, são empresas que desenvolvem soluções que facilitam a rotina dos advogados e operadores de direito.

Marques acredita que essa resistência em relação ao setor que representa é própria da cultura do advogado. “Em uma sociedade hiperconectada, que vive a ‘4ª revolução industrial’, demanda tecnologia gerar resultado para os clientes. E o cenário imposto pela pandemia ajudou a convencer os reticentes a ver que as novas tecnologias estão aí para ajudar”, defende.

A AB2L publicou recentemente um levantamento sobre o impacto da Covid-19 no mercado de lawtechs. A pesquisa foi feita em parceria com o Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados) e teve a participação de 649 escritórios de advocacia.

“Ficou bem claro que os escritórios que já possuíam legaltechs ou que contrataram tiveram um impacto negativo menor na pandemia. Em alguns, a demanda aumentou”, argumenta.

Fonte: AB2L/Cesa

No Judiciário

Marques aponta que a pandemia também ajudou a acelerar a adoção do uso de ferramentas tecnológicas no Poder Judiciário. A tendência, no entanto, não é nova. Em outubro do ano passado, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, fez questão de ressaltar a tecnologia no Seminário das Altas Cortes do Brics. “O nosso objetivo maior é o contínuo aprimoramento tecnológico voltado à promoção da segurança jurídica e de uma prestação jurisdicional célere e efetiva para o cidadão”, afirmou na ocasião.

Importantes operadores do direito, como o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, entretanto, enxergam com ressalvas a tão propagada revolução tecnológica no Judiciário. Em entrevista à TV ConJur, o advogado afirmou que, apesar dos investimentos, a tecnologia produziu pouco efeito de produtividade no Judiciário na vida real do cidadão.

Aquecimento e mortalidade

Um dos sinais do aquecimento do mercado de lawtechs foi a joint venture formada pela Elaw e Impacta, que passam a oferecer de forma conjunta soluções de automação e digitalização de operações como inteligência artificial, big data, business intelligence, analytics e jurimetria (estatística aplicada ao Direito).

Guilherme Bordon, CEO da Elaw, explica que, apesar dos aspectos negativos da pandemia na economia, o setor está aquecido. “Notamos o aumento da procura pelos nosso serviços e de utilização da nossa ferramenta. A pandemia também vai mudar ainda mais a cultura dos escritórios, já que ter um sistema com os processos arquivados na nuvem se tornará cada dia mais necessário’, explica.

Bordon acredita que o mercado está preparado para o aumento da demanda, mas que simplesmente a procura por soluções tecnológicas não é garantia de sucesso para ninguém. “Devemos ver a abertura de novas empresas. Algumas não vão se adaptar e vão fechar depois de um ano e outras vão se consolidar”, explica.

Essa dinâmica de abertura seguida de fechamentos é típica de um mercado de inovação. Segundo Daniel Marques, o número de fechamentos de lawtechs ainda não foi levantando, mas é parecido com o das startups.

Limites e soluções internas

Estudioso do tema, o advogado Wilson Sales Belchior, sócio de Rocha Marinho e Sales Advogados e conselheiro federal da OAB, acredita que a principal vantagem das lawtechs no atual cenário é sua capacidade de adaptação. “Essa tendência de expansão desafia as lawtechs ao aperfeiçoamento, praticamente em tempo real, das suas ferramentas, a fim de atender eficazmente e em conformidade com a legislação aplicável às necessidades de players diversificados, ou seja, aquilo que integrava planejamento estratégico de médio prazo precisou, em razão da pandemia, ser concretizado imediatamente”, explica.

Apesar de enxergar com otimismo o mercado, Belchior lembra que “é preciso ter em mente que o resultado dessas startups no Brasil deve manter-se harmônico e em conformidade com os limites éticos dispostos nas normas que regulam o exercício da advocacia no país, resguardando atividades que são consideradas pela lei como privativas dos advogados”.

Em alguns casos, a solução tecnológica pode ser produzida internamente. É o caso do escritório Urbano Vitalino Advogados, que decidiu criar um braço de tecnologia, a Urbano Labs, para funcionar como uma lawtech e criar ferramentas para consumo próprio.

Segundo o sócio da banca, Cristiano Sobral, o escritório não encontrou uma solução que atendesse as suas necessidades quando decidiu mudar o fluxo de trabalho. “Criamos a nossa própria ferramenta e hoje é o software que mais usamos. Ele permite uma visão muito melhor dos processos dentro da dinâmica que nós construímos. Nesse cenário da pandemia, adotamos o home office imediatamente sem nenhuma dificuldade”, diz. Hoje, o braço de tecnologia do escritório produz robôs, ferramentas de machine learning e uma rede neural.  

Se existe toda uma ala de operadores de Direito que é entusiasta do uso do tecnologia, alguns personagens ilustres fazem questão de fazer ressalvas. Um deles é o jurista Lenio Streck, colunista da ConJur, que pontuou recentemente que, apesar dos avanços, a tecnologia não vai tomar o lugar do advogado.

‘Fala-se em revolução com startups jurídicas, lawtechs ou legaltechs, market place (Diligeiro e Jurídico Certo), automação de documentos jurídicos (Looplex e Netlex), gerenciamento de prazos e pendências (Legal Note), pesquisa jurídica (JusBrasil) e resolução de conflitos (Arbitranet e Acordo Fácil). Não nego que, no meio de tudo isso, algo possa ser útil — mas como ferramenta”, lembra.

Clique aqui para acessar o conteúdo do estudo da AB2L

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Marco Aurélio completa 30 anos no Supremo Tribunal Federal

Marco Aurélio Mendes de Faria Mello está entre os integrantes do Supremo Tribunal Federal mais longevos desde que a República foi proclamada, em 1889. Neste sábado (13/6), completa 30 anos como membro da corte da qual é atualmente vice-decano, uma vida dedicada ao cargo como testemunha e, não raro, ator de transformações que impactaram a história brasileira. Tem pela frente exatamente um ano e um mês até a aposentadoria compulsória.

É definido pelos colegas como “homem talhado para o colegiado”, “um dos mais notáveis juristas” e incansável defensor da Constituição. Ao longo dos anos, foi um semeador de ideias e soluções, tanto no aspecto jurisprudencial quanto processual. Defendeu como poucos o direito de ir e vir e a liberdade de expressão.

É um observador rigoroso do devido processo legal e, em tempos de pandemia, reforçou a postura contrária à invasões do Judiciário em atos do Legislativo e do Executivo. Diz que é comum confundir atuação marcante para buscar a efetividade da ordem jurídica com ativismo judicial. 

“O STF tem a última palavra e depois que ele decide não tem a quem recorrer, o que gera uma responsabilidade maior. Não gera possibilidade de forçar a mão nesse ou naquele sentido. Paga-se um preço por se viver em um Estado Democrático de Direito e está ao alcance de todos: o respeito irrestrito às regras estabelecidas”, apontou, em entrevista ao Anuário da Justiça.

Apenas três ministros tiveram maior estadia na cadeira do Supremo Tribunal Federal: Hermínio do Espírito Santo, André Cavalcanti e Celso de Mello, atual decano.

Nelson Jr./STF

Histórico

Marco Aurélio foi empossado por Fernando Collor de Mello em 1990. Na iniciativa privada, foi Chefe do Jurídico dos Conselhos Federal e Regional dos Representantes Comerciais do Rio de Janeiro e Advogado da Federação dos Agentes Autônomos do Comércio da Guanabara. Integrou o Ministério Público do Trabalho (1975-1978), de onde saiu para o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (1978-1981) e o Tribunal Superior do Trabalho (1981-1990).

Cumpriu três mandatos no Tribunal Superior Eleitoral, quando foi presidente da corte também em três oportunidades. Presidiu o STF entre 2001 e 2003. Em seu discurso de posse, alertou: “numa época em que o tecnicismo exacerbado, a quase obsessiva especialização da s ciências, a danos a impessoalidade das relações econômicas contemporâneas promovem desvirtuamento ímpar de valores, convém a toda a sociedade, sobretudo aos magistrados, restabelecer o enfoque no ser humano”.

Carlos Moura/STF

Cumprindo essa função, discursou na Comissão de Constituição e Justiça do Senado em agosto de 2001, defendendo a reforma da legislação instrumental, mas chamando a atenção para a necessidade de que o Estado “adote postura exemplar e cumpra, com fidelidade absoluta, sem potencializar o objetivo em detrimento do meio, o que estabelecido nessa mesma legislação e, principalmente, as decisões judiciais”.

Por conta da presidência do STF, ocupou interinamente a Presidência da República em duas oportunidades, uma das quais sancionou a Lei 10.461, que criou a primeira emissora pública a transmitir ao vivo os julgamentos da corte suprema. Costuma chamar a TV Justiça de “filha”, já que o projeto de criação saiu de seu gabinete.

Rebate a crítica de que a transmissão ao vivo e em cores desacelerou o ritmo dos julgamentos e inflou o ego dos julgadores. “A TV Justiça é publicidade! É levar para a população em geral o que é julgamento e aproximar a justiça da sociedade. É irreversível e dá transparência maior à vida do próprio Supremo”, afirmou em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2020, com lançamento previsto para agosto.

Reconhece a utilidade da instituição do julgamento virtual, mas o define como “o maior mal da jurisdição atual”. Defende que o julgamento seja feito olho no olho, com debates em que os ministros possam se complementar em meio à discussão do conteúdo. Inclusive considera que os julgamentos devem ser cada vez menos permeados por academicismo, como forma de dar celeridade e evitar o elevado número de processos parados nos gabinetes.

Votos e jurisprudência

Costuma brinca que já sabe o título do livro que vai publicar quando deixar o tribunal: Os Votos que Não Proferi. Diz que acumula processos de sua relatoria em que liberou o voto, mas não vê como seu entendimento ganhar publicidade por conta do grande volume da pauta.

Nelson Jr./STF

Dá como certo que esses casos não serão julgados até sua aposentadoria.

No Plenário, fica constantemente vencido. Muitos de seus entendimentos minoritários com o tempo se transformaram em teses majoritárias, como destacou o ministro Dias Toffoli, ao homenagear o colega. 

“Exemplos emblemáticos são a declaração de inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime aos condenados por crimes hediondos; a inconstitucionalidade da prisão do depositário infiel; a inconstitucionalidade da cláusula de barreira; o reconhecimento do instituto da infidelidade partidária e a constitucionalidade da prisão apenas após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, citou Toffoli.

Foi dele também a proposta para tentar corrigir distorções no uso de Habeas Corpus, que inundavam as cortes brasileiras — e ainda inundam — em 2012. À época, inaugurou na 1ª Turma a jurisprudência que não conhece de Habeas Corpus impetrado em substituição ao recurso ordinário. Alegou que a prática configura uma tentativa de saltar instâncias. Se alguma ilegalidade fosse identificada, o HC era concedido de ofício.

Depois, lamentou que a postura tenha levado a um barateamento do HC. Se arrependimento matasse, eu estaria morto”, disse ele em entrevista ao Anuário da Justiça. “A ótica de se adotar rigor maior na adequação caiu tão a gosto que passaram a apontar; ‘se já transitou em julgado, não Cabe Habeas Corpus’; ‘se a decisão poderia ter sido impugnada, é o caso de ir para o Superior Tribunal de Justiça mediante recurso especial’; ‘se a parte não manejou o Recurso Especial, não cabe HC’. Aí é diminuir muito a importância dessa ação nobre, de envergadura, que está prevista na Constituição, que é o Habeas Corpus.”

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Uma reflexão sobre a democracia

Ano de 1947, Inglaterra, Câmara dos Comuns. Winston Churchill teria dito uma frase assim: a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais formas que têm sido experimentadas ao longo da história.

Deixando de lado, por um instante, o caráter frasista de Churchill, “como aferir a democracia?” é a pergunta que não quer calar. A experiência grega, que nos legou a palavra “democracia”, gerou efeitos no debate. Resta, então, tentar refleti-la estatisticamente, assunto levado para o campo da quantificação, uma espécie de linha que separa países “democráticos” de “não-democráticos”.

O cientista político Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília (UnB), tratou logo de nos esclarecer a respeito do assunto. É que “um índice é um construto” (aqui). E, no caso da democracia, trata-se deuma instituição dificílima de demarcar. Por quê? Porque a produção de um índice, nessa seara,“visa apreender uma realidade complexa”, o que “exige uma série de decisões”, sendo a primeira delas, a preocupação de transformar a liberdade de expressão em números. Daí as consideráveis dificuldades: o direito de voto e liberdade de expressão têm o mesmo impacto na produção de uma democracia? Qual vale o dobro?

Feita essa rápida introdução, a fim de verificar que avaliar a democracia não é como colocar um termômetro e medir a temperatura, convém perquirir um índice de democracia que circulou amplamente pelos principais jornais ao longo do corrente ano. É que democracias do mundo, nos últimos dez anos, vivenciaram considerável queda de qualidade, sendo que a parcela de insatisfeitos atingiu o pico em 2020, divisa extrema da “recessão democrática”.

O relatório de satisfação global com a democracia 2020, elaborado pelo Instituto Bennett de Políticas Públicas da Universidade de Cambridge (aqui), apontou quais foram os países que mais caíram no índice de democracia.

O levantamento revelou que 92 países atualmente têm regimes autoritários, contra 87 democráticos, sendo que os cinco mais autoritários foram Eritreia, Coreia do Norte, Arábia Saudita, Iêmen e Síria. Os que apareceram como mais democráticos foram Dinamarca, Estônia, Suécia, Suíça e Noruega. E o Brasil? Bem, o Brasil foi o quinto país que mais caiu no ranking na última década. (Fonte: Democracy Report 2020 e Folha S.Paulo)

Mas quais os critérios desse relatório de satisfação com a democracia? De maneira geral, os eixos levantados foram a liberdade de expressão e de imprensa, que representam uma das faces do tema. Alguém poderá perguntar: mas a eleição, não é parte essencial da democracia? Sim, mas na interpretação da cientista política alemã Anna Lührmann, em entrevista para o jornal Folha de S. Paulo (aqui), acabar com as eleições instantaneamente é um movimento que gera resistência, então “os governos primeiro atacam a mídia”, de modo a enfraquecer a resistência. Essa é a “rota mais comum que os governos têm tomado em direção ao autoritarismo”, diz a pesquisadora.

E, coincidentemente ou não, quatro meses após a conclusão da mencionada pesquisa da Universidade de Cambridge, um relatório da ONG “Repórteres sem Fronteiras” (aqui), apontou que o Brasil teve a segunda queda seguida em ranking de liberdade de imprensa, ocupando a posição 107 da lista de 180 Estados.

É evidente que há grande esforço para demarcar o assunto, tanto da equipe ligada à Universidade de Cambridge, quanto da equipe ligada à ONG “Repórteres sem Fronteiras”. As informações dos grupos de trabalho são muito interessantes e mais ajudam no debate do que o contrário.

Diante de tais angulações, alguns comentários adicionais: é evidente que não é nada simples comentar sobre as singularidades da democracia em curto espaço. Até porque, o assunto requer a compreensão de alguns contextos, sendo impossível dar um salto do ideal de liberdade da Grécia antiga, com o “povo” tomando decisões, passando por parâmetros de realidade sócio-política exibidos no clássico A Democracia na América, de Alexis de Tocqueville.[1]

Assim, dentro do que é possível sintetizar, vê-se que a democracia é um regime de instituições. E isto nega um regime de pessoas isoladas.Ora, apostar num discurso de salvação da pátria, com lastro na figura pessoal de um presidente da República, como muitos imaginam, trata-se de reduzir consideravelmente a riqueza do debate.

Isso já evidencia que outros tantos componentes de um índice podem ser apresentados para reflexão dentro desse campo temático, que separa países “democráticos” de “não-democráticos”, a exemplo de que nas democracias a maioria tem que se preocupar com as minorias ou que, apesar do voto carregar uma mensagem, a democracia não se esgota apenas na operação da eleição.

Para além disso é necessário ainda refletir a democracia pelo cumprimento de direitos fundamentais, o que passa pela defesa das garantias processuais e pelas “liberdades cívicas” (liberdade de expressão, de consciência, de reunião, entre outros).É que, como diz Lenio Streck, se há um ataque aos direitos e garantias fundamentais, “o Direito é a primeira vítima, a segunda é a democracia” (aqui).

Mais: a democracia requer responsabilidade, o que pressupõe que um presidente da República, mesmo que eleito pelo voto do povo, não pode tudo (aqui). E daí caberia mais desdobramentos, a exemplo de que a cidadania é o sustentáculo da democracia, porque se trata de um sistema exercível por todos.

Vê-se que não é tarefa fácil falar sobre democracia. Trata-se de um tema que requer cuidado redobrado, especialmente quando há argumentos do tipo “as instituições estão funcionando”, porque o maior perigo de uma democracia é achar que não há perigo. Tal significa dizer que é preciso ligar um alerta com as chamadas “armadilhas da confiança”, como nos lembra o professor David Runciman, da Universidade de Cambridge (aqui).

Há, de fato, um ponto de autenticidade na frase do político britânico Churchill, de que a democracia é o único regime aceitável ou o melhor dos piores regimes de governo. Ele faz, como resta claro, o elogio da democracia.O que nos preocupa é saber se as atuais democracias podem ser chamadas de democracias.

André Del Negri é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), doutor em Direito Processual pela PUC Minas e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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As fake news e o STF: ainda há o que fazer

O fenômeno, cada vez mais crescente, do compartilhamento desenfreado de notícias falsas, as assim chamadas fake news, assim como de técnicas de desinformação, põe em xeque a legitimidade e correto andamento do pleito eleitoral, acirra sectarismos, instila a divisão social, gera níveis preocupantes de instabilidade política e mesmo representa, cada vez mais, ameaças concretas para a democracia e o funcionamento regular de suas instituições estruturantes.

No caso do Brasil — a exemplo do que havia ocorrido por ocasião das eleições presidenciais que deram a vitória ao atual presidente Donald Trump — as últimas eleições gerais, em 2018, não inovaram no que toca ao recurso às mais variadas técnicas de desinformação e das “fake news”, posto que, como já sinalizado, mas alcançaram, inclusive e em especial no domínio da internet, níveis assustadores. Isso se deu não apenas em relação aos candidatos à Presidência à República, mas foi particularmente mais acentuado em relação aos mesmos.

Muito embora não seja o caso aqui de desenvolver o ponto, não há como deixar de recordar que o contexto no qual se situa o tema objeto do presente texto — que basicamente gravita em torno do nada novo problema da “verdade e da mentira na política”, título de uma das muitas paradigmáticas obras de Hannah Arendt — é particularmente singular em relação às experiências históricas anteriores, onde o recurso à desinformação e à mentira na Política já se revelaram de extrema relevância e de alto impacto, não só, mas especialmente no caso de regimes autoritários e, em especial, totalitários, v.g., os casos do nacional-socialismo alemão, do regime stalinista soviético, a revolução cultural chinesa, apenas para citar os mais devastadores e mais próximos em termos cronológicos.

Com o advento e crescimento da internet, tamanha é a dimensão do fenômeno que há mesmo quem fale em uma sociedade da desinformação (FRANCISCO, 2004), como etapa corrompida da sociedade da informação, ou de uma era da pós-verdade, em que a verdade e sua difusão passa a figurar em segundo plano, cedendo cada vez mais espaço ao apelo à irracionalidade e às emoções (KAKUTANI, 2018, p. 11).

Ainda nessa perspectiva, no tocante ao problema da erosão da verdade, inclusive na perspectiva axiológica, já não se trata mais “apenas” de notícias falsas, mas de uma falsa ciência (negacionistas de toda ordem), de uma falsa história (como a negação do holocausto), de perfis e mesmo de seguidores falsos nas mídias sociais (KAKUTANI, 2018, p. 11-12). Estamos, ao fim e ao cabo, “cercados de mentiras e de ficções” (HARARI, 2018, p. 287).

Cientes da querela ainda não resolvida relativamente à terminologia mais adequada e ao respectivo conteúdo, é de se salientar que a expressão “fake news”é comumente utilizada para ilustrar uma variada gama de informações: erros não intencionais, rumores sem origem notícia exata, teorias da conspiração, sátiras, distorções da realidade, falsas afirmações de políticos, paródias, conteúdo distorcido, conteúdo fabricado, falsas conexões, conteúdo manipulado, publicidade enganosa, dentre outros.

Para efeitos do presente texto, o termo “fake news” ligeiramente se aproxima dos já conhecidos boatos (SUNSTEIN, 2010), dos quais, contudo, se diferencia tanto pela razão de as fake news terem se adaptado ao desenvolvimento da tecnologia e dos meios comunicativos, notadamente as redes sociais, aptas a serem disseminadas instantaneamente, como também pela característica de as fake news necessariamente estarem em determinado contexto (por exemplo, o eleitoral) com o objetivo de criar uma esfera falaciosa sobre algo ou alguém, de modo a enganar o destinatário da mensagem inverídica.

Outro ponto que merece destaque nesse contexto, é o da irradiação dos efeitos de informações falsas prolongada no tempo, principalmente quando se utiliza a internet para a sua disseminação. E é nesse ponto, mais uma vez, que se reforça a ligeira, mas ao mesmo tempo densa, diferença entre boatos e fake news, porquanto os primeiros, em que pese sejam “tão antigos quanto a história humana” (SUNSTEIN, 2010, p. 3), uma vez inseridos no contexto da imediata comunicação e do avanço tecnológico, transmudam-se para uma roupagem de fake news, as quais são postadas e compartilhadas na internet, adquirindo, ademais de sua quase onipresença, um efeito duradouro (SUNSTEIN, 2010, p. 5).

O fato é que, sem que se possa aprofundar o tema, que assim como se dá com o discurso do ódio e outras figuras afins, também as assim chamadas Fake News (que também podem servir ao discurso do ódio, ao revengeporn, etc.) podem colocar em risco a delicada mas fundamental relação entre democracia e liberdade de expressão, o que nos faz lembrar de FRANK MICHELMAN, quando sublinha que a relação entre democracia e liberdade de expressão é de um recíproco condicionamento, de modo que, embora mais democracia possa muitas vezes significar mais liberdade de expressão e vice-versa (mais liberdade de expressão indica mais democracia), também é correto que a liberdade de expressão pode acarretar riscos para a democracia o que, por sua vez, pode comprometer a liberdade de expressão (2007, p. 58).

Por outro lado, quando se trata de liberdade de expressão e de seu papel cimeiro para o funcionamento de uma ordem democrática, não há como deixar de referir o papel do Poder Judiciário, em especial e no caso brasileiro, dado o enfoque deste espaço (observatório da Jurisdição constitucional) do STF.

Nesse contexto, sem desconsiderar a magnitude (em termos de importância e repercussão) dos feitos tramitando no TSE (Ações de Investigação Judicial Eleitoral 0601369-44 e 0601401-49) que tem por objeto a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão por contratações não declaradas para o envio em massa de mensagens e de ataques virtuais a adversários eleitorais, mas também o não menos polêmico Inquérito 4781, em andamento no STF, que tem como objetivo a investigação de ameaças, notícias fraudulentas contra ministros do STF e seus familiares, o caso que aqui se pretende apresentar é outro.

Trata-se da decisão proferida pelo STF na ADI 4451, relatada pelo Ministro Alexandre de Moraes e julgada em 20 e 21.06.2018, quando o Plenário confirmou medida cautelar e julgou procedente o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade do inciso II e da segunda parte do inciso III e, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º, todos do art. 45 da Lei 9.504/1997, a já referida Lei das Eleições (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 23-24).

Tais dispositivos dispõe que as emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário, a partir de 1º de julho do ano da eleição, não poderão: (i) “usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito” (inciso II) e (ii) “difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes” (segunda parte do inciso III)[1]. Os §§ 4º e 5º explicam o que se entende, respectivamente, por trucagem e por montagem.

De modo especial, é relevante o fato de que o STF afastou a vedação legal impostas às emissoras de rádio e televisão de veicular programas de humor envolvendo candidatos, partidos e coligações nos três meses anteriores ao pleito, como forma de evitar que sejam ridicularizados ou satirizados. Com a decisão, foi tornada definitiva a suspensão determinada em sede de cautelar pelo Ministro Ayres Britto em 2010, não tendo a proibição sido aplicada desde então.

A teor do voto do Ministro Alexandre de Moraes, relator, a CF proíbe toda e qualquer forma de censura à liberdade de expressão e de informação, incluindo aqui a liberdade, de criação (liberdade artística), destacando, ainda, inexistir permissão que possa ser deduzida do texto constitucional para o efeito de limitar preventivamente o conteúdo do debate público por conta de conjecturas em torno de eventuais efeitos que a divulgação de determinados conteúdos possa vir a ter na esfera pública.

Passando agora aos votos dos demais julgadores, inicia-se com o do Ministro Gilmar Mendes (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 83 e ss.), para quem, mesmo em se levando em conta a possibilidade de veiculação de fake news mediante o recurso a truques, montagens e afins, o ordenamento jurídico brasileiro já fornece mecanismos suficientes para que se constate e combata excessos no exercício da liberdade de expressão, não apenas com o manejo do direito de resposta, tanto na imprensa, como no processo eleitoral, mas também na responsabilidade criminal a posteri, ademais dos outros instrumentos destinados a conter o uso abusivo das liberdades de expressão e de informação, previstas no próprio art. 45 da Lei das Eleições[2].

Na mesma linha, mais focado na importância (e posição preferencial) da liberdade de expressão e de informação para uma ordem democrática, o voto do Ministro Roberto Barroso, que considerou errônea a opção do legislador ao colocar a lisura do pleito eleitoral como hierarquicamente superior às liberdades de expressão, incluindo a liberdade artística, de modo a atingir inclusive o núcleo essencial das referidas liberdades, desrespeitando a sua posição preferencial (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 39-40).

A Ministra Rosa Weber, por sua vez, acertadamente aponta, quanto ao direito de resposta, que este nem sempre será eficaz, como no caso de charges e sátiras, mas que tais informações devem ser recebidas pelo destinatário como elas, de fato, o são: simplesmente humor(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 48).

Foi, contudo, no voto proferido pelo Ministro Luiz Fux[3] que a questão das fake news adquiriu um espaço maior, para quem a intervenção do Poder Judiciário no processo eleitoral deve ser mínima (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 63), em especial quando em causa a liberdade de expressão, em relação de retroalimentação com a Democracia.  Para Luiz Fux, o objeto da ADI inclui a avaliação do cabimento ou não do humor (ou, “deformação humorística”) na imprensa (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 64).

Da mesma forma há que frisar a distinção traçada pelo Ministro Luiz Fux entre o exercício legítimo da liberdade de expressão, que abarca a veiculação de opiniões e críticas mediante charges e sátiras, do falseamento doloso da verdade que causa danos graves e mesmo irreversíveis aos candidatos e ao próprio processo eleitoral, as assim designadas fake news, que devem ser repudiadas e combatidas pela Justiça Eleitoral (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 73).

O Ministro Ricardo Lewandowski, por seu turno, ressaltou a conexão das sátiras com as fakenews, visto que estas podem ser veiculadas por meio daquelas, ou, alternativamente, que as sátiras transmitam fake news (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 35). Os Ministros Marco Aurélio e Cármen Lúcia igualmente sustentaram a inconstitucionalidade dos dispositivos analisados, destacando a importância do riso e do humor para uma sociedade democrática (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 160).

Particularmente enfáticas foram as palavras do Ministro Celso de Mello, que no seu voto afirmou que “nenhuma autoridade, mesmo a autoridade judiciária, pode prescrever o que será ortodoxo em política ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 148).

À vista da síntese da decisão na ADI 4451/DF, verifica-se que a despeito de sua relevância e das posições de alguns dos Ministros (Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes)contrárias à veiculação de fake news(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 16, 53, 71-72, 76-78)no processo eleitoral, o julgado do STF, em que pese articular alguma linha de orientação, não adentra o tema com maior detalhamento, em especial no que concerne ao combate das fake news nas mídias sociais, de tal sorte que também na seara jurisprudencial, ao menos por ora, não se encontram elementos mais robustos e estáveis a permitirem o melhor enfrentamento do problema pelas Instâncias da Justiça Eleitoral, mas também naquilo em que as fake news guardam relação com outras searas do direito, v.g. civil e penal.

De todo modo, inegável se tratar da primeira importante decisão do STF que envolve o tema (ainda que não central) sobre a matéria e sobre a legitimidade prima facie da veiculação de sátiras, charges e manifestações de humor em geral durante campanhas eleitorais, ademais de reafirmar a posição preferencial da liberdade de expressão na arquitetura constitucional brasileira.

Nessa perspectiva, crucial que o combate às ‘fake news’ se dê pelos meios legais disponíveis (e adequados, é de se acrescentar) e pela boa imprensa, que rapidamente pode levar a correta notícia à população” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo 907. ADI 4451/DF, 2018), mas não — pelo menos em regra e à partida — com a sua abrupta e agressiva remoção.

Outrossim, observa-se que no julgamento apresentado, o STF não abriu mão, pelo contrário, revitalizou, a sua trajetória, inaugurada com a decisão histórica tomada na ADPF 130, que teve por revogada a antiga Lei de Imprensa do regime militar, de assegurar à liberdade de expressão uma posição preferencial, de modo que eventuais restrições devem não apenas ser excepcionais como restritivamente interpretadas.

Ademais disso, nenhum combate, embora necessário, ao exercício manifestamente abusivo da liberdade de expressão e de informação, não pode ser feito às suas custas. Do contrário, nem a liberdade de expressão e nem a Democracia sobreviverão.

 é professor, desembargador aposentado do TJ-RS e advogado.

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Green new deal, mudanças climáticas e a Covid-19

Mais de 40 mil pessoas perderam a vida em decorrência da Covid-19 no Brasil, de acordo com um consórcio de empresas jornalísticas, até a última quinta-feira, com uma preocupante taxa de 19 mortos a cada 100 mil habitantes, diga-se, em franca aceleração. No mesmo dia (11/06), em apenas 24 horas, 1.272 pessoas perderam à vida. Outrossim, o Brasil ocupa a terceira posição no ranking de óbitos pela Covid-19 no mundo, ficando apenas atrás dos Estados Unidos e do Reino Unido, onde a pandemia, é bom que se recorde, iniciou bem antes.[1]Em poucas horas, o Brasil vai ultrapassar o Reino Unido e, em poucas semanas, muito provavelmente, os Estados Unidos, neste mórbido ranking da incúria governamental e do descaso social.

De outro lado, dados do programa Global ForestWatch demonstram que a perda total mundial de florestas tropicais primárias no ano passado — 3,8 milhões de hectares, uma área quase do tamanho da Suíça — foi cerca de 3% maior que 2018 e a terceira maior desde 2002. O Brasil, segundo o levantamento, é o responsável por mais de um terço do desmatamento global e o líder absoluto no ranking mundial dos países desmatadores, seguido pela República Democrática do Congo, Indonésia e a nossa vizinha Bolívia.[2]

O governo brasileiro, outrossim, não pode ignorar o relatório sobre o clima da ONU, Global Warmingof 1,5 ºC, que demonstra que o mundo já superou a barreira de 1 grau Celsius de aquecimento em relação aos níveis pré-industriais, e que seres humanos e não humanos estão sofrendo os efeitos negativos das mudanças climáticas.[3]

Não existem evidências diretas de que a mudança climática esteja influenciando a disseminação da Covid-19, mas esta, no mínimo,altera a forma de relacionamento do homem com os animais não-humanos e isso é relevante para o aumento do risco de infecções.

Com o aquecimento global os animais terrestres e marinhos buscam os pólos para fugir das altas temperaturas. Este fenômeno faz com que os animais invadam outros ecossistemas como espécies invasoras, entrem em contato direto com a população de animais nativos e assim espalhem patógenos para outros hospedeiros. 

 As causas das mudanças climáticas, sim, aumentam o risco de pandemias. É o caso do desmatamento, que ocorre principalmente para fins agropecuários. Esta é a a maior causa de perda do habitat natural na atualidade, o que igualmente gera migrações dos animais e propicia o contato efetivo e potencial com outros animais não-humanos e humanos causando,também, o compartilhamento de germes.[4]

Neste cenário, existem vários aspectos positivos de uma boa governança climática relacionados à melhora da saúde humana, e a redução do risco de surgimento de doenças infecciosas certamente é um deles. Rachel Nethery, Xiauo Wu, Francesca Dominici e outros pesquisadores da Universidade de Harvard, descobriram que pessoas que moram em locais com má qualidade do ar têm maior probabilidade de morrer da Covid-19, o que pode ser agravado por outros fatores como condições médicas pré-existentes, status socioeconômico e a falta de acesso aos cuidados básicos de saúde. Essa descoberta confirma pesquisas, já nem tão novas, que demonstram que pessoas expostas a maior poluição do ar são mais suscetíveis ao agravamento de infecções respiratórias do que aquelas que respiram o ar mais limpo.[5]

Em locais onde a poluição do ar é um problema de rotina, os que mais sofrem são os sem-teto e aqueles cuja saúde já está comprometida. Dentre os sem-teto, no caso brasileiro, há um número desproporcionalmente maior de pardos e negros infectados e mortos pela Covid-19.[6] Esses indivíduos precisam de maior apoio governamental, para além das cotas,em especial em tempos de pandemia, pois possuem menor renda per capita em média do que os brancos.

Não se sabe, embora existam muitas especulações, em especial nas redes sociais, se o clima mais quente pode retardar a propagação do coronavírus. O que importa, em razão disto,é desacelerar a propagação da doença, e isso significa seguir rigorosamente as orientações, precautórias e preventivas, da Organização Mundial de Saúde, em especial, as recomendações de distanciamento social, da higienização das mãos, do correto uso de máscaras, entre outras ações, enquanto não for descoberta uma vacina ou um antirretroviral de amplo espectro eficiente contra esta doença.[7]

O aquecimento global, igualmente, criou condições mais favoráveis à propagação de algumas doenças infecciosas, incluindo a doença de Lyme, doenças transmitidas pela água, como a Vibrioparahaemolyticus, que causa vômitos e diarreia, e doenças transmitidas por mosquitos, como a malária e a dengue. Os riscos futuros não são fáceis de prever, mas as mudanças climáticas geram o aparecimento de patógenos, com o aumento das temperaturas e das precipitações.[8] Para ajudar a limitar o risco de doenças infecciosas, mister reduzir as emissões de gases de efeito estufa e limitar o aquecimento global a 1,5 graus, tendo como marco inicial a Era pré-industrial, não apenas no ano de 2100, mas já nos próximos anos.[9]

Neste sentido o Relatório Especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), sobre a meta de 1,5 graus, concluiu que a meta de dois graus existente — prevista no Acordo de Paris — teria consequências catastróficas e irreversíveis, ainda se atingida até 2100. Necessária é maior ambição em termos de governança climática. As catástrofes ambientais (e biológicas) devem aumentar até 2050 — inclusive com o surgimento de novas pandemias e o retorno de outras já conhecidas — se a estabilização das temperaturas não ocorrer nos próximos 11 anos. De acordo com o relatório, limitar o aquecimento global em 1,5 graus requer uma mudança radical nas ações dos entes privados e nas políticas públicas governamentais. O último relatório da Agência Internacional de Energia afirma que as emissões mundiais de CO2, estão subindo e não começaram a diminuir. Como resultado, inclusive o alcance da meta de dois graus no ano de 2100, está começando a sair do alcance da comunidade internacional. Com o aquecimento global já ultrapassando 1º C, desde a era pré-industrial, estamos caminhando, a passos largos, para o aquecimento de três ou até quatro graus no ano de 2100 o que causará um grande colapso ambiental, social, econômico e político.

No século 20, as atividades humanas avançaram com espetacular velocidade causando imensos impactos ambientais e um fenômeno de extinção de espécies em ritmo acelerado, comparável apenas com o ocorrido há 65 milhões de anos, quando os dinossauros, e metade da vida na Terra, foram extintos.

A diminuição da vida no Planeta, deve-se à perda de habitat, fazendo com que os animais não humanos invadam cidades em busca de alimento e de espaço. E a urbe, por seu turno, invade florestas, mangues e vegetações protegidas em nome do crescimento econômico promovendo um desenvolvimento urbano insustentável com o potencial de exterminar espécies de fauna e flora com uma voracidade impiedosa e nunca antes vista.A mudança climática causa a perda das espécies e afeta o habitat destas tendo como resultado a eclosão de novas doenças. As ações antrópicas causam um efeito rebote, pois ao mesmo tempo que afetam a flora e a fauna, degradam e colocam em risco a qualidade da própria vida humana.

Como solução a este problema, investimentos públicos e privados podem evitar outro surto pandêmico ao promover o combate as emissões de gases de efeito estufa, ao desmatamento e, especialmente, a proteção da biodiversidade global, que pode perder um milhão de espécies já nos próximos anos.[10] O Estado e a iniciativa privada devem apoiar a ciência, investir mais em pesquisas e, em especial, na construção de respostas efetivas e imediatas para o combate as pandemias. Visões pré-iluministas, negacionistas e outras utilitárias, não são a melhor resposta, e não trarão bons resultados no médio e no longo prazo.

As abordagens precautórias e preventivas são de longe as melhores para proteger o meio ambiente, à saúde pública e a própria economia dentro de uma perspectiva intergeracional. Quando a pandemia da Covid-19 chegar ao fim, haverá uma oportunidade única para reconstruir a economia nacional, abandonando-se o ultrapassado conceito de austeridade, cunhado pelos Chicago Boys, que naufragou na Era Reagan e Thatcher. Uma alternativa seria a adoção de um Green New Deal, semelhante ao proposto em forma de Resolução no Congresso Norte-Americano[11]e é abordado em sede de pesquisas científicas, inclusive dentro do direito.[12]Fugindo do nefasto onesizefitsall[13], cego para fatores locais, poderia ser elaborado, com amplo apoio governamental, no âmbito das grandes universidades públicas e privadas brasileiras, um Green New Deal dos Trópicos,que sirva ao país. Este deveria prever obrigatoriamente: a taxação sobre o carbono; a criação de um robusto mercado do cap-and-trade; o incentivo fiscal para as energias renováveis (eólica, solar, marítima, biomassa e, talvez, nuclear); a adoção obrigatória dos veículos elétricos; a obrigatoriedade do controle de sustentabilidade em obras públicas e privadas e na produção e comercialização de eletrodomésticos e dispositivos movidos por energia elétrica;o desenvolvimento da geoengenharia para mitigar os efeitos do aquecimento global; o estímulo à criação de empregos verdes (inclusive com programas de primeiro emprego); o combate mais rigoroso as queimadas e ao desmatamento; a adoção de escolas públicas de turno integral gratuitas, e privadas subsidiadas com a adoção de vauchers, desde a pré-escola até a Universidade; a ampliação e o fortalecimento do SUS; o aumento das garantias para a elevação da confiança no sistema de previdência, com uma maior regulação pública e social da previdência pública e, em especial, das empresas de previdência privada; o aumento do controle púbico e social sobre o sistema bancário e securitário; a elevação dos subsídios públicos para a pesquisa científica focada em novas tecnologias; a ampliação dos subsídios para universidades públicas e privadas e, em especial, a tributação das grandes fortunas.

Em suma, o nosso Estado Socioambiental de Direito, terá a oportunidade de implementar um Green New Deal à brasileira, e poderá lidar melhor,não apenas com crises climáticas e pandêmicas mas, especialmente, sociais e econômicas. O Brasil, de dimensões continentais e riquíssimo, em termos de diversidade e de bens naturais, possui uma Constituição e um arcabouço infraconstitucional progressistas e aptos a fornecer a moldura jurídica para este novo cenário que exige a concretização do princípio constitucional do desenvolvimento sustentável.

 é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar na Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law e professor visitante na Universität Heidelberg- Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht. Foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (2010-2012) e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (2008-2010) e representante da magistratura federal no Conselho da Justiça Federal (2010-2012) e no Conselho do Prêmio Innovare (2010-2012). Autor de diversos artigos jurídicos no Brasil e no exterior e de livros, entre os quais, “Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças
Climáticas: um direito fundamental”.

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Sebastião Reis Júnior: Um juiz incomum

“Conheci” o Ministro Marco Aurélio Mello muito antes de nos encontrarmos pessoalmente. No meu dia a dia, era comum ouvir da minha mãe, à época estudante de Direito na Universidade de Brasília (UnB), elogios àquele jovem professor de Direito do Trabalho. Preparado e dinâmico… Esses eram alguns dos adjetivos corriqueiros usados para se referir ao então Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Mais tarde, estudante de direito na mesma UnB, tive eu o prazer de ser seu aluno e verificar de perto que os elogios eram mais do que justos. Suas aulas eram atrativas, nas quais o Professor Marco Aurélio demonstrava um raro e especial domínio da matéria lecionada. Ali, já era possível perceber traços de um juiz extraordinário, de vanguarda, que, desde então, já despontava na liderança da evolução da doutrina jurídica brasileira. Notava-se em suas aulas ousadia, coragem, destemor, raciocínio rápido, o gosto pelo debate e o amor à Justiça.

Neste dia 13 de junho, o Ministro Marco Aurélio completa 30 anos de Supremo Tribunal Federal sem ter se afastado de seu espírito de contemporaneidade, que lhe era próprio ainda em 1978, quando iniciou sua carreira como juiz no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.

Nascido em 12 de julho de 1946, o Ministro Marco Aurélio é formado pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Antes de juiz no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, foi advogado e membro do Ministério Público do Rio de Janeiro. E, depois, foi Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, onde permaneceu por nove anos até passar a integrar a nossa Suprema Corte.

Foi, por três vezes, Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, onde, em continuidade ao processo de informatização das eleições iniciado pelo Ministro Carlos Velloso, presidiu a primeira eleição pelo sistema eletrônico de votação.

Trata-se de um juiz incomum. Não tem compromisso com seus erros. Reconhece sua humanidade e volta atrás quando percebe que outra solução é mais adequada e mais justa que a anterior. Também não tem medo de expor suas convicções mesmo que fique solitário. A semente etá plantada e não raro o futuro fez ou fará justiça ao caminho escolhido.

Não são poucas as teses que hoje prevalecem e que tiveram como nascedouro seus votos vencidos: a declaração de inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime aos condenados por crimes hediondos; a inconstitucionalidade da prisão do depositário infiel; a inconstitucionalidade da cláusula de barreira; o reconhecimento do instituto da infidelidade partidária; e a constitucionalidade da prisão apenas após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Seu modo de agir como juiz mostra a razão de ser do colegiado. A corte se impõe não pelas decisões unânimes, mas pelos seus debates, pela força das divergências bem construídas, pelas ideias conflitantes típicas do Estado democrático de Direito. Como ele mesmo diz, o juiz que integra um colegiado não está ali para dizer amém como se fosse “vaquinha de presépio” quanto ao relator.

No entanto, é preciso dizer que sempre que diverge o faz com profundo embasamento jurídico (e também com elegância e respeito e, em certas ocasiões, com algumas pitadas de humor e ironia).

Ao vê-lo no colegiado, fico imaginando a dificuldade de enfrentá-lo em um debate, tendo em vista o seu raciocínio rápido, o seu conhecimento jurídico amplo e rara coragem. Ele não se intimida nem pela complexidade da causa nem pela situação de defender de forma isolada determinado entendimento e, muito menos, por contrariar pressão pública ou publicada. Sua convicção e sua confiança em suas ideias o impulsionam sempre a ir em frente.

Um juiz de visão. Teve a ousadia de implantar a TV Justiça, instrumento que tornou mais transparente o Poder Judiciário, mesmo quando boa parte da magistratura era contrária. Superou incompreensões dentro da própria casa e hoje não se imagina a sua extinção.

Tem um defeito, já que ninguém é perfeito: é torcedor fanático do Flamengo. Essa é uma maioria a que ele se alia com prazer.

E não há como falar do Ministro Marco Aurélio sem falar de Sandra, sua esposa, de Letícia, Renata, Cristiana e Eduardo, seus filhos, e de João Pedro, Rafaela, Luisa e Laura, seus netos. Tenho prazer de conhecê-los todos e posso arriscar dizer que, certamente por trás do grande juiz que é, o Ministro Marco Aurélio tem uma grande família.

Sei que sou suspeito para falar. Fui seu aluno, advoguei tendo ele como juiz e hoje somos colegas de magistratura, mas não há como não reconhecer que o Ministro Marco Aurélio é um magistrado que se entrega de corpo e alma ao que faz, empenhado na entrega da efetiva prestação jurisdicional. Para ele, como não se cansa de dizer, o processo não tem capa, tem conteúdo. Ele é um amante incondicional do Direito, da magistratura e, principalmente, da Justiça, sendo um exemplo para todos nós, juízes.

Sorte de um tribunal que pode tê-lo como membro e mais sorte ainda do povo brasileiro que tem um juiz como o Ministro Marco Aurélio.

Sebastião Reis Júnior é ministro do Superior Tribunal de Justiça.

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Venda de imóvel na execução afasta impenhorabilidade

A Subseção 2 Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2) do Tribunal Superior do Trabalho manteve a penhora de um imóvel considerado bem de família diante da comprovação de que a devedora havia vendido, no curso da ação, dois outros imóveis dos quais a penhora fora retirada. Para a maioria, a situação configurou concordância tácita com a penhora, o que afasta a proteção ao direito à moradia e a consequente impenhorabilidade do bem de família.

Banca de jornal em Ipanema, zona sul do Rio

Na ação original, o proprietário de uma banca de jornais em Ipanema, na zona sul do Rio de Janeiro, foi condenado ao pagamento de diversas parcelas a um jornaleiro que teve o vínculo de emprego reconhecido.

Na fase de execução, a penhora recaiu inicialmente sobre imóveis comerciais, mas o jornaleiro requereu que fosse penhorado o apartamento no mesmo bairro, residência da ex-companheira do dono da banca, que o sucedera à frente do negócio após a separação. Ela, então, pediu em juízo a liberação da constrição sobre os imóveis comerciais, que foram em seguida vendidos.

Bem de família

Após o leilão judicial, entretanto, a proprietária pediu a nulidade da arrematação, com a alegação de que se tratava de bem de família. De acordo com o artigo 1º da Lei 8.009/1990, o imóvel residencial do casal ou da entidade familiar é impenhorável e não responde por qualquer tipo de dívida contraída pelos cônjuges.

O juízo da 23ª Vara do Trabalho do Rio negou o pedido, após comprovar que, apesar de residir no imóvel arrematado, a ex-proprietária, ao pedir a liberação dos outros imóveis, teria tacitamente renunciado à impenhorabilidade.

No julgamento da ação rescisória, ajuizada pela sucessora após o esgotamento dos recursos na ação principal, o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ) manteve a decisão. Segundo o TRT-1, o acolhimento da pretensão exigiria o reexame de fatos e provas, incabível nas ações rescisórias, em que se discutem apenas questões jurídicas.

Má-fé

O relator do recurso ordinário, ministro Alexandre Agra Belmonte, assinalou que, de acordo com a jurisprudência do TST e do Superior Tribunal de Justiça, a renúncia à impenhorabilidade só é admitida em situações excepcionais, em razão do direito social à moradia.

“Todavia, a regra legal não pode escudar situações de abuso de direito, fraude ou má-fé do proprietário”, afirmou. “Nessas situações, a norma protetiva deve ser ultrapassada, de modo que não se tenha como intocável o bem gravado com a impenhorabilidade.”

Comportamento contraditório

Segundo o relator, compete ao Poder Judiciário combater “a qualquer custo” a conduta que não se coadune com os princípios da boa-fé objetiva, da cooperação no processo e do comportamento ético. No caso, além de ter concordado com a penhora do apartamento e vendido os outros dois imóveis inicialmente penhorados, ela também chegou a levantar o saldo remanescente da arrematação.

Para o relator, a autora se comportou de forma contraditória aos próprios atos, o que permite afastar a impenhorabilidade. Com informações da assessoria de imprensa do TST.

RO-10517-27.2014.5.01.0000

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Ney Bello: 30 anos de Marco Aurélio

Em “Avatares da Tartaruga”, Jorge Luis Borges nos lembra do paradoxo de Zenão: “Aquiles corre dez vezes mais rápido que a tartaruga e lhe dá uma vantagem de dez metros. Aquiles corre esses dez metros, a tartaruga corre um; Aquiles corre esse metro, a tartaruga corre um decímetro; Aquiles corre esse centímetro, a tartaruga um milímetro; Aquiles pés-ligeiros o milímetro, a tartaruga um décimo de milímetro, e assim infinitamente, sem alcançá-la…”.

A tartaruga nunca é vencida. Está sempre à frente do seu tempo. Sempre adiante da retumbante força de Aquiles. É um paradoxo que seja menor, mais lenta, menos punjante e ao mesmo tempo esteja sempre ali… Na dianteira do tempo e do espaço, renitente e sempre presente… Jamais vencida, quando o olhar se desloca para além do tempo presente.

Nas Cortes Constitucionais, a voz da maioria tem a força e a velocidade do herói da guerra de Troia. Formada a maioria, ela conduz, define e decide, mesmo que seja possível observar a racionalidade e a solidez sob o casco da tartaruga de Zenão de Eléia.

Ser a voz da minoria é desafiar os pés ligeiros de quem corre como o vento, na poética de Homero; é compreender o seu afazer judicante como a necessária voz dos que pensam dissonantemente e precisam ser ouvidos no Supremo Tribunal Federal.

Nos tempos que correm, vivemos embates que refletem a necessidade da tolerância, a urgência da pluralidade, a premência da discordância e a maturidade da dialética da argumentação. Precisamos, com o literato Borges e com o filósofo Zenão, acreditar que a tartaruga da racionalidade, a tartaruga da minoria, a tartaruga da discordância jamais será vencida, ainda que Aquiles seja festejado pela força grega em toda Troia.

Neste dia 13 de junho de 2020, Marco Aurélio Mendes de Farias Mello completa 30 anos de magistratura no Supremo Tribunal Federal.

Antes de laudar 30 anos de judicatura no Pretório Excelso, o que mais importa é aplaudir a divergência, festejar a discordância e comemorar a existência na corte de quem obstinadamente não se incomoda em ser voz destoante e naquele momento se ver vencido, ainda que a história venha a lhe dar razão.

Sua posse ocorreu em 1990, quando ainda vivíamos o clima festivo da entrada em vigor da nova Constituição Federal. Após a promulgação da constituição cidadã, Marco Aurélio chegava ao Supremo levando consigo suas marcas indeléveis: o gosto por duvidar de tudo que aos outros pudesse parecer óbvio; o não aceitar respostas prontas ou argumentos de autoridade; o não ter compromissos com ideias alheias, apenas com a sua própria compreensão acerca de uma questão jurídica; e o de ser intransigente com seus próprios pressupostos.

Sua postura, percebida algumas vezes como heterodoxa, valeu-lhe em muitos anos a posição minoritária, ao ponto de ganhar o honroso apelido de “senhor voto vencido”! O caminhar da história, fazendo o Supremo evoluir para posições mais modernas e conectadas com a sociedade brasileira, permitiram ao Ministro Marco Aurélio tornar-se o condutor em seus votos de diversas questões relevantes, confirmando muitos dos acertos de outrora, quando lhe era natural a posição de minoria.

A análise da jurisprudência construída pelo aniversariante permite caracterizá-lo também como um liberal que reconhece as mutações da sociedade e se opõe ao frio congelamento dos fatos que o arcadismo do Direito sempre impõe. Não é por acaso que um dos seus posicionamentos mais relevantes tenha começado com uma citação de Padre Antônio Vieira, para quem o tempo não tem consistência e não se pode parar o momento, pois é resolução universal e insuperável o tempo passar… E sempre.

Passa o tempo, mas não passam as decisões. É inexorável!

Convém lembrar que já em 1998 ele compreendia e fazia a Corte Suprema entender que em face dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e da interpretação constitucionalmente adequada do artigo 5˚ da Constituição vigente, a prisão civil do depositário infiel violava o princípio da proporcionalidade. Posteriormente, em 2008, com a clara ofensa ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San José da Costa Rica, o STF acolheu a posição liberal que já se mostrava correta dez anos antes.

A compreensão do Ministro Marco Aurélio, segundo a qual o depósito cível era uma ficção e a prisão, desproporcional e, posteriormente, ofensiva aos Tratados Internacionais —, foi reconhecida historicamente, e demonstrou a sina da tartaruga que não é jamais alcançada pelos pés ligeiros de Aquiles: a história transformava o senhor voto vencido em vencedor!

Em 2012, o liberalismo necessário e a vetorização do pensamento da minoria menos conservadora volta a brilhar em memorável voto. No dia 13 de abril, chegava ao fim o julgamento que reconheceu o direito das grávidas de fetos anencefálicos de optar pelo aborto, com assistência médica. O julgamento da ADPF 54 foi um marco na corte por superar o tom clássico e conservador do discurso jurídico para assenhorar a decisão judicial da racionalidade, tão cara à modernidade. Talvez Nelson Rodrigues dissesse do voto do Ministro Marco Aurélio que, em fim, observou-se no Supremo “a vida como ela é”.

De tantas questões que demostraram a relevância do Supremo Tribunal Federal, é necessário também destacar a firme defesa feita pelo ministro da posição contrária à prisão após decisão condenatória em segunda instância.

Com sólidos argumentos que logo depois se tornaram majoritários, Marco Aurélio sempre defendeu a inconstitucionalidade da posição punitivista. Sempre sustentou que não era possível, na ordem vigente, compreender que o pressuposto da culpa necessário à aplicação da pena pudesse surgir de decisão pendente de recurso. Em outra Constituição, em outro país, em outro sistema… Quem sabe! No modelo promulgado em 1988, jamais!

Em todas estas decisões que se espraiam por três décadas, é possível perceber um traço marcante da personalidade do magistrado: a tranquilidade com que rotineira e renitentemente não se incomoda em ser minoria, não se amofina em ser vencido e não se ofende com ser contrariado pela maioria.

É mesmo admirável que após 30 anos esta característica não tenha se modificado e cedido espaço ao cômodo acompanhamento da força de Aquiles.

Voltando a Borges e a Zenão, pode-se dizer que a tartaruga tem o casco duro.

E não menos admiráveis são a pontualidade e assiduidade, e a total ranhetice vamos chamar assim com que trata dias de sessões e seus horários, como que a acreditar que a liturgia e o compromisso judicante sejam primordiais e prioritários.

Os 30 anos chegam, e olhar para trás permite ver que o tempo passou. Mas os seus votos, agora gravados em mídia digital graças à TV Justiça, obra administrativa sua de extrema relevância quando da presidência da casa, eternizam a magistratura da minoria, a magistratura das vozes não ouvidas e a elegia da divergência. Permitem ver que a judicatura não passará.

Em tempos de tantas vozes roucas que mais uma vez, como ciclicamente sói acontecer, verberam contra a democracia e contra a independência entre os poderes, é hora de festejar a divergência e a discordância democráticas.

Era hora de dizer: Parabéns, “senhor voto vencido”!

 é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

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Feferbaum e Klafke: Ensino jurídico na quarentena — parte IV

Temos pensado muito sobre a ressignificação do espaço da sala de aula no ambiente presencial e, agora, o impacto do confinamento na educação. Esse é apenas mais um motivo para que as pessoas envolvidas reflitam sobre o papel do(a) professor(a) e do quanto é urgente revalorizar o espaço da sala de aula e o papel que os discentes desempenham nele durante o processo de ensino-aprendizagem.

Enxergar docentes como facilitadores do aprendizado, e não como centro do ensino, pode ser a chave. Reduzir o papel do professor a um orador, educador ou portador do saber não dá mais conta da realidade que precisamos enfrentar. Encarar a função de ensinar como sustentação de espaços de construção de conhecimento e pensar na docência também como exercício de empatia torna factível a ressignificação. Passar conteúdo não é complicado; difícil mesmo é educar. Por isso, docentes devem continuar aprendendo a aprender.

É importante ressaltar: uma boa aula é uma boa aula em qualquer ambiente, seja virtual, seja presencial. Cada um desses espaços possui suas particularidades, que podem ser potencializadas para o bem ou para o mal. Contudo, o mais importante é saber aonde se quer chegar, isto é, que tipo de egresso se quer formar. A partir dessa meta, é possível estabelecer um plano de ensino com objetivos de aprendizagem claros. Quando o encontro é bem planejado, fruto de uma profunda reflexão e com um propósito definido, extrai-se o melhor desses dois mundos.

Se os(as) alunos(as) puderem decidir frequentar o espaço de ensino que quiserem, eles(as) só irão investir tempo naquilo que fizer sentido, virtual ou presencialmente. O confinamento evidenciou que muitas atividades podem ser feitas remotamente. Consequentemente, a sala de aula terá que valer muito a pena para manter sua importância, e isso tanto para professores(as) quanto para alunos(as). É necessário estabelecer um novo sentido para manter 30, 40, 60 ou 80 pessoas juntas e compensar os riscos sanitários de sair de casa, com o trânsito das grandes cidades e todas as dificuldades, cada vez maiores, de se deslocar fisicamente e estar num horário pré-determinado em um local, no qual deverão ficar por horas seguidas.

Se for para oferecermos aulas sumariamente expositivas, não precisamos ter o desgaste de nos reunirmos fisicamente; mas, se formos trocar vivências, aprender com o outro, nos relacionar e construir juntos, aí valerá realmente a pena o esforço, especialmente em um momento em que todos precisam falar e ser ouvidos. Tudo indica que o ensino híbrido será o grande debate para o presente e futuro. Portanto, precisamos aprender a ocupar o espaço da sala de aula com experiências que só podem acontecer no encontro com o outro.

Habilidades e competências do futuro que chegou
Ao lado da discussão humana, relacionada, por exemplo, com questões de saúde física e mental de docentes e discentes, queremos ressaltar a dimensão instrucional sobre o que a sala de aula precisa desenvolver. De uma hora para outra, as pessoas tiveram que lidar com mudanças de rotina, uso de tecnologia, novos trabalhos e, o principal, a crise social e econômica. No ensino, as habilidades exigidas de professores e alunos só evidenciaram a importância do discurso sobre as competências do futuro: capacidade de adaptação e de resiliência.

Diante de novas situações, radicalmente distintas do que poderíamos imaginar em exercícios de novos cenários, precisamos nos reinventar — e vários o fizeram — para enfrentar os desafios. Essa será uma marca do nosso futuro. Ações previsíveis e repetitivas serão realizadas por algoritmos, que farão esse trabalho muito melhor do que seres humanos, sem erros e a um custo menor. Sim, um algoritmo será mais eficiente do que um profissional mediano. O que não será substituído é justamente a capacidade de se engajar em relações sociais significativas, reconhecer a alteridade, pensar em soluções criativas e enfrentar dificuldades e situações inéditas.

Há professores(as) e alunos(as) insatisfeitos(as) com o ensino a distância. Sempre haverá resistências diversas. Contudo, assim será o futuro, cada vez mais incerto e tecnológico. E as resistências precisam levadas a sério — a discussão sobre desigualdade social e ensino a distância, por exemplo, não deveria ter sido ignorada nos últimos anos e não pode ser esquecida. Mas elas também devem ser trabalhadas. Não apenas pelo fato de as condições do retorno ao ensino presencial estarem incertas, mas também porque devemos nos reinventar em um mundo pautado pela transformação e rapidez.

Falando em velocidade, a temporalidade é uma outra questão importante que surge ao falarmos de competências e habilidades profissionais. Toda essa circunstância provoca uma mudança na nossa sensação do tempo. Esta crise evidenciou que o tempo da aula virtual, o tempo disponível para o desempenho dos vários papéis sociais, a influência das novas tecnologias e o período para a aprendizagem seguem lógicas diferentes. Como preparar futuros profissionais e nos prepararmos enquanto profissionais da educação para um futuro incerto? Desenvolvendo novas habilidades e sendo resilientes.

Sair desta pandemia tendo desenvolvido competências como responsabilidade, empatia, criatividade, autonomia, ética, paciência e resiliência será um enorme ganho.

Conclusões
Há uma anedota sobre o grande problema que se tornaram as fezes de cavalos no início do século XX nas grandes cidades industriais. Como resolver o problema? O advento dos automóveis, por fim, simplesmente eliminou a discussão. Pode ser que o debate sobre ensino online e ensino presencial em tempos de Covid-19 siga pelo mesmo caminho. O surgimento de uma vacina, acompanhado de produção e distribuição em massa, pode afastar várias das questões levantadas nesta série de artigos.

Ainda assim, podemos e devemos levar alguns aprendizados conosco. Primeiro, ganhamos em pouco tempo um grande conhecimento sobre ferramentas tecnológicas e organização de tempo e dos espaços pessoal e de trabalho. Utilizá-lo para aprimorar a educação é o próximo passo. Segundo, devemos atuar com planejamento e colocar em perspectiva o que será exigido de nós daqui a dois, três, cinco anos. Terceiro, um ensino de qualidade pode acontecer tanto no ambiente presencial como no ambiente virtual. Não podemos cair na tentação de achar que qualquer ensino presencial é melhor do que as aulas remotas. Finalmente, como agentes que contribuem para a reflexão social, devemos incutir nos(as) estudantes a sensibilidade para as questões humanas e sociais do nosso tempo. A crise deixou exposta a face mais cruel da desigualdade social. É nossa responsabilidade passar adiante a mensagem de que uma sociedade democrática não tolera essa realidade.

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 é professora e coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito São Paulo (FGV-CEPI).

Guilherme Klafke é professor da pós-graduação lato sensu da FGV Direito São Paulo e líder de pesquisa no FGV-CEPI.