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Vivien Lys: A importância da mediação e da onciliação

É fato notório que a crise social e econômica iniciada pela declaração do Estado de Emergência da Saúde Pública pela Lei Federal nº 13.979/2020, decorrente do surto causado pela Covid-19, ainda vai trazer à sociedade inúmeros reflexos e danos inimagináveis. Não há precedentes históricos de uma crise semelhante que atingiu, abruptamente, o princípio da segurança jurídica todos os setores da economia e desnaturou o paradigma de relações sociais vivenciadas anteriormente ao atual colapso.

A ideia de submeter todos os conflitos ao Estado-juiz esbarra no conceito binário de ganhador e perdedor e as novas jurisprudências podem abrir abismos que exigem uma nova visão do advogado.

Por exemplo, as decisões judiciais nas ações de despejo por falta de pagamento apresentam critérios subjetivos variados que vão desde a ponderação que ainda não é possível auferir se o avanço do vírus causará recessão econômica [1] até a decisão de suspensão da liminar de despejo para a inquilina que estiver grávida e não pagar os aluguéis [2]. Nessa conjuntura, como deve ser a análise das chances de êxito de um processo pelo advogado?

O advogado já tem como dever de informar o cliente de forma clara e inequívoca sobre os riscos decorrentes das suas pretensões e dos possíveis resultados da respectiva ação, como previsto no artigo 8º do Código de Ética e Disciplina da OAB. Isso não é novidade!

O atual desafio do advogado é desenhar para seu cliente a matriz de risco no descumprimento dos contratos e na causa raiz do surgimento de determinado conflito, em paralelo com a escolha do método de solução de conflitos: I) negociação; II) conciliação, III) mediação; IV) Poder Judiciário; e V) arbitragem.

Essa matriz de risco engloba elementos fáticos e legais, bem como o estudo da efetividade do cumprimento da decisão judicial ou arbitral favorável ao seu cliente. A análise jurídica do advogado deverá passar pela construção de novos balizadores, como por exemplo a apresentação ao seu cliente das consequências da escolha da arbitragem ou do Estado-juiz na satisfação do seu interesse, que será postergada até o final do processo com o elemento prejudicial da tendência do aumento das ações.

A matriz de risco engloba elementos como: I) análise jurídica; II) disponibilidade do cliente para suportar o desgaste de todo o processo; III) previsão de perdas, mesmo com a prolação de uma sentença totalmente procedente;  IV) estimativa de probabilidades; e V) gerenciamento do valor do litigio dentro da necessidade de contingenciamento do mesmo, desembolso de custas e o risco da sucumbência.

A matriz de risco está vinculada à ausência de segurança jurídica nas decisões que suscitam a abertura de novos caminhos a serem trilhados pela busca da satisfação dos interesses do cliente e do advogado.

Para que o advogado seja um agente transformador dos reflexos da pandemia, é necessária a valorização do dever do advogado de promover novos caminhos ao litígio, evitando o ajuizamento das ações [3].

Com a subsunção da matriz de risco ao caso concreto, e averiguação da existência de partes vulneráveis ao seu cliente e riscos jurídicos e fáticos, caberá ao advogado indicar ao seu cliente o uso da mediação ou da conciliação, como previsto no artigo 3º, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil de 2015, para que haja a ampliação das possibilidades de resolver as consequências negativas da atual crise, pois a necessidade dos litigantes de obter a solução de seus problemas será medida de ordem!

 é advogada, mediadora, mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-graduada em Direito Contratual pela PUC-SP, professora do Curso de Especialização lato sensu em Contratos pela PUC-SP, professora do Curso de Especialização em Arbitragem e Mediação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e professora de mediação no Centro Mediar.

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Uma reflexão sobre a democracia

Ano de 1947, Inglaterra, Câmara dos Comuns. Winston Churchill teria dito uma frase assim: a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais formas que têm sido experimentadas ao longo da história.

Deixando de lado, por um instante, o caráter frasista de Churchill, “como aferir a democracia?” é a pergunta que não quer calar. A experiência grega, que nos legou a palavra “democracia”, gerou efeitos no debate. Resta, então, tentar refleti-la estatisticamente, assunto levado para o campo da quantificação, uma espécie de linha que separa países “democráticos” de “não-democráticos”.

O cientista político Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília (UnB), tratou logo de nos esclarecer a respeito do assunto. É que “um índice é um construto” (aqui). E, no caso da democracia, trata-se deuma instituição dificílima de demarcar. Por quê? Porque a produção de um índice, nessa seara,“visa apreender uma realidade complexa”, o que “exige uma série de decisões”, sendo a primeira delas, a preocupação de transformar a liberdade de expressão em números. Daí as consideráveis dificuldades: o direito de voto e liberdade de expressão têm o mesmo impacto na produção de uma democracia? Qual vale o dobro?

Feita essa rápida introdução, a fim de verificar que avaliar a democracia não é como colocar um termômetro e medir a temperatura, convém perquirir um índice de democracia que circulou amplamente pelos principais jornais ao longo do corrente ano. É que democracias do mundo, nos últimos dez anos, vivenciaram considerável queda de qualidade, sendo que a parcela de insatisfeitos atingiu o pico em 2020, divisa extrema da “recessão democrática”.

O relatório de satisfação global com a democracia 2020, elaborado pelo Instituto Bennett de Políticas Públicas da Universidade de Cambridge (aqui), apontou quais foram os países que mais caíram no índice de democracia.

O levantamento revelou que 92 países atualmente têm regimes autoritários, contra 87 democráticos, sendo que os cinco mais autoritários foram Eritreia, Coreia do Norte, Arábia Saudita, Iêmen e Síria. Os que apareceram como mais democráticos foram Dinamarca, Estônia, Suécia, Suíça e Noruega. E o Brasil? Bem, o Brasil foi o quinto país que mais caiu no ranking na última década. (Fonte: Democracy Report 2020 e Folha S.Paulo)

Mas quais os critérios desse relatório de satisfação com a democracia? De maneira geral, os eixos levantados foram a liberdade de expressão e de imprensa, que representam uma das faces do tema. Alguém poderá perguntar: mas a eleição, não é parte essencial da democracia? Sim, mas na interpretação da cientista política alemã Anna Lührmann, em entrevista para o jornal Folha de S. Paulo (aqui), acabar com as eleições instantaneamente é um movimento que gera resistência, então “os governos primeiro atacam a mídia”, de modo a enfraquecer a resistência. Essa é a “rota mais comum que os governos têm tomado em direção ao autoritarismo”, diz a pesquisadora.

E, coincidentemente ou não, quatro meses após a conclusão da mencionada pesquisa da Universidade de Cambridge, um relatório da ONG “Repórteres sem Fronteiras” (aqui), apontou que o Brasil teve a segunda queda seguida em ranking de liberdade de imprensa, ocupando a posição 107 da lista de 180 Estados.

É evidente que há grande esforço para demarcar o assunto, tanto da equipe ligada à Universidade de Cambridge, quanto da equipe ligada à ONG “Repórteres sem Fronteiras”. As informações dos grupos de trabalho são muito interessantes e mais ajudam no debate do que o contrário.

Diante de tais angulações, alguns comentários adicionais: é evidente que não é nada simples comentar sobre as singularidades da democracia em curto espaço. Até porque, o assunto requer a compreensão de alguns contextos, sendo impossível dar um salto do ideal de liberdade da Grécia antiga, com o “povo” tomando decisões, passando por parâmetros de realidade sócio-política exibidos no clássico A Democracia na América, de Alexis de Tocqueville.[1]

Assim, dentro do que é possível sintetizar, vê-se que a democracia é um regime de instituições. E isto nega um regime de pessoas isoladas.Ora, apostar num discurso de salvação da pátria, com lastro na figura pessoal de um presidente da República, como muitos imaginam, trata-se de reduzir consideravelmente a riqueza do debate.

Isso já evidencia que outros tantos componentes de um índice podem ser apresentados para reflexão dentro desse campo temático, que separa países “democráticos” de “não-democráticos”, a exemplo de que nas democracias a maioria tem que se preocupar com as minorias ou que, apesar do voto carregar uma mensagem, a democracia não se esgota apenas na operação da eleição.

Para além disso é necessário ainda refletir a democracia pelo cumprimento de direitos fundamentais, o que passa pela defesa das garantias processuais e pelas “liberdades cívicas” (liberdade de expressão, de consciência, de reunião, entre outros).É que, como diz Lenio Streck, se há um ataque aos direitos e garantias fundamentais, “o Direito é a primeira vítima, a segunda é a democracia” (aqui).

Mais: a democracia requer responsabilidade, o que pressupõe que um presidente da República, mesmo que eleito pelo voto do povo, não pode tudo (aqui). E daí caberia mais desdobramentos, a exemplo de que a cidadania é o sustentáculo da democracia, porque se trata de um sistema exercível por todos.

Vê-se que não é tarefa fácil falar sobre democracia. Trata-se de um tema que requer cuidado redobrado, especialmente quando há argumentos do tipo “as instituições estão funcionando”, porque o maior perigo de uma democracia é achar que não há perigo. Tal significa dizer que é preciso ligar um alerta com as chamadas “armadilhas da confiança”, como nos lembra o professor David Runciman, da Universidade de Cambridge (aqui).

Há, de fato, um ponto de autenticidade na frase do político britânico Churchill, de que a democracia é o único regime aceitável ou o melhor dos piores regimes de governo. Ele faz, como resta claro, o elogio da democracia.O que nos preocupa é saber se as atuais democracias podem ser chamadas de democracias.

André Del Negri é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), doutor em Direito Processual pela PUC Minas e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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Duarte e Cardoso: A decisão do Supremo no RE 607477

O presente texto busca analisar, de forma pontual, a decisão tomada pelo STF no último dia 22 de maio tornando prescindível que seja realizado o depósito recursal caso a parte pretenda interpor o recurso extraordinário. Pretende-se demonstrar que tal decisão foi acertada, mas não cabe sua ampliação em outros recursos durante a jurisdição trabalhista.

Uníssono que o exercício do direito de ação não se afigura absoluto, antes, podem ser fixadas determinadas balizas que dizem respeito à sua própria regularidade. Por isso, a existência de regras sobre competência, perempção, patrocínio advocatício etc., conquanto estabeleçam condicionantes ao exercício do direito de ação, na realidade, concorrem para que essa garantia constitucional seja concretizada de uma forma regular. Por outro lado, esse condicionamento ao exercício do direito de ação não pode desbordar determinados limites, pois, se assim o fizerem, traduzir-se-iam em efetivo óbice no acesso ao Judiciário. Como exemplos de condicionantes que violam o direito de ação, no processo do trabalho, podemos citar: a) a obrigatoriedade de submissão de litígios a instâncias não jurisdicionais (como as CCPs, tendo o STF realizado leitura conforme do artigo 625-D, caput, da CLT, para tornar facultativa a submissão das demandas a tais comissões [1]); ou b) as regras de competência territorial que sejam materialmente impeditivas (v.g., exigir que pessoa sem maiores posses residente em Curitiba tenha que se deslocar a Altamira-PA para ajuizar ação relativa a período no qual trabalhou na Usina de Belo Monte, cuja distância, superior a três mil quilômetros, e tempo de deslocamento tornariam uma mera promessa, ao final descumprida, de acesso ao Judiciário).

Um outro condicionante que a legislação estabelece ao exercício do direito de ação, especialmente no âmbito do processo do trabalho, consiste na fixação de depósito recursal para que a parte condenada possa interpor os recursos ordinário, de revista, embargos, agravo de instrumento e recurso extraordinário. O depósito, portanto, possui o caráter de pressuposto recursal extrínseco. Além dessa característica, a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido ao depósito recursal também outra finalidade, qual seja, assegurar a execução [2]. Esta última perspectiva tem colaborado, em diversas situações, para antecipar, parcial ou totalmente, a satisfação do credor, com a liberação do depósito após fixação de crédito superior ao seu valor. Ademais, a exigência do depósito recursal apresenta uma externalidade, qual seja, reduzir a interposição de recursos meramente protelatórios (GIGLIO, 2000, p. 410), pois ou o valor ficaria imobilizado ou a pessoa teria que arcar com o valor gasto para obter fiança bancária ou seguro garantia judicial (artigo 899, § 11, CLT). Embora seja um instituto de marcada predominância no âmbito do processo do trabalho, como pressuposto recursal, o depósito existe também na ação rescisória, tanto aquela ajuizada no âmbito cível (CPC, artigo 968, II) quanto no trabalhista (CLT, artigo 836, caput). Note-se que no processo do trabalho, o valor do depósito para o ajuizamento da ação é superior ao exigido no processo comum justamente em face da natureza dos créditos normalmente discutidos na Justiça do Trabalho, de predominante caráter alimentar, o que exige, portanto, um tratamento diverso do legislador.

Observe-se que, ao contrário de argumento às vezes apresentado, não há de se imputar como inconstitucional a exigência de depósito para a interposição de recursos trabalhistas, pois tal requisito caminha no sentido de concretizar todo um arcabouço protetivo dos créditos trabalhistas [3]. Observe que, a par desse fundamento constitucional, a simples existência do depósito recursal não viola a ampla defesa e o direito de ação pois os empregadores que, em razão de suas dificuldades financeiras devidamente comprovadas, fizerem jus à gratuidade da justiça, ficam dispensados de seu recolhimento (CLT, artigo 899, § 10), além do que determinadas pessoas jurídicas (micro e pequenas empresas, empreendedores individuais), em relação às quais a Constituição (artigo 179) assegura um tratamento especial, devem recolher apenas a metade do valor do depósito recursal (CLT, artigo 899, § 9º).

Deste modo, o depósito recursal trata-se, na verdade, de um condicionamento imposto validamente ao exercício do direito de ação.

O STF, de seu lado, em ambas as suas turmas, sempre teve firme jurisprudência no sentido de impossibilidade de analisar esse pressuposto recursal porque a sua fixação é realizada em sede de legislação infraconstitucional. Nesse sentido, citam-se:

“Trabalhista. Depósito recursal. Lei nº. 8.177/91. Alegada contrariedade ao artigo 5º., II, da Constituição. A discussão em torno do depósito recursal na Justiça do Trabalho e da ocorrência da deserção cinge-se ao âmbito da legislação ordinária, sendo inadequada a apreciação pelo Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental improvido” (AI 153269. Rel. Min. Ilmar Galvão. 1ª T. Dt. Julg.: 07/06/1994. Pub.: DJ 10.2.95).

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRABALHISTA. INSUFICIÊNCIA DO DEPOSITO RECURSAL. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. A controvérsia acerca do depósito recursal há de ser dirimida através da legislação ordinária que disciplina os pressupostos extrínsecos e intrínsecos para a interposição de recurso trabalhista. A violação a norma constitucional, se houvesse, seria indireta e reflexa, o que não viabiliza a instância extraordinária. Agravo regimental improvido” (AI 138965. Rel. Min.: Maurício Corrêa. Dt. Julg.: 16.5.95. Dt. Pub.: 8.9.95).

Não obstante esse posicionamento prevalecente por longo período, houve uma inflexão por parte do STF que, em 2013, entendeu tratar-se de matéria constitucional a exigência de depósito recursal em recurso extraordinário, tanto que desafiou sua análise sob o regime de repercussão geral (Tema 679). Em 22 de maio, houve publicação da decisão, tendo prevalecido por maioria o entendimento de que é “incompatível com a Constituição Federal exigência de depósito prévio como condição de admissibilidade do recurso extraordinário” (RE 607447. Pleno virtual. Rel. min.: Marco Aurélio). Em razão disso, declarou-se a “inconstitucionalidade do § 1º do artigo 899 da Consolidação das Leis do Trabalho, sendo inconstitucional a (exigência) constante na cabeça do artigo 40 da Lei nº 8.177 e, por arrastamento, no inciso II da Instrução Normativa nº 3/1993 do Tribunal Superior do Trabalho”.

Assim, como decidiu o STF, não se exige o depósito recursal para a interposição de recurso extraordinário. A despeito de críticas quanto a essa interpretação, em especial porque importaria em autorizar interposição de recurso meramente protelatório ou que alteraria todo o manto protecionista conferido aos créditos trabalhistas, não nos parece que a conclusão do STF tenha incorrido em atecnia, especialmente porque não cabe a ampliação desse entendimento para os demais recursos interpostos na jurisdição trabalhista.

Com efeito, o recurso extraordinário, ainda que cabível em um processo trabalhista, tem as suas balizas constitucionalmente fixadas, quais sejam, “julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; e b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal” (CF, artigo 102, III). A legislação infraconstitucional, ao estabelecer como pressuposto processual um requisito, extrínseco ou intrínseco, não estabelecido pela Constituição quanto ao cabimento do recurso extraordinário, quer nos parecer, incorreu em uma violação ao texto constitucional. Não se queira argumentar, todavia, que a partir dessa premissa poderia haver a alegação de que os demais pressupostos estabelecidos por lei sejam inconstitucionais, por exemplo, o prazo (15 dias), a representação por meio de advogado etc. Tal leitura soaria incorreta, com a devida vênia, uma vez que esses outros requisitos (prazo, representação etc) são pressupostos ontologicamente vinculados à própria existência do instituto “recurso”, ou seja, a existência de um determinado prazo, ou a sua representação por meio de advogado, ou a delimitação do tema sob análise, são exigências estabelecidas para o cabimento de qualquer recurso e, portanto, essenciais à manifestação de discordância da parte quanto à decisão. Disso decorre que se se tratam de requisitos essencialmente vinculados a qualquer recurso, de forma que a previsão desses pressupostos, também para o recurso extraordinário, afigura-se lícita. Diferente é, porém, da fixação de pressupostos que não são ontologicamente vinculados aos recursos, mas sim ao recurso extraordinário, hipótese em que somente a Constituição pode estabelecê-los. Em realidade, o recurso extraordinário não é um recurso trabalhista ainda que contingencialmente possa ser apresentado em um processo trabalhista: trata-se de um recurso constitucional.

Deste modo, ao fixarem para o recurso extraordinário pressupostos que não são ontológicos aos recursos e que não estão previstos na Constituição Federal, os textos normativos mencionados na decisão do STF violam a Constituição Federal, razão pela qual podemos afirmar que o entendimento sufragado pelo STF busca preservar a autoridade da Constituição Federal enquanto texto normativo básico do ordenamento brasileiro.

Note-se, por outro lado, não ser lícito estender o entendimento do STF para os demais recursos interpostos durante a jurisdição trabalhista. Pretendido elastecimento violaria todo o sistema jurídico em diversos aspectos: primeiro, importaria em uma hecatombe de todo o arcabouço processual trabalhista, habilmente construído para que haja uma forma de garantir a satisfação de créditos trabalhistas a partir de um determinado estágio processual e, como tal, permitir a satisfação dos credores de uma forma mais célere; ignoraria a necessidade de uma tutela diferenciada assentada na ideia de acesso efetivo à Justiça; afastaria a concretização das normas constitucionais que tutelam os direitos dos trabalhadores. Mas, além da violação ao sistema trabalhista como um todo, tal pretensão violaria a própria decisão ora tomada pelo STF, no sentido de que “para a interposição de recurso ao Supremo, não se pode cogitar de pagamento de certo valor” [4], uma vez que, diferentemente dos demais recursos trabalhistas, o recurso extraordinário é um recurso com sede constitucional, que lhe fixa os seus requisitos específicos, o que não se vislumbra nos demais recursos, cujas regras são integralmente fixadas pela legislação infraconstitucional. Daí, em relação ao recurso ordinário, ao recurso de revista e as embargos, porque não são dirigidos ao STF, pela própria decisão do STF, subsiste o ônus de realizar o depósito recursal.

A única possibilidade de elastecimento da decisão do STF refere-se ao agravo de instrumento interposto contra decisão que não admite o recurso extraordinário. Embora esse recurso não seja expressamente previsto no âmbito constitucional, premissa de nossa exposição acima, ao concluir que “para a interposição de recurso ao Supremo, não se pode cogitar de pagamento de certo valor”, o STF realça o seu papel de guardião da Constituição.

Deste modo, é possível concluir que, na decisão tomada no RE 607477, o STF zelou pela autoridade da Constituição, que não estabelece pressupostos de natureza financeira para a admissão do recurso extraordinário. Todavia, não cabe estender a premissa para todos os recursos trabalhistas pois, contrariamente ao extraordinário e do agravo de instrumento para destrancar ao recurso extraordinário, não possuem previsão e requisitos estabelecidos no texto constitucional nem possuem como órgão julgador o STF.

 

Referência bibliográfica

 

GIGLIO, Wagner. Direito Processual do Trabalho. 11ªed. São Paulo: Saraiva, 2000.

 


[1] Na ADI 2139 o STF reconheceu a inconstitucionalidade dessa exigência.

[2] Por isso a Fazenda Pública não precisa realizá-lo, ante o procedimento especial de sua execução; não há se fazer depósito recursal para a interposição de agravo de petição pela parte executada; de forma idêntica, não cabe realizá-lo se não houver condenação em pagamento, como nas ações para anotação da CTPS, mandamentais etc.

[3] Em grande parte, os direitos trabalhistas são previstos constitucionalmente. Assim, exige-se a adoção de medidas que visam a concretizá-los em razão da força normativa da Constituição.

 é juiz do trabalho da 18ª Região, professor universitário, mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo-USP e autor do livro “Segurança jurídica no Direito e Processo do Trabalho” (2020. No prelo).

 é professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (DFRP/USP).

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Superendividados devem ser protegidos com aprovação de PL

O superendividamento dos consumidores tem sido objeto de tratamento específico em  vários países do mundo, sobressaindo dois sistemas que influenciaram os demais por terem sido os primeiros que disciplinaram a matéria: o norte-americano e o francês[1].

Não constitui um recente tema no âmbito das nações mais desenvolvidas economicamente, eis que, desde a década de 70, foram sendo editados diplomas normativos acerca da problemática. Na França, a Lei Scrivener, de 10 de janeiro de 1978, dispôs sobre a proteção dos consumidores no setor de certas operações de crédito[2].

O altíssimo grau de endividamento dos consumidores norte-americanos conduziu, em 1978, à aprovação do Bankruptcy Reform Act (Lei de Falência). A preocupação do governo francês com esta situação propiciou a edição das leis de 23 de junho de 1989 e de 31 de dezembro de 1989, denominadas de Leis Neiertz[3].  Nessa senda, a lei de 29 de julho de 1998 dispôs tanto do superendividamento na sua forma ativa quanto na sua modalidade passiva[4].   

No Brasil, a Lei Federal n.º 8.078/90 não englobou a matéria e, após quase vinte e dois anos de sua vigência, o Projeto de Lei n.º 283/12 trouxe, à lume, a necessidade da sua regulamentação. A despeito de ter sido convertido, em 2015, no PL n.º 3.515, ainda permanece sem a devida e necessária aprovação mesmo no caótico cenário pandêmico atual. O termo superendividamento corresponde a um neologismo constituído a partir da palavra sur, que advém do latim super e que indica acumulação, excesso e sobrecarga, e endividamento, cujo efeito principal é a existência de carga debitória que não se consegue suportar diante da renda existente e que compromete a sobrevivência do sujeito[5].

Nos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, denomina-se over-indebtedness[6], enquanto na Europa, a nomenclatura varia de acordo com o local, tendo Portugal o designado de sobre-endividamento, falência ou insolvência dos consumidores[7]; na França e Bélgica, utiliza-se o termo surendettement; na Espanha e demais países hispânicos, chama-se sobreendeudamento; e na Alemanha, tem-se o uso de Überschuldung[8].

O superendividamento constitui problema de natureza complexa que pode ser identificado nas diversas partes do mundo e o seu conceito dependerá da estrutura legislativa existente ou dos padrões normativos aplicáveis, quando se tratam de países que integram o sistema common law.

Vislumbra-se, porém, um conceito geral extraído dos sistemas norte-americano e europeu e que fora acolhido pelo parágrafo 1o do art. 104-A do PL n.º 3.515/15, segundo o qual corresponde à impossibilidade manifesta do consumidor, pessoa física, de boa-fé, de pagar o conjunto das suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas. O parágrafo 2º exclui do processo de repactuação as dívidas de caráter alimentar, fiscais e parafiscais e as oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar o pagamento[9]. No art. 54-A do PL, há menção direta e expressa aos princípios da boa-fé, da função social do crédito e do respeito à dignidade da pessoa humana[10].

A configuração do superendividamento pressupõe uma situação não meramente incidental ou transitória, mas de caráter permanente, a despeito dos arts. 54-A e 104-A não terem predito expressamente[11]. O superendividamento, segundo Paisant, tem gerado situações nefastas que não se pode deixar prosperar, constituindo-se “fonte de tensões no seio da célula familiar que muitas vezes acarretam um divórcio, agravando a situação de endividamento”. É um problema que pode conduzir as pessoas superendividadas “a evitar despesas de tratamentos, mesmo essenciais, ou ainda a negligenciar a educação dos filhos”, podendo comprometer a moradia, dando-se “um passo na direção da exclusão social”. Ele é fonte “de isolamento, de marginalização”, contribuindo para “o aniquilamento social do indivíduo”[12].

Os estudos doutrinários norte-americanos e europeus acerca do superendividamento têm o classificado em passivo e ativo a depender da forma como as dívidas vão se formando acima do limite do razoável. O superendividamento passivo é consequência de uma conjuntura em que o consumidor não contribuiu diretamente para que florescesse, ocorrendo situações alheias à sua vontade ou circunstâncias externas[13], como, verbi gratia, desemprego, acometimento por doença, falecimento de ente familiar, etc – é o que Thomas Wilhelmsson denomina de força social maior[14].

No superendividamento ativo, o consumidor termina por adquirir produtos ou contratar serviços de modo desarrazoado e desequilibrado, de forma imprudente, sem analisar responsavelmente a sua possibilidade financeira e os débitos que está constituindo. Nessas hipóteses, se agir de má-fé, não terá a proteção assegurada, somente obtendo-a quando não tiver o interesse escuso de se livrar irresponsavelmente das dívidas, ou seja, estando imbuído pela boa-fé.  Para Iain Ramsay, a distinção entre superendividamento ativo e passivo é muito difícil de ser visualizada[15].

O consumismo à base do crédito foi-se difundindo de tal forma dos Estados Unidos para a Europa, que, segundo Lendol Calder, o fenômeno alastrou-se exigindo que os cidadãos se comportassem como sujeitos obedientes à disciplina do trabalho e como consumidores livres para terem sonhos e desejos ilimitados[16]. Além da França, Canadá, Inglaterra, Bélgica, Finlândia, Dinamarca, Noruega e Alemanha, outros países instituíram mecanismos para a prevenção e o tratamento dos consumidores superendividados.  No Canadá, a reforma de 1997 do Bankruptcy and Insolvency Act (BIA) teve como meta principal propiciar meios judiciais de incentivar os devedores a se reestruturarem financeiramente e a quitarem os débitos existentes[17].

Na Inglaterra, a lei de The Enterprise Bil tratou da temática, disciplinando a prevenção e o tratamento do superendividamento dos cidadãos[18]. A lei belga de 12-6-1991 estabeleceu um procedimento especial de suspensão das obrigações do devedor quando envolve créditos ao consumo, autorizando o sujeito em franco desequilíbrio financeiro a pedir ao juiz a aplicação de alguma facilidade de pagamento com esteio no seu art. 38[19].  

Em 1993, a Finlândia editou ato normativo sobre o ajuste de débitos individuais (act concerning the adjustment of debts of private individuals) e, em fevereiro de 1997, a lei foi revista com o escopo de restringir mais o acesso ao procedimento contemplado originariamente. Em 1996, a Austrália começou a tratar do debt agreements[20] e a Noruega  também deu início a um procedimento amigável (voluntary debt settlements) conduzido por organizações sociais locais sob a supervisão do município[21].

A Corte Federal da Alemanha, em interessante decisão, pronunciou-se no sentido de que a liberdade contratual não poderia limitar ou eliminar o controle das cláusulas abusivas em um contrato bancário com espeque na consideração do direito fundamental de desenvolvimento da personalidade (art. 2, I, da Grundgesetz).  As cortes civis deveriam realizar a concreção ou a subsunção do que fosse contrário às cláusulas gerais de respeito aos bons costumes e à boa-fé, de acordo, respectivamente, com os parágrafos 138 e 242 do BGB. O legislador alemão, recentemente, aprovou diploma normativo para controlar os efeitos jurídicos da COVID-19 e zelar pela situação dos que se encontram em alarmante estado de desequilíbrio financeiro[22].    

O PL n.º 3.515/15 contempla a crucial modernização do microssistema consumerista, primando pelo fomento e o desenvolvimento de ações visando à educação financeira dos indivíduos e pela implementação de mecanismos de prevenção e tratamento do superendividamento. Ressalta-se que a proposta visa à criação de noveis instrumentos de caráter extrajudicial e judicial para o tratamento do problema mediante a estruturação de núcleos de conciliação e mediação de conflitos. Consagrar-se-á o direito básico dos destinatários finais à garantia de práticas de crédito responsável, conscientizando-os para se evitar e combater o preocupante fenômeno que se alastra, assegurando-se a revisão e a repactuação da dívida, com o fito de preservar o mínimo necessário para a sobrevivência digna.

A proteção contratual será reforçada pelos deveres colaterais provenientes da boa-fé objetiva, detalhando-se o direito à informação no fornecimento de crédito e na venda a prazo. O Brasil não pode continuar alheio ao direito comparado e a mais de 30 milhões de indivíduos superendividados, urgindo a aprovação da aludida proposta legislativa.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] FERRIER, Les dispositions d’ordre públic visant à préserver la réflexion des contratants. Recueil Dalloz, Paris, Dalloz, Chronique, p. 177-188, 1980,  p. 177. A Lei da Informação e Liberdades de 06 de janeiro de 1978 trata de listas cuja consulta é ligada à concessão e a recuperação do crédito ao consumidor.

[2] Em 1975, Jean Calais-Auloy publica o artigo denominado de “Les cinq réformes qui rendraient le crédit moins dangereux pour les consommateurs”, revelando preocupação com a situação dos endividados dos países europeus. CALAIS-AULOY, Jean. Les cinq réformes qui rendraient le crédit moins dangereux pour les consommateurs. Recueil Dalloz, Chron., 1975, p. 20 e ss. 

[4] KHAYAT, Danielle. Lei droit du surendettement des particuliers. Paris: LGDJ, 1997, p. 12.  

[11] MARQUES, Manuel Leitão et al. O endividamento dos consumidores. Lisboa: Almedina, 2000, p. 2.

[15] MARQUES, Cláudia Lima. Les contrats de crédit dans la législation brésilienne de protection du consommateur. In: RAMSAY, Iain (ed.). Consumer law in the global economy. Aldershot: Ashgate-Dartmouth, 1997, p. 321 e ss.

[19] DOMONT-NAERT, Françoise. Consommateurs défavorisés: credit et endettement. Bruxelas: Story Scientia, 1992, p. 222. 

[22] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Alemanha aprova legislação para controlar efeitos jurídicos da Covid-19, Revista Consultor Jurídico, Coluna Direito Comparado, 25 de março de 2020.

 é promotora de Justiça do Consumidor do MP-BA, professora adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em Direito pela mesma instituição.