Categorias
Notícias

Fernando Mendes pede intolerância às fake news

Ao encerrar seu biênio à frente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), o juiz Fernando Mendes pediu três reflexões para o atual momento do país. “Primeiro, precisamos refletir sobre que tipo de sociedade queremos naquilo que virá a ser o que hoje já se denomina ‘o novo normal’.”

O ex-presidente da Ajufe Fernando Mendes
Divulgação

“A pandemia escancarou os nossos problemas sociais e, impondo a todos o distanciamento e o isolamento social, abriu a oportunidade para que, desacelerando da correria do dia a dia, reavaliássemos as nossas próprias prioridades, condição necessária para corrigirmos os rumos do país e, democraticamente, evoluirmos como sociedade,” disse, por meio de cerimônia virtual de posse da nova diretoria da associação, que reúne cerca de 2 mil juízes federais. 

A segunda foi mais um alerta. “De um tempo para cá, o mundo vem sendo alertado de que as democracias não mais terminam com uma ruptura violenta, um golpe militar ou uma revolução. As democracias morrem em razão da escalada do autoritarismo e do enfraquecimento das instituições críticas, como são a imprensa e o Judiciário. Não podemos permitir isso.”

E fez um pedido. “Não se pode vedar a livre circulação de ideias, a liberdade de expressão e de imprensa e por isso a Constituição veda a censura prévia. Mas o exercício desses direitos constitucionais não significa a tolerância com a prática de atos criminosos ou a disseminação de notícias falsas. Ações coordenadas com a finalidade de desestabilizar o regime democrático e enfraquecer as instituições tem de ser combatidas pelos Poderes constituídos e pelos instrumentos constitucionais existentes. O Supremo Tribunal Federal, ao instaurar o Inquérito 4781, nada mais fez do que exercer um mecanismo legítimo de autoproteção, previsto em seu regimento interno, visando à identificação dos responsáveis pela prática de atos criminosos que serão responsabilizados pelos atores legitimados e mediante a observância do devido processo legal.”

Por fim, o juiz, que deu posse nesta quarta-feira (3/6) à noite ao seu sucessor, o juiz Eduardo André Brandão, disse que não há “Estado Democrático e de Direito sem um Poder Judiciário independente.” “As decisões judiciais podem ser debatidas e criticadas em uma democracia constitucional, mas jamais descumpridas. Os Poderes em uma República são harmônicos e independentes, convivem em um sistema de freios e contrapesos e têm seus limites definidos pela própria Constituição, cabendo ao Supremo Tribunal Federal, e a mais ninguém, o papel de ser o seu guardião.”

Clique aqui para ler a íntegra do discurso de Mendes

Categorias
Notícias

Taís Vaz: O sistema constitucional de crises e a Covid-19

O mundo atravessa uma época sombria, de rotina e ações inéditas. O indivíduo se força a ficar em casa, pela sua própria sobrevivência, com a interrupção de sua rotina habitual. D’outro lado, o Estado busca meios de passar pelo momento de crise sanitária e econômica, de nebuloso horizonte.

Fato é que, inegavelmente, nós nos encontramos em um momento de crise. E, para contextos como o atual, a Constituição Federal de 1988 traz o que a doutrina denomina de sistema constitucional das crises, composto pelas também apelidadas Válvulas de Panela de Pressão.

Esse sistema foi construído com o intuito de retomar a estabilidade em casos de tumulto institucional. São medidas excepcionais modeladas para situações de crise, como meios de resposta a determinadas anormalidades, restritas a certos locais e períodos. Por isso, regem-se pelos princípios da necessidade e da temporariedade.

A doutrina enumera como hipóteses: a intervenção federal, o estado de defesa e o estado de sítio. A primeira afasta a autonomia de determinado ente federativo, por meio da intervenção da União, nas hipóteses taxativamente previstas no artigo 34 da Constituição, com o fim de cessar conduta do ente atingido que comprometa a estabilidade institucional. As outras duas se prestam ao restabelecimento da ordem pública e paz social, às quais se restringe a presente análise.

A decretação dos estados de defesa e de sítio são de competência privativa do presidente da República, após oitiva dos Conselhos da República e da Defesa Nacional órgãos de consulta do presidente, cujo pareceres não têm caráter vinculativo. Ocorre que, diferentemente do estado de defesa, o estado de sítio pressupõe prévia aprovação do Congresso Nacional acerca da decretação por parte do presidente. Nesse caso, não havendo a aprovação, o presidente está impedido de decretá-lo.

O estado de defesa, assim como o estado de sítio, repercute em uma situação de legalidade extraordinária. Ou seja, a Administração Pública, dentro desse contexto, está autorizada a atuar em certas situações, independentemente da existência de lei, em lógica contrária à regra geral da observância do princípio da legalidade, segundo o qual toda a atuação da Administração Pública deve obediência ao previsto na lei.

Outra distinção reside no seu tempo de duração. Enquanto o estado de defesa pode ser decretado por período de até 30 dias, prorrogáveis por mais 30 dias, uma única vez, o estado de sítio pode ser, inicialmente, decretado por 30 dias, prorrogáveis por mais 30 dias, quantas vezes for necessário.

A decretação do estado de defesa deve estar fundada em uma das duas hipóteses do artigo 136 da Constituição: grave e iminente instabilidade institucional que ameace a ordem pública ou a paz social; ou manifestação de calamidade de grandes proporções na natureza que atinja a ordem pública ou a paz social.

Depois de ouvidos os órgãos de consulta supramencionados, o presidente da República instaura o estado de defesa por meio de decreto, que especifica as áreas abrangidas e as medidas a serem adotadas.

O decreto presidencial, então, deve ser submetido à apreciação do Congresso Nacional em até 24 horas, acompanhado da sua respectiva justificação. Em dez dias, o Congresso deve apreciá-lo e deliberar sobre a questão por maioria absoluta. Entendendo pelo seu descabimento, a medida deve ser cessada.

Durante o estado de defesa, algumas medidas anormais podem ser adotadas, conforme previsão do artigo 136, §1º, inciso I, da Carta Magna. São elas: restrição aos direitos de reunião, sigilo de correspondências e comunicações, bem como ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos por parte da União, nos casos de calamidade pública.

O decreto do estado de sítio, por sua vez, possui como pressupostos: comoção grave de repercussão nacional, ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia das medidas tomadas em prévio estado de defesa ou declaração de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

Durante a sua vigência, podem ser adotadas medidas ainda mais restritivas, como obrigação de permanência em determinadas localidades, restrições à prestação de informações e liberdade de imprensa, suspensão da liberdade de reunião, busca e apreensão em domicilio, intervenção nas empresas de serviços públicos e requisição de bens.

Ante todo o aqui exposto, indaga-se: diante de um sistema constitucional de crises, não seria proveitoso a sua utilização no momento atual de Covid-19? De fato, estamos em um contexto de calamidade pública expressa, com necessidades eminentes de isolamento e resguarde, que se mostram necessários para a superação desta crise do modo menos lesivo possível.

Todavia, diante de um governo de perfil eminentemente populista, de extrema preocupação com a economia e resistência expressa acerca do isolamento social, evidente que não seria de grande valia a decretação de um estado de defesa ou de sítio.

De outro lado, à parte de qualquer ideologia ou plano de ação, a adoção desse sistema constitucional de crise implica na incidência de efetivos controles políticos e judiciais, concomitantes e posteriores. Exemplos disso são os artigos 140 e 141 da Constituição.

Esses dispositivos preveem a designação de comissão especial de congressistas para fiscalizar a execução das medidas adotadas, bem como a obrigação de o presidente da República, ao final desses estados excepcionais, remeter ao Congresso mensagem com a especificação e justificação das providências adotadas.

Nem poderia ser diferente. A excepcionalidade de tais estados advém da possibilidade de adoção de condutas estatais restritivas de direitos individuais. E, diante da relevância de tais direitos, mormente em uma sociedade fundada na dignidade da pessoa humana, é muito tênue a linha divisora do necessário à superação de um estado de crise e da efetiva violação de direitos fundamentais. Este último cenário poderia, por si só, configurar crime responsabilidade do presidente da República e causar seu impeachment.

Por isso, a decretação desses estados de excepcionalidade, naturalmente, carregam consigo um temor natural de responsabilização por parte do presidente da República, que pode, tentando acertar, cair em erro e cavar sua própria cova. Isso se torna ainda mais fácil quando diante de uma realidade atípica, que demanda ineditismo e celeridade nas condutas estatais e, portanto, mais suscetíveis a erros.

Ante o exposto, paira o questionamento sobre a conveniência de uma decretação de estado de defesa ou de sítio no contexto atual, bem como se tais mecanismos se mostram convidativos ao governo atual ou mesmo a qualquer outro, diante do seu elevado grau de risco de responsabilização.

 é advogada autônoma em Salvador e pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão.

Categorias
Notícias

Oliveira dos Santos: Responsabilidade limitada e regime especial do ISS

O regime especial do Imposto Sobre Serviços (ISS), denominado pelas administrações tributárias locais sociedades uniprofissionais, mas que preferimos denominá-las sociedade de profissionais [1], tem os seus requisitos estatuídos pelos §§ 1º e 3º do artigo 9º [2] do Decreto-Lei nº 406/1968. Ocorre que o mencionado § 3º trata do conceito “responsabilidade pessoal” que as autoridades fiscais equivocadamente interpretam como sendo a responsabilidade limitada da sociedade prestadora de serviço, fato que, segundo essa interpretação, confere natureza empresarial ao sujeito passivo da relação jurídica tributária. A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) segue majoritariamente o entendimento exarado pela Fazenda. Nesse breve artigo, realizaremos uma crítica da interpretação apresentada pelos órgãos fazendários por meio da análise dos requisitos legais dispostos no artigo 9º do Decreto-Lei nº 406/1968 e pelo conceito de empresário.

A sociedade de profissionais tem os seguintes requisitos na lei nacional em comento: 1) A prestação de serviço sob a forma de trabalho pessoal do profissional da sociedade; 2) O serviço deve ser prestado em nome da sociedade; 3) Cada pessoa natural que integrar a sociedade, como sócio ou empregado, deve estar habilitada para o serviço a ser prestado em nome da sociedade e deve assumir responsabilidade pessoal pela prestação, nos termos da lei; 4) O serviço prestado pela sociedade deve estar dentre aqueles itens constantes da lista anexa  (1. Médicos, inclusive análises clínicas, eletricidade médica, radioterapia, ultra-sonografia, radiologia, tomografia e congêneres; 4. Enfermeiros, obstetras, ortópticos, fonoaudiólogos, protéticos (prótese dentária); 8. Médicos veterinários; 25. Contabilidade, auditoria, guarda-livros, técnicos em contabilidade e congêneres; 52. Agentes da propriedade industrial; 88. Advogados; 89. Engenheiros, arquitetos, urbanistas, agrônomos; 90. Dentistas; 91. Economistas; 92. Psicólogos).

A primeira observação a ser realizada é que o contribuinte do ISS nesse regime é a sociedade prestadora de serviço, sendo as pessoas naturais que prestarão os serviços em nome dela mero parâmetro para a base de cálculo do imposto. A segunda observação é que quase a totalidade das profissões passíveis de enquadramento no regime especial possuem lei que regulamenta a profissão e o respectivo conselho que fiscaliza o seu exercício. Nesses casos, é necessário que o profissional esteja habilitado para exercer a profissão e tal habilitação confere ao profissional a responsabilidade técnica perante o conselho correspondente.

O primeiro requisito a ser analisado é a expressão “sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte” presente no § 1º. Esse dispositivo refere-se ao regime especial do ISS destinado aos profissionais autônomos, o qual não se confunde com o regime tratado pelo § 3º, referente às sociedades prestadoras de serviço. Ocorre que o § 3º se apropria desse conceito por meio da expressão “estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1º”. Assim, todas as pessoas naturais, sócias ou empregadas da sociedade prestadora de serviço deverão prestar o serviço com pessoalidade. Para Moraes [3] (1975, p.537):

“Por trabalho pessoal do próprio contribuinte, entendemos o serviço (puro fornecimento de trabalho) prestado por pessoas físicas, em caráter de trabalho da própria pessoa. Não atinge o serviço prestado por apenas pessoas jurídicas e nem os realizados em caráter empresarial”.

Outros requisitos que devem ser analisados estão presentes no excerto transcrito do § 3º em tela: “Calculado em relação a cada profissional habilitado, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável”. Verifica-se aqui que cada profissional habilitado deverá assumir responsabilidade pessoal nos termos da lei aplicável. Nesse ponto iniciam as divergências com as autoridades fazendárias: segundo o Fisco, trata-se da responsabilidade limitada da sociedade. Mas o Decreto-Lei nº 406/1968 não dispôs se ela deve ser limitada ou ilimitada, apenas pessoal. Além disso, termo “responsabilidade” está vinculado a “cada profissional habilitado”, não à sociedade. Sendo as profissões passíveis de enquadramento, conforme observamos anteriormente, regulamentadas por meio de leis e com o exercício delas fiscalizados pelos respectivos conselhos profissionais. Verifica-se aqui um vínculo indissolúvel entre os conceitos envolvidos: o profissional que presta o serviço em nome da sociedade deve estar habilitado para o seu exercício. Dessa atuação pessoal haverá certamente a responsabilidade técnica pelo exercício da profissão. Como exemplo, o engenheiro civil para exercer legalmente a sua profissão deve estar inicialmente inscrito no Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) e, ao prestar pessoalmente o serviço, deverá emitir uma Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) relativa ao serviço prestado, fato que  lhe confere responsabilidade técnica perante o órgão profissional fiscalizador e que essa responsabilidade está prevista na lei que regulamenta a profissão (“lei aplicável”, nos termos do § 3º).

Ocorre que as administrações tributárias não têm esse posicionamento, sendo interpretado que essa “responsabilidade pessoal” é a limitação da responsabilidade dos sócios. Verificamos o primeiro equívoco aqui: se as pessoas naturais que prestam serviço em nome da sociedade podem ser sócias ou empregadas, dentro dessa interpretação verificamos que os empregados não possuem qualquer responsabilidade relativa às obrigações contraídas pela sociedade e os órgãos fazendários não se pronunciam sobre essa questão. Outro aspecto é que a responsabilidade limitada dos sócios não guarda qualquer relação com a prestação de serviço nem com o caráter empresarial de uma sociedade. Salama [4] afirma que a limitação da responsabilidade nada mais é do que um instrumento de alocação de risco. Santos [5] defende que a limitação da responsabilidade não é um atributo necessário e nem suficiente para qualificar uma sociedade como empresária. Ocorre que, na vigência do revogado Código Comercial de 1850, as sociedades limitadas possuíam necessária natureza comercial, nos termos do Decreto nº 3.708/1919, que regia esse tipo societário. Mas com a vigência do Código Civil de 2002, a limitação de responsabilidade não mais passou a conferir a natureza da sociedade de responsabilidade limitada, podendo essa ser simples ou empresária.

Outro equívoco que encontramos na interpretação fiscal é que há a associação de que a responsabilidade limitada é atributo que confere a qualificação empresária a uma sociedade, interpretação essa, ao nosso ver, contra legem, pois a definição de sociedade empresária é legal, nos termos em que preceitua o artigo 982 do Código Civil: “Considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro”. Esse dispositivo deve ser combinado com o artigo 966 do mesmo diploma legal, que estatui: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. Os dispositivos em análise em momento algum fazem a menor alusão à limitação da responsabilidade, nos termos em que defendem os órgãos fazendários. Verifica-se que a natureza empresária de uma sociedade se vincula à forma de como ela exerce a sua atividade (o seu objeto social). Esse é o traço característico que define a sua natureza empresária, ao contrário da limitação da responsabilidade e de qualquer outro atributo tratado por Santos [6].

A forma como a sociedade pratica o seu objeto social está vinculada a um dos requisitos do regime especial do ISS, a pessoalidade. Destarte, a sociedade será empresária se exercer sua atividade sem pessoalidade, pois restará caracterizada a natureza empresária na medida em que houver o exercício de uma atividade econômica organizada, fato que é mutuamente exclusivo com a pessoalidade na prestação de serviços. Assim, as fiscalizações locais devem promover o desenquadramento de sociedade que apresentem uma estrutura empresarial na prestação de serviços, não a limitação da responsabilidade dos sócios em seu ato constitutivo.

 é auditor fiscal tributário do município de São Paulo, professor universitário e de cursos preparatórios para concursos públicos na área fiscal e mestre em Direito Tributário pela FGV Direito-SP e em Engenharia de Estruturas pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.