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Ricardo Fraga: Dois meses de distanciamento social

Alguns aprendizados, nestes dois meses iniciais. O primeiro deles, com profissionais da medicina, é a expressão “distanciamento social”, ao invés de “isolamento” ou mesmo “quarentena”. Em itens adiante, o registro de outros aprendizados, coincidentes com estes dias, por acaso ou necessariamente nestes.

Desde logo, a lembrança de sabedorias anteriores. Na condição de juiz do Trabalho, com 20 anos em salas de audiência, no primeiro grau, e dez anos em sessões de julgamento, no segundo grau, um sentimento mais forte do que qualquer estudo de Economia ou áreas afins. Trata-se do sentimento, bem internalizado, de que não estamos em um sistema econômico minimamente planificado ou com previsibilidades.

Aqui, a grande maioria das empresas pequenas e médias não possuem “capital de giro” para um segundo ou terceiro mês sem funcionamento.

Dito de outro modo, aqui, “desacelerar” é bem difícil para a grande maioria das pequenas e médias empresas. Um piscar de esperança vem de colega observador, atento ao que ocorre em salas de audiências e realidade próxima, juiz Luis Carlos Pinto Gastal, o que se registra no parágrafo seguinte.

Provavelmente, muitas pequenas e médias empresas possam “retomar” o funcionamento com mais facilidade. Isso porque dependem mais dos conhecimentos e trabalho humano organizado do que do capital investido e do sistema financeiro. Isso, por óbvio, não exclui eventuais necessidades de maior apoio, inclusive creditício, das autoridades públicas, como lembrado pelo advogado Antonio Escosteguy Castro, em debates virtuais desses dias.

Desde logo, sobre a elevada financeirização de nossas economias, lembrem-se os estudos e alertas de Ladislau Dowbor em “O Capitalismo se Desloca – novas arquiteturas sociais”, São Paulo: Sesc, 2020, e também em entrevista.

Ntep Nexo Técnico Epidemiológico
Ocorrida, casualmente, nestes dias, a decisão do Supremo Tribunal Federal, na Adin (ação direta de inconstitucionalidade) número 3931, tem enorme relevância.

A subnotificação dos acidentes e das doenças do trabalho existe em quase todos os países, ao que se tenha notícia. No Uruguai, havia significativa solução contra as subnotificações, com a previsão de fundo nacional, ajustado anualmente, com base no número de doenças e acidentes do ano anterior. Mesmo assim, mais recentemente, foi necessário o auxílio do Direito Penal, com novas regulamentações. Apontado em livro de Ney Fayet Júnior Dos Acidentes de Trabalho: (sociedade de) Risco, Proteção dos Trabalhadores e Direito Criminal”.

Aqui se buscou o auxílio dos conhecimentos da estatística. Aqui, agora e, já antes, quando não deferida a liminar, existe a necessidade de exame da situação mais abrangente na qual inserida a doença ou acidente em julgamento. O contexto do caso em exame tem de ser examinado.

Em Direito processual probatório é inovação, desde muito, não vista. Nenhum dos anteriores conceitos deste ramo do Direito são suficientes para se perceber, inteiramente, o que está sendo construído. Por óbvio, os demais fatos e circunstâncias do caso concreto, igualmente, serão examinados, até mesmo, com os outros anteriores aprendizados do direito processual probatório.

Uniformização da jurisprudência
A urgência da necessidade de uniformização da jurisprudência é cada vez maior. Isso decorre de certa peculiaridade nossa, maior e/ou diferente de outros países.

Aqui, do Poder Judiciário se espera que cumpra diversas funções, de promotor da paz social, de corretor de injustiças, de um dos principais instrumentos para os aperfeiçoamentos civilizatórios, entre outros, acaso o antes indicado não seja tudo, inclusive com provável exagero.

Já superamos os debates sobre súmula vinculantes, contemporâneos à reforma do Poder Judiciário, Emenda Constitucional 45. Eram pretensões com pouco acerto, alimentadas pela imprensa leiga. De certo modo, confundia-se a função jurisdicional com a legislativa, como se fosse viável “julgar casos concretos em abstrato”. Em outro texto, buscou-se compreender aquele momento, “Quais Súmulas?”, com Luiz Alberto de Vargas.  

Viveu-se breve período de aprendizados bem mais ricos e superiores. Ao tempo da Lei 13.015, um pouco antes da entrada em vigência do atual Código de Processo Civil, Lei 13.105, o Direito Processual do Trabalho, mais uma vez na história, avançava mais do que o Direito Processual comum. Entre outros tantos estudos, o e-book “NCPC – Próximos do Segundo Ano”, de que participamos a partir da prática judiciária

Após a revogação da mencionada Lei 13.015 pela Lei 13.467, ficamos com os regramentos do CPC, agora atual, apenas. Muito haverá de ser construído. Estamos menos próximos da experiência do Direito Processual da Europa, civil law, e ainda não absorvemos os aprendizados de organização do Judiciário nos Estados Unidos.

Nestes primeiros dias de distanciamento social, leu-se o recente escrito de Estevão Mallet no prefácio do livro “Precedentes no Processo do Trabalho – Teoria Geral e Aspectos Controvertidos” (coordenadores Cesar Zucatti Pritsch, Fernanda Antunes Marques Junqueira, Flavio da Costa Higa e Ney Maranhão, São Paulo: Thomson Reuters e Revista dos Tribunais, 2020, página 11), no sentido de que: “Há que até diga ser impossible to draw a rigid line, a priori, between rationes decidendi and obitter dicta. (…) Em outros casos, especialmente em julgamentos colegiados, a decisão pode resultar de conclusões convergentes, decorrentes de fundamentos divergentes”.

Ora, na situação acima observada é difícil e mesmo equivocado ficar nos limites das práticas contemporâneas às edições de súmulas.

Provavelmente estejamos em condições de nos distanciar o mais possível das antigas práticas contemporâneas às elaborações de súmulas. Nas duas opções adiante, apresentadas de modo bem resumido, certamente, a segunda será a mais adequada:

a) primeiro decidir que irá vincular e depois examinar a(s) situação(ões);

b) primeiro examinar a(s) situação(ões) e depois, se possível, afirmar que irá vincular.

A efetiva contribuição nossa ao Direito Processual e à organização da Justiça poderá ser esta. Julgar o caso concreto, com toda dedicação, inclusive do tempo disponível. No restante, apenas e no máximo, anunciar as prováveis decisões em casos futuros, de conformidade com suas semelhanças, iguais, médias ou totais. Tudo isso respeitando, sempre, a determinação da inafastabilidade da jurisdição, Constituição, artigo 5º, inciso XXXV.

Despedidas em Números Elevados
Integrando a SDC (Secção de Dissídios Coletivos) do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, alguns aprendizados novos. Assim como os demais integrantes, tenho realizado algumas audiências virtuais de mediação coletiva.

Nessas audiências virtuais, um dos temas mais frequentes é o das despedidas e suspensões dos contratos. Acaso outro tivesse sido o resultado do julgamento, no Supremo Tribunal Federal, da Adin 6363 (relator original Ricardo Lewandowski) certamente ainda bem maior seria o número destas mediações coletivas, denominadas “pré-processuais” em outras regiões.

Nessas ocasiões, alguma semelhança com debates anteriores aos dias atuais. Registramos estas controvérsias anteriores no livro “Perguntas e respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista volume 1″ (coordenadores Ricardo Calcini Luiz e Eduardo Amaral de Mendonça).

O novo artigo 477-A, da CLT, inserido pela Lei 13.467, estabelece que:

“Artigo. 477-A  — As dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins, não havendo necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação”.

A realidade, inclusive anterior aos dias de pandemia, vinha demonstrando que as despedidas em número expressivo, no maior das vezes, são inviáveis sem o contato com alguma instância da sociedade, para além da empresa. No mínimo, a autoridade policial vinha sendo chamada.

Em 2018 e 2019, no maior número de vezes, fomos procurados pelas entidades sindicais de trabalhadores. Já fomos procurados, por outro lado, pelas próprias empresas. Em mais de uma situação, fomos procurados por ambas as partes.

Nessas situações anteriores, eram mais frequentes algumas soluções, tais como:

a) diminuição do número de despedidas;

b) previsão de planos de demissão voluntária;

c) estabelecimento de cronograma das despedidas;

d) exame das estabilidades legais e normativas;

e) elastecimento de benefícios tais como planos de saúde e alimentação.

Agora temos a nova figura da suspensão temporária dos contratos, trazida por medida provisória ainda não examinada no Congresso Nacional ao tempo destes linhas.

A atenção e o cuidado com as realidades atuais exigirão mais de todos. Já se viu o debate sobre manutenção de grupo de discussão, de todos os trabalhadores, em aplicativo, virtual, sobre eventual venda de máquinas de empresa de porte médio.

Em caso mais anterior aos dias atuais, de empresa de transportes urbanos, estabeleceu-se a apresentação de balancetes diários, ao tempo das três ou quatro semanas das negociações coletivas.

Em debates mundiais, já se viram novas regulamentações registradas em “The regulation of collective dismissals: Economic rationale and legal practice” (Mariya Aleksynska, Angelika Muller, OIT Organização Internacional do Trabalho, maio de 2020), lembrado pelo advogado e professor Estevão Mallet.

Atuação não menor, nem mesmo numericamente
Os exemplos antes mencionados bem confirmam a necessidade da Justiça do Trabalho, mais ainda em dias de pandemia. O Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, assim, omo outros, tem divulgado os números de suas atividades em primeiro e em segundo grau.

Pessoalmente, tenho atuado na totalidade das tarefas em quarentena, com números acima de mil, cuidado e dedicação não menores do que em dias antes considerados normais.

Na 3ª Turma do TRT-RS, assim como nas demais, têm sido significativos os números de julgamentos e de sessões.

Nesta 3ª Turma são sessões virtuais e por videoconferência, também denominadas telepresenciais, transmitidas online, estas segundas, assim como eram as sessões presenciais:

a) https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/301474;

b) https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/305454;

c) https://www.youtube.com/channel/UChbGL3ivkqi1Cl3Aba2U6Cg/videos

Em todas essas iniciativas, a confirmação de certa convicção. A Constituição e a realidade nos levam, satisfatória e obrigatoriamente, a um Direito Processual mais participativo. Sobre o tema, o texto escrito com o irmão juiz de Direito, “Salas de audiências por 60 anos”.

Futuro
Chegaremos aos dias futuros com os aprendizados do passado. Chegaremos ali, igualmente, depois de termos vivido os dias presentes.

É de todo lúcida certa afirmativa no sentido de que “é necessário ‘achatar a curva’ do empobrecimento geral da massa trabalhadora, formal e informal”, de Fernando Brito, em 12/4/2020.

Por ora, no momento de escrever estas linhas, ao menos algumas dúvidas existem. Acima de tudo, não se tem certeza sobre a duração dos dias atuais.

Alguns aspectos e situações dos dias atuais talvez persistam mais do que outros. Os anos próximos já foram mencionados em documentos de algumas universidades. Entre tantos:

a) “Harvard muito além de 2020″ 

b) Cambridge aulas presenciais bem mais adiante.

Por ora, no momento de escrever estas linhas, ao menos, algumas quase certezas existem. É crescente o interesse de todos pela melhor organização do trabalho remoto ou teletrabalho.

As empresas maiores, mais do que as medias e pequenas, já têm número expressivo de experiências incipientes, ao menos em algumas de suas atividades. Nesse rumo, com exagero visível, todavia indicativo de rumo e buscas, estudo sobre novas mentalidades.

Pesquisas mais recentes e bem elaboradas, seguramente, nos farão melhor conhecer a realidade.

No âmbito do Poder Judiciário, já se tem novo quadro desde momentos um pouco anteriores:

a) Noticia

b) Alteração de fevereiro de 2020; e

c) Resolução 74.

Estamos próximos, inclusive, de um dos maiores programas de renda mínima do Ocidente. O valor de R$ 600, ainda que não expressivo e com inúmeras demoras, terminou alcançando 50 milhões de pessoas. Nos Estados Unidos, existe benefício bem superior, alcançando número um pouco menor de trabalhadores.

Desejamos acreditar que não seremos quase meio milhão de brasileiros a menos, apesar de documento de outra universidade, a de Oxford.

Haveremos de ouvir os sons da próxima primavera. Haveremos de ouvir os belos sons das Vozes da Primavera, valsa de Johann Strauss Jr.

 é desembargador do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul.

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MP e sua responsabilidade política de não fazer política

Em recente entrevista à TV ConJur, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, respondeu questões extremamente relevantes no que diz respeito à legitimidade dos atos dos agentes do Ministério Público. A manchete, que carrega o título MP é agente político que escolhe meios para atingir o interesse público (ver aqui), salta aos olhos de qualquer leitor minimamente familiarizado com a atuação do órgão público.Como é sempre importante prestarmos atenção nos discursos das autoridades, na aula desta semana o assunto não poderia ser outro. Portanto, no “Diário de Classe” de hoje, analisaremos o que foi dito pelo PGR na entrevista e, com base nisso, tentar demonstrar que é preciso, mormente para a sua própria preservação, que a instituição não ultrapasse os limites de suas competências, de forma a desviar a função de suas atribuições.

A entrevista inicia com reflexões sobre o instituto da delação premiada e seus consequentes problemas, seguindo com algumas considerações acerca dos novos mecanismos de combate à criminalidade e da interação com o Tribunal de Contas. Aras afirma a autonomia do Ministério Público, enfatizando a sua importância na vida nacional, desde o nascedouro até “o processo sucessório na via econômica, na via ambiental, nos direitos e garantias fundamentais, na produção, consumo e distribuição de alimentos, remédios, armas”. Também enfatiza a função fiscalizadora e controladora que lhe é subjacente, atribuída constitucionalmente.

Em um determinado momento, quando perguntado sobre a atuação das Câmaras de Coordenação do MP, Aras efetua uma diferenciação entre o agente político e o servidor público, para quem “O agente político é aquele que pode escolher os meios para atingir o fim que há de ser sempre do interesse público”. Em seu entendimento, é em razão de serem agentes políticos que cada Câmara possui a escolha de suas pautas prioritárias. O desempenho da função dos agentes do Ministério Público, segundo o PGR, exige a indução de políticas públicas de fiscalização e controle, conforme o surgimento das demandas sociais, estabelecendo-se as prioridades, sempre com a finalidade de atendimento dos interesses públicos.

Inicialmente, é desnecessário destacar a relevância do Ministério Público como instituição capaz de induzir o controle sobre a democracia brasileira, com os poderes conferidos pela Constituição da República de 88, o que está consubstanciado, inclusive, como um de seus deveres. Notadamente, no seu mister de órgão de controle, a instituição é instância central para o reforço das premissas republicanas.

Augusto Aras, ao efetuar a diferenciação entre agentes políticos e servidores públicos, parte do pressuposto de que a natureza dos membros do MP se encaixa na primeira categoria. No entanto, não poderíamos deixar de ressaltar que a própria dogmática administrativista não possui unanimidade quanto ao fato de o parquet ser ou não um agente político. Nesse sentido, Carvalho Filho aduz:

[…] parece-nos que o que caracteriza o agente político não é só o fato de serem mencionados na Constituição, mas sim o de exercerem efetivamente (e não eventualmente) função política, de governo e administração, de comando e, sobretudo, de fixação das estratégias de ação, ou seja, aos agentes políticos é que cabe realmente traçar os destinos do país[1].

Maria Sylvia Zanella di Pietro também classifica os agentes políticos de forma mais restritiva, sustentando que tal conceito está vinculado ao exercício da função de governo com clara conotação política, o que não existiria nos cargos de magistrado e membro do Ministério Público:

[…] essas funções políticas ficam a cargo dos órgãos governamentais ou governo propriamente dito e se concentram, em sua maioria, nas mãos do Poder Executivo, e, em parte, do Legislativo; no Brasil, a participação do Judiciário em questões políticas praticamente inexiste, pois a sua função se restringe, quase exclusivamente, à atividade jurisdicional sem grande poder de influência na atuação política do Governo, a não ser pelo controle a posteriori. O mesmo se diga com relação aos membros do Ministério Público […][2]

Veja-se que apenas essa questão já é objeto de grande discussão. No entanto, aceitaremos o fato de que o PGR, diante da divergência doutrinária, adota a posição menos restritiva, considerando os membros do MP como agentes políticos, e passaremos a delinear o que mais chama atenção na fala de Aras, de que o agente político – leia-se, então, os membros do MP – é aquele que pode escolher os meios para atingir um determinado fim: o interesse público.

É fato que o Ministério Público tem se agigantado como instituição desde a redemocratização[3], sendo de extrema importância a sua autonomia funcional, para que possa exercer o seu dever não apenas de fiscalização e controle de tudo aquilo que lhe é pertinente constitucionalmente, mas também para a preservação do interesse público. No entanto, a fala do chefe maior da instituição é problemática no sentido de que se omite em relação aos limites de atuação dos membros do parquet.

Quando o PGR diz que o agente político é aquele que pode escolher os meios para atingir determinado fim, ele desloca o debate que, anteriormente, estava restrito à escolha das pautas prioritárias pelas Câmaras de Coordenação para um sentido de maior amplitude. Isso porque não há qualquer hipótese que autorize a escolha indiscriminada dos meios para atingir determinado fim, ainda que este seja de interesse público. Trata-se do pressuposto utilitarista de que os fins podem justificar os meios. Faz-se, portanto, a seguinte pergunta: e se os meios selecionados pelos membros do MP na atuação diária forem, inclusive, contrários ao próprio interesse público, por desconsiderarem direitos fundamentais e os limites que a Constituição impõe?

Nota-se como a fala do PGR é desafiadora do ponto de vista de uma compreensão do papel democrático do Ministério Público. Os relatos de manipulação de provas na operação Lava-jato, os diálogos publicados pelo The Intercept Brasil, apenas à título exemplificativo, desnudam atuações pouco ortodoxas da instituição nesse sentido. Raymundo Faoro desenvolveu toda a sua reflexão com os olhos voltados aos agentes que se utilizam das esferas públicas para o alcance de interesses privados, o que ele chamou de patrimonialismo[4]. As escolhas privadas acerca de meios adotados pelos agentes públicos para o alcance de fins específicos são, em sua maioria, fundamentadas no interesse público, ainda que isso signifique a violação de garantias fundamentais.

É certo que os fins perseguidos pelos membros do parquet devem ser de interesse público, da mesma forma que os meios empregados também devem estar de acordo com os pactos legislativos e constitucionais. Afinal, se a ocorrência de abusividades dos agentes institucionais em pequenos atos processuais for gradativamente se normalizando na prática, cada vez mais tais posturas serão alastradas no cotidiano.

É evidente que o Ministério Público é órgão fundamental para a democracia. E é justamente em razão disso que deva existir um constrangimento em relação às suas atividades, sobretudo para o seu resguardo enquanto instituição. A propósito, sua finalidade é crucial. Ocorre que, conquanto crucial, a atuação do MP não pode ir além do pacto constitucional, não pode traduzir um comportamento arbitrário sob o argumento de fiscalização da lei. Não pode ser construído um perfil institucional enredado em voluntarismo e ativismo com a finalidade de atingir interesses públicos. Ao contrário disso, a principal função do MP é a defesa constitucionalmente orientada dos direitos difusos e coletivos, bem como a fiscalização dos direitos fundamentais.

O Ministério Público é instituição permanente, autônoma e essencial à Justiça, com respaldo robusto no texto constitucional, de forma que os meios pelos quais se dá a sua atuação já estão previamente dispostos constitucionalmente. O seu atuar político apenas enfraquece a Instituição. Essa questão, simples, não parece estar sendo devidamente compreendida por alguns de seus integrantes, tendo em vista as muitas investidas dessa natureza recentemente. Em resumo, membros do MP possuem atribuições significativas e status de magistratura[5], mas não podem se utilizar de qualquer meio. É necessário que isso seja dito, de forma a proporcionar o constrangimento ao exercício de subversão dos princípios republicanos.

Enquanto instituição de envergadura constitucional, o Ministério Público deve assumir responsabilidade política, não um agir político-estratégico.


[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 30. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 620.

[2]  ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Ed. Atlas, 1995. p. 354.

[3]CARVALHO, Ernani; LEITÃO, Natália. O Novo Desenho Institucional do Ministério Público e o processo de Judicialização da política. Rev. direito GV, v. 6, n. 2, p. 399–421, 2010, p. 399: “A história do Ministério Público mostra que algumas de suas prerrogativas foram adquiridas antes da Constituição de 1988. Por exemplo, o Código de Processo Civil de 1973 determinou que o Ministério Público deveria atuar em todas as causas que houvesse interesse público o que, segundo arantes (2002), já demonstra o início do afastamento do Poder Executivo. Mas é somente na década 1980 que a instituição sofre as modificações mais importantes. Destaca-se, neste sentido, a Lei nº 6938/81 de Política nacional de Meio ambiente, que incluiu novos instrumentos processuais e deu legitimidade ao Ministério Público para proposição de ação de responsabilidade civil e criminal por danos causados ao meio ambiente”.

[5]CANOTILHO, J.J. Gomes et al (Orgs.), Comentários à Constituição do Brasil, 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação (Série IDP), 2018, p. 1633.

Maicon Crestani é doutorando em Direito Público na Unisinos-RS e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

Giovanna Dias é graduanda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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TJ-SP derruba liminar que impedia monitoramento de celular

Sem invasão de privacidade

TJ-SP derruba liminar que impedia monitoramento dos celulares de cidadã

Por 

Por não vislumbrar elementos concretos que demonstrem minimamente a apropriação de dados pessoais da autora, o desembargador Beretta da Silveira, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, derrubou uma liminar que impedia o monitoramento dos celulares de uma cidadã.

123RFTJ-SP derruba liminar que impedia monitoramento dos celulares de cidadã

A autora impetrou mandado de segurança para excluir os números de seus celulares do monitoramento de deslocamento geográfico usado pelo governo do estado para identificar locais onde há aglomeração de pessoas. A cidadã alegou invasão de sua privacidade. O sistema foi implantado pelo estado como medida de enfrentamento ao coronavírus.

Em 28 de abril Beretta da Silveira deferiu a liminar, que foi revogada após reanálise do caso — “menos à conta de fortuita alteração do entendimento outrora desenhado, cuja preservação dos princípios da intimidade e da privacidade ainda habitam a convicção deste subscritor, mas sim porque, melhor compreendido o espectro técnico da situação esposada, é seguro afirmar que se mostram absentes os pressupostos eleitos na norma de regência (Lei 12.016/2009, artigo 7º, inciso III)”.

Na decisão, o desembargador destacou que o convênio firmado entre o governo de São Paulo e as operadores de telefonia móvel está voltado, tão somente, ao fornecimento de dados anônimos, “circunstância que escaparia ao menos em tese da invasão aludida pela impetrante, até porque é fato incontroverso a preocupação única da autoridade coatora, ciente da movimentação geral de pessoas, se concentra em adotar as adequadas políticas públicas que possam conter a disseminação do vírus e, assim, preservar a saúde de todos”.

2078414-80.2020.8.26.0000

 é repórter da revista Consultor Jurídico

Revista Consultor Jurídico, 14 de maio de 2020, 15h49

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Reske e Pereira: Lei 13.994/20 e cerceamento de defesa

A propagação do vírus da Covid-19 será, por certo, um dos acontecimentos mais marcantes deste século. Ela trouxe a necessidade de adaptação dos indivíduos frente às adversidades e uma reflexão acerca da organização de um mundo globalizado.

Nesse sentido, vários setores da sociedade acabaram reinventando-se para prosseguir, minimamente, com as sua atividades. Exemplo disso foi o próprio Poder Judiciário que, embora já contasse com os incentivos do Conselho Nacional de Justiça para impulsionar o uso dos meios eletrônicos para resolução de conflitos, teve que se adaptar para que isso se tornasse uma realidade nos processos.

Uma das medidas tomadas foi a orientação dos tribunais para que as audiências fossem realizadas por meio virtual, para assim corroborar a necessidade do distanciamento social e, concomitantemente, preservar a duração razoável do processo.

Entretanto, no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, havia um impeditivo, visto que a Lei 9099/95 não trazia a disciplina para a realização de audiências à distância pelo uso dos meios digitais.

Assim, foi promulgada, no dia 24 de abril de 2020, a Lei 13.994/20, que busca regular a ocorrência de audiências de conciliação no formato não presencial, valendo-se dos recursos digitais para realizá-la. De proposição do deputado Luiz Flávio Gomes (PSB-SP), a lei já tramitava no Congresso Nacional desde 2019, mas sua aprovação e sanção foram realizadas em um momento oportuno para auxiliar nas medidas tomadas pelo judiciário para continuação das atividades em meio a pandemia.

No cenário dos Juizados Especiais Cíveis, a conciliação é um método valorizado e de extrema importância no seu rito. A conciliação pode ser caracterizada como um método autocompositivo, no qual um terceiro intervém para auxiliar as partes a comporem e solucionarem litígio incidente entre elas. Nos juizados, segundo o artigo 22 da Lei 9.099/95, ela será conduzida pelo juiz togado, leigo ou o conciliador.

Sua notoriedade pode ser percebida pela visualização do artigo 20 da Lei 9.099/95, no qual é previsto que os efeitos da revelia incidirão sobre o réu que não comparecer à audiência, mesmo sem apresentar defesa. Segundo Felippe Rocha [1], a conciliação foi o foco inicial para instituição de um Juizado de Pequenas Causas no Brasil, na década de 80, por mais que já houvesse previsão constitucional desde 1934.

No contexto da nova lei, a possibilidade da realização da audiência de conciliação por todos os meios de transmissão de sons e imagens em tempo real foi introduzida pelo § 2º no artigo 22 da Lei 9.099/95, ainda sinalizando, no mesmo dispositivo, que o resultado desta audiência deverá ser reduzido a escrito para que, se houver composição, seja homologada pelo juiz e torne-se um título executivo. O grande problema da nova norma foi a alteração realizada no artigo 23 da lei dos juizados.

Segundo a nova redação da norma, se houver recusa do demandado de participar da audiência ou o seu simples não comparecimento, o juiz togado proferirá sentença e resolverá a demanda. No primeiro cenário, é compreensível e não deve haver discussão acerca a consequência da incidência dos efeitos da revelia (artigo 20) perante a atitude do réu de recusar-se a comparecer à audiência. A controvérsia gira em torno da disposição acerca do não comparecimento.

O legislador, nessa oportunidade, deixou o dispositivo de uma maneira aberta, o que pode ocasionar consequências processuais indevidas a certos indivíduos. Vejamos, se analisarmos pelo espectro da internet, no Brasil, segundo PNAD Contínua TIC 2018 do IBGE [2], um quinto dos brasileiros ainda não tem acesso à rede mundial de computadores, o que já seria um empecilho caso o demandado estivesse enquadrado nesta estatística.

Além disso, a mesma pesquisa demonstra que, dos brasileiros que têm acesso à internet, um quarto deles não a utiliza e 41,6% dessas pessoas fizeram isso porque não sabiam usar a ferramenta. Assim, levando em consideração que os indivíduos podem postular sem o intermédio de um procurador e que, caso haja um constituído, não se recomenda o seu encontro por conta da Covid-19, percebe-se outra situação que poderia trazer consequências processuais não isonômicas ao demandado.

Ainda, não há nenhuma previsão acerca dos problemas que podem ocorrer para o acesso à audiência, tais como incompatibilidade do sistema, instabilidade da conexão, entre outros; muito menos sobre dificuldades que o conciliador possa ter por conta das ferramentas disponíveis no ambiente virtual ou sua adaptação a ele, mas sendo esse assunto cabível em uma análise posterior.

Ocorre que, identificadas essas problemáticas, a não resolução delas poderia vir a causar prejuízo à parte que, porventura, não tenha conseguido comparecer à audiência de conciliação de maneira virtual. Esse prejuízo é conflitante, porém, com alguns preceitos constitucionais, tais como o contraditório e o próprio direito à prestação jurisdicional.

Ademais, caso configurem-se tais prejuízos e persistam, a ideia de um processo célere e eficaz cairia, pois poderia ser alegado um cerceamento de defesa da parte, ensejando, inclusive, a nulidade da sentença produzida após o trâmite processual, o que de fato acarretaria em uma nova movimentação da máquina pública e uma consequente aplicação de recursos financeiros para tal.

Entende-se que em situações excepcionais é necessário tomarmos medidas extraordinárias. Entretanto, essas medidas não podem extrapolar uma garantia processual e constitucional de qualquer cidadão que busca a prestação jurisdicional para a resolução de uma demanda.

Destarte, é possível uma atualização legislativa nesse sentido, configurando ao demandado a oportunidade de justificar a sua ausência nas audiências por meios não presenciais, deixando seu deferimento a encargo do juiz. Assim não haveria, em grande parcela dos casos, prejuízo aos integrantes do processo por conta de nulidades futuras, bem como corrobora com a duração razoável do processo.

De igual maneira, para orientação daqueles indivíduos que não tenham a expertise no manuseio das plataformas eletrônicas, deve-se levantar a hipótese de um comunicado, feito pelos tribunais, apresentando uma explicação básica acerca da adoção dessa nova ferramenta processual, como também o método de utilização dos meios não presenciais passíveis de adoção pelos juizados.

Isso posto, a medida legal de estabelecer videoconferências em conciliações conduzidas pelos Juizados Especiais Cíveis é de extrema valia e necessidade, sendo aplicada em um momento oportuno. Contudo, embora os juizados tenham por preceito básico criar um ambiente para a conciliação dos litigantes, por meio de um procedimento menos formal, baseado na oralidade e celeridade, não se pode descartar as garantias constitucionais e a realidade da população brasileira na adequação do rito.

Com isso, deverá haver uma constante análise nesse sentido, não deixando com que haja o cerceamento de defesa do demandado e, futuramente, uma inclusão de um dispositivo legal que, de alguma maneira, permita à parte justificar o motivo da sua ausência e, com o reconhecimento do juízo, o devido adiamento da audiência, sem que ocorram os efeitos previstos no artigo 20 da Lei 9.099/95.

 é graduando do curso Law Experience — Direito Integral FAE e membro do Grupo de Mediação e Conciliação da FAE.

 é graduando do curso Law Experience — Direito Integral FAE e membro do Grupo de Mediação e Conciliação da FAE.