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Clito Júnior: Sobre paternidade socioafetiva post mortem

A paternidade socioafetiva é um conceito jurídico que ganhou dignidade a partir da regra do artigo 1.593 do Código Civil, que, depois de anunciar ser o parentesco natural ou civil, admite que possa ele resultar de outra origem, como seria ocaso da afetividade. Sua existência se evidencia a partir da demonstração de vínculo de afeto de uma pessoa em relação a outra, marcado por atos próprios de pai em relação a um filho, sem que o seja. Sua constatação, não poucas vezes, se sobrepõe ao próprio vínculo biológico, embora o STF tenha firmado, em julgamento repetitivo, que a paternidade socioafetiva não impede a biológica (Tema 622, RE 898.060, rel. Luiz Fux).

A prevalência do conceito, por exemplo, tem vindo à tona nos casos em que se conteste a paternidade registral, quer pelo suposto pai, quer pelo filho registrado. Nesse sentido, quem registra outrem como seu filho pode, posteriormente, reconhecer tê-lo feito por erro, de modo a se lhe dar o direito de buscar a anulação do registro. Todavia, o questionamento não se tem como procedente se, apesar do erro, criou-se um vínculo afetivo que acaba superando o biológico inexistente (Entre outros: AgInt nos EDcl no REsp 1.784.726, rel. Luís Felipe Salomão). De outro lado, não se nega o direito à verdade a qualquer pessoa, de modo a se fazer possível a filho buscar o reconhecimento de paternidade em relação ao seu verdadeiro genitor. Reconheceu-se, porém, que essa anulação do ato por erro pode ser feita, desde que não tenha sido estabelecido um vínculo socioafetivo (Assim, REsp 1.698.716, rel. Nancy Andrighi). Verifica-se, diante da importância que se confere a esse vínculo afetivo aquilo que João Batista Vilela denomina de “desbiologização da paternidade”. Não se nega a importância do vínculo biológico, mas ele pode esmaecer-se na medida em que o coração fale mais alto.

A riqueza do instituto, porém, vem de ser maculada pelo crescente número de ações post mortem intentadas pelo pretenso filho afetivo em face do espólio de seu pranteado e querido pai, como certamente diria com lágrimas nos olhos o novel pretenso órfão. Postulações neste sentido transpiram oportunismo. A busca da paternidade afetiva não se pode transformar numa mesquinha caça de patrimônio, que se mostra na maioria dessas ações, tanto que a inicial já traz pretensão de herança, antecipando o autor o que efetivamente lhe interessa. Demandas voltadas a tanto pecam até pela ilegitimidade, pois são promovidas pelo pretendente a filho, que se arvora em conhecedor da alma do falecido e diz que ele pretendia fosse o demandante seu filho. Nesse sentido, já houve decisão de primeiro grau indeferindo liminarmente a inicial por falta de legitimidade do autor (Processo nº 1013476-58.2018.8.26.0002, juíza Analuísa Livorati Oliva de Biasi Pereira da Silva), embora tenha sido a sentença reformada para que se enfrentasse o mérito.

Se não se faz possível de antemão negar a possibilidade de postular o reconhecimento, é certo que é imprescindível que se demonstre a vontade clara e inequívoca do pretenso pai, como colocado por Marco Aurélio Bellizze, o que não pode ser extraído de atos de caridade. Nessa linha, já se negou o reconhecimento a partir da existência de dependência econômica (Apelação nº 1003029-38.2017.8.26.0360, relator Carlos Alberto de Salles), que não é incomum existir entre o enteado e o companheiro de sua mãe. Da mesma forma, também não se aceitou o fato de ter o pretendente sido criado por um parente, na medida em que não se demonstrou que a afetividade transpunha o natural carinho entre tio e sobrinho, avós e neto, primos etc., pois mais do que isso seria necessário (Apelação cível nº 10000051-41.2019.8.26.0547). Já se pressentiu uma conduta maliciosa no fato de se buscar o reconhecimento por apenas um dos parentes, exatamente o que deixou bens, quando fora criado por um casal.

Parece razoável presumir-se inexistente a vontade do falecido reconhecer como filho a outrem sempre que se fez possível adotar o postulante ou mesmo contemplá-lo em testamento, circunstância que lhe permitiria desfrutar do patrimônio que vem postular por meio da ação de reconhecimento, porém o falecido não o fez. Mais forte, sem dúvida, se torna a presunção quando o falecido deixa testamento e nele não faz qualquer referência neste sentido ao pretendente da filiação. Não resta dúvida que permitir o reconhecimento da paternidade até poderia ter lugar por meio até de provas orais, todavia, deferir a atribuição de bens fora do contexto de um testamento enfraquece este instituto, deixando, então, de ter sentido toda o formalismo que cerca o ato de manifestação da derradeira vontade de qualquer pessoa.

Impõe-se, pois, que se tenha rigor com postulações deste naipe, a fim de que não sirva o Judiciário como caminho seguro para o enriquecimento sem causa.

Clito Fornaciari Júnior é advogado, mestre em Direito pela PUC-SP e ex-presidente da Aasp e ex-conselheiro da OAB-SP.

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Uytdenbroek: A Lei de Fauna do Espírito Santo

O presente debate traz a reflexão do ponto de vista ambiental sobre o perigo do ingresso de espécimes invasoras de animais silvestres no estado do Espírito Santo, que pode vir a ser exemplo para os demais entes federativos.

No âmbito nacional, a Lei nº 5.197/67, em seu artigo 4º, cuidou da proibição de espécimes introduzidas no país sem o devido parecer técnico oficial favorável, além da necessária licença expedida na forma da lei pelas autoridades competentes. Significa dizer que um cidadão ao ingressar no país portando um animal diverso dos aqui já conhecidos, mesmo que o ser vivo possa aparentar certa inofensividade, terá de submeter o animal ao crivo das autoridades portuárias ou aeroportuárias responsáveis pela análise de risco do ingresso daquele ser vivo no país.

Embora seja louvável o intuito do legislador nacional, restavam lacunas normativas a serem preenchidas, demandando do poder público explicações e orientações mais precisas sobre as espécies invasoras.

Depois tramitar por alguns anos no Instituto Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), autarquia ambiental capixaba, e na Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Seama), sendo submetido de igual modo à apreciação de outros órgãos envolvidos na contribuição da construção da norma, saiu do forno um projeto de lei complementar que instituiu a Política Estadual de Proteção à Fauna Silvestre no Estado do Espírito Santo. Logo, a Lei Complementar nº 936, publicada em dezembro de 2019, em minúcias, aborda o tema com merecido zelo e controle na tratativa do ingresso de espécimes que não são nativas do estado e tampouco do país. Em outras palavras, a norma capixaba visa a estancar a entrada de seres contaminados, portadores de doenças desconhecidas e, sobretudo, invasores disseminadores de doenças capazes de contaminar outros seres vivos que habitam no estado, provocando danos sanitários e econômicos.

A lei capixaba trouxe expressividade no tema entorno da saúde pública, particularmente no que trata do constante risco do ingresso de espécimes invasoras no Estado. Como informado, a norma em apreço serve de exemplo para os demais entes federativos, mormente àqueles que possuem portos e aeroportos destinados a importação e exportação, cujo ingresso de animais se torna mais propício e facilitador.

Pois entre outros tópicos relevantes ao meio ambiente, em tempos de Covid-19, destaco um que chama atenção, que é o dispositivo previsto no artigo 2º, inciso V, da Lei Complementar nº 936/2019, cuja redação esclarece o que é fauna exótica invasora: “Espécie introduzida a um ecossistema do qual não faz parte originalmente, mas onde se adapta e passa a exercer dominância, prejudicando processos naturais e espécies nativas, podendo causar prejuízos de ordem econômica e social”.

Numa rápida leitura, percebemos que o portador de animal silvestre, mesmo sem saber a origem da espécie, acreditando ser um animal doméstico e comum em outros países, é obrigado a submeter o ser vivo ao filtro das autoridades ambientais competentes, sob pena de incorrer em pena de elevada multa (artigo 20 da LC nº 963/2019). Observe que a mera omissão do portador do animal é suficiente para aplicação da penalidade pelas autoridades públicas.

O cuidado para barrar o ingresso de animais exóticos é uma preocupação cada vez mais latente nos dias hoje, principalmente quando fontes extraídas da Organização Nacional da Saúde (OMS) imputam o surgimento da Covid-19 ao consumo humano de animais portadores de doenças desconhecidas.

À guisa de exemplo, importa recordar o ingresso do peixe bagre-africano (Clarias Gariepinus[1] no Brasil. Em meados da década de 80, o peixe foi inicialmente introduzido na aquacultura, com objetivos econômicos. Mas, quando os especialistas perceberam o completo descontrole da espécie predadora natural e, o que é pior, de elevada resistência em ambientes diversos e inóspitos, já era tarde. Descobriu-se um animal de poucos predadores naturais e com possibilidade de adaptação em diversos biomas. O bagre-africano é capaz de sobreviver em condições precárias, águas sujas, alimentando-se de outros peixes, pequenos pássaros, anfíbios, répteis, caranguejos e plantas, sendo um ser resistente que, com suas fortes nadadeiras, é capaz de atravessar sítios e córregos de um canto para outro, procurando alimentos e melhores condições de reprodução. Vale dizer, é um animal devastador, causador de dano, e ninguém imaginava, na década de 80, o tamanho do estrago que o peixe poderia fazer.

Nesse cenário, a norma estadual capixaba inova ao trazer um mecanismo de segurança ao estado, permitindo que as autoridades ambientais competentes controlem o ingresso de espécimes invasoras, prevenindo dessa forma, a disseminação e possível transmissão de doenças até então desconhecidas, como era a Covid-19.

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Por afeto e bem-estar, juiz garante a idosa guarda de papagaio

bodas de pérola

Por afeto e bem-estar, juiz federal garante a idosa guarda de papagaio

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O vínculo afetivo com um animal e a comprovação de seu bem-estar físico e psicológico permite que ele continue com seu dono. Com esse entendimento, o juiz Décio Gimenez, da 3ª Vara Federal de Santos (SP), garantiu a uma idosa o direito a manter em casa um papagaio que vive com ela há mais de 30 anos.

WikimediaIdosa consegue na Justiça direito a manter em casa o papagaio “Leco”, com quem convive há mais de 30 anos.

A idosa ajuizou ação contra o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Estado de São Paulo para pedir a condenação dos réus a procederem à regularização da guarda do papagaio e a não apreenderem o animal. Além disso, pediu que se abstenham de aplicar qualquer sanção pela posse irregular do animal silvestre.

De acordo com o processo, ela cria o “Leco” em casa por desconhecimento da lei ambiental. A idosa também alegou que não sabia que não poderia ter a guarda do animal em ambiente doméstico.

Ao analisar o caso, o juiz considerou que os laudos juntados demonstram que o papagaio não tem condições de ser reintroduzido ao habitat natural, porque “já possui sobrevida similar ao tempo que poderia sobreviver na natureza, além de sofrer de limitações que o impedem de voar”

Citando a jurisprudência do STJ, o juiz acolheu os pedidos da inicial e afirmou que “o nível de bem-estar do animal seria mais afetado caso perdesse a convivência com a idosa”.

Clique aqui para ler a sentença

5002208-38.2018.4.03.6104

 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 10 de maio de 2020, 13h46

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Pereira de Freitas: Autonomia de órgãos com atividade típica de Estado

Opinião

Autonomia de órgãos com atividade típica de Estado está em risco

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Sobejam, ao longo dos anos, exemplos de intromissão indevida de autoridades em órgãos públicos que desempenham atividades típicas de Estado. Não é um fato afeto à ideologia ou ao governo de plantão. É, sim, uma característica da autoridade que detém o poder e que, via de regra, almeja o poder absoluto. Esquecem-se de que o poder corrompe e que o poder absoluto corrompe absolutamente. Por isso é preocupante a notícia de que o presidente Jair Messias Bolsonaro tentou interferir em investigações levadas a cabo pela Polícia Federal. A Polícia Federal, como sabemos, é um órgão de Estado. Não deve se curvar e/ou amoldar suas investigações ao gosto de autoridades, sejam elas de que poderes forem.

Além da Polícia Federal, temos outras instituições que, devido à importância das competências que lhes são atribuídas, desempenham atividades inerentes ao Estado como poder público, atividades estas sem correspondência ou similaridade no setor privado. Como exemplo dessas instituições, podemos citar a Receita Federal do Brasil (RFB) e o Banco Central do Brasil (Bacen). Estes órgãos, entre outros, também não devem estar subjugados ao governante de plantão. Devem ter autonomia. No que se concerne ao Bacen, há o PLP 112/2019, de autoria do Poder Executivo, que prevê a autonomia do órgão. O governo é temporário, o Estado é perene. Faz-se necessário que avancemos. A autonomia precisa ser um dos atributos dos órgãos que desempenham atividades típicas de Estado. 

Não pode o país ser sacudido de tempos em tempos com a notícia de que um ou outro governante e/ou autoridade usou de interferência política para macular o adequado desenvolvimento das atividades afetas aos órgãos de Estado.  Tais órgãos não são susceptíveis aos critérios de conveniência e oportunidade de governantes e/ou autoridades. Governantes ou autoridades que assim procedem batem de frente com o princípio da impessoalidade previsto no artigo 37 da Constituição Federal. O presidente da República, como autoridade máxima da Administração Pública, também deve observar os comandos do aludido artigo. Não é uma exceção.  A notícia de que o presidente da República tentou interferir em investigações da Polícia Federal, sabe-se lá com quais intenções, deve ser rigorosamente investigada.

Mas o que fazer para que o país não seja abalado, de tempos em tempos, como já apregoado, por condutas inadequadas de autoridades públicas junto a órgãos que desempenham atividades típicas de Estado? A resposta está acima. É conceder a esses órgãos autonomia. É inconcebível que órgãos imprescindíveis ao funcionamento regular do Estado estejam submetidos à ingerência política partidária.  A autonomia é a vacina contra o vírus da interferência político-partidária. Temos de construir o arcabouço jurídico que permita o desenvolvimento dessa vacina.

Crésio Pereira de Freitas é auditor fiscal e vice-presidente de Assuntos da Seguridade Social da Anfip.

Revista Consultor Jurídico, 5 de maio de 2020, 8h09