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Miola e Melo: Impactos da Covid-19 na educação básica pública

O momento atual exige todos os esforços para conter a crise sanitária, econômica e social que se instalou no país com a pandemia da Covid-19. Entre suas inúmeras consequências, é necessário discutir e refletir sobre os impactos da pandemia no financiamento da educação básica pública que, assim como a saúde, é um direito fundamental de especial envergadura no nosso ordenamento jurídico.

A Constituição da República prevê, basicamente, três pilares que sustentam o financiamento da educação básica pública no Brasil.

Primeiro, temos a vinculação da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, de, no mínimo, 25% para Estados, municípios e Distrito Federal e 18% para a União à manutenção e desenvolvimento do ensino (artigo 212). É tamanha a importância desse direito que a vinculação para a finalidade prevista no artigo 212 é uma exceção ao princípio da não afetação da receita de impostos previsto no artigo 167, IV, da CR/88.

Segundo, o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), previsto no artigo 60 do ADCT como um fundo de natureza contábil e composto por parte dos recursos que os Estados, o Distrito Federal e os municípios devem destinar à educação a que se refere o artigo 212.

Por último, a contribuição social do salário-educação recolhida pelas empresas, na forma da lei, prevista no artigo 212, § 5º, como fonte adicional de financiamento da educação.

Todos os entes federativos são responsáveis pelo financiamento do ensino, mas cada qual atua em etapas definidas expressamente no texto constitucional: aos municípios compete atuar, prioritariamente, na educação infantil e no ensino fundamental (artigo 211, § 2º); aos Estados e ao Distrito Federal, nos ensinos fundamental e médio, prioritariamente (artigo 211, § 3º). Já à União compete organizar o sistema federal de ensino e financiar as instituições de ensino públicas federais (artigo 211, § 1º). Além disso, sendo o ente com a maior arrecadação da federação, a União exerce também, em matéria educacional, “função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios” (artigo 211, § 1º).

Dito isso, todas essas receitas somadas representaram, no ano de 2018, R$ 252 bilhões e serviram para financiar, aproximadamente, 142 mil escolas públicas de educação básica, 40 milhões de alunos e dois milhões de professores [1].

Apesar desse arranjo constitucional protetivo do direito à educação básica pública, de um modo geral pode-se dizer que os recursos já eram insuficientes para garantir uma educação de qualidade antes da pandemia da Covid-19. Dois dados básicos corroboram essa conclusão: o piso salarial dos profissionais do magistério da educação básica é de cerca de R$ 2,8 mil [2], ao passo que o Estado brasileiro gasta R$ 519 em média por mês com o aluno da escola pública da educação básica [3]. Um estudo divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (Education at a glance) revelou que o Brasil investe por aluno três vezes menos que os países desenvolvidos que fazem parte da organização.

Dos três pilares de financiamento antes mencionados, o Fundeb é o principal mecanismo, correspondendo à maior parte dos recursos públicos destinados à educação em milhares de municípios que não possuem receita própria expressiva.

Por força da Constituição da República, a União complementará os recursos dos fundos sempre que, no DF e em cada Estado, o valor médio ponderado por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente (artigo 60, V, ADCT). Essa complementação será de, no mínimo, 10% do total dos recursos estaduais/distritais/municipais, a partir do quarto ano de vigência do fundo (artigo 60, VII, “d”, ADCT). No ano de 2018, a receita vinculada ao Fundeb de Estados e municípios representou R$ 138,8 bilhões, ao passo que a complementação da União ao fundo foi de R$ 13,8 bilhões, o que totalizou R$ 152,6 bilhões.

Uma auditoria operacional realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no Fundeb (TC 018.856/2019-5) indicou que quatro fontes de receitas juntas representaram 93% do total dos seus recursos, com expressivo destaque para o ICMS, seguido pelos Fundos de Participação dos Estados e dos municípios (FPM e FPE) e pela complementação da União, nessa ordem.

Naturalmente, ou tragicamente, por força da retração da atividade econômica causada pela pandemia, já está havendo e haverá perda de arrecadação de tributos de toda ordem, o que refletirá na formação dos fundos estaduais e demais fontes de financiamento da educação.

A Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação emitiram recentemente uma nota técnica sobre a queda das receitas da educação no contexto da pandemia Covid-19 e seus efeitos danosos na manutenção e desenvolvimento do ensino [4].

Os pesquisadores coletaram informações em bases de dados governamentais para estimar os cenários de decréscimos nas receitas de impostos e do salário-educação dos governos estaduais e municipais e seus impactos na área da educação. Foram estimados três cenários; no mais otimista, a educação perderia R$ 17,2 bilhões; no intermediário, perderia R$ 34,8 bilhões e, no mais pessimista, R$ 52,4 bilhões.

Em termos de recursos por aluno/mês, foram realizadas as seguintes projeções: de R$ 519 (valor referência em 2018), que já é considerado um patamar de partida muito baixo, estima-se que o valor caia para R$ 483, R$ 447 ou R$ 411, a depender da gravidade do cenário. Segundo a referida nota, a ameaça é imediata em 2020, mas com grandes chances de se estender para os próximos anos.

Outro estudo, intitulado “Covid-19 Impacto Fiscal na Educação Básica”, elaborado pelo movimento Todos pela Educação e o Instituto Unibanco, utilizando a base de dados do Tesouro Nacional, informações consolidadas das receitas tributárias de abril e maio, além de estimativas de especialistas para realizar uma projeção dos tributos vinculados a manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE) em 2020, estimou que “o conjunto das redes estaduais devem perder entre R$ 9 bilhões e R$ 28 bilhões em tributos vinculados à MDE, a depender do cenário de crise econômica” [5].

Ainda, o mencionado estudo estimou que as redes públicas terão custo adicional de pelo menos R$ 2 bilhões para 2020 com soluções para o enfrentamento das consequências da pandemia, sobretudo gastos com a implementação do ensino remoto e com o oferecimento de alimentação aos alunos durante a suspensão das aulas presenciais.

Será um impacto enorme para o financiamento da educação básica pública, principalmente se pensarmos que grande parte dos recursos do Fundeb são utilizados no pagamento dos profissionais do magistério da educação básica. A Lei nº 11.494/2007 determina que, no mínimo, 60% dos recursos do fundo devem ser utilizados no pagamento de profissionais da educação e há notícias de que, em várias situações, os montantes do Fundeb são integralmente absorvidos pela folha de pagamento da educação. Mesmo nos entes em que isso não acontecia, quedas na receita tendem a direcionar valores que poderiam ser investidos no incremento da qualidade da aprendizagem para cobrir gastos com pessoal

Temos que lembrar, ainda, que o Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014), que é decenal, está completando seis anos neste mês de junho e os efeitos econômicos da pandemia vão gerar um impacto significativo no atingimento das metas estipuladas, como, por exemplo, na ampliação da oferta da educação infantil.

Por outro lado, enquanto a arrecadação de tributos diminui, afetando as receitas vinculadas para a manutenção e desenvolvimento do ensino, o cenário descortina demandas e gastos extras na área da educação. Como exemplo, é possível antever um aumento no número de matrículas, nas redes públicas, de alunos egressos das escolas particulares cujos pais perderam a condição financeira de arcar com as mensalidades. Além disso, já se pensando no retorno às atividades presenciais, haverá também aumento de despesas com a segurança sanitária nas escolas.

No momento em que foi declarada a ocorrência do estado de calamidade pública no Brasil em decorrência da Covid-19 (Decreto Legislativo nº 06, de 20 de março de 2020), estava em adiantada tramitação no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 015/2015, que trata da renovação do Fundeb em caráter permanente, de novas medidas de equidade e da expansão do financiamento da educação básica por meio da elevação da complementação dos recursos Fundeb por parte da União.

A baixa participação da União no financiamento da educação básica sempre foi alvo de críticas, e o quantum de sua complementação ao Fundeb estava finalmente em discussão, não sem uma “queda de braço” entre o Ministério da Educação e o Congresso Nacional com relação ao novo percentual. No relatório apresentado pela deputada Dorinha Seabra Rezende, relatora da PEC, a complementação federal havia sido fixada em 20% do total dos recursos.

Agora, é necessário que o novo Fundeb seja pensado, discutido e votado no paradigma da pandemia e no pós-pandemia, de modo que a complementação da União possa recompor, se não totalmente, ao menos parcialmente as perdas de receitas sofridas por Estados e municípios, porque todos terão perdas expressivas. Para esse propósito, é importante lembrar que a complementação da União ao Fundeb não está limitada pelo novo regime fiscal criado pela Emenda Constitucional nº 95/2016 (teto de gastos), pois foi excluída expressamente pelo artigo 107, § 6º, inciso I, do ADCT.

A situação é grave, e exige uma atuação afirmativa por parte dos entes federativos, a fim de se viabilizar o direito à educação para mais de 40 milhões de crianças e jovens brasileiros. Nesse contexto, a aprovação do Fundeb, com o incremento da complementação da União, é indispensável para recompor as vultosas perdas na educação pública brasileira. A pandemia da Covid-19 trouxe impactos inestimáveis para a economia e já vitima mais de mil pessoas por dia no país. Não se pode permitir que o futuro das nossas crianças e jovens seja mais uma dessas trágicas consequências.

 é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul e presidente do Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa.

 é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de Minas Gerais e mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Fernando Mendes pede intolerância às fake news

Ao encerrar seu biênio à frente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), o juiz Fernando Mendes pediu três reflexões para o atual momento do país. “Primeiro, precisamos refletir sobre que tipo de sociedade queremos naquilo que virá a ser o que hoje já se denomina ‘o novo normal’.”

O ex-presidente da Ajufe Fernando Mendes
Divulgação

“A pandemia escancarou os nossos problemas sociais e, impondo a todos o distanciamento e o isolamento social, abriu a oportunidade para que, desacelerando da correria do dia a dia, reavaliássemos as nossas próprias prioridades, condição necessária para corrigirmos os rumos do país e, democraticamente, evoluirmos como sociedade,” disse, por meio de cerimônia virtual de posse da nova diretoria da associação, que reúne cerca de 2 mil juízes federais. 

A segunda foi mais um alerta. “De um tempo para cá, o mundo vem sendo alertado de que as democracias não mais terminam com uma ruptura violenta, um golpe militar ou uma revolução. As democracias morrem em razão da escalada do autoritarismo e do enfraquecimento das instituições críticas, como são a imprensa e o Judiciário. Não podemos permitir isso.”

E fez um pedido. “Não se pode vedar a livre circulação de ideias, a liberdade de expressão e de imprensa e por isso a Constituição veda a censura prévia. Mas o exercício desses direitos constitucionais não significa a tolerância com a prática de atos criminosos ou a disseminação de notícias falsas. Ações coordenadas com a finalidade de desestabilizar o regime democrático e enfraquecer as instituições tem de ser combatidas pelos Poderes constituídos e pelos instrumentos constitucionais existentes. O Supremo Tribunal Federal, ao instaurar o Inquérito 4781, nada mais fez do que exercer um mecanismo legítimo de autoproteção, previsto em seu regimento interno, visando à identificação dos responsáveis pela prática de atos criminosos que serão responsabilizados pelos atores legitimados e mediante a observância do devido processo legal.”

Por fim, o juiz, que deu posse nesta quarta-feira (3/6) à noite ao seu sucessor, o juiz Eduardo André Brandão, disse que não há “Estado Democrático e de Direito sem um Poder Judiciário independente.” “As decisões judiciais podem ser debatidas e criticadas em uma democracia constitucional, mas jamais descumpridas. Os Poderes em uma República são harmônicos e independentes, convivem em um sistema de freios e contrapesos e têm seus limites definidos pela própria Constituição, cabendo ao Supremo Tribunal Federal, e a mais ninguém, o papel de ser o seu guardião.”

Clique aqui para ler a íntegra do discurso de Mendes

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“Derivando seus justos poderes do consentimento dos governados”

Não pretendo aqui discutir o mérito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6399 e 6403 que tramitam no Supremo Tribunal Federal e buscam impugnar o artigo 19-E da Lei n° 10.522, de 2002, introduzido pela Lei n°13.988, de 2020. Desejo refletir sobre o mérito de adotar-se, em situações de empate, no qual uma determinada decisão encontra-se nítida e fundamentalmente dividida quanto à interpretação da norma ou dos fatos, a prevalência de um dos entendimentos a partir de uma premissa valorativa. É o caso de Habeas Corpus, por exemplo, em que o empate favorece o paciente em decorrência da presunção constitucional da inocência. Ou o Mandado de Segurança, em que o empate favorece a legitimidade do ato administrativo. O mesmo ocorre no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, CARF, em que o empate era resolvido pela presunção de qualidade do voto do Presidente do colegiado que, no caso, sempre é um representante da administração tributária.

A pergunta que se coloca é: no caso de empate, é possível adotar a presunção em favor da posição dos contribuintes?

Primeiramente, para a possibilidade do “in dubio pro contribuinte”, remeto à discussão desenvolvida pelos Professores Hugo de Brito Machado Segundo (A Lei 13.988/20 e o fim do voto de qualidade no CARF, 2020); Igor Mauler Santiago (Voto de qualidade para os contribuintes vale tanto quanto o anterior, 2020) e Marcos de Aguiar Villas-Boas (In dubio pro contribuinte reduz as despesas do Estado e aumenta eficiência, 2015), todos publicados na ConJur. Também é oportuno analisar os argumentos apresentados pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – ANFIP, na Ação Direta de Inconstitucionalidade protocolada na última semana. Não pretendo fazer uma repetição do que já foi dito nos artigos citados, mas trazer mais uma nova perspectiva, considerando que já tive a honra de chefiar a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.

Primeiramente, é interessante lembrar que a ideia do in dubio pro contribuinte parte do entendimento já consagrado de que a interpretação da norma é feita contra quem a redigiu. No caso, o Estado, redator da norma e responsável por sua imposição, não pode ter supremacia absoluta. O in dubio pro contribuinte é um mecanismo de contenção ao arbítrio na aplicação da norma.

Todavia, o que mais chama-me a atenção no debate são os múltiplos argumentos não jurídicos a associar a legitimidade da adoção da lei a efeitos nefastos à arrecadação, tomando por base uma premissa de propriedade sobre o interesse público. Em primeiro lugar, tal debate tem como partida que garantir a arrecadação é um valor essencial e que o interesse público é locacional: só existe no Estado e somente os seus agentes estão aptos a declará-lo e defendê-lo. Por outro ângulo, a sociedade, no caso, nada mais é do que o domínio de interesses privados e desconectados de qualquer deferência à defesa de interesses. Quero assim enfrentar, pontualmente, estes dois argumentos.

O conceito de um domínio locacional do interesse público é contrário a toda evolução da moderna democracia, partindo da Revolução Americana, cuja Declaração de Independência expressamente estabelece:

Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade.

O que está ali dito nada mais é do que reconhecer que o Estado não é proprietário do interesse público e que, apesar de ser, por obrigação, vocacionado a buscá-lo, eventualmente está em contradição com o mesmo. Tal princípio, na verdade, não é tão novo, se considerarmos que os Imperadores Chineses eram legitimados pelo que se denominava “Mandato dos Céus”, mediante o qual eles estavam vinculados ao propósito de prover o bem estar de todos os súditos chineses e, caso não o fizessem, era legítimo a estes substituí-los. Em suma, o Estado não vale por si, mas pelo que representa e promove. O interesse público, portanto, não é propriedade dos integrantes da burocracia estatal. O interesse público, por mais difícil que seja identificá-lo, está invariavelmente associado a valores que sejam aderentes e que emanam da Constituição Federal, como lealdade, igualdade, fraternidade, justiça. Não pode, portanto, uma parte da burocracia avocar o domínio absoluto neste quesito.

Aliás, neste aspecto, não é demais lembrar que, no Direito Romano, a lex escrita em oposição à lex tradita parte do conflito com o domínio e arbítrio dos Juízes em dizer a lei. A Leis das XII Tábuas, como ficou conhecida legislação escrita na Roma antiga, decorre do princípio de que todos os cidadãos são portadores do direito de conhecer a lei e aplicá-la, sendo a lei em si um limite ao Estado Juiz que a interpreta.

O segundo ponto que merece crítica é o de que a mudança feita pelo Congresso e sancionada pelo Presidente da República representa um ataque direto à arrecadação pública. A ideia de ética consequencial está diretamente ligada à filosofia utilitarista de Bentham, mediante a qual uma ação é eticamente boa quando promove o bem geral do povo. O que é falacioso no argumento apresentado por aqueles que criticam a norma é estabelecer que o valor “garantir a arrecadação” equivale a promover a felicidade do povo. Garantir a arrecadação só é um valor se associado a outros tão fundamentais, como o devido processo legal, o julgamento por juiz independente, a justiça fiscal, a lealdade para com o contribuinte, a transparência e a clareza nas orientações fiscais. Todos estes comportamentos são essenciais à administração fiscal, e adotar o resultado fiscal como valor único é promover um argumento artificial e sem conexão com um interesse público da sociedade. Nunca esqueçamos, neste ponto, que uma das características dos Estados Nacionais é a centralização do poder e uma das características da burocracia é tornar-se porta voz deste poder.

Portanto, o mérito deste debate é colocar em evidência o permanente comportamento conflituoso da administração tributária e do contribuinte. Esta dinâmica litigiosa permanente, em que as partes realizam, seja a desconsideração de atos ou negócios jurídicos lícitos para obtenção de resultados favoráveis na arrecadação (no caso da administração tributária) ou planejamentos fiscais por vezes abusivos para alcançar a redução tributária (no caso dos contribuintes) é o verdadeiro mal que contamina o país e promove insegurança jurídica. A eliminação do voto de qualidade e a eleição da posição do contribuinte talvez seja uma experiência positiva para quebrar este ciclo vicioso e destrutivo.

Luís Inácio Adams é advogado, ex-procurador da Fazenda Nacional, foi Advogado-Geral da União (2009 a 2016).

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Jenifer dos Anjos: A deterioração dos direitos trabalhistas

“O curso da história mostra que quando o governo cresce, a liberdade diminui”

Thomas Jefferson

Estamos enfrentando uma pandemia, momento delicado em relação à vida da população e também à tentativa de que a economia do país sobreviva a essa crise. Compreende-se que várias medidas deverão ser adotadas para que os empregos sejam mantidos, famílias continuem com seu sustento e a crise financeira não se agrave. Porém, faz-se necessário “abrirmos os olhos” em relação às medidas provisórias em vigor que tratam de direitos trabalhistas, em especial a MP 927/20 e como as mudanças na legislação têm deteriorado os Direitos Trabalhistas.

O intuito desse artigo é refletir sobre a flexibilização referente à compensação de horas laborais e como isso poderá afetar a vida dos trabalhadores, em especial aqueles sem conhecimento de seus direitos, visto que vivemos em um país de dimensão continental, não sendo as mesmas condições encontradas pelos empregados e empregadores de um extremo ao outro do país.

Bezerra Leite [1] (2017) diz que o banco de horas é um neologismo utilizado para denominar um novo instituto de “flexibilização” da jornada de trabalho, que permite a compensação do excesso de horas trabalhadas em um dia com a correspondente diminuição em outro dia, sem o pagamento de horas extras.

A Constituição Federal no seu artigo 7°, inciso XIII, prevê a “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro horas semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”.

O texto constitucional esta claro em relação à compensação de horário, deverá ter a participação do sindicato, seja por acordo coletivo ou convenção coletiva. Destaca-se ainda que o inciso XXVI do mesmo artigo menciona o “reconhecimento das convenções coletivas e acordos coletivos de trabalho”. Constar em nossa Carta Magna demonstra ser inquestionável a importância dessas duas ferramentas em prol da proteção e da defesa dos direitos dos empregados.

A CLT, por meio do artigo 59, caput e §§ 2°, 5° e 6°, após a reforma trabalhista, flexibilizou ainda mais a utilização do banco de horas.

O caput do artigo 59 expressa que a duração diária do trabalho poderá ser acrescida de horas extras, em número não excedente de duas, por acordo individual, convenção coletiva ou acordo coletivo. Já podemos observar a inclusão do acordo individual, retirando a exclusividade da atuação do sindicato nessa questão.

O §2° dispensa o pagamento das horas extraordinárias se por força de acordo coletivo ou convenção coletiva o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, a soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias.

O §5° vai além, estipula ser válido o banco de horas de que trata o § 2° do artigo 59 se houver acordo entre empregado e empregador, apenas exigindo que seja formalizado por escrito e as horas sejam compensadas no prazo máximo de seis meses.

O §6° estabelece ser lícito o regime de compensação de jornada por acordo individual, tácito ou escrito para a compensação no mesmo mês. Em outras palavras, não se faz necessário constar em documento escrito, para esse tipo de compensação ser válida, devido à utilização da palavra “tácito” nesse parágrafo.

Com a publicação da Medida Provisória 927, de 22 de março de 2020, o banco de horas passou a ser regrado conforme o seguinte texto:

“Artigo 14   Durante o estado de calamidade pública a que se refere o artigo 1º, ficam autorizadas a interrupção das atividades pelo empregador e a constituição de regime especial de compensação de jornada, por meio de banco de horas, em favor do empregador ou do empregado, estabelecido por meio de acordo coletivo ou individual formal, para a compensação no prazo de até 18 meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública.

§ 1º  A compensação de tempo para recuperação do período interrompido poderá ser feita mediante prorrogação de jornada em até duas horas, que não poderá exceder dez horas diárias.

§ 2º  A compensação do saldo de horas poderá ser determinada pelo empregador independentemente de convenção coletiva ou acordo individual ou coletivo (grifo da autora)

 Cessare Beccaria [2] em 1764 já dizia que “em toda a sociedade humana, há um esforço tendendo continuamente a conferir a uma parte o auge do poder e da felicidade e a reduzir a outra à extrema fraqueza e miséria”.

Utilizamos as palavras de Beccaria para demonstrar que a cada alteração da legislação a situação do empregado foi deteriorada, fragilizada, estando o seu tempo cada vez mais a mercê do empregador e afastando a proteção dos seus pares, na figura do sindicato. 

Ao dispensar a negociação coletiva, sendo ela convenção ou acordo, exacerba ainda mais o afastamento às normas constitucionais e a exposição do lado mais vulnerável, o empregado, visto que se sente intimidado a aceitar o “acordo” com medo de perder o emprego e muitas vezes esse medo é utilizado intencionalmente como ferramenta para obter a concordância, isso nos casos em que a validade da alteração somente seria realizada com a aceitação do empregado, não sendo essa a disposição do §2º do artigo 14 da MP 927/20.

Conceder tanto poder ao empregador para dispor de como será utilizado o tempo do seu empregado, excedendo o que já lhe é permitido e ainda com lapso temporal de 18 meses, é submeter o empregado a um ano em meio sem o recebimento de horas extras, visto que muitos empregadores utilizarão essa ferramenta apenas para aumento de sua lucratividade e de modo legal esquivar-se do pagamento das horas extraordinárias e o acréscimo constitucional (artigo 7°, inciso XVI).

O empregado tem o direito de receber pecuniariamente as horas extraordinárias laboradas, acrescidas do adicional de no mínimo 50%. Já na utilização do banco de horas, as horas ficam “elas por elas”, não há acréscimo, sendo o elo da corrente mais uma vez prejudicado.

O receio de que os direitos trabalhistas sofram mutação pós MP 927 é latente, não podemos duvidar de que essa flexibilização possa querer perpetuar e se estenda de maneira sutil e silenciosa, a ponto de ter mais uma vez a legislação trabalhista se distanciado do que prescreve a Constituição Federal, a ponto de que a deturpação chegou a um estágio que algumas pessoas possam cogitar a possibilidade da retirada o artigo sétimo da Constituição Federal, tamanha disparidade em relação ao que é preceituado e o que realmente é praticado.

“Se o poder de interpretar as leis for um mal, a obscuridade neles deve ser outra, pois o primeiro é consequência do segundo. O mal será ainda maior se as leis escritas em uma linguagem desconhecida pelo povo que, ignorante das consequências de suas ações, torna-se necessariamente dependente de uns poucos, que são intérpretes das leis, em vez de serem públicas e gerais, tornam-se privadas e particulares. (…) Sem leis escritas, nenhuma sociedade jamais terá uma forma fixa de governo, no qual o poder é investido como um todo e não parcialmente e onde as leis não sejam alteradas senão pela vontade da maioria nem corrompida pela força de interesses privados. A experiência e a razão nos mostram que a probabilidade e a certeza das tradições humanas diminuem à medida que se distanciam de suas fontes”(BECCARIA, 2012, p. 20)

 


[2] BECCARIA, Cessare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Hunter Books, 2012, p. 9