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Projeto de lei contra o superendividamento se arrasta faz 8 anos

Saída de Emergência

Projeto de lei para superendividamento, parado faz 8 anos, é tema de debate

Enquanto projetos de lei são discutidos e aprovados para propiciar o necessário socorro para as empresas nos diversos setores das suas atuações, oito anos se passaram a partir da primeira iniciativa destinada a evitar e a combater o superendividamento do consumidor por meio do PL 283/2012.

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E o Brasil continuou inerte em face deste problema. Em 2015, esta proposta legislativa foi convertida no PL 3.515/2015, mas, outros cinco anos transcorreram, e o nosso país se mantém omisso diante de uma realidade intensificada com o estado de calamidade pública engendrada pelo novo coronavírus.

Vamos continuar vislumbrando o superendividamento associado à matança de milhares de seres humanos por um agente eminentemente letal e, até o momento, imbatível? Quantos morrerão com fome, sem água, energia elétrica, telecomunicações e transportes, por não conseguirem arcar com as respectivas prestações, na falta do mínimo existencial?

Estas e outras questões serão levantadas nesta sexta-feira (12/6), a partir das 15h, em seminário online pela série de debates Saída de Emergência, no canal da TV ConJur no Youtube.

Clique aqui ou acompanhe ao vivo a partir das 15h:

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Revista Consultor Jurídico, 11 de junho de 2020, 13h44

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Opinião: Debate qualificado sobre custos da Justiça

Recorrentemente, o Poder Judiciário brasileiro é posicionado, em contraste ao de outros países, como excessivamente custoso à sociedade. Dentre os principais elementos utilizados para endossar essa posição estão tanto as despesas totais do Poder em relação ao PIB quanto o valor dos subsídios dos Magistrados brasileiros.

Com o intuito de aprofundar o debate envolvendo os custos com o Poder Judiciário brasileiro e discutir não apenas essas variáveis como também outras capazes de contribuir para melhor compreensão do tema, serão discutidos alguns aspectos envolvendo custos e demais peculiaridades desse Poder.

Espera-se trazer à tona novos elementos que contribuam para que a discussão não se limite aos números constantemente reavivados envolvendo despesa total em relação ao PIB e valor absoluto de subsídios da Magistratura — os quais são importantes, mas insuficientes para se compreender todas as questões que orbitam o Poder Judiciário brasileiro e explicam, em grande medida, o seu custo para a sociedade.

O custo do Poder Judiciário
II.1 Despesas do Poder Judiciário em relação ao PIB
Recentemente, a imprensa repercutiu a informação de que o Poder Judiciário brasileiro representaria um custo equivalente a 2% do PIB quando, em contraste, os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) teriam esse valor na média de 0,5%[1]. Outros valores recorrentemente utilizados são os de um trabalho envolvendo dados de 2014[2], em que se atingiu o patamar de 1,3% do PIB para as despesas do Judiciário brasileiro.

Trata-se, entretanto, de uma reflexão que coliga elementos cuja associação é insuficiente para uma análise verdadeiramente qualificada do custo do Poder Judiciário brasileiro para a sociedade.

Essa insuficiência se dá na medida em que se estabelece, a partir da associação do custo do Poder Judiciário a uma variável de mensuração da atividade econômica, uma correlação que induz ao pensamento equivocado de que o Poder deve ser limitado a essa atividade. E que, portanto, seus custos deveriam resguardar alguma medida de proporcionalidade em relação à produção econômica – algo que é no mínimo bastante questionável.

A avaliação do custo do Poder Judiciário, mais do que ter em vista o elemento produtivo/econômico, precisa levar em consideração o elemento humano/cidadão. Este deve ser o parâmetro fundamental para avaliação quanto ao seu custo para a sociedade.

Uma alternativa viável, capaz de associar os custos do Judiciário a uma variável que melhor expresse o cidadão como detentor de direitos, é aquela que correlaciona esses custos ao quantitativo absoluto da população sobre a qual se exerce a jurisdição. Ou seja, uma relação de custo per capita do Poder Judiciário.

Afastam-se, dessa forma, distorções causadas pelo desenvolvimento econômico, que posiciona alguns países em vantagem aos demais na capacidade de agregar valor aos seus produtos e serviços. Diante dessa realidade, quanto maior a riqueza que essa sociedade produz, menor será a dimensão do custo dessa Justiça. E quanto menos riqueza produzir — caso dos países em desenvolvimento, como o Brasil — maiores serão as dimensões daquele custo.

Há ainda um agravante: a Justiça, como elemento a manter coeso o tecido social, é necessária quanto maiores os conflitos existentes nessa sociedade – caso corrente dos países em desenvolvimento. Mais ainda o caso brasileiro, em que se convive com a realidade de ser um dos países mais desiguais do mundo.

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo[3] e tem a segunda maior concentração de renda do planeta[4]. Há, assim, um contexto de desigualdade e assimetrias na sociedade brasileira que se espraia na existência de conflitos de toda ordem, notadamente no âmbito trabalhista, previdenciário, econômico, criminal e consumerista. Conflitos os quais chegam diariamente para o escrutínio do Poder Judiciário, que não pode se esquivar de resolvê-los. Necessário, portanto, que se estabeleça um comparativo a envolver a despesa per capita com o Poder Judiciário, e não essa despesa como fração do PIB.

Entretanto, mesmo que se empunhe esse indicador que correlaciona as despesas do Judiciário como fração do PIB, é preciso não perder de vista que essa forma de avaliação vem demonstrando uma evolução positiva com o suceder dos anos para o caso brasileiro.

A partir dos dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) quanto ao Produto Interno Bruto[5] e aqueles disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) envolvendo a despesa total do Poder Judiciário[6], verifica-se que, ano após ano, o custo do Poder em relação ao PIB vem caindo paulatinamente: de 1,93% do PIB em 2009 para 1,37% do PIB em 2018, em uma queda média de 0,06 pontos percentuais a cada ano.

Figura 1 – Despesas totais do Poder Judiciário brasileiro em relação ao Produto Interno Bruto, em % (dados do IBGE e do CNJ)

Mesmo com os problemas apontados para essa variável, sua análise para a série histórica atesta que o Judiciário brasileiro vem apresentando custos cada vez menores quando vistos como fração do PIB nacional.

II.2 Despesas Per Capita do Sistema de Justiça
A visualização do custo do Poder Judiciário per capita é uma forma mais qualificadas de analisar o custo desse Poder. Trata-se, aliás, de uma mensuração usada pela Comissão Europeia para Eficiência da Justiça (CEPEJ)[7] quando a intenção é estabelecer um comparativo entre os países. Os dados da CEPEJ encampam todo o Sistema de Justiça, envolvendo assim Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública.

O comparativo do Brasil com outros países, sobretudo da União Europeia, feito a partir de dados da CEPEJ[8] e do CNJ[9] para o ano de 2016 (ano em que há disponibilidade dos dados), indica que o valor do Brasil[10] (150,1 euros/habitante) está muito próximo aos valores da Alemanha (121,9 euros/habitante), Países Baixos (119,2 euros/habitante) e Suécia (118,6 euros/habitante). E mesmo inferior a países como Suíça (214,8 euros/habitante) e Luxemburgo (157,3 euros/habitante).

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[11] também traz informações quanto à evolução do custo per capita (contudo, especificamente do Poder Judiciário): desde 2012, os valores têm estado estáveis na faixa entre R$ 400,00 e R$ 455,00 (Figura 2).

Figura 2 – Gastos per capita com o Poder Judiciário brasileiro abrangendo despesas totais, despesas totais excetuando inativos e pensionistas e despesas apenas com inativos e pensionistas (CNJ)

Verifica-se, assim, que o Sistema de Justiça brasileiro apresenta uma relação próxima a de países como Alemanha, Países Baixos e Suécia. E que, especificamente para o Poder Judiciário, os valores de gasto per capita estão há pelo menos quatro anos estabilizados – havendo tendência de queda.

III. Elementos para um discussão qualificada
III.1 Volume de processos: a sobrecarga dos tribunais brasileiros
Um primeiro aspecto a ser refletido quando se deseja avaliar os custos do Poder Judiciário brasileiro envolve a análise de casos novos que são propostos todos os anos para seu escrutínio. Isso porque esse volume, evidentemente, é o que determinará a necessidade de nomeação de mais Magistrados e servidores para a prestação jurisdicional – sem perder de vista que os dispêndios em termos de recursos humanos correspondem a 90,8% das despesas totais do Poder[12].

Para melhor compreensão dessa sobrecarga, um comparativo com a situação de outros Sistemas de Justiça é interessante. Para tanto, com o fito de tornar a comparação mais acertada (comparação esta já difícil em razão dos países terem grandes diferenças quanto à forma de concatenação de sua ordem legal), opta-se pela análise de casos novos em termos de ações decorrentes das relações de trabalho — dado disponível de maneira mais homogênea entre os países analisados e, portanto, com uma maior adequação a serem comparados entre si.

Lembrando que as demandas trabalhistas corresponderam a cerca de 21% do número total de casos novos que ingressaram no Poder Judiciário brasileiro em 2019[13]. Representam, assim, a matéria com maior acervo de processos nesse Poder.

A avaliação envolveu três países europeus com legislação trabalhista considerada protetiva e com uma atuação sindical avaliada como bastante intensa: França[14], Alemanha[15] e Espanha[16]. São países também populosos, com economias bem diversificadas, à semelhança da situação brasileira. A razão encontrada entre número de casos novos e a população de cada país atesta a sobrecarga brasileira: os magistrados do Brasil têm aproximadamente de duas a dez vezes mais casos novos por ano do que seus pares (Tabela 1) .

Tabela 1 – Casos novos em matéria trabalhista em países selecionados e sua relação por cem mil habitantes

Trata-se de um nível de demanda que inevitavelmente exige a ampliação de todo o aparato institucional (mais gastos com infraestrutura, Magistrados, servidores e recursos materiais), o qual acarretará custos maiores para toda a sociedade.

Outra dimensão importante nesse debate envolvendo o excesso de judicialização diz respeito ao modelo vigente no Brasil de pagamento de custas e emolumentos e a forma como esse tipo de disposição pode induzir a um maior uso do Poder Judiciário — em detrimento de métodos autocompositivos.

Para além disso, o volume arrecadado com o pagamento de custas judiciais e emolumentos, necessários para a consecução da prestação jurisdicional e dos serviços que lhe são inerentes e conexos, representa arrecadação capaz de reduzir o dispêndio do contribuinte com o Poder, direcionando-o um pouco mais para o usuário — aquele que realmente faz uso da máquina jurisdicional.

No Brasil, a arrecadação com custas judiciais e emolumentos em relação à despesa total da Justiça, nos últimos dez anos, oscilou entre 10 e 13% de acordo com o CNJ[17], sem uma tendência definida (Figura 3).

Figura 3 -Arrecadação com custas judiciais e emolumentos em relação à despesa total do Poder Judiciário, em % (CNJ)

Os dados do Cepej[18] disponíveis para outros países, relativos ao ano de 2016 (Figura 4), ajudam a compreender melhor a situação brasileira – e mesmo refletir se existiria espaço para mudanças. Esses dados, de quando o Brasil apresentava uma arrecadação com custas e emolumentos em relação à despesa total da Justiça no patamar de 11% (dados de 2016), situam o Brasil em posição inferior à média (19%) e mediana (14%) europeias.

Figura 4 – Custas em relação à despesa total do Poder Judiciário, em 2016 (CEPEJ e CNJ)

A comparação da arrecadação brasileira com aquela de países selecionados, em matéria de custas judiciais e emolumentos, atesta sua similitude ao valor amealhado por países como Rússia (12%) e Itália (11%), mas ainda distante dos valores arrecadados pela Alemanha (43%), Portugal (25%) e Inglaterra (19%).

Dados levantados pelo CNJ em 2019[19] a partir de simulação para obtenção do valor de custas judiciais a serem pagas para causas com valores distintos nos diversos Tribunais do país atestaram duas circunstâncias: a grande variabilidade no valor de custas, seja dentro de um mesmo Tribunal, seja entre Tribunais distintos; e o valor irrisório cobrado em diversos Tribunais do país.

Quanto a essa percepção de grande variabilidade, percebe-se que, para um valor de causa de R$ 20.000,00, as custas entre os Tribunais oscilam mais de 1.900%, de R$ 100,00 (Justiça Federal) a R$ 2.001,52 (TJ do Piauí). Para um valor de causa de R$ 1.000.000,00, as custas entre os tribunais oscilam mais de 8.100%, de R$ 372,22 (STJ) a R$ R$ 30.718,00 (TJ do Rio Grande do Sul). Dentro de um mesmo Tribunal, há casos em que não há qualquer oscilação (STF e STJ), ou mesmo em que essa oscilação é irrisória (TJDFT, de 25%) ou profunda (7.100% no TJ do Tocantins e 3.170% no TJ do Rio Grande do Sul).

O caso da Justiça Federal é emblemático: 12,85% dos casos novos no país em 2019 foram peticionados perante essa Justiça. Nela, a cobrança das custas processuais tanto iniciais quanto recursais é feita com base no valor da causa, definida em patamares máximos e mínimos. Excetuada a Justiça do Trabalho, em que o valor mínimo é igual a zero, os valores das custas recursais mínimas na Justiça Federal (R$ 5,32), incluindo depósitos, são os menores do país[20].

Há, assim, grande discrepância em relação ao valor de custas judiciais quando comparados os diversos tribunais do país. Esse potencial de incremento arrecadatório pode ser ilustrado no caso emblemático envolvendo o setor bancário.

Estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2012[21] trouxe, para o ano de 2011, a lista dos maiores litigantes nas Justiças Estadual, Federal e do Trabalho. Os bancos ocupavam a primeira posição na Justiça Estadual, a segunda posição na Justiça Federal e a terceira posição na Justiça do Trabalho. Contabilizando-se esses três ramos do Poder Judiciário, os bancos ocupavam a posição de segundo maior litigante nacional, perdendo tão somente para o Setor Público Federal.

Constituindo-se o setor bancário como segundo maior litigante nacional, e demarcando-se a lucratividade do setor, que em 2019 alcançou R$ 81,51 bilhões apenas com os quatro maiores bancos do país (com uma média anual, de 2010 a 2018, situada em 50,37 bilhões)[22], seria plausível cogitar um incremento em termos de custas judiciais para setores específicos da sociedade que demandam mais a jurisdição.

Um formato de transferir aos usuários do Poder Judiciário uma parte maior dos custos com o Poder, hoje em sua quase integralidade posto ao encargo do contribuinte. A reflexão acerca da reformulação do pagamento de custas judiciais e emolumentos, atraindo-o para uma sistemática capaz de proporcionar aos Tribunais do país maiores fonte de receitas, perfilha-se assim tanto interessante quanto necessária.

Ainda mais em razão dos efeitos que essa medida pode proporcionar em termos de redução dos níveis de judicialização: na medida em que o acesso à Justiça se torna mais caro àqueles que podem, de fato, pagar, incentiva-se a busca pelos métodos autocompositivos (como mediação e conciliação). Algo que repercutirá em uma redução de novos casos – e, assim, na redução de custos do próprio Poder Judiciário brasileiro.

III.2 Qualidade das leis: o “cipoal” normativo em matéria tributária
A qualidade e a precisão da legislação produzida pelo Congresso Nacional interfere profundamente na quantidade de ações judiciais existentes no país – e, portanto, na posterior necessidade de alocação de recursos materiais, financeiros e humanos para que o Poder Judiciário consiga absorver esse volume de demandas e fazer a devida prestação jurisdicional.

Ao tempo que ao Poder Legislativo é franqueado não legislar, ao Poder Judiciário é vedado não decidir. Ou seja, enquanto o Poder Legislativo não tem obrigação quanto à produção normativa ou mesmo quanto à sua qualidade, o Poder Judiciário tem o dever de prestar a jurisdição e fazê-la da melhor maneira possível – isso a partir do arcabouço legal de que dispõe.

Exemplo emblemático de uma matéria cuja produção normativa revela esse desafio posto sob responsabilidade do Sistema de Justiça – e que confronta qualquer critério de razoabilidade, conflagrando contribuintes e Estado a um grande volume em termos de litigância – é o direito tributário.

No bojo dos debates envolvendo a prometida reforma tributária, o Presidente da Câmara dos Deputados, explicitando sua posição favorável a uma simplificação da legislação tributária, chegou a publicar em suas redes sociais[23]:

Brasil editou 363 mil normas tributárias desde 1988! Sim, você não leu errado. Nessa barafunda tributária, entre siglas e centenas de milhares de normas, todos perdem.

Ao comentar os problemas que a complexidade da legislação tributária proporciona em termos de judicialização, o Ministro do STJ, João Otávio de Noronha[24], destaca que essa característica de nosso arcabouço normativo em matéria tributária — agravado pelo fato de que a própria Secretaria de Receita Federal tem autonomia para edição de normas que interpretam a legislação tributária — eleva o nível de litigiosidade e provoca uma judicialização excessiva no país.

Ao se analisar o número de casos novos em matéria tributária na Justiça Estadual, na Justiça Federal e no Superior Tribunal de Justiça[25], percebe-se a dimensão das ações tratando de matéria tributária e a carga que isso representa para o desempenho dos Tribunais. Entre 2014 e 2019, casos novos tratando de matéria tributária abrangeram entre 10,42% e 12,72% do volume total de casos novos nesses Tribunais (Figura 6).

Figura 6 – Fração de casos novos em matéria tributária sobre total de casos novos, nas Justiças Estadual, Federal e no STJ (CNJ)

Há, portanto, a necessidade de que as leis tenham qualidade — qualidade essa que se espraia nessas três dimensões: simplicidade, clareza e, acima de tudo, transparência. Elementos a partir dos quais será possível o estabelecimento de um arcabouço legal confiável, que inspire segurança jurídica e, assim, menos suscetível a questionamentos – e, caso inevitável o litígio, a opção pelas vias de autocomposição e arbitragem poderá ser avaliada como um caminho mais promissor, uma vez o arcabouço legal simplificado.

 é juiz federal e ex-presidente da Associação Nacional dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

 é sócio-fundador do escritório Malta Advogados, professor de Direito Imobiliário da Universidade de Brasília (UnB) e secretário-geral da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB.

Lazarini de Almeida é sócio do escritório Malta Advogados.

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Direitos fundamentais em tempos de pandemia IV

Considerando a verdadeira avalanche de casos levados ao Supremo Tribunal Federal e decididos desde a decretação do estado de calamidade em nível nacional, bem como a miríade de temas discutidos, resulta absolutamente impossível tratar de todos, inclusive daqueles que envolvem diretamente a proteção de direitos e garantias fundamentais, em especial, contudo, quando se trata de avaliar a legitimidade constitucional de intervenções restritivas pelo poder público, seja por ação, seja mesmo por omissão.

Outro aspecto a ser levado em conta – e já são muitas as manifestações, também na ConJur, a respeito do tema – e que exerce significativo impacto também no tocante ao problema da restrição a direitos na pendência de um estado de anormalidade, como o atualmente vivenciado em todo o planeta, e, entre nós, em ritmo de galopante aceleração, é que no caso brasileiro (embora não só no Brasil) o contexto é ainda mais complexo e, na mesma medida, mais desafiante para as instituições de um modo geral e para o sistema judiciário, em particular.

É que, paralelamente à calamidade pública da pandemia e as imensas dificuldades no tocante à sua contenção e superação, o Brasil passa por uma crise política e econômica altamente explosiva, que, embora tenha iniciado há alguns anos, alcançou níveis praticamente sem precedentes equiparáveis desde os primeiros anos da década de 1990. A gravidade, contudo, do quadro atual, é maior e mais preocupante, visto que nos anos mais difíceis de instabilidade econômica e em parte também política (agudizada na breve Era Collor e sua implosão) referidos, não se verificaram, em termos quantitativos e em intensidade, tantas manifestações contra as instituições democráticas, e, em especial, em prol de uma intervenção militar.

Mas, como se já não bastasse que segmentos da sociedade civil protagonizem tais manifestações, essas são, não raras vezes, acompanhadas diretamente, em termos de presença física, ademais de legitimidades indiretamente, por integrantes da cúpula governamental, o que, aliás, tem sido diuturnamente debatido em todos os foros e também já chegou ao STF.

Nesse contexto, a pergunta elementar que se tem posto em causa é precisamente, se e em que medida, reuniões e manifestações públicas e mesmo, em termos gerais, o exercício da liberdade de expressão, pode ser utilizadas para ataca frontalmente a instituição que é, numa democracia representativa, o seu órgão mais importante, e mesmo a instituição que exerce, igualmente legitimada pela ordem constitucional, a função de garantir as próprias regras do jogo democrático (devido processo legislativo, direitos políticos etc.) e os direitos e garantias fundamentais em geral, sem os quais, por sua vez, inexiste um Estado Democrático de Direito que possa ostentar esse rótulo.

Tornando a questão ventilada mais concreta e inserida no contexto atual, é de se invocar aqui, dentre outros, o inquérito – cuja abertura foi requerida pela Procuradoria-Geral da República – autorizado pelo ministro Alexandre de Moraes, no bojo do qual se investiga atos em favor do AI-5 e do fechamento das instituições, republicanas, destaque para a verificação da existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia.

Note-se que na fundamentação da decisão foi apontado que a Constituição proíbe o financiamento e a propagação de ideais contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático (artigos 5º, XLIV; 34, III e IV), tampouco permitindo a realização de manifestações objetivando a destruição do Estado de Direito, mediante a superação de limites materiais ao poder de reforma constitucional, que constituem o núcleo substancial do dos princípios democrático e republicano, como é o caso do voto direto, secreto, universal e periódico, da separação de poderes e dos direitos e garantias fundamentais (Constituição, artigo 60, parágrafo 4º), ainda mais quando com isso se pretende ainda sustentar a instauração de um regime autoritário.

Além disso, a decisão referiu serem inconstitucionais, por não cobertas pelo manto protetor da liberdade de expressão, condutas e manifestações destinadas à aniquilação do pensamento crítico essencial a uma ordem democrática, assim como àquelas que pregam a violência, o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais.

À vista do inquérito que tramita na Suprema Corte brasileira, e como (pelo menos aparente) contraponto e mesmo contradição, assume ainda maior relevo a medida cautelar na petição 8.830, formulada pelo líder do PT na Câmara dos Deputados, decidida pelo ministro Celso de Mello, em 7 de maio de 2020, onde se buscava a interdição de carreata/manifestação em Brasília marcada para o dia 8 de maio.

De acordo com o autor da petição, cujo conteúdo aqui se transcreve em parte, extraído do relatório do prolator da decisão:

Com efeito, circula nas redes sociais do autodenominado ‘Comandante Paulo’, uma convocação de todo o povo brasileiro para estarem presentes em Brasília, no dia 8 de maio de 2020 (amanhã), com previsão de arregimentação de 300 caminhões e respectivos ocupantes, além de militares da reserva, civis, homens, mulheres e crianças. Segundo o vídeo de convocação divulgado, o objetivo do comboio e dos manifestantes será o de ‘dar cabo a essa patifaria estabelecida no País e representada (a patifaria) por aquela casa maldita do Supremo Tribunal Federal – STF, com seus 11 ‘gângsteres’, que têm destruído a Nação’. Trata-se de fato gravíssimo e que vem se somar às condutas, reiteradas já há alguns anos e com mais ênfase nos últimos meses, de um bando de celerados e acéfalos, reunidos em grupos de iguais, que estão promovendo, em todo o País e em Brasília (como as ações antidemocráticas investigadas em Inquérito da relatoria de Vossa Excelência), uma série de atos e ações inconstitucionais que objetivam, numa toada de aniquilação de Poderes (Legislativo e Judiciário) e supressão de garantias fundamentais, anular as conquistas democráticas tornadas realidades com a Constituição Federal cidadã, promulgada em 1988.

Pese o conteúdo das manifestações narradas e a existência do inquérito acima referido, o pleito não foi conhecido, dada a incompetência da Suprema Corte para examinar a matéria, pelo fato de não se referir a investigação solicitada a qualquer pessoa ou autoridade com prerrogativa de foro perante o STF.

O que aqui se impõe seja destacado, e por isso a relevância da decisão, é que embora pudesse ter o seu prolator, ministro Celso de Mello, se limitado ao não conhecimento, foram tecidas considerações importantes sobre o mérito do pleito, deixando claro que caso fosse conhecido e julgado, o resultado seria o seu rechaço, por frontal violação da liberdades de reunião e de manifestação e expressão consagradas na Constituição (artigo 5º, incisos XVI, IV e IX, respectivamente) e no direito internacional dos direitos humanos, designadamente na Declaração Universal da ONU, de 1948 (artigos XIX e XX), no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigos 19 e 21) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigos 13 e 15).

Dentre os argumentos invocados no seu voto, o ministro decano da Suprema Corte brasileira, além de invocar importantes precedentes, anotou:

…Vê-se, portanto, que o direito de crítica e o direito ao dissenso – desde que não resvalem, abusivamente, quanto ao seu exercício, para o campo do direito penal, vindo a concretizar, em virtude de conduta desviante, qualquer dos delitos contra a honra (calúnia, difamação ou injúria) –, encontram suporte legitimador em nosso ordenamento jurídico, mesmo que de sua prática possam resultar posições, opiniões ou ideias que não reflitam o pensamento eventualmente prevalecente em dado meio social ou que, até mesmo, hostilizem severamente, por efeito de seu conteúdo argumentativo, a corrente majoritária de pensamento em determinada coletividade (…) O pluralismo político (que legitima a livre circulação de ideias e que, por isso mesmo, estimula a prática da tolerância) exprime, por tal razão, um dos fundamentos estruturantes do Estado democrático de Direito! É o que expressamente proclama, em seu artigo 1º, inciso V, a própria Constituição da República. É por isso que se mostra frontalmente inconstitucional qualquer medida que implique a inaceitável “proibição estatal do dissenso” ou a livre manifestação do pensamento.

No tocante à posição adotada pelo ministro Celso de Mello – que aqui saudamos como correta e serena, ainda mais dadas as circunstâncias! -, esta não chega a surpreender, porquanto a despeito da intensidade das palavras direcionadas ao STF e seus integrantes, que no mínimo, em parte, permitiriam um enquadramento, em tese, na figura típica da injúria (a ser investigada e processada no foro próprio), o mais antigo magistrado em atividade na Suprema Corte, se manteve fiel a seus próprios precedentes, incluindo o multicitado caso da “marcha da maconha”, assegurando, em regra, posição preferencial às liberdades de reunião e expressão.

Tal entendimento, por sua vez, guarda estreita sintonia com a jurisprudência dominante formada pelo STF, em especial desde o julgamento da ADP 130, relatada pelo então ainda ministro Carlos Britto, que considerou não recepcionada pela Constituição a antiga lei de imprensa editada sob a égide do regime militar, do que dão conta, na sequência, outros julgamentos como o desnecessidade de prévia autorização do biografado em vida, da classificação etária apenas indicativa para a assistência de espetáculos, filmes etc., da liberação do humor (mas proscrição das assim chamadas fake news) na campanha eleitoral e mesmo, nesses últimos dias, da confirmação da decisão tomada em 2018, por ocasião do processo eleitoral, no sentido da ilegitimidade constitucional do ingresso por força policial em estabelecimentos de ensino para conter protestos e promover buscas e apreensões.

Da mesma forma, é este é um dos pontos a serem aqui sublinhados, não existe contradição (pelo menos por ora) entre a decisão do ministro Alexandre de Moraes, no Inquérito já referido, e a do ministro Celso de Mello, visto que no primeiro caso o que está em causa é a investigação da existência de atos diretamente atentatórios à própria democracia, caracterizados (a título de justificação adequada para a decisão) pelo apelo à intervenção militar, apoio ao AI-5, um dos mais autoritários (se não o mais violento) tomados pelo regime militar na sua pendência contra as instituições democráticas, para além do golpe de 1964 em si e outros desdobramentos.

O mesmo, contudo, não se verifica no julgado sobre a liberdade de reunião mais recente, ora anotado, pois o caso concreto que deu ensejo à petição não conhecida pelo STF, ainda que alinhado, no pedido, a outras como as investigadas no inquérito, não teve por objeto manifestação específica e diretamente voltada à reinstalação de uma ditadura militar, nem, neste caso, ao fechamento do Congresso Nacional, embora o tom mesmo beligerante assacado contra a Suprema Corte.

É claro, outrossim, que não se pode, como igualmente referido, ter como insustentável uma exegese que vislumbre também no caso decidido pelo ministro Celso de Mello uma afronta – ademais de uma possível injúria contra as pessoas dos ministros – a uma instituição que, independentemente da crítica que se possa querer proferir contra o seu modo de operar, suas decisões individualmente consideradas, etc., consiste no esteio institucional destinado a assegurar a garantia efetiva do cumprimento da constituição e da efetividade dos direitos fundamentais.

Embora essa é apenas uma leitura possível, de tal sorte que, à vista de diversas alternativas de interpretação do conteúdo do discurso impugnado e das circunstâncias, há de prevalecer aquela mais favorável e garantidora das liberdades comunicativas tão caras e essenciais à própria existência, em termos materiais, da democracia, o que, por sua vez, corresponde ao postulado da posição preferencial (embora não absoluta, como bem referido no próprio voto do ministro Celso de Mello) da liberdade de expressão e o da interpretação restritiva de eventuais restrições.

 é professor, desembargador aposentado do TJ-RS e advogado.

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Balbi Cerviño: Avanços regulatórios sobre criptomoedas

Entre os temas discutidos em anos recentes relacionadas à tributação de novas tecnologias, encontram-se as criptomoedas, seleto grupo de moedas digitais, entre outros ativos, capazes de proteger os próprios dados por meio da criptografia. O uso desse instrumento, que inclui bitcoins e tolkiens, sofre uma preocupante necessidade de definição de sua natureza jurídica em território nacional, ao mesmo tempo que seu uso se expande no Brasil.

Atualmente, há mais de um milhão de brasileiros registrados para investir em criptoativos, e estima-se que as transações nacionais foram superiores a R$ 5 bilhões durante o primeiro semestre de 2019. Ainda assim, é necessário aumentar a proteção de seus usuários contra fraudes e roubos de informações privilegiadas, que cresceram em 2019 ao alcançar 4,52 bilhões de dólares perdidos, em um aumento de 160% em relação ao ano anterior [1].

Ao final de 2018, sentiu-se que alguns passos foram dados nessa direção. Acórdão do Superior tribunal de Justiça [2] versou sobre a possibilidade de criptomoedas serem consideradas valores mobiliários, levando o julgamento dos delitos a elas relacionadas à competência da Justiça Federal. Após analisar a posição da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que em seu relatório semestral do segundo semestre de 2017 excluiu de sua própria esfera de competência reguladora tais ativos, o ministro relator Sebastião Reis Júnior determinou não haver dispositivo no Regulamento do Banco Central sobre tais moedas virtuais, que não se confundem com as moedas eletrônicas já regulamentadas pela Lei n° 12.865/2013. Portanto, não é possível tratá-las como valores mobiliários, qualificando tais crimes como comuns e cabíveis à Justiça Estadual.

Em 5 de março deste ano, o ministro flexibilizou seu entendimento anterior sobre as criptomoedas ao indeferir um habeas corpus [3]. Em uma situação semelhante, mas não análoga à sua decisão anterior, 18 réus foram denunciados por diversos crimes financeiros, como  evasão de divisas e gestão fraudulenta. Uma das condutas a eles atribuídas, havendo denúncia formalizada perante a Justiça Federal, foi a do oferecimento de contrato de investimento coletivo, e sem registro prévio na Comissão de Valores Mobiliários, atrelado a especulação de criptomoedas.

O ministro denegou o pedido de HC em virtude da tipificação do ilícito, prevista na Lei n° 7.492/1986. O artigo 26 da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro delimita a competência da Justiça Federal, o que impede um julgamento análogo ao do conflito de competência, no qual não havia uma denúncia formalizada. Além desse dado, o ministro alegou deliberação da CVM tratando contratos coletivos vinculados a negociação de criptoativos como valores mobiliários [4]. Portanto, é possível que operações relacionadas a criptomoedas tenham natureza mobiliária, em determinadas circunstancias definidas pela CVM.

“(…) Vêm oferecendo, na página da rede mundial de computadores https://www.btc-banco.com, oportunidade de investimento cuja remuneração estaria atrelada à negociação de criptoativos por equipes de profissionais, utilizando-se de apelo ao público para celebração de contratos que, da forma como vêm sendo ofertados, enquadram-se no conceito legal de valor mobiliário”.

Regulação perante a Receita Federal do Brasil

Entretanto, a primeira regulação brasileira relativa s criptomoedas surgiu somente em 1º de agosto de 2019, com a necessidade de se reportar ao governo, mediante a Instrução Normativa n° 1.888 da Receita Federal, todas as transações ligadas a criptomoedas ocorridas mês anterior. A obrigação atual independe do uso de corretoras, mas, segundo especialistas, não caracteriza-se como uma nova operação tributação tributária [5]. De fato, a INRF n° 1.888 refere-se a termos tributários apenas para restringir a obrigação de prestar informações sobre seus criptoativos destinadas às pessoas jurídicas fornecedoras de criptoativos (exchanges) “residentes e domiciliadas no Brasil”. A opção pela forma de declarar o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) também altera o valor da multa imposta sobre a exchange que falhar em informar suas transações, como se denota no seguinte trecho:

“Artigo 10  A pessoa física ou jurídica que deixar de prestar as informações a que estiver obrigada, nos termos do artigo 6º, ou que prestá-las fora dos prazos fixados no artigo 8º, (…) ficará sujeita às seguintes multas, conforme o caso:

I pela prestação extemporânea:

a) R$ 500,00 (quinhentos reais) por mês ou fração de mês, se o declarante (…) na última declaração apresentada tenha apurado o Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) com base no lucro presumido.”

Ou seja, há referncias indiretas ao Imposto de Renda préexistente, mas não são listadas as características referentes a um novo imposto, como fato gerador, alíquota e base de cálculo.

Outro avanço recente é que, a partir do mês atual, exchanges que circulam criptomoedas, no papel de corretoras, contarão com CNAE Classificação Nacional de Atividades Econômicas) próprio, junto ao IBGE. Tal ato, que ocorrerá por meio da atualização do sistema do próprio IBGE, atendendo a pedido do Conselho Nacional de Justiça, (CNJ) constitui mais um passo para a formalização das trocas de criptomoedas efetuadas por brasileiros. O código destinado a elas terá o número de 6619-3/99 (corretagem e custódia de criptoativos) [6].

O tema da natureza jurídica das criptomoedas permanece em situação de incerteza no Brasil, mas no último ano já começaram a surgir indícios de que, em breve, uma definição concreta, favorável à regulação pela CVM e pela Receita Federal, poderá vir a surgir.

 


[2] Conflito de Competência 161.123/SP (2018/0248430-4), j. 28/11/2018, DJe 5/12/2018.

[3] Habeas Corpus nº 530.563 – RS (2019/0259698-8)

 é advogado especializado em Direito Tributário e integra o quadro de um LLM de Direito Tributário Internacional na Universidade de Nova York-EUA.