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STJ cassa cautelares impostas a investigado por vazar dados do INSS

Para STJ, decisão que manteve cautelares apenas reproduziu dispositivo legal, sem mencionar a pertinência das medidas
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As medidas cautelares impostas a investigado na operação Data Leak — que tratou do vazamento ilícito e da comercialização de dados sigilosos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) — foram suspensas. A decisão é da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que deu provimento a recurso em Habeas Corpus.

O processo no qual o recorrente é acusado está na fase de inquérito policial. Ele é investigado pela prática dos crimes de invasão de dispositivo informático, corrupção passiva e organização criminosa.

Após a expiração do prazo máximo da prisão temporária, o juízo de primeiro grau revogou a prisão do investigado, com imposição de medidas cautelares alternativas à prisão, como requerido pelo Ministério Público: afastamento das atividades profissionais, comparecimento mensal em juízo e proibição de se ausentar do país, com a entrega do passaporte.

O colegiado reconheceu que houve ilegalidade na adoção das medidas, por ausência de fundamentação idônea. Segundo os ministros, a imposição de medidas cautelares diversas da prisão também exige fundamentação específica que demonstre sua necessidade e adequação em relação ao caso concreto.

Impetrado HC no TRF-1, a ordem foi parcialmente concedida, apenas para afastar a proibição de sair do país e a entrega do passaporte. Em substituição, o tribunal impôs a exigência de não viajar ao exterior sem comunicação prévia ao juízo. As outras cautelares foram mantidas.

No STJ, o recorrente argumentou que a decisão de primeiro grau que o submeteu ao cumprimento das cautelares é flagrantemente nula por ausência de fundamentação. Pediu a declaração de nulidade da decisão que fixou as cautelares, bem como do acórdão que a confirmou em parte.

Fundamentação genérica

Segundo o relator do recurso, ministro Nefi Cordeiro, as medidas alternativas à prisão devem ser adotadas observando-se sua necessidade para a aplicação da lei penal, para a investigação ou para a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de novas infrações, bem como sua adequação à gravidade do crime, às circunstâncias do fato e às condições pessoais do indiciado ou acusado.

Para ele, a decisão questionada não indicou as circunstâncias concretas capazes de justificar a necessidade e a adequação das medidas aplicadas; em vez disso, limitou-se a citar o rol do artigo 319 do Código de Processo Penal, sem indicar por que as cautelares eram pertinentes e os riscos que deveriam evitar — o que caracterizou “fundamentação abstrata e genérica”, configurando a ilegalidade.

“Pacífica é a jurisprudência desta corte no sentido de que, para a aplicação das medidas cautelares diversas da prisão, exige-se, assim como na prisão preventiva, fundamentação específica que demonstre a necessidade da medida em relação ao caso concreto”, afirmou.

Ao dar provimento ao recurso em HC para cassar as medidas cautelares impostas ao paciente, o ministro destacou que isso não impede a fixação de novas medidas pelo juízo de primeiro grau, mediante decisão fundamentada. Com informações da assessoria de imprensa do Superior Tribunal de Justiça.

RHC 123.424/MT

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Opinião: Ainda sobre o inquérito judicial e o sistema acusatório

É importante retomarmos o debate sobre a possibilidade do inquérito judicial atípico e sua inserção no sistema acusatório. Falemos, de novo, então, do IP n. 4.781, objeto de muitas polêmicas.

O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal autoriza a realização de investigação, presidida pelo Presidente ou por outro Ministro por ele designado, de infrações penais nas hipóteses de envolvimento de autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, assim como para eventual infração penal cometida na sede do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 43, RISTF.

Vale mencionar que o Regime Interno do Supremo Tribunal Federal tem força de lei, isto é, suas disposições normativas constituem lei no sentido material, daí que há uma autorização legislativa expressa para a existência do Inquérito do STF no ordenamento jurídico. E é vigente e válida, até que esta seja retirada.

A questão é a compatibilização do referido instituto com a adoção constitucional do sistema acusatório. Para tanto, é importante lembrarmos que, regra geral, o Ministério Público tem a iniciativa da ação penal, mas o órgão acusatório não tem sua exclusividade, basta ver a existência de ações penais privadas. É o que se vê, também, em torno da investigação preliminar, cuja condução pelo MP foi constitucionalmente autorizada, podendo inclusive ser assumida por outros órgãos, inclusive a própria defesa. Não esqueçamos que o próprio MP investiga seus membros, e o faz por Inquérito (PAD) aberto pelo próprio procurador-geral.

Importante aspecto, então, surge quando há uma eventual alegação de que o próprio órgão investigador poderia ser o órgão julgador. Efetivamente, a condução do Inquérito pelo Ministro Alexandre de Moraes de n. 4.781 deve ser lida de acordo com as garantias constitucionais.

Essa sistemática, contudo, não é desconhecida de nosso sistema processual penal. O Ministro Alexandre de Moraes, caso a denúncia seja promovida no âmbito da competência originária do STF, deveria seguir o princípio acusatório segundo o qual quem toma contato com os elementos de prova no âmbito da investigação preliminar deve dar-se por impedido para julgar, nos termos do art. 277 do RISTF.

É bem verdade que o próprio RISTF prevê hipóteses em que o Tribunal informará eventual delito ao procurador-geral da República, para eventual propositura de denúncia, quando a vítima for o próprio STF, tal como previsto no art. 46, assim redigido:

Art. 46. Sempre que tiver conhecimento de desobediência a ordem emanada do Tribunal ou de seus Ministros, no exercício da função, ou de desacato ao Tribunal ou a seus Ministros, o Presidente comunicará o fato ao órgão competente do Ministério Público, provendo-o dos elementos de que dispuser para a propositura da ação penal.

A questão é interpretar esse artigo à luz de sua sistematização. Em questão, o delito seria de desobediência ou desacato e, regra geral, seria cometido por conduta ou omissão exposta de plano em documentos no exercício da jurisdição, o que prescindiria da existência de investigação preliminar.

Na sequência, o art. 47 do RITSF prevê a hipótese em que o órgão acusatório permanece inerte, ocasião em que a Corte realizará sessão secreta para as “providências necessárias”.

Por providências necessárias deve-se entender que o Supremo Tribunal Federal poderá requerer a responsabilização política do procurador-geral da República, nos termos do art. 52, inc. II da Constituição.

No caso do Inquérito 4.781, como parte no processo penal, cabe ao procurador-geral da República aguardar o término das investigações para, de posse dos elementos informativos, propor a denúncia ou o arquivamento no âmbito do Supremo Tribunal Federal, conforme o art. 1º, da Lei 8.038/90.

Estaríamos violando a Constituição se defendêssemos que, no caso de eventual arquivamento das investigações por parte do PGR, isso autorizasse uma ação subsidiária da pública, coisa que somente seria possível no caso de inércia do MP. Se ele decidir arquivar, nada haverá a ser feito. Carregará, é claro, o ônus político. Mas não podemos sair da legalidade-constitucionalidade.

De qualquer sorte, é bom lembrar — e isso parece que está sendo esquecido na discussão — que a atribuição da presidência dos inquéritos aos ministros do STF permite, inclusive, que os relatores determinem até mesmo o arquivamento de inquérito em curso, mesmo sem requerimento da Procuradoria-Geral da República. Essa possibilidade decorre de previsão expressa do art. 231, § 4º, do Regimento Interno da Corte (emenda de 2011), que tem, como dito, status de lei. Norma processual, portanto. Válida e vigente. Que nunca teve contrariedade do fiscal da lei, o procurador-geral da República. Assim como os demais dispositivos que sustentam o Inquérito, todos vigentes, até agora, válidos. Logo, a legalidade-constitucionalidade está mantida.

Numa palavra: parece adequado, nessas circunstâncias, buscar exemplos na história. Na Prússia, em meados do século XIX, discutiu-se qual seria a solução para o impasse sobre o orçamento, quando a Câmara Baixa recusou aprovar o projeto de lei apresentado por Bismarck. O Kaiser, quem outorgara a Constituição, teria dito: “A Constituição sou eu! Isso que vocês chamam de Constituição é uma mera folha de papel”, despertando a crítica irônica de Lassalle. Pois, a solução jurídica, contudo, veio de Paul Laband: execute-se a lei orçamentária do ano anterior, já vigente, enquanto não for aprovada uma nova lei.

Isto é: a situação que ensejou o Inquérito 4.781 não pode fazer com que nada aconteça a quem praticou Contemp of Court (ataques à Corte). Dodge e Aras nada fizeram (no ano passado, Aras concordou com o Inquérito). Logo, execute-se o orçamento do ano anterior, é dizer, o Direito reclama a sua própria integridade. Existe farta legislação em vigor, como o CPP e RISTF. Usemo-la.

E fiquemos na legalidade.

P.S. Necessário: Aras e os militares!

Tomamos conhecimento que o procurador-geral da República, em entrevista a Pedro Bial, concorda(va) com a tese antirrepublicana e inconstitucional de que o artigo 142 da Constituição atribuiria o papel de “poder moderador” aos militares. Ele disse: “Quando o artigo 142 estabelece que as Forças Armadas devem garantir o funcionamento dos Poderes constituídos, essa garantia é no limite da garantia de cada Poder. Um poder que invade a competência de outro Poder, em tese, não há de merecer a proteção desse garante da Constituição. Se os Poderes constituídos se manifestarem dentro das suas competências, sem invadir as competências dos demais Poderes, nós não precisamos enfrentar uma crise que exija dos garantes uma ação efetiva de qualquer natureza”.

Horas depois, percebendo o perigoso equívoco que cometeu, desdisse-se. Não teria sido bem interpretado ou não teria sido feliz. De nossa parte, a pergunta que deve ser feita é: O que dizer quando o procurador-geral da República desconsidera a própria Constituição e a Lei Complementar n. 97 — que regulamenta a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas —, em favor de um verdadeiro haraquiri institucional? OK. Ele se retratou. Mas o simbólico disso é, e que ficará gravado nas páginas da histórias é: de que modo um procurador-geral da República chega ao ponto de dizer o que disse? A manchete poderia ser: “O dia em que o procurador-geral da República rasgou a Constituição e depois tentou juntar os cacos”. Nada mais a se dizer.

Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

Marco Aurélio de Carvalho é advogado especializado em Direito Público, sócio-fundador do Grupo Prerrogativas e da  Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e membro do Sindicato dos Advogados de São Paulo.

 é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG, doutor e mestre em Direito pela mesma instituição.

Diogo Bacha e Silva é doutor em Direito pela UFRJ, mestre em Direito pela FDSM, e professor da Faculdade de São Lourenço.

 é advogado criminalista, doutor e mestre em Direito Penal pela USP e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Foi ouvido como perito jurista em nome do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento do caso Herzog.

José Eduardo Cardozo é advogado. Foi ministro da Justiça e Advogado Geral da União. Professor da PUC-SP, mestre em Direito e doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha) e pela USP.

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Erro em classificação de circunstância não impede aumento de pena

O caso de uma mulher condenada por estelionato resultou em uma decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que determinou que um juiz não é obrigado a mencionar as circunstâncias judiciais que ele avaliou para estabelecer a pena. Para que seja justificado o aumento da punição, basta que a sentença registre a existência de condenações anteriores ou demonstre que o dano causado pelo réu foi particularmente grave.

O ministro Rogerio Schietti Cruz foi o relator do pedido de Habeas Corpus
STJ

A defesa da ré, que tinha cinco condenações anteriores transitadas em julgado por estelionato, solicitou Habeas Corpus com a alegação de que essas condenações não poderiam ter sido usadas pelo juiz para classificar como negativa a conduta anterior da mulher — e, assim, aumentar sua pena para três anos e quatro meses de reclusão no regime inicial semiaberto. O STJ, porém, negou o pedido.

O ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do pedido, reconheceu que o juiz cometeu erro técnico ao considerar que as condenações anteriores refletem negativamente na conduta da ré, mas alegou que elas não poderiam ser desconsideradas, do contrário ela seria punida “da mesma forma que um criminoso neófito”.

Como essas condenações não foram contestadas pela defesa, o ministro considerou que bastava corrigir a classificação da circunstância judicial, sem afastar o aumento de pena. 

A 6ª turma, porém, decidiu reduzir a duração da sentença por entender que não ficou evidente a existência de grave prejuízo às três vítimas da condenada — nesse caso, dando razão à defesa. Na sentença, consta apenas que o total perdido por elas foi de aproximadamente R$ 5 mil. Por isso, o relator diminuiu a pena para um ano e seis meses de reclusão.

Outro equívoco corrigido pelos julgadores foi quanto à fração de aumento em razão da continuidade delitiva. Como foram cometidos três crimes, a pena deve ser elevada em um quinto, e não em dois terços, como foi fixado pelo juiz. Assim, a punição definitiva ficou em um ano, nove meses e 18 dias de reclusão em regime semiaberto. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Clique aqui para ler o acórdão

HC 501144

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A Medida Provisória 966/2020: responsabilidade e pandemia

Na última madrugada do dia 13 para o dia 14 de maio, foi publicada a Medida Provisória n. 966/2020, que dispôs, em seu artigo 1º, que “somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de:

I — enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19; e II — combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19.

Ao mencionar “esferas civil e administrativa”, a norma tornou clara sua abrangência, a contemplar as searas sancionadoras disciplinar e de improbidade — pondo a salvo, naturalmente (artigo 62, § 1º, I, b), a dimensão criminal. Por conta disso, nos inspiramos a dedicar este texto ao exame do novo diploma.

Já tivemos a oportunidade de mencionar neste espaço[1] o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça no sentido de somente admitir, nos tipos ímprobos que admitem a modalidade culposa, a culpa grave (AIA 30) — nada obstante, também pontuamos que, a despeito daquele julgado emanado da Corte Especial, decisões das Turmas da Primeira Seção seguiram placitando condenações por improbidade sob o fundamento de uma espécie de culpa/dolo genéricos.[2]

Em linha com o julgado da Corte Especial, o artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro seria incluído pela Lei 13.655/2018, tendo sua regulamentação dada pelo Decreto n. 9.830/2019, de cujo artigo 12 constou que “O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.

Essas lembranças são testemunhas de que, no passado recente, iniciativas diversas têm convergido para estremar da seara sancionadora o simples equívoco, enfocando somente a má-fé evidente ou o erro inescusável — talvez, um novo capítulo se avizinhe se aprovado o Projeto de Lei n. 10.887/2018, que finalmente fulmina a modalidade culposa nos tipos ímprobos.

No caso específico da MP 966, o que se percebe, como corolário daquelas preocupações que já vinham se evidenciando, é uma reiteração mais rigorosa, à luz da extraordinariedade da atual conjuntura, da proteção que merece ser conferida ao gestor[3] que, em contexto extremo, porventura incorra em erro simples, com bem pontuou em artigo[4] recente Floriano de Azevedo Marques Neto:

Notícias dão conta de irregularidades na aquisição, pela Administração Pública, de insumos de saúde para combater a Covid-19: superfaturamento, pagamento antecipado, equipamentos não entregues. Em condições normais, seriam irregularidades graves. Porém, o combate a uma pandemia não é normal. É preciso separar atos inusuais, mas necessários diante da urgência, de atos deliberadamente ímprobos, a serem punidos com rigor.

A excepcionalidade justificadora da referida MP também foi endereçada em sua exposição de motivos[5], que deliberadamente fez menção a uma camada adicional de proteção frente à LINDB:

5. Note-se que, apesar das recentes alterações, em 2018, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942) e da sua pronta regulamentação (Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019) representarem importantes aparatos de proteção para uma atuação responsável e independente do agente público, o estado de calamidade que se vive no momento e condições nas quais o processo decisório se desenvolve demonstram que as regras referidas são insuficientes.

6. O agente público, hoje, para salvaguardar vidas e combater os efeitos econômicos e fiscais da população brasileira se vê diante de medidas que terão impactos fiscais extraordinários para as futuras gerações, de compra de equipamentos por preços que, em situação normal, não se julgaria ideal, de flexibilizações na interpretação de regras orçamentárias que antes pareciam indiscutíveis, dentre outras. Em suma, hoje, o gestor se vê diante de vários choques negativos estruturais simultâneos, da dificuldade de previsibilidade de cenários e de situações que lhe demandam decisões contrárias a parâmetros antes conhecidos.

Essas preocupações não se dão sem razão. Nos últimos anos, a seara sancionadora observou uma matriz de responsabilização que, não raro, vislumbrava ações ou omissões pelo retrovisor, desconsiderando as peculiaridades que enredavam o ato em sim. Trata-se de análise privilegiada, que usufrui a perspectiva do todo, mas que não raro ignora o erro como resultado de uma tentativa de acerto, possuindo assim aptidão para sancionar até a boa-fé.

Como resultado da disseminação de ações de improbidade daquele jaez, tornou-se inevitável conjecturar que bons quadros podem ter sido afastados do serviço público ou que gestores, hoje, prefiram a inação ou deslocar para o Judiciário a determinação das medidas a serem adotadas. Em outras palavras, os efeitos colaterais produzidos por uma desmedida persecução sancionadora podem ter, pela carga da dose, transformado o remédio em veneno.

Por isso nossa percepção positiva da criteriologia trazida pela referida MP ao dizer, em seu artigo 2º, considerar “erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

O artigo 3º, de sua vez, aprofunda a clareza ao mencionar que na aferição do erro grosseirão serão considerados: “I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público; III – a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; IV – as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas.

A norma, a nosso ver, dialoga bem com o artigo 22 da LINDB e fornece uma boa calibragem da matriz de responsabilização em razão de atos praticados no contexto da pandemia de COVID-19, objetivando a análise do elemento subjetivo indispensável à prática de improbidade administrativa.

Argumentos foram erigidos, é verdade, pondo em dúvida a constitucionalidade da referida MP.[6] Ainda que o tema seja absolutamente incipiente, não cremos seja a norma vulneradora da Constituição.

Em primeiro lugar, porque há urgência justificadora da via da MP, estando em curso pandemia que exige diariamente medidas as mais variadas sobre as quais há crivo permanente e atento. Se toda a teleologia da disciplina é a de fixar o atual estado de coisas como parametrizador da aferição posterior da legalidade de condutas, faz todo sentido que essa fixação se dê de imediato.

Em segundo lugar, sobre o caráter aberto de determinadas locuções empregadas na MP, diga-se que LINDB e jurisprudência do STJ já tinham na culpa grave medida de aferição do elemento subjetivo, tendo a norma objetivado, à luz do atual momento, de maneira mais detalhada em que consistiria a tal gravidade. A par disso, não deixa de chamar atenção que a Lei n. 8.429/1992 possui termos amplos, amplíssimos, frequentemente estendidos para apenar, de modo que nos parece equilibrado contrapeso a rechaçar improbidade em casos em que não se evidencie má-fé: termos abertos por termos abertos, o caso concreto conferirá ao julgador a significação que devam eles merecer.

Em terceiro lugar, e por fim, não divisamos nenhuma violação ou contradição com o artigo 37, § 6º, da Constituição: o direito de regresso do Estado contra agentes públicos segue sendo regressivo e subjetivo; o que há, apenas e tão somente, é, à vista de circunstâncias excepcionais, um temperamento da identificação de culpa.

Concluindo, e respeitando os posicionamentos contrários já externados, não vislumbramos na MP 966 uma espécie de salvo-conduto[7], de blindagem[8] ou de estímulo à impunidade. O que nos parece, isto sim, é haver um nivelamento que prestigia a presunção de boa-fé, ao mesmo tempo em que não desnatura a possibilidade — e importância — de que ilícitos desejados, graves e de má-fé recebam a devida censura. Punir, sim, a malícia e a culpa grosseira; mas também preservar aquele que, de boa-fé, mira o interesse público.

 

 é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

 é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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Lewandowski Libertuci: Ainda o imposto sobre grandes fortunas

Em artigo meu publicado pela ConJur, expus entendimento de não ser apropriada a criação do imposto sobre grandes fortunas, ainda mais nos tempos atuais, em que o empobrecimento dos países resultado da propagação de Covid-19 é iminente. Comentei que a criação do referido imposto deflagaria fuga de capitais e que a tributação sobre patrimônio vigente no Brasil é expressiva, mesmo que comparada a países  ricos, como é o caso dos Estados Unidos.

O tema provocou debates, principalmente no tocante à comparação que fiz em relação à tributação sobre herança. A alíquota aplicável em São Paulo é de 4%. Não cheguei a mencionar que nos Estados Unidos é de 40%, o que poderia passar a impressão de que estava sendo tendenciosa ao omitir referida informação. Não é o caso. Mas importante esclarecer que ninguém paga alíquota, mas imposto, que como se sabe é a aplicação da alíquota sobre base de cálculo. E no que se refere aos Estados Unidos, o imposto incide sobre o que exceder a US$ 11,580 milhões.

Partindo disso, importante fazer algumas comparações. Exemplo: herança de US$ 12 milhões. A base de cálculo é de US$ 420 mil. Sobre a alíquota de 40%, chegamos a US$ 168 mil. Acontece que a alíquota efetiva nesse caso é de 1,4% (168 mil sobre 12 milhões) , quase três vezes maior do que a aplicada em São Paulo.

Muitos poderiam contra-argumentar no sentido de que fortunas expressivas obviamente são mais tributadas nos Estados Unidos do que no Brasil. Concordo. Mas aí teríamos que analisar caso a caso. Mas não podemos afastar o argumento de que 4%, sem deduções importantes, implica, sim, tributação bem expressiva e não raras vezes bastante superior ao que acontece em países ricos.

Outro ponto que merece destaque é minha afirmativa de que a instituição do imposto sobre grande fortunas implicará fuga de capitais. Reafirmo que isso efetivamente se apresentará não por uma questão econômica, mas por conta da estrutura jurídica vigente no Brasil. Explico. Implementado o imposto sobre grandes fortunas no Brasil, o residente no Brasil terá que submeter à tributação o patrimônio existente no Brasil e no exterior ante o status de contribuinte no Brasil.

Evidentemente, o não residente se submeterá à tributação apenas sobre o patrimônio localizado no Brasil. Enquanto não residente, o patrimônio do exterior não será atingido pela tributação brasileira ante as limitações tributárias aplicáveis ao não residente e em níveis mundiais. Se é assim, se o brasileiro se transferir definitivamente ao exterior e se desfizer do patrimônio aqui existente, não terá seu patrimônio atingido pela tributação da mesma forma. No contexto, será um não residente sem patrimônio no Brasil. Evidente que cada caso terá de ser analisado com suas particularidades, equivale dizer, prova de efetiva transferência oa exterior e inexistência de patrimônio no Brasil. Contudo, por hipótese, me parece que o imposto sobre grande fortunas tende sim a ser um veículo estimulador ao desfazimento de patrimônio no Brasil, o que, em tempos de empobrecimento mundial, não me parece ser estratégia sensata.

E, por último, para que duvidas não pairem em termos ideológicos, afirmo que não tenho dúvida de que o sistema tributário justo é aquele que tributa menos a produção e mais a concentração de renda. Mas essa é uma outra discussão que deve ser enfrentada no âmbito da reforma tributária. Não no contexto isolado do patrimônio. Projeções bem feitas falam que justamente porque a concentração da riqueza se encontra concentrada em universo restrito, o máximo que o imposto sobre grandes fortunas conseguiria importar em termos de arrecadação seria algo em torno de R$ 6 bilhões. Certamente, uma reforma tributária eficiente importaria em cifras bem mais atrativas e em cenário ideal sem distorções.

O debate é sempre muito bem-vindo.  Que outros argumentos surjam para que eu possa avaliar, concordar ou discordar.

Elisabeth Lewandowski Libertuci advogada em São Paulo, sócia de Lacaz Martins, Gurevich, Pereira Neto & Schoueri e conselheira do Conjur da Fiesp.