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Alessandro Leite: A procuradoria municipal na crise

Historicamente, o primeiro registro da advocacia pública no Brasil remonta ao 1º Foral de Olinda, datado de 1537, que trouxe a figura do procurador do Conselho da Villa de Olinda. Quase meio milênio depois, verifica-se que o déficit de procuradores municipais no cenário jurídico pátrio ainda é extremamente preocupante, o que não deixa de ser um grande paradoxo, tendo em vista que, apesar de sermos os primogênitos da advocacia pública brasileira, seremos, certamente, os últimos a ser instituídos na integralidade.

Indispensável pontuar nesse contexto o papel da Associação Nacional de Procuradores Municipais (ANPM), que vem há mais de duas décadas fomentando a instituição e o fortalecimento das Procuradorias Municipais no país, atendendo, desta forma, ao pórtico do artigo 132 da Carta Magna, que prevê a advocacia pública como função essencial à Justiça.

Há 17 anos, tramita no Congresso Nacional a PEC que constitucionaliza expressamente a carreira dos procuradores municipais. Aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados, atualmente a PEC encontra-se no Senado Federal, esperando pauta para votação. Nesse longo período de tempo, várias foram as tratativas e articulações no meio político. A aprovação ainda não veio, é bem verdade, mas ainda assim os avanços continuam e são inegáveis.

Em 2019, tivemos uma grande vitória no Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do RE 663696. impetrado pelos destemidos colegas da Procuradoria de Belo Horizonte. Nos autos, discutia-se o teto remuneratório dos procuradores municipais. No mérito, obtivemos a confirmação, por meio da Egrégia Corte, em sede de repercussão geral, de que estávamos insertos no seleto rol das funções essenciais à Justiça previstas no Capítulo IV, Título IV, da Constituição Federal.

Com efeito, tem a ANPM buscado a criação de procuradorias nos 5.570 municípios brasileiros. São abnegados colegas, figurando ora como delegados, ora na diretoria, ou mesmo integrando o Conselho Deliberativo através da presidência das várias associações locais, além de contar com voluntários que se espalham pelo país em busca do fortalecimento das procuradorias e das carreiras de procurador municipal.

Na Paraíba, por exemplo, avançou-se muito nos últimos dois anos com a celebração de cerca de 185 termos de ajustamento de conduta pelo Ministério Público Estadual, fato que propiciará a realização de mais de cem concursos para procurador municipal no Estado. O caso foi tão exitoso e teve tamanha repercussão que foi apresentado no último Congresso Nacional de Procuradores Municipais, realizado em Brasília, em outubro de 2019, culminando com a promessa de que a experiência seria replicada pelos colegas em outras regiões do país.

Com a decretação da Pandemia da Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde no mês de março do ano corrente, a situação jurídico- institucional dos entes federados e de seus respectivos servidores foi profundamente modificada. O advento do teletrabalho como regra, a edição quase que diária de atos normativos para disciplinar o período extraordinário, a intensa litigiosidade entre os entes… Além disso, outros grandes debates emergiram. Costuma-se dizer que o Direito está sendo literalmente reescrito nos dias atuais.

Nesse passo, entre as discussões acima mencionadas, destaca-se no contexto associativo da ANPM a que trata da viabilidade ou não da realização das eleições municipais neste ano. Há várias correntes de pensamento sobre o tema, bem como PECs tramitando no Congresso Nacional para tratar do assunto, dada a relevância e urgência da matéria.

Desta feita, em apertada síntese, três possibilidades surgiram:

I ) Realização do pleito em outubro, como normalmente ocorre;

II) Adiamento do pleito para dezembro;

III) Cancelamento do pleito e, consequentemente, a unificação dos mandatos e das eleições para todos os cargos eletivos em 2022.

Tem ganhado corpo no mundo político/jurídico e tem sido defendida, inclusive, pelo presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, a tese estabelecendo que as eleições municipais devem ser realizadas neste ano, sendo adiadas para o mês de dezembro. Segundo essa possibilidade, teríamos o chamado primeiro turno no primeiro domingo de dezembro e o segundo no terceiro domingo, às vésperas do Natal. No tocante aos novos mandatos, não teríamos mudanças, eles iniciariam em 1º janeiro de 2021.

Ressalte-se, por oportuno, que nos municípios brasileiros temos eleições bastante acirradas, com envolvimento direto dos munícipes nos pleitos. É preciso lembrar ao leitor, também, o caráter extremamente heterogêneo dos municípios brasileiros. Enquanto temos de um lado cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, com alguns milhões de habitantes, temos também Araguainha, Borá e Serra da Saudade, que não completam sequer o primeiro milhar de habitantes, de acordo com os dados oficiais.

É prática comum nos municípios brasileiros a não efetivação da chamada transição democrática entre antecessores e sucessores. Não obstante o aperfeiçoamento e o fortalecimento dos órgãos de controle, bem como das recomendações dos Tribunais de Contas e do monitoramento dos Ministérios Públicos Estaduais, o que se vê é a sonegação desenfreada de informações, a exclusão de dados em sistemas, o sumiço de materiais e equipamentos, entre outras atitudes capazes de inviabilizar a futura gestão.

Isso num cenário em que os “novos gestores” tinham 60 ou 80 dias para se inteirar da realidade que encontrariam no primeiro dia de mandato. Imagine em um cenário de 10 dias de transição, com as festividades de fim de ano entre eles.

Nessa difícil, mas provável, conjuntura que se avizinha, emerge a importância cada vez maior da figura do procurador municipal de carreira, nomeado após concurso público de provas e títulos. Detentor de parte da memória jurídica do município, ele certamente facilitará os primeiros dias da gestão, propiciando que esta possa ter conhecimento da realidade “intra muros”, permitindo o compartilhamento de informações e auxiliando o novo gestor nos primeiros passos do mandato.

É pelos procuradores municipais que o novo gestor saberá quais os programas estão sendo executados e não poderão sofrer interrupções, mormente em razão da sucessão do gestor. Além disso, a PGM vai instruir, juridicamente, os primeiros atos do governante, como elaboração de leis decretos, portarias, etc. Importante lembrar que o município poderá estar sujeito a alguma obrigação imposta pelo Judiciário e, neste caso, somente o procurador poderá informar como o novo prefeito deverá proceder diante de uma sentença judicial.

O escolhido nas eleições não pode ter ciência de todos esses fatores apenas depois do início do seu mandado. Esse conhecimento deve acontecer antes da sua posse, mesmo porque alguma informação poderá e deverá influir nos primeiros atos da nova gestão. Nesse ponto, ressalta-se a importância de uma transição de mandatários clara, amistosa e em sintonia com os melhores interesses dos administrados, o que resta prejudicado com a sensível diminuição do período desta passagem, mas o que se tornaria impraticável sem a iluminação jurídica emanada dos essenciais procuradores municipais, os quais preexistem a qualquer governante e permanecem na Administração após o término do mandato.

Não se sugere no presente que o procurador seja a panaceia para os tempos de tormenta a serem enfrentados pelo gestor, mas certamente dividir o fardo com uma procuradoria instituída e qualificada facilitará a travessia.

É tempo de fortalecer as instituições, elas são o fundamento do Estado democrático de Direito e esse é o porto seguro para efetivação de valores fundamentais previstos na Constituição Cidadã.

 é procurador do município de Campina Grande (PB) e diretor da ANPM.

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Green new deal, mudanças climáticas e a Covid-19

Mais de 40 mil pessoas perderam a vida em decorrência da Covid-19 no Brasil, de acordo com um consórcio de empresas jornalísticas, até a última quinta-feira, com uma preocupante taxa de 19 mortos a cada 100 mil habitantes, diga-se, em franca aceleração. No mesmo dia (11/06), em apenas 24 horas, 1.272 pessoas perderam à vida. Outrossim, o Brasil ocupa a terceira posição no ranking de óbitos pela Covid-19 no mundo, ficando apenas atrás dos Estados Unidos e do Reino Unido, onde a pandemia, é bom que se recorde, iniciou bem antes.[1]Em poucas horas, o Brasil vai ultrapassar o Reino Unido e, em poucas semanas, muito provavelmente, os Estados Unidos, neste mórbido ranking da incúria governamental e do descaso social.

De outro lado, dados do programa Global ForestWatch demonstram que a perda total mundial de florestas tropicais primárias no ano passado — 3,8 milhões de hectares, uma área quase do tamanho da Suíça — foi cerca de 3% maior que 2018 e a terceira maior desde 2002. O Brasil, segundo o levantamento, é o responsável por mais de um terço do desmatamento global e o líder absoluto no ranking mundial dos países desmatadores, seguido pela República Democrática do Congo, Indonésia e a nossa vizinha Bolívia.[2]

O governo brasileiro, outrossim, não pode ignorar o relatório sobre o clima da ONU, Global Warmingof 1,5 ºC, que demonstra que o mundo já superou a barreira de 1 grau Celsius de aquecimento em relação aos níveis pré-industriais, e que seres humanos e não humanos estão sofrendo os efeitos negativos das mudanças climáticas.[3]

Não existem evidências diretas de que a mudança climática esteja influenciando a disseminação da Covid-19, mas esta, no mínimo,altera a forma de relacionamento do homem com os animais não-humanos e isso é relevante para o aumento do risco de infecções.

Com o aquecimento global os animais terrestres e marinhos buscam os pólos para fugir das altas temperaturas. Este fenômeno faz com que os animais invadam outros ecossistemas como espécies invasoras, entrem em contato direto com a população de animais nativos e assim espalhem patógenos para outros hospedeiros. 

 As causas das mudanças climáticas, sim, aumentam o risco de pandemias. É o caso do desmatamento, que ocorre principalmente para fins agropecuários. Esta é a a maior causa de perda do habitat natural na atualidade, o que igualmente gera migrações dos animais e propicia o contato efetivo e potencial com outros animais não-humanos e humanos causando,também, o compartilhamento de germes.[4]

Neste cenário, existem vários aspectos positivos de uma boa governança climática relacionados à melhora da saúde humana, e a redução do risco de surgimento de doenças infecciosas certamente é um deles. Rachel Nethery, Xiauo Wu, Francesca Dominici e outros pesquisadores da Universidade de Harvard, descobriram que pessoas que moram em locais com má qualidade do ar têm maior probabilidade de morrer da Covid-19, o que pode ser agravado por outros fatores como condições médicas pré-existentes, status socioeconômico e a falta de acesso aos cuidados básicos de saúde. Essa descoberta confirma pesquisas, já nem tão novas, que demonstram que pessoas expostas a maior poluição do ar são mais suscetíveis ao agravamento de infecções respiratórias do que aquelas que respiram o ar mais limpo.[5]

Em locais onde a poluição do ar é um problema de rotina, os que mais sofrem são os sem-teto e aqueles cuja saúde já está comprometida. Dentre os sem-teto, no caso brasileiro, há um número desproporcionalmente maior de pardos e negros infectados e mortos pela Covid-19.[6] Esses indivíduos precisam de maior apoio governamental, para além das cotas,em especial em tempos de pandemia, pois possuem menor renda per capita em média do que os brancos.

Não se sabe, embora existam muitas especulações, em especial nas redes sociais, se o clima mais quente pode retardar a propagação do coronavírus. O que importa, em razão disto,é desacelerar a propagação da doença, e isso significa seguir rigorosamente as orientações, precautórias e preventivas, da Organização Mundial de Saúde, em especial, as recomendações de distanciamento social, da higienização das mãos, do correto uso de máscaras, entre outras ações, enquanto não for descoberta uma vacina ou um antirretroviral de amplo espectro eficiente contra esta doença.[7]

O aquecimento global, igualmente, criou condições mais favoráveis à propagação de algumas doenças infecciosas, incluindo a doença de Lyme, doenças transmitidas pela água, como a Vibrioparahaemolyticus, que causa vômitos e diarreia, e doenças transmitidas por mosquitos, como a malária e a dengue. Os riscos futuros não são fáceis de prever, mas as mudanças climáticas geram o aparecimento de patógenos, com o aumento das temperaturas e das precipitações.[8] Para ajudar a limitar o risco de doenças infecciosas, mister reduzir as emissões de gases de efeito estufa e limitar o aquecimento global a 1,5 graus, tendo como marco inicial a Era pré-industrial, não apenas no ano de 2100, mas já nos próximos anos.[9]

Neste sentido o Relatório Especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), sobre a meta de 1,5 graus, concluiu que a meta de dois graus existente — prevista no Acordo de Paris — teria consequências catastróficas e irreversíveis, ainda se atingida até 2100. Necessária é maior ambição em termos de governança climática. As catástrofes ambientais (e biológicas) devem aumentar até 2050 — inclusive com o surgimento de novas pandemias e o retorno de outras já conhecidas — se a estabilização das temperaturas não ocorrer nos próximos 11 anos. De acordo com o relatório, limitar o aquecimento global em 1,5 graus requer uma mudança radical nas ações dos entes privados e nas políticas públicas governamentais. O último relatório da Agência Internacional de Energia afirma que as emissões mundiais de CO2, estão subindo e não começaram a diminuir. Como resultado, inclusive o alcance da meta de dois graus no ano de 2100, está começando a sair do alcance da comunidade internacional. Com o aquecimento global já ultrapassando 1º C, desde a era pré-industrial, estamos caminhando, a passos largos, para o aquecimento de três ou até quatro graus no ano de 2100 o que causará um grande colapso ambiental, social, econômico e político.

No século 20, as atividades humanas avançaram com espetacular velocidade causando imensos impactos ambientais e um fenômeno de extinção de espécies em ritmo acelerado, comparável apenas com o ocorrido há 65 milhões de anos, quando os dinossauros, e metade da vida na Terra, foram extintos.

A diminuição da vida no Planeta, deve-se à perda de habitat, fazendo com que os animais não humanos invadam cidades em busca de alimento e de espaço. E a urbe, por seu turno, invade florestas, mangues e vegetações protegidas em nome do crescimento econômico promovendo um desenvolvimento urbano insustentável com o potencial de exterminar espécies de fauna e flora com uma voracidade impiedosa e nunca antes vista.A mudança climática causa a perda das espécies e afeta o habitat destas tendo como resultado a eclosão de novas doenças. As ações antrópicas causam um efeito rebote, pois ao mesmo tempo que afetam a flora e a fauna, degradam e colocam em risco a qualidade da própria vida humana.

Como solução a este problema, investimentos públicos e privados podem evitar outro surto pandêmico ao promover o combate as emissões de gases de efeito estufa, ao desmatamento e, especialmente, a proteção da biodiversidade global, que pode perder um milhão de espécies já nos próximos anos.[10] O Estado e a iniciativa privada devem apoiar a ciência, investir mais em pesquisas e, em especial, na construção de respostas efetivas e imediatas para o combate as pandemias. Visões pré-iluministas, negacionistas e outras utilitárias, não são a melhor resposta, e não trarão bons resultados no médio e no longo prazo.

As abordagens precautórias e preventivas são de longe as melhores para proteger o meio ambiente, à saúde pública e a própria economia dentro de uma perspectiva intergeracional. Quando a pandemia da Covid-19 chegar ao fim, haverá uma oportunidade única para reconstruir a economia nacional, abandonando-se o ultrapassado conceito de austeridade, cunhado pelos Chicago Boys, que naufragou na Era Reagan e Thatcher. Uma alternativa seria a adoção de um Green New Deal, semelhante ao proposto em forma de Resolução no Congresso Norte-Americano[11]e é abordado em sede de pesquisas científicas, inclusive dentro do direito.[12]Fugindo do nefasto onesizefitsall[13], cego para fatores locais, poderia ser elaborado, com amplo apoio governamental, no âmbito das grandes universidades públicas e privadas brasileiras, um Green New Deal dos Trópicos,que sirva ao país. Este deveria prever obrigatoriamente: a taxação sobre o carbono; a criação de um robusto mercado do cap-and-trade; o incentivo fiscal para as energias renováveis (eólica, solar, marítima, biomassa e, talvez, nuclear); a adoção obrigatória dos veículos elétricos; a obrigatoriedade do controle de sustentabilidade em obras públicas e privadas e na produção e comercialização de eletrodomésticos e dispositivos movidos por energia elétrica;o desenvolvimento da geoengenharia para mitigar os efeitos do aquecimento global; o estímulo à criação de empregos verdes (inclusive com programas de primeiro emprego); o combate mais rigoroso as queimadas e ao desmatamento; a adoção de escolas públicas de turno integral gratuitas, e privadas subsidiadas com a adoção de vauchers, desde a pré-escola até a Universidade; a ampliação e o fortalecimento do SUS; o aumento das garantias para a elevação da confiança no sistema de previdência, com uma maior regulação pública e social da previdência pública e, em especial, das empresas de previdência privada; o aumento do controle púbico e social sobre o sistema bancário e securitário; a elevação dos subsídios públicos para a pesquisa científica focada em novas tecnologias; a ampliação dos subsídios para universidades públicas e privadas e, em especial, a tributação das grandes fortunas.

Em suma, o nosso Estado Socioambiental de Direito, terá a oportunidade de implementar um Green New Deal à brasileira, e poderá lidar melhor,não apenas com crises climáticas e pandêmicas mas, especialmente, sociais e econômicas. O Brasil, de dimensões continentais e riquíssimo, em termos de diversidade e de bens naturais, possui uma Constituição e um arcabouço infraconstitucional progressistas e aptos a fornecer a moldura jurídica para este novo cenário que exige a concretização do princípio constitucional do desenvolvimento sustentável.

 é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar na Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law e professor visitante na Universität Heidelberg- Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht. Foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (2010-2012) e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (2008-2010) e representante da magistratura federal no Conselho da Justiça Federal (2010-2012) e no Conselho do Prêmio Innovare (2010-2012). Autor de diversos artigos jurídicos no Brasil e no exterior e de livros, entre os quais, “Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças
Climáticas: um direito fundamental”.

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Forças Armadas servem à nação, não a forças políticas, diz Gilmar

“As Forças Armadas são instituições da Nação, e não de uma força política. A politização das Forças Armadas será extremamente negativa para elas e para todo o equilíbrio do sistema político.”

Essa é a opinião do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, manifestada em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo publicada neste sábado (6/6). Ele comentava a predominância de quadros militares compondo ministérios e secretarias no governo do presidente Jair Bolsonaro.

Apesar do recrudescimento preocupante da radicalização política, o ministro mostrou otimismo com o desenlace dos conflitos. Para ele, a crise dos últimos meses despertou as “forças civis” com uma mensagem clara: “Vamos parar de brincar de ditadura.”

“Me parece que as pessoas estão entendendo que isso não é o chamado passeio de um soldado e um cabo. É preciso que se observe que o Brasil é uma nação que tem um apreço pela democracia e que é preciso encerrar essas bravatas, essas ameaças, essa tentativa de coerção dos Poderes a partir de alguns malfeitores das ruas, que se albergaram aí em alguns partidos. Tenho a percepção que vamos superar essa crise de forma muito civilizada”, afirmou Gilmar.

Na entrevista, o ministro também lamentou o tom da reunião ministerial de 22 de abril, publicizada no âmbito do inquérito 4.831, relatado por Celso de Mello. Gilmar disse ter visto a reunião com tristeza, e que viu com bons olhos a decisão do presidente de não fazer mais reuniões. “Se for para replicar esse tipo de reunião, de fato, se está realmente a jogar pérolas a porcos, não faz sentido algum. Foram muitos impropérios como esse do ministro da Educação, que, diga-se de passagem, não deu uma palavra sobre educação. Ele faz apenas considerações da crise política e da vontade que ele tinha de prender os 11 “vagabundos” que eram ministros do Supremo, e não houve nenhum reparo de nenhum dos membros.”

Quando questionado sobre a comparação que Celso de Mello fez do Brasil à Alemanha nazista, Gilmar disse entender a reflexão do decano. “O que o ministro Celso quer dizer é que essa escalada, se houver o silêncio e a inércia das pessoas que defendem a democracia, daqui a pouco pode ser tarde. Foi isso que ele quis nos advertir, lembrando o que ocorreu inclusive na República de Weimar, chamando atenção para o fato de que, em princípio, Hitler chega ao poder pela via normal, mas depois obtém poderes excepcionais e passa a utilizá-los. Não vou imputar ao presidente propósitos ditatoriais, mas é claro que no seu entorno há gente que está a reverberar o fechamento do Congresso, do STF, uso das Forças Armadas. São todos propósitos inconstitucionais.”

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Tânia Reckziegel: As fake news no Judiciário e na sociedade

Opinião

O impacto das fake news no Poder Judiciário e na sociedade

Por 

A crescente desinformação e a propagação de falsas notícias em mídias e redes sociais vêm acarretando à sociedade uma alienação preocupante. A conscientização da população e a educação da sociedade acerca dos prejuízos trazidos pela desinformação e a propagação de notícias falsas motivou o Conselho Nacional de Justiça a ampliar a mobilização para combater essas práticas, buscando garantir a integridade da sociedade e a credibilidade das instituições jurídicas a partir do enfrentamento das distorções das decisões judiciais e a duplicação dessas deturpações.

As práticas de desinformação hoje constituem atividade cada vez mais organizada, sofisticada, e que vêm contando com mais recursos, tanto financeiros como tecnológicos. O resultado é o aumento do desafio para quem queira combater as fake news, que não só aumentam em termos de quantidade, mas em novos formatos que vêm sendo utilizados.

É possível perceber uma preocupação na população como um todo relativamente às notícias que se espalham. Nos grupos de aplicativos de comunicação, já se denota uma maior conscientização em analisar a veracidade de determinado relato para seu compartilhamento. Com efeito, essa consciência coletiva que se pretende alcançar acerca da busca pela informação de qualidade e verdadeira deve, sobretudo, abarcar os magistrados. Cabe ao juiz, portanto, como autoridade representativa da Justiça, buscar o aclaramento de questões distorcidas, fortalecendo a credibilidade da instituição judiciária.

É necessário, tanto para a população quanto para o magistrado, desenvolver um espírito crítico em relação a toda e qualquer informação ou conteúdo que se receba, analisando o contexto e verificando se o texto apresenta qualidade de redação, quem é o autor, se foi reproduzido na imprensa tradicional, enfim, o que chamo de checagem da notícia.

Os avanços tecnológicos se dão numa velocidade absurdamente maior do que a capacidade de adequação do Poder Judiciário para coibir os abusos. Como a desinformação é multissetorial, transversal e, pois, afeta todos os setores da sociedade, enfrentá-la é responsabilidade de todos. Todos os segmentos, inclusive o dos meios de comunicação, devem criar mecanismos que, aliados às normas jurídico-administrativas, sejam mais eficientes no combate a esse mal.

O CNJ e o STF, principalmente, têm se debruçado incessantemente sobre esse problema por meio da campanha #FakeNewsNão e do Painel de Checagem de Fake News, que traduzem exemplos das principais medidas hoje disponíveis a quem se propõe a enfrentar a desinformação, qual seja, a educação midiática da população, para conscientizá-la sobre a existência do problema e informá-la sobre maneiras de não se tornar meio de propagação de desinformação e de não ser prejudicada por ela.

 é desembargadora do TRT-4, conselheira do CNJ, presidente da Comissão Permanente de Comunicação do Poder Judiciário do CNJ, mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela UNISC e doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidad del Museo Social, UMSA, Argentina.

Revista Consultor Jurídico, 19 de maio de 2020, 13h06

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Conselho da Justiça Federal mantém investimentos no eproc

O Conselho da Justiça Federal decidiu nesta segunda-feira (18/5) manter a continuidade do investimento no sistema eproc. A proposta que prevê a adoção de um processo eletrônico nacional e unificado foi modificada, possibilitando o desenvolvimento do eproc elaborado pela Justiça Federal da 4ª Região.

CJF alterou resolução e o artigo 17 da proposta, que proibia investimentos nos sistemas já existentes, não afetará sistema

No projeto, havia um dispositivo que proibia investimentos nos sistemas já existentes, o que desagradou a comunidade jurídica. Na prática, a medida impossibilitaria eventuais melhorias no eproc, o que o tornará obsoleto com o passar do tempo. A limitação está expressa no artigo 17 da minuta de proposta, o dispositivo mais preocupante, segundo juízes, procuradores e advogados que utilizam o sistema. Agora, esse artigo não abrange mais o eproc.

Juízes federais das seções judiciárias do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, além de desembargadores federais do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, emitiram nota para mostrar descontentamento com a proposta de adoção de um processo eletrônico nacional e unificado. 

Além disso, um ofício conjunto das seccionais da OAB no sul demonstrou as preocupações da advocacia e pediu a manutenção do sistema.

“Essa foi uma ação conjunta das três seccionais, em função de que a advocacia considera o eproc um programa adequado, com boa qualidade. Da mesma forma se manifestam a magistratura e o Ministério Público”, explicou o presidente da OAB Paraná, Cássio Telles.

O presidente da seccional catarinense da OAB, Rafael Horn, afirmou que “o eproc é um dos sistemas que garante mais rapidez na análise das ações. Regredir esse avanço acarretaria em enormes prejuízos para o principal cliente do Judiciário: o cidadão jurisdicionado”.

Por sua vez, o presidente da Ordem gaúcha, Ricardo Breier, também comemorou a decisão. “A partir da adoção do sistema eproc, houve um avanço significativo na qualidade do trabalho dos advogados e das advogadas. Nos empenhamos, inclusive em adotar o sistema também na Justiça Estadual, portanto a manutenção do eproc e a continuidade dos investimentos, para aprimoramentos futuros na plataforma, são uma conquista muito importante, não só para a advocacia, mas também para o cidadão.”

Agilidade, segurança e baixo custo

Com mais de 10 milhões de processos distribuídos, o eproc foi desenvolvido, de forma colaborativa e sem a contratação de fábricas de software, pelas equipes de tecnologia da informação que atuam na 4ª Região. A ferramenta utiliza programas-fonte de código aberto, tanto na linguagem do software como no banco de dados, o que resulta em economia de recursos públicos, além de produzir um sistema confiável e com altíssimo nível de segurança.

eproc está integrado com órgãos que fazem parte do sistema de Justiça, cuja atuação nos processos ocorre com maior simplicidade e de forma mais rápida em razão dessa integração. Utilizam o sistema o INSS, a Caixa Econômica Federal, a Advocacia-Geral da União, o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e a Defensoria Pública da União.

O sistema também “conversa” com os sistemas utilizados pelos tribunais estaduais do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, de modo que os recursos interpostos contra sentenças e despachos de juízes de direito, em ações previdenciárias delegadas, passaram a “subir” ao TRF-4 e a retornar à origem automaticamente.

Ainda, o sistema conta com funcionalidades de inteligência artificial e automações que permitem a classificação de documentos, assuntos e temas. Também faz o envio de recursos a tribunais superiores, a contagem de prazos e a emissão de intimações de forma automatizada, reduzindo a alocação de recursos humanos em atividades eminentemente burocráticas. Com informações da Assessoria de Imprensa da OAB-RS, OAB-SC e OAB-PR.

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Medida Provisória 966 e (in)segurança jurídica

O momento de pandemia da Covid-19 tem criado inúmeras dificuldades para todas as pessoas. Para os tomadores de decisão, públicos e privados, os desafios são ainda maiores. Na administração pública, há uma responsabilidade especial do gestor público, nos âmbitos federal, estadual e municipal, a quem compete dar as diretrizes de saúde pública à sociedade nesse momento sem precedentes. São muitas as dúvidas que surgem, principalmente quanto ao dilema de manter os estabelecimentos abertos ou fechados.

Nesse contexto preocupante e caótico – marcado por posicionamentos diametralmente opostos e conflitantes por parte de órgãos governamentais diversos —, as linhas que dividem o “certo” e o “errado” são tênues e ondulantes. Ainda mais quando, a cada novo dia, novos estudos quanto ao vírus e sua transmissão impõem a revisão estratégica de que se deve fazer.

Devemos considerar a sequência vertiginosa de leis e atos administrativos que tratam de medidas aplicáveis a setores públicos, estabelecimentos comerciais e à população em geral. Para evitar a aglomeração social, criamos verdadeiro aglomerado de leis. A dificuldade em compatibilizar todo esse novo regime jurídico pandêmico afeta todos, inclusive os agentes públicos responsáveis por regular o controle da transmissão em âmbito nacional, regional e local.

No âmbito federal, fora editada como primeira resposta à Covid-19 a Lei 13.979/2020 — já alterada e complementada por diversas medidas provisórias — que prevê (dentre várias outras providências) a possibilidade de implementação de medidas como isolamento e quarentena. Posteriormente, foi estabelecida a Portaria Interministerial 5/2020, prevendo que a inobservância de eventual determinação de quarentena configura crime (artigo 268 do Código Penal). Mas as normas gerais nacionais em matéria de saúde pública não esgotam as disposições normativas[1]. No âmbito regional, cada estado detém competência legislativa para determinar suas próprias regras, e o mesmo acontece em âmbito local com a legislação municipal.

Apenas para ilustrar, tomando-se por exemplo o estado do Paraná, onde lecionamos e militamos na advocacia, já foram editadas diversas normas, criando um regime jurídico em constante mutação, com diversas leis, decretos, resoluções e portarias[2] que ora restringem ora afrouxam as medidas de distanciamento social.

Quem, sem investir considerável tempo e estudo atento e constante, com auxílio jurídico-técnico, poderá dizer que conhece seguramente o teor das regras aplicáveis aos particulares e à iniciativa privada no combate à pandemia da Covid-19? Sequer os governos federal, estaduais e municipais estão em perfeita sintonia com relação às medidas que adotam dentro de suas esferas de competência. Exemplo disto foi o Decreto 10.344/2020, em que a Presidência da República inclui dentre os serviços considerados essenciais[3] as academias, barbearias e salões de beleza. Apesar de se tratar de norma federal, a disposição não foi seguida por muitos estados. Parece desarrazoado exigir que o particular, em um dado momento, tenha domínio completo sobre esse apanhado vertiginoso de leis, decretos e resoluções.

O cenário caótico de posicionamentos conflitantes por esferas diversas do Poder Público não traz segurança ao particular. Se, de um lado, a política do governo federal aparenta ser de maior flexibilidade nas medidas de isolamento e contenção, de outro, muitos estados e municípios adotam medidas mais rigorosas. Quando há publicidade de medidas em um ou outro sentido na mídia e nas redes, sempre há a dúvida de que fazer, principalmente do lado do particular.

As medidas restritivas costumam vir acompanhadas de disposição estabelecendo que o descumprimento das normas de controle da pandemia acarretará responsabilidade penal, nos termos da Portaria Interministerial 5, para o fim de configurar o crime de infração de medida sanitária preventiva[4]. Há claro uso do Direito Penal como “incentivo” para que as determinações da saúde pública regional ou local sejam cumpridas.

Sob o ponto de vista dogmático, não pode haver crime pelo particular ou gestor público sem que lhe seja imputada a infração a alguma determinação poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, disposta em lei.[5] No caso, a legislação federal nada impôs quanto à contenção da Covid-19, apenas estabeleceu regras gerais.

Apesar disto, parece haver uma preocupação com a responsabilidade de gestores públicos, principalmente quando adotarem medidas de maior flexibilidade quanto ao distanciamento/isolamento social. Poderá haver responsabilidade civil, administrativa ou até criminal caso uma pessoa venha a adoecer ou morrer como produto das decisões tomadas?

Nesse sentido, a Medida Provisória 966/2020 parece buscar limitar ao máximo a responsabilização de agentes públicos, restringindo as hipóteses de responsabilidade civil ou administrativa aos casos de dolo ou culpa grave. É certo que no direito penal não cabe responsabilidade objetiva. Seria possível imputar a prática culposa[6] dos crimes de lesão corporal (artigo 129, parágrafo 6º, do Código Penal) ou homicídio (artigo 121, parágrafo 3º, do Código Penal) caso houvesse demonstração de nexo de causalidade[7] entre a ação ou omissão do gestor público e o contágio.

Ainda que a MP 966 se aplique somente às esferas civil e administrativa — não poderia, por vedação constitucional expressa (artigo 62, parágrafo 1º, I, “b”, da Constituição) dispor sobre matéria penal —, há uma importante chave interpretativa para o direito penal. O objetivo parece ser reduzir a responsabilidade dos gestores públicos nas esferas civil e administrativa. Tratando-se o sistema penal de ultima ratio para a proteção de bens jurídicos[8], seria um contrassenso permitir que a responsabilidade fosse limitada à demonstração de culpa grave (“erro grosseiro” – artigo 3º da MP 966) apenas para instâncias de controle social de menor gravidade, permitindo ampla responsabilização culposa no direito penal. O Direito Penal admite analogia in bonam partem que aproveitaria ao imputado.

O que preocupa na MP 966, contudo, não é a sua má técnica jurídica[9]. Ainda que concordemos com a necessidade de conter o controle social exercido pela repressão penal e punição, a medida apenas contribui para o pandemônio regulatório, pois estabelece um princípio de irresponsabilidade jurídica. A mensagem que pode ser captada pelo gestor público é a de que o afrouxamento das medidas de contenção não acarretará responsabilidade (nem mesmo criminal), independentemente de isto estar ou não no melhor interesse da saúde pública. É preciso salvaguardar os agentes públicos de indevida responsabilidade jurídica. O pêndulo, contudo, parece ter balançado para outro extremo, que não trará benéfico a ninguém.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[1] O STF reconheceu a competência concorrente de estados, DF, municípios e União no combate à Covid-19 no julgamento da ADI n.º 6341.

[2] (i) Decreto n.º 4.230, de 16 de março de 2020, que implementou medidas de enfrentamento à pandemia no âmbito do Estado do Paraná; (ii) Resolução n.º 338, de 20 de março de 2020, da Secretaria da Saúde do Estado do Paraná, que regulamentou o decreto anteriormente mencionado; (iii) Decreto n.º 4.301, de 19 de março de 2020, que alterou o Decreto n.º 4.230; (iv) Decreto Estadual n.º 4.317, de 21 de março de 2020, que dispôs sobre medidas de enfrentamento à pandemia por parte da iniciativa privada no âmbito estadual; e (v) Decreto n.º 4.545, de 27 de abril de 2020, que implementou alterações ao Decreto n.º 4.317.

[3] Importante ressaltar que este já é o terceiro decreto presidencial que alterou a regulamentação da Lei n.º 13.979/2020, para expandir o número de serviços considerados “essenciais”.

[4] “Art. 268. Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. Pena: 1 mês a 1 ano, e multa”

[5] No mesmo sentido, MONTENEGRO, Lucas; VIANA, Eduardo. Coronavírus: um diagnóstico jurídico-penal, JOTA. 23 mar. 2020 (https://bit.ly/3bT8N0j); LEITE, Alaor; GRECO, Luís. Direito Penal, saúde pública e epidemia, JOTA. 15 abr. 2020 (https://bit.ly/2Yj51JL).

[6] Poder-se-ia falar também em dolo eventual, o que demandaria estudo mais aprofundado.

[7] A discussão quanto à imputação objetiva em matéria penal é complexa e não cabe no presente artigo. Recomenda-se as seguintes leituras: GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4.ed. São Paulo: RT, 2014; MENDES, Paulo de Sousa. Causalidade complexa e prova penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.

[8] SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! Sobre os limites invioláveis do Direito Penal em um Estado de Direito liberal. Trad. Luís Greco. RBCCrim 53/9 (2005).

[9] Ventila-se, inclusive por ministros do STF, a inconstitucionalidade da medida provisória, por inviabilizar a responsabilidade de agentes públicos.

 é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutor em Direito pela UFPR e master of laws pela Cornell Law School, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, secretário-geral do Instituto dos Advogados do Paraná e sócio-fundador do escritório Lucchesi Advocacia.

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Balbi Cerviño: Avanços regulatórios sobre criptomoedas

Entre os temas discutidos em anos recentes relacionadas à tributação de novas tecnologias, encontram-se as criptomoedas, seleto grupo de moedas digitais, entre outros ativos, capazes de proteger os próprios dados por meio da criptografia. O uso desse instrumento, que inclui bitcoins e tolkiens, sofre uma preocupante necessidade de definição de sua natureza jurídica em território nacional, ao mesmo tempo que seu uso se expande no Brasil.

Atualmente, há mais de um milhão de brasileiros registrados para investir em criptoativos, e estima-se que as transações nacionais foram superiores a R$ 5 bilhões durante o primeiro semestre de 2019. Ainda assim, é necessário aumentar a proteção de seus usuários contra fraudes e roubos de informações privilegiadas, que cresceram em 2019 ao alcançar 4,52 bilhões de dólares perdidos, em um aumento de 160% em relação ao ano anterior [1].

Ao final de 2018, sentiu-se que alguns passos foram dados nessa direção. Acórdão do Superior tribunal de Justiça [2] versou sobre a possibilidade de criptomoedas serem consideradas valores mobiliários, levando o julgamento dos delitos a elas relacionadas à competência da Justiça Federal. Após analisar a posição da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que em seu relatório semestral do segundo semestre de 2017 excluiu de sua própria esfera de competência reguladora tais ativos, o ministro relator Sebastião Reis Júnior determinou não haver dispositivo no Regulamento do Banco Central sobre tais moedas virtuais, que não se confundem com as moedas eletrônicas já regulamentadas pela Lei n° 12.865/2013. Portanto, não é possível tratá-las como valores mobiliários, qualificando tais crimes como comuns e cabíveis à Justiça Estadual.

Em 5 de março deste ano, o ministro flexibilizou seu entendimento anterior sobre as criptomoedas ao indeferir um habeas corpus [3]. Em uma situação semelhante, mas não análoga à sua decisão anterior, 18 réus foram denunciados por diversos crimes financeiros, como  evasão de divisas e gestão fraudulenta. Uma das condutas a eles atribuídas, havendo denúncia formalizada perante a Justiça Federal, foi a do oferecimento de contrato de investimento coletivo, e sem registro prévio na Comissão de Valores Mobiliários, atrelado a especulação de criptomoedas.

O ministro denegou o pedido de HC em virtude da tipificação do ilícito, prevista na Lei n° 7.492/1986. O artigo 26 da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro delimita a competência da Justiça Federal, o que impede um julgamento análogo ao do conflito de competência, no qual não havia uma denúncia formalizada. Além desse dado, o ministro alegou deliberação da CVM tratando contratos coletivos vinculados a negociação de criptoativos como valores mobiliários [4]. Portanto, é possível que operações relacionadas a criptomoedas tenham natureza mobiliária, em determinadas circunstancias definidas pela CVM.

“(…) Vêm oferecendo, na página da rede mundial de computadores https://www.btc-banco.com, oportunidade de investimento cuja remuneração estaria atrelada à negociação de criptoativos por equipes de profissionais, utilizando-se de apelo ao público para celebração de contratos que, da forma como vêm sendo ofertados, enquadram-se no conceito legal de valor mobiliário”.

Regulação perante a Receita Federal do Brasil

Entretanto, a primeira regulação brasileira relativa s criptomoedas surgiu somente em 1º de agosto de 2019, com a necessidade de se reportar ao governo, mediante a Instrução Normativa n° 1.888 da Receita Federal, todas as transações ligadas a criptomoedas ocorridas mês anterior. A obrigação atual independe do uso de corretoras, mas, segundo especialistas, não caracteriza-se como uma nova operação tributação tributária [5]. De fato, a INRF n° 1.888 refere-se a termos tributários apenas para restringir a obrigação de prestar informações sobre seus criptoativos destinadas às pessoas jurídicas fornecedoras de criptoativos (exchanges) “residentes e domiciliadas no Brasil”. A opção pela forma de declarar o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) também altera o valor da multa imposta sobre a exchange que falhar em informar suas transações, como se denota no seguinte trecho:

“Artigo 10  A pessoa física ou jurídica que deixar de prestar as informações a que estiver obrigada, nos termos do artigo 6º, ou que prestá-las fora dos prazos fixados no artigo 8º, (…) ficará sujeita às seguintes multas, conforme o caso:

I pela prestação extemporânea:

a) R$ 500,00 (quinhentos reais) por mês ou fração de mês, se o declarante (…) na última declaração apresentada tenha apurado o Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) com base no lucro presumido.”

Ou seja, há referncias indiretas ao Imposto de Renda préexistente, mas não são listadas as características referentes a um novo imposto, como fato gerador, alíquota e base de cálculo.

Outro avanço recente é que, a partir do mês atual, exchanges que circulam criptomoedas, no papel de corretoras, contarão com CNAE Classificação Nacional de Atividades Econômicas) próprio, junto ao IBGE. Tal ato, que ocorrerá por meio da atualização do sistema do próprio IBGE, atendendo a pedido do Conselho Nacional de Justiça, (CNJ) constitui mais um passo para a formalização das trocas de criptomoedas efetuadas por brasileiros. O código destinado a elas terá o número de 6619-3/99 (corretagem e custódia de criptoativos) [6].

O tema da natureza jurídica das criptomoedas permanece em situação de incerteza no Brasil, mas no último ano já começaram a surgir indícios de que, em breve, uma definição concreta, favorável à regulação pela CVM e pela Receita Federal, poderá vir a surgir.

 


[2] Conflito de Competência 161.123/SP (2018/0248430-4), j. 28/11/2018, DJe 5/12/2018.

[3] Habeas Corpus nº 530.563 – RS (2019/0259698-8)

 é advogado especializado em Direito Tributário e integra o quadro de um LLM de Direito Tributário Internacional na Universidade de Nova York-EUA.

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Pereira de Freitas: Autonomia de órgãos com atividade típica de Estado

Opinião

Autonomia de órgãos com atividade típica de Estado está em risco

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Sobejam, ao longo dos anos, exemplos de intromissão indevida de autoridades em órgãos públicos que desempenham atividades típicas de Estado. Não é um fato afeto à ideologia ou ao governo de plantão. É, sim, uma característica da autoridade que detém o poder e que, via de regra, almeja o poder absoluto. Esquecem-se de que o poder corrompe e que o poder absoluto corrompe absolutamente. Por isso é preocupante a notícia de que o presidente Jair Messias Bolsonaro tentou interferir em investigações levadas a cabo pela Polícia Federal. A Polícia Federal, como sabemos, é um órgão de Estado. Não deve se curvar e/ou amoldar suas investigações ao gosto de autoridades, sejam elas de que poderes forem.

Além da Polícia Federal, temos outras instituições que, devido à importância das competências que lhes são atribuídas, desempenham atividades inerentes ao Estado como poder público, atividades estas sem correspondência ou similaridade no setor privado. Como exemplo dessas instituições, podemos citar a Receita Federal do Brasil (RFB) e o Banco Central do Brasil (Bacen). Estes órgãos, entre outros, também não devem estar subjugados ao governante de plantão. Devem ter autonomia. No que se concerne ao Bacen, há o PLP 112/2019, de autoria do Poder Executivo, que prevê a autonomia do órgão. O governo é temporário, o Estado é perene. Faz-se necessário que avancemos. A autonomia precisa ser um dos atributos dos órgãos que desempenham atividades típicas de Estado. 

Não pode o país ser sacudido de tempos em tempos com a notícia de que um ou outro governante e/ou autoridade usou de interferência política para macular o adequado desenvolvimento das atividades afetas aos órgãos de Estado.  Tais órgãos não são susceptíveis aos critérios de conveniência e oportunidade de governantes e/ou autoridades. Governantes ou autoridades que assim procedem batem de frente com o princípio da impessoalidade previsto no artigo 37 da Constituição Federal. O presidente da República, como autoridade máxima da Administração Pública, também deve observar os comandos do aludido artigo. Não é uma exceção.  A notícia de que o presidente da República tentou interferir em investigações da Polícia Federal, sabe-se lá com quais intenções, deve ser rigorosamente investigada.

Mas o que fazer para que o país não seja abalado, de tempos em tempos, como já apregoado, por condutas inadequadas de autoridades públicas junto a órgãos que desempenham atividades típicas de Estado? A resposta está acima. É conceder a esses órgãos autonomia. É inconcebível que órgãos imprescindíveis ao funcionamento regular do Estado estejam submetidos à ingerência política partidária.  A autonomia é a vacina contra o vírus da interferência político-partidária. Temos de construir o arcabouço jurídico que permita o desenvolvimento dessa vacina.

Crésio Pereira de Freitas é auditor fiscal e vice-presidente de Assuntos da Seguridade Social da Anfip.

Revista Consultor Jurídico, 5 de maio de 2020, 8h09