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Miola e Melo: Impactos da Covid-19 na educação básica pública

O momento atual exige todos os esforços para conter a crise sanitária, econômica e social que se instalou no país com a pandemia da Covid-19. Entre suas inúmeras consequências, é necessário discutir e refletir sobre os impactos da pandemia no financiamento da educação básica pública que, assim como a saúde, é um direito fundamental de especial envergadura no nosso ordenamento jurídico.

A Constituição da República prevê, basicamente, três pilares que sustentam o financiamento da educação básica pública no Brasil.

Primeiro, temos a vinculação da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, de, no mínimo, 25% para Estados, municípios e Distrito Federal e 18% para a União à manutenção e desenvolvimento do ensino (artigo 212). É tamanha a importância desse direito que a vinculação para a finalidade prevista no artigo 212 é uma exceção ao princípio da não afetação da receita de impostos previsto no artigo 167, IV, da CR/88.

Segundo, o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), previsto no artigo 60 do ADCT como um fundo de natureza contábil e composto por parte dos recursos que os Estados, o Distrito Federal e os municípios devem destinar à educação a que se refere o artigo 212.

Por último, a contribuição social do salário-educação recolhida pelas empresas, na forma da lei, prevista no artigo 212, § 5º, como fonte adicional de financiamento da educação.

Todos os entes federativos são responsáveis pelo financiamento do ensino, mas cada qual atua em etapas definidas expressamente no texto constitucional: aos municípios compete atuar, prioritariamente, na educação infantil e no ensino fundamental (artigo 211, § 2º); aos Estados e ao Distrito Federal, nos ensinos fundamental e médio, prioritariamente (artigo 211, § 3º). Já à União compete organizar o sistema federal de ensino e financiar as instituições de ensino públicas federais (artigo 211, § 1º). Além disso, sendo o ente com a maior arrecadação da federação, a União exerce também, em matéria educacional, “função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios” (artigo 211, § 1º).

Dito isso, todas essas receitas somadas representaram, no ano de 2018, R$ 252 bilhões e serviram para financiar, aproximadamente, 142 mil escolas públicas de educação básica, 40 milhões de alunos e dois milhões de professores [1].

Apesar desse arranjo constitucional protetivo do direito à educação básica pública, de um modo geral pode-se dizer que os recursos já eram insuficientes para garantir uma educação de qualidade antes da pandemia da Covid-19. Dois dados básicos corroboram essa conclusão: o piso salarial dos profissionais do magistério da educação básica é de cerca de R$ 2,8 mil [2], ao passo que o Estado brasileiro gasta R$ 519 em média por mês com o aluno da escola pública da educação básica [3]. Um estudo divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (Education at a glance) revelou que o Brasil investe por aluno três vezes menos que os países desenvolvidos que fazem parte da organização.

Dos três pilares de financiamento antes mencionados, o Fundeb é o principal mecanismo, correspondendo à maior parte dos recursos públicos destinados à educação em milhares de municípios que não possuem receita própria expressiva.

Por força da Constituição da República, a União complementará os recursos dos fundos sempre que, no DF e em cada Estado, o valor médio ponderado por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente (artigo 60, V, ADCT). Essa complementação será de, no mínimo, 10% do total dos recursos estaduais/distritais/municipais, a partir do quarto ano de vigência do fundo (artigo 60, VII, “d”, ADCT). No ano de 2018, a receita vinculada ao Fundeb de Estados e municípios representou R$ 138,8 bilhões, ao passo que a complementação da União ao fundo foi de R$ 13,8 bilhões, o que totalizou R$ 152,6 bilhões.

Uma auditoria operacional realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no Fundeb (TC 018.856/2019-5) indicou que quatro fontes de receitas juntas representaram 93% do total dos seus recursos, com expressivo destaque para o ICMS, seguido pelos Fundos de Participação dos Estados e dos municípios (FPM e FPE) e pela complementação da União, nessa ordem.

Naturalmente, ou tragicamente, por força da retração da atividade econômica causada pela pandemia, já está havendo e haverá perda de arrecadação de tributos de toda ordem, o que refletirá na formação dos fundos estaduais e demais fontes de financiamento da educação.

A Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação emitiram recentemente uma nota técnica sobre a queda das receitas da educação no contexto da pandemia Covid-19 e seus efeitos danosos na manutenção e desenvolvimento do ensino [4].

Os pesquisadores coletaram informações em bases de dados governamentais para estimar os cenários de decréscimos nas receitas de impostos e do salário-educação dos governos estaduais e municipais e seus impactos na área da educação. Foram estimados três cenários; no mais otimista, a educação perderia R$ 17,2 bilhões; no intermediário, perderia R$ 34,8 bilhões e, no mais pessimista, R$ 52,4 bilhões.

Em termos de recursos por aluno/mês, foram realizadas as seguintes projeções: de R$ 519 (valor referência em 2018), que já é considerado um patamar de partida muito baixo, estima-se que o valor caia para R$ 483, R$ 447 ou R$ 411, a depender da gravidade do cenário. Segundo a referida nota, a ameaça é imediata em 2020, mas com grandes chances de se estender para os próximos anos.

Outro estudo, intitulado “Covid-19 Impacto Fiscal na Educação Básica”, elaborado pelo movimento Todos pela Educação e o Instituto Unibanco, utilizando a base de dados do Tesouro Nacional, informações consolidadas das receitas tributárias de abril e maio, além de estimativas de especialistas para realizar uma projeção dos tributos vinculados a manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE) em 2020, estimou que “o conjunto das redes estaduais devem perder entre R$ 9 bilhões e R$ 28 bilhões em tributos vinculados à MDE, a depender do cenário de crise econômica” [5].

Ainda, o mencionado estudo estimou que as redes públicas terão custo adicional de pelo menos R$ 2 bilhões para 2020 com soluções para o enfrentamento das consequências da pandemia, sobretudo gastos com a implementação do ensino remoto e com o oferecimento de alimentação aos alunos durante a suspensão das aulas presenciais.

Será um impacto enorme para o financiamento da educação básica pública, principalmente se pensarmos que grande parte dos recursos do Fundeb são utilizados no pagamento dos profissionais do magistério da educação básica. A Lei nº 11.494/2007 determina que, no mínimo, 60% dos recursos do fundo devem ser utilizados no pagamento de profissionais da educação e há notícias de que, em várias situações, os montantes do Fundeb são integralmente absorvidos pela folha de pagamento da educação. Mesmo nos entes em que isso não acontecia, quedas na receita tendem a direcionar valores que poderiam ser investidos no incremento da qualidade da aprendizagem para cobrir gastos com pessoal

Temos que lembrar, ainda, que o Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014), que é decenal, está completando seis anos neste mês de junho e os efeitos econômicos da pandemia vão gerar um impacto significativo no atingimento das metas estipuladas, como, por exemplo, na ampliação da oferta da educação infantil.

Por outro lado, enquanto a arrecadação de tributos diminui, afetando as receitas vinculadas para a manutenção e desenvolvimento do ensino, o cenário descortina demandas e gastos extras na área da educação. Como exemplo, é possível antever um aumento no número de matrículas, nas redes públicas, de alunos egressos das escolas particulares cujos pais perderam a condição financeira de arcar com as mensalidades. Além disso, já se pensando no retorno às atividades presenciais, haverá também aumento de despesas com a segurança sanitária nas escolas.

No momento em que foi declarada a ocorrência do estado de calamidade pública no Brasil em decorrência da Covid-19 (Decreto Legislativo nº 06, de 20 de março de 2020), estava em adiantada tramitação no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 015/2015, que trata da renovação do Fundeb em caráter permanente, de novas medidas de equidade e da expansão do financiamento da educação básica por meio da elevação da complementação dos recursos Fundeb por parte da União.

A baixa participação da União no financiamento da educação básica sempre foi alvo de críticas, e o quantum de sua complementação ao Fundeb estava finalmente em discussão, não sem uma “queda de braço” entre o Ministério da Educação e o Congresso Nacional com relação ao novo percentual. No relatório apresentado pela deputada Dorinha Seabra Rezende, relatora da PEC, a complementação federal havia sido fixada em 20% do total dos recursos.

Agora, é necessário que o novo Fundeb seja pensado, discutido e votado no paradigma da pandemia e no pós-pandemia, de modo que a complementação da União possa recompor, se não totalmente, ao menos parcialmente as perdas de receitas sofridas por Estados e municípios, porque todos terão perdas expressivas. Para esse propósito, é importante lembrar que a complementação da União ao Fundeb não está limitada pelo novo regime fiscal criado pela Emenda Constitucional nº 95/2016 (teto de gastos), pois foi excluída expressamente pelo artigo 107, § 6º, inciso I, do ADCT.

A situação é grave, e exige uma atuação afirmativa por parte dos entes federativos, a fim de se viabilizar o direito à educação para mais de 40 milhões de crianças e jovens brasileiros. Nesse contexto, a aprovação do Fundeb, com o incremento da complementação da União, é indispensável para recompor as vultosas perdas na educação pública brasileira. A pandemia da Covid-19 trouxe impactos inestimáveis para a economia e já vitima mais de mil pessoas por dia no país. Não se pode permitir que o futuro das nossas crianças e jovens seja mais uma dessas trágicas consequências.

 é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul e presidente do Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa.

 é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de Minas Gerais e mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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TJ-SP proíbe uso de fundos municipais no combate à Covid-19

A necessidade de transposição, remanejamento ou transferência de recursos se deve admitir dentro de certos critérios técnicos ou legais. Com esse entendimento, o desembargador Claudio Godoy, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, concedeu liminar que suspende uma lei municipal de Guarulhos, que permitia que a prefeitura transferisse recursos de doze fundos municipais à conta do Tesouro, a pretexto de enfrentar a epidemia do coronavírus.

Prefeitura de GuarulhosMunicípio de Guarulhos, na Grande SP

A ação direta de inconstitucionalidade foi movida pela Procuradoria-Geral de Justiça, que sustentou que a lei não prevê qualquer limitação nas transferências e, assim, viola a previsão do artigo 176, incisos I, VI e VII da Constituição do Estado. O desembargador Claudio Godoy também vislumbrou, em uma análise preliminar, a violação a tal dispositivo da Constituição paulista.

Godoy disse que entende a situação de dificuldade que enfrentam os municípios em razão da crise sanitária, mas a lei impugnada “não especificou a quais medidas de combate à epidemia estas transferências serviriam a fazer frente, assim se apenas de ordem sanitária, ou também de ordem assistencial, ou de natureza econômica, em geral”.

Além disso, segundo ele, não se definiu qualquer limite temporal de vigência da lei ou de valores a serem transferidos. O desembargador falou que a norma não respeita o princípio da legalidade no mecanismo de movimentação de recursos orçamentários ao “autorizar transferências ilimitadas, não definidas, para despesas igualmente inespecíficas, mesmo em tempos de calamidade”.

Por fim, Godoy afirmou que, apesar da urgência que se exige no enfrentamento ao coronavírus, há, do outro lado, o risco de esvaziamento irreversível de recursos de fundos essenciais a grupos de pessoas com atendimento prioritário, por comando constitucional, e outros igualmente voltados para serviços essenciais, mesmo em tempo de epidemia, o que justifica a concessão da liminar.

2096109-47.2020.8.26.0000

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Cecília Mello: Extensão de trabalho remoto do Judiciário

O contexto de pandemia e isolamento mundialmente vivido levou e está levando a sociedade a vários ajustes e adaptações, de maneira a assegurar a manutenção de suas atividades essenciais. São muitas as mudanças, necessárias. Mas o alerta é no sentido de que essas mudanças possam se tornar permanentes mesmo após o estado de emergência de saúde pública. E isso precisa ser muito bem avaliado.

O Poder Judiciário, investido de competência para solucionar conflitos, de realizar o Direito, seja evitando a violação da ordem jurídica, seja determinando a sua restauração, é um dos sustentáculos do Estado democrático, o guardião da Constituição Federal, tão demandada nesses tempos. Consciente da sua relevância no cenário nacional, o Judiciário rápida e eficientemente se estruturou para evitar a interrupção de atendimento à sociedade e aos jurisdicionados.

O CNJ editou as Resoluções 313 e 314, em 19 de março e 20 de abril, respectivamente, disciplinando de maneira uniforme o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio e, ao mesmo tempo, garantir o acesso à Justiça no período de emergência de saúde pública. Além da suspensão dos prazos processuais, cuja contagem será retomada para os processos eletrônicos em 4 de maio, restou assegurada a apreciação de matérias mínimas, tais como habeas corpus, mandado de segurança, medidas liminares e de antecipação de tutela, comunicações de prisão em flagrante, pedidos de concessão de liberdade provisória, imposição e substituição de cautelares diversas da prisão, dentre outras medidas revestidas de urgência.

Referidas resoluções facultaram aos tribunais disciplinar o trabalho remoto de magistrados, servidores e colaboradores. A Resolução 314 determina que sejam buscadas soluções colaborativas com os demais órgãos do sistema de Justiça, para a realização dos atos processuais virtualmente. Ou seja: as diretrizes devem ser encontradas no senso comum das necessidades e, evidentemente, por meio de regras claras, realistas e objetivas.

Os processos físicos permanecem com os seus prazos suspensos, salvo a hipótese de conversão em eletrônicos, vedado o restabelecimento do expediente presencial. Essas regras têm vigência até 15 de maio, podendo haver ampliação ou redução por ato da Presidência do CNJ.

Os tribunais de todo o país diligenciaram na busca de soluções, procurando manter as atividades de prestação jurisdicional, porém por meio de trabalho remoto e mediante a disponibilização de canais de comunicação virtual franqueados em seus respectivos sites. Além dos trabalhos jurisdicionais propriamente ditos, os tribunais ainda precisaram solucionar inúmeros procedimentos correlatos aos processos, especialmente aqueles pertinentes aos levantamentos de valores decorrentes de pagamentos judiciais, de extrema relevância neste momento, tanto para os advogados quanto para os jurisdicionados.

Embora o sistema ainda não apresente uma nova sistemática que possa ser qualificada de forma plenamente satisfatória, há que se considerar o curto espaço de tempo transcorrido desde a sua implementação e a complexidade dessa nova dinâmica, que impõe ajustes não apenas materiais, mas também humanos, haja vista a necessidade de servidores e magistrados adaptarem-se ao trabalho de atendimento a distância. Mas, independentemente do sentimento geral de apreensão, fato é que os tribunais têm apresentado índices bastante elevados de produtividade, no que diz respeito a decisões proferidas.

Com base no êxito dos resultados obtidos pelo STF com a implementação de atividades remotas, a possibilidade de manutenção desse sistema diferenciado de trabalho foi estendida por meio da Resolução 677, de 29/4/2020, até 21 de janeiro de 2021, outorgando-se aos gabinetes dos ministros liberdade para adotarem outras formas de gestão das suas atividades. Embora não haja novas disposições acerca das sessões de julgamento, tudo leva a crer que também permaneçam por sistema de videoconferência, assim como o atendimento judicial, por meios eletrônicos

Na outra ponta dessa relação, sem absolutamente desconsiderar os demais operadores que a compõem, estão os jurisdicionados, assistidos e representados por seus advogados. Aqui, diferentemente dos tribunais que integram o Poder Judiciário, não há uma uniformidade de recursos materiais e humanos. Ao contrário, pode-se dizer que a diversidade da advocacia guarda relação direta com a diversidade da população e, portanto, dos jurisdicionados. Dessa forma, partir da premissa de que todos os advogados têm condições técnicas e materiais de pronta adaptação ao sistema de trabalho remoto é tão equivocado quanto imaginar que todos os alunos da rede de ensino, seja pública ou privada, têm condições de acesso e aproveitamento a aulas on-line.

As prerrogativas previstas na Lei 8906/94 asseguram aos advogados o direito de exercer a defesa plena de seus clientes e aqui se inclui o direito de postular e argumentar oralmente com o objetivo de convencer o julgador sobre o direito postulado. Em suma: o advogado tem o direito de ser ouvido pelo julgador e esse direito está imbricado no próprio exercício do pleno direito de defesa.

As medidas adotadas no âmbito do STF podem trazer resultados promissores à mais alta Corte de Justiça do país, inclusive ampliando e desonerando o exercício da advocacia perante as suas sessões de julgamento, a medida que sustentações orais ou atendimentos judiciais não dependerão de viagens e deslocamentos. Entretanto, o mesmo não se pode dizer quanto à manutenção desse sistema pelos demais tribunais e, especialmente, pela primeira instância, o que poderá resultar prejuízos incalculáveis de acesso à Justiça.

Não se trata de simples “adaptação” quando a maioria dos advogados e da população não dispõe de condições materiais para implementar essa modalidade de trabalho, que demanda recursos tecnológicos de custos incompatíveis com os auferidos por essa significativa parcela da população. Aqui, a Justiça ficaria reservada a poucos, e a advocacia também.

As alternativas encontradas para a manutenção dos serviços e atividades da sociedade em tempos de pandemia precisam ser rigorosamente avaliadas antes de se tornarem perenes, sob pena de criarmos “bolhas” instransponíveis em diversos segmentos, que ficarão reservadas a poucos, mas em detrimento de muitos.  Como diz Yuval Harari: “O verdadeiro antídoto para epidemias não é a segregação, mas a cooperação”.

 é criminalista, sócia do Cecilia Mello Advogados. Foi desembargadora federal por 14 anos no TRF-3.

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Corrêa da Veiga: TAS veda influência de terceiros em transferências

Em recente decisão, o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) apreciou recurso do atleta Thomaz dos Santos e o absolveu da condenação de pagar uma multa de U$ 80 mil (cerca de R$ 440 mil), além de isentar o jogador das despesas com arbitragem e honorários, em importância aproximada de U$ 30 mil (R$ 165 mil), segundo informações do jornal La Razón [1]

O caso traz questões peculiares, com reflexos no direito ao trabalho dos atletas, e que vêm sendo observadas com alguma frequência, com decisões conflitantes, tanto pelas câmaras de resolução de conflitos quanto pelo próprio Poder Judiciário, quando a este submetidas.

Thomaz Santos defendeu o clube Jorge Wilstermann, da Bolívia, de 2014 a 2017, ano em que foi contratado pelo São Paulo. Em 2018, foi cedido para clubes brasileiros, sendo que no ano de 2019 foi cedido ao Bolívar, de La Paz.

Com a alegação de que havia sido assinado um documento no qual o atleta se comprometia a defender o Jorge Wilstermann no caso de retorno à Bolívia, sob pena de pagamento de multa de U$ 80 mil, o clube de Cochabamba apresentou demanda perante o Tribunal de Resolução de Disputas da Federação Boliviana de Futebol, tendo em vista a opção do atleta pelo Bolívar.

Insatisfeito com a decisão, o jogador recorreu à mais alta corte arbitral do esporte, que deu provimento ao seu recurso para afastar o pagamento da multa pleiteada e condenar o Jorge Wilstermann e a Federação Boliviana de Futebol, cada um, ao ressarcimento com os gastos e honorários legais arcados pelo recorrente e ao pagamento das custas processuais.  

No intuito de estimular o debate e analisar o objetivo da decisão, convém trazer posicionamentos doutrinários e do próprio Regulamento da Fifa.

As cláusulas que impõem restrições ou condições após a ruptura contratual trazem um ônus muito grande para o atleta e muitas das vezes, além de não oferecerem contra-partidas, são desprovidas de fundamento racional que as justifiquem.

Não há dúvidas de que no meio empresarial, quando se trata de proteção de segredos industriais, as cláusulas de não-competição podem (e são) aplicadas. Até mesmo no meio desportivo há situações em que são defensáveis quando se trata de desenvolvimento de programas de treinamentos, por exemplo.

No âmbito do desporto há peculiaridades e nuances que despertaram a atenção do legislador, que foi firme ao assegurar a ampla liberdade contratual desportiva sem imposições ou restrições contratuais.

No Brasil, a Lei Geral do Desporto [2] é expressa ao afirmar que são nulas quaisquer cláusulas que interfiram no livre exercício do trabalho, influenciem transferências, interfiram em desempenho e influenciem assuntos laborais. 

Dessa forma, por imperativo legal constante no diploma desportivo brasileiro, a liberdade de trabalho desportivo não pode ser restringida.

Essa é a visão do professor da Universidade de Coimbra João Leal Amado [3]. Verbis:

“Em sede de contrato de trabalho desportivo não há, porém, lugar para dúvidas: qualquer cláusula de não concorrência, enquanto cláusula que, por definição, visa a ‘condicionar ou limitar a liberdade de trabalho do praticante desportivo após o termo do vínculo contratual’, será nula”.

O professor Rafael Teixeira Ramos [4] traz entendimento semelhante e lembra, inclusive, da já extinta figura do passe. Verbis:

“Admitir que por uma avença contratual um dos clubes se ponha em superposição privilegiada em detrimento de uma posição restrita do concorrente arquirrival, prejudica a livre concorrência perante os demais empregadores do mercado desportivo, gerando reflexões negativas no próprio equilíbrio competitivo e na incerteza dos resultados, princípios nucleares da atividade econômica desportiva”.

Nota-se, portanto, que a atividade profissional desportiva deve ser livre, sem limitações contratuais que possam ser consideradas abusivas ou desproporcionais, sob pena de serem consideradas nulas de pleno direito.

O artigo 18bis do Regulamento de Transferências de Jogadores da Fifa traz a seguinte previsão:

“1  No club shall enter into a contract which enables the counter club/counter clubs, and vice versa, or any third party to acquire the ability to infl uence in employment and transfer-related matters its independence, its policies or the performance of its teams”.

Em tradução livre, resta dizer que a Fifa estabelece que nenhum clube poderá celebrar contratos com qualquer outra parte contratante ou qualquer terceiro para fins de adquirir a capacidade de influência na relação de emprego e nas transferências, e ainda em questões relacionadas a sua independência, suas políticas ou desempenho de suas equipes.

Portanto, a estipulação pactuada entre o clube Jorge Wilstermann com o atleta Thomaz violou princípios do desporto e o próprio regulamento de transferências da entidade máxima do futebol, que assegura a ampla liberdade profissional sem restrições contratuais, razão pela qual não poderá haver influência de terceiros na transferência do atleta.

 é advogado, sócio no escritório Corrêa da Veiga Advogados, membro da comissão de Direito do trabalho da Seccional OAB-DF e pós-graduado em Direito Trabalho e Processo do Trabalho no IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público.

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Yarshell e Laspro: Recuperação judicial em tempos de pandemia

A Comissão de Estudos de Recuperação Judicial e Falência da OAB-SP e a Escola Paulista da Magistratura, em conjunto, realizaram recentemente dois importantes eventos para discutir as repercussões da pandemia sobre os processos de recuperação judicial. Os painéis contaram com a presença de magistrados, advogados, administradores judiciais e acadêmicos e deles resultaram reflexões importantes, que podem e devem orientar não apenas os debates que por certo prosseguirão, mas igualmente as políticas públicas que venham a ser adotadas — que não necessariamente significam a intervenção do Estado para a solução de todos os problemas.

De fato, nas últimas décadas, criou-se a falsa expectativa de que a simples mudança legislativa ou até mesmo a intervenção jurisdicional fossem capazes de resolver todos os problemas, como se grande parte deles não tivesse origem muito mais complexa, no campo social e econômico, e que não pode ser resolvida como se o legislador ou o juiz tivessem uma vara mágica com a qual, com um simples toque, resolveriam todo e qualquer conflito.

Como era de se esperar, as opiniões manifestadas nos dois eventos ainda estão consideravelmente divididas sobre a maior parte dos temas relevantes. Isso é compreensível e, por paradoxal que possa parecer, também é, em alguma medida, salutar. Com efeito, embora o momento clame por segurança jurídica, mercê de decisões uniformes e estáveis, a eventual precipitação de órgãos superiores em fixar teses — antes que algum debate possa levar ao amadurecimento do problema e das soluções — pode também ser indesejável. De se lembrar que o sistema jurídico brasileiro, no que tange à interpretação da lei federal, sempre optou pela construção difusa e não concentrada baseado na crença de que o debate e o tempo de maturação são essenciais para a interpretação da norma. Ademais, sob certo ângulo, a potencial instabilidade pode funcionar como incentivo às soluções consensuais, diante dos riscos que a imprevisibilidade das decisões judiciais pode trazer.

Associado a esse aspecto parece residir ao menos um ponto de convergência nos pronunciamentos realizados nos dois eventos: há uma convicção generalizada de que, na maior extensão possível, é preciso empregar técnicas que levem à solução não adjudicada do conflito; o que tanto mais se justifica no contexto da recuperação, em que a superação da controvérsia resulta da vontade dos credores e em que o controle jurisdicional é consideravelmente limitado. Há alguma controvérsia quanto aos meios para tanto, sendo ponderável o argumento de que a confidencialidade inerente à conciliação e à mediação são obstáculos de difícil superação no contexto em tela. Além disso, há a circunstancial dificuldade do isolamento social, que pode dificultar — mas que seguramente não impede — o diálogo e a negociação.

Isso parece levar a um outro ponto de convergência: é possível e é preciso seguir com a realização das assembleias de credores à distância, mediante o emprego de ferramentas eletrônicas. Também aqui parece haver um juízo quase unânime de que a utilização desses recursos é irreversível e tende a subsistir em boa escala mesmo depois que as restrições do convívio presencial forem superadas. Há mesmo quem chegue a destacar as vantagens que o uso da tecnologia tem para o sistema de justiça de um modo geral, do que inclusive teria resultado maior eficiência.

Embora tudo isso seja correto e o uso da tecnologia seja hoje um imperativo, é preciso cautela em considerar como permanentes soluções tomadas ao ensejo de situações excepcionais e passageiras — aliás, outra advertência colhida, ainda que de forma generalizada, em vários dos pronunciamentos feitos nos aludidos encontros. Não se pode ignorar que em nosso país parte relevante da população é alijada dos meios tecnológicos e, a pretexto da pandemia, não se pode afastar a representatividade real de todas as classes de credores.

O contato virtual pode ser útil em muitas circunstâncias e ele realmente pode gerar maior eficiência e economia. Mas, ele não pode ser erigido a uma espécie de fetiche, limitador do convívio humano e do exercício de direitos. Parece prematuro dizer, por exemplo, que a oralidade no processo esteja ou suprimida ou fadada a se submeter ao ambiente virtual — e isso em todos os graus de jurisdição em que, sob diferentes formas ela é exercida. Por sorte, a justiça ainda é uma atividade realizada por seres humanos para a solução de problemas de seres humanos e lembrar disso, em tempos de avanço rápido da inteligência artificial, pode ser uma boa prática, para que um dia não nos arrependamos todos de termos renunciado aos vínculos humanos e reais.

No campo da recuperação, a realização das assembleias mediante o emprego de ferramenta eletrônica precisa enfrentar questões como a relativa ao efetivo acesso de todos os interessados à tecnologia e, portanto, à informação que propicie efetiva participação; a titularidade do poder de decidir sobre o uso do expediente; as invalidades que possam decorrer de imperfeição no emprego da tecnologia; o momento em que se deva objetar tal emprego e os limites do controle jurisdicional sobre tudo isso. São questões que foram lembradas, mas para as quais, como era de se esperar, ainda não foram apresentadas soluções adequadas.

Também há aparente convergência sobre o fato de que o fenômeno a enfrentar não é apenas jurídico, mas sobretudo econômico.

Primeiro, embora haja uma razoável consciência de sua complexidade, não parece haver ainda uma consciência plena e generalizada sobre como lidar com o problema econômico ou, em palavras simples, quem deve arcar com a conta. A propósito, muito judiciosas ponderações destacaram que a pura e simples autorização para suspensão de pagamentos não parece ser solução adequada, por considerar apenas um dos lados da equação: beneficiar o devedor é prejudicar o credor que, portanto, pode passar a ter dificuldades de se manter no mercado. De igual modo, a eventual possibilidade de o juiz intervir nas relações privadas, ainda que a pretexto da aplicação da teoria da imprevisão ou na pretensa defesa dos hipossuficientes, pode gerar desequilíbrios econômicos muito mais graves, frutos de uma espécie de efeito dominó. A consciência de que se está diante de vasos comunicantes, portanto, é fundamental, sob pena de a intervenção estatal — legislativa ou jurisdicional — acabar involuntariamente por aumentar o problema, ao invés de resolvê-lo.

Segundo, na mesma linha de raciocínio, há controvérsia sobre qual o papel do Estado diante do custo econômico gerado pela pandemia. Embora haja uma aparente aceitação de que isso deva, dentre outros, dar-se mediante políticas fiscais, não há consenso sobre como isso deva se efetivar. Não se trata apenas do problema de os créditos do Fisco estarem fora da recuperação, mas também de saber até que ponto o Estado deve contribuir para a recuperação econômica, abrindo mão de parte de sua receita tributária.

Como se percebe, trata-se de problema ainda mais amplo e complexo, bem ilustrado no debate acerca da possível e temporária suspensão da exigibilidade dos créditos fiscais. Por outras palavras, a dúvida reside em saber de que forma o custo da pandemia pode e deve ser suportado por toda a sociedade e, nesse caso, qual a forma mais justa de o fazer.

 é advogado e professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Oreste Nestor de Souza Laspro é advogado, administrador judicial, professor doutor da Faculdade de Direito da USP e presidente da Comissão de Estudos de Recuperação e falência da OAB-SP.