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Sete votos vencidos de Marco Aurélio que viraram teses vencedoras

Os 30 anos de trajetória do Ministro Marco Aurélio como integrante do Supremo Tribunal Federal, completados neste sábado (13/6), são marcados pelo semear de ideias e soluções, tanto no aspecto jurisprudencial quanto no processual. 

Exaltado pelos colegas na última sessão plenária da corte, o ministro viu o presidente do Supremo, Dias Toffoli, destacar que algumas das teses defendidas por ele, com o passar do tempo e a evolução da jurisprudência do tribunal, tornaram-se vencedoras.

Do alcance do mandado de injunção à prisão em segunda instância, veja algumas teses defendidas pelo Ministro Marco Aurélio que em sua época foram votos vencidos, mas hoje configuram jurisprudência tranquila do Supremo Tribunal Federal.

1) Proibição de progressão de pena em crime hediondo

O assunto era definido pelo parágrafo 1º do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), segundo o qual quem cometesse a prática da tortura, do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e do terrorismo deveria cumprir a pena integralmente em regime fechado. O ministro Marco Aurélio levantou a inconstitucionalidade no HC 69.657, julgado em 1992. A mudança jurisprudencial veio no HC 82.959, julgado em 2006.

No voto, o ministro apontou que a Lei dos Crimes Hediondos foi produzida não sob observância de uma coerente política criminal, mas sob o clima da emoção, “como se no aumento da pena e no rigor do regime estivessem os únicos meios de afastar-se o elevado índice de criminalidade”.

“Assentar-se a esta altura que a definição do regime e modificações posteriores não estão compreendidas na individualização da pena é passo demasiadamente largo implicando restringir garantia constitucional em detrimento de todo um sistema e, o que é pior, a transgressão a princípios tão caros em um Estado democrático como são os da igualdade de todos perante a lei o da dignidade da pessoa humana e o da atuação do Estado sempre voltada ao bem comum”, destacou.

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2) Impossibilidade de prisão do depositário infiel

“Se, de um lado, é certo que a Carta da República dispõe sobre a prisão do depositário infiel — artigo 5o, inciso LXVII —, de outro, afigura-se inaplicável o preceito. As balizas da referida prisão estão na legislação comum e, então, embora a norma inserta no artigo 652 do Código Civil seja posterior aos fatos mencionados, o mesmo não ocorre com a disciplina instrumental prevista no Código de Processo Civil”, escreveu o ministro sobre o tema.

O primeiro precedente vencido foi registrado no HC 72.131, de 1995. A mudança ocorreu em 2008, no HC 87.585. Assim, a única prisão civil possível no país passou a ser do devedor de pensão alimentícia, decorrente da efetiva introdução das regras do Pacto de São José da Costa Rica, assinado pelo Brasil.

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3) Impossibilidade da exigência de depósito como requisito de apreciação de recursos administrativos no INSS

A exigibilidade do depósito da multa, em certos casos, em face do montante e da situação econômico-financeira do infrator, acaba por impedir o direito de defesa. Não pode o Estado dar com uma das mãos e retirar com a outra. Foi com esse entendimento que o Ministro Marco Aurélio defendeu a impossibilidade de exigir depósito como requisito para apreciação de recursos administrativos no INSS.

A exigência estava prevista no parágrafo 1º do artigo 636 da Consolidação das Leis do Trabalho. O ministro ficou vencido quanto ao tempo inicialmente na ADI-MC 1.049, em 1995. A mudança jurisprudencial veio pelo RE 389.383, em 2007.

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4) Impossibilidade da exigência de depósito para apreciação de recursos administrativos no âmbito do Ministério do Trabalho

Da mesma forma como praticada em relação a recursos administrativos do INSS, vigia na CLT que recursos contra multas aplicadas pelos inspetores do trabalho só poderiam ser apreciados após depósito da totalidade da multa por aquele que foi tido como infrator.

“O que isso representa, pelo menos sob a minha óptica? Representa um óbice, em alguns casos, até mesmo ao exercício do direito de defesa, inviabilizando-se, portanto, desde que aquele apontado como infrator não tenha meios suficientes para a feitura do depósito, a interposição do próprio recurso”, destacou o ministro.

A regra estava prevista no parágrafo 6º do artigo 636 e foi primeiro contestada em voto vencido do ministro no RE 210.246, em 1997, com a mudança da jurisprudência na ADPF 156, em 2011.

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5) Impossibilidade da exigência de depósito como requisito de apreciação de recursos administrativos no âmbito do Carf

Nesse caso, o ministro estendeu o entendimento relacionado ao parágrafo 1º do artigo 636 da CLT à exigência de depósito para apreciação de recurso administrativo no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), conforme ditava o parágrafo 2º do artigo 33 do Decreto no 70.235/1972, com a redação dada pelo artigo 32 da Lei 10.522/2002.

“O pleito administrativo está inserido no gênero ‘direito de petição’ e este, consoante dispõe o inciso XXXIV do artigo 5º da Constituição Federal, é assegurado independentemente do pagamento de taxas. Trata-se aqui de algo que pode inviabilizar até mesmo o direito de defesa”, destacou, na ocasião.

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6) Efetividade do mandado de injunção no combate às omissões legislativas

O mandado de injunção é um instrumento jurídico que pode ser utilizado por qualquer cidadão que venha a se sentir prejudicado por eventuais omissões na legislação. Ainda em 1989, quando recém-promulgada a Constituição Federal, o Ministro Marco Aurélio defendeu em questão de ordem na MI 107 um alcance maior ao instrumento do que o praticado pelo STF.

“Impetra-se o mandado de injunção não para lograr-se simples certidão de omissão do poder incumbido de regulamentar o direito”, destacou. “Conclamo, por isso, o Supremo, na composição atual, a rever a óptica inicialmente formalizada”, disse. A mudança veio com o MI 670, cujo julgamento terminou em 2007. 

O caso tratou de processos referentes ao direito de greve dos servidores públicos, previsto no artigo 37, inciso VII da Constituição, mas que ainda não foi regulamentado por lei específica. Pela via do mandado de injunção, a corte definiu que, enquanto não for elaborada tal regulamentação, valem as regras previstas para o setor privado (Lei nº 7.783/89).

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7) Prisão após o trânsito em julgado

É o caso mais recente, definido nas ADCs 43, 44 e 54, em 2019. Nelas, o Supremo Tribunal Federal mudou a orientação jurisprudencial para afirmar que a prisão só é possível após o trânsito em julgado da ação, prevalecendo a presunção de inocência consagrada pela Constituição Federal.

O Ministro Marco Aurélio ficou vencido em 2016, quando a prisão após condenação em segundo grau foi admitida pelo plenário do Supremo, no HC 126.292. Reiteradamente, defendeu que não se poderia potencializar o que fora decidido pelo pleno na ocasião. “Precipitar a execução da sanção importa antecipação de culpa, por serem indissociáveis”, destacou.

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Pedro Schuch: Suspensão dos tributos na calamidade pública

O novo coronavírus trouxe, junto com a crise sanitária, a crise econômica. Com as medidas de isolamento, as demandas por mercadorias e serviços diminuíram de forma abrupta, o que, por consequência, afetou sobremaneira as receitas das empresas brasileiras.

Diante desse quadro, os contribuintes passaram a encarar uma situação delicada, na qual seria necessário conservar seu caixa para pagamento de suas obrigações, sobretudo as obrigações com seus colaboradores. Grande parte das empresas brasileiras, portanto, passou a encarar a necessidade de decidir entre pagar os tributos ou a folha de pagamento. Por isso, tornaram-se frequentes ações pleiteando a suspensão dos tributos durante este período.

O Ministério da Fazenda, em 2012, editou a Portaria nº 12/2012, a qual previu a possibilidade de suspensão dos tributos em caso de calamidade pública:

“Artigo 1º — As datas de vencimento de tributos federais administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), devidos pelos sujeitos passivos domiciliados nos municípios abrangidos por decreto estadual que tenha reconhecido estado de calamidade pública, ficam prorrogadas para o último dia útil do 3º (terceiro) mês subsequente”. 

Com fulcro nesta determinação, os contribuintes foram ao Poder Judiciário solicitar a suspensão dos tributos federais.

Entretanto, ainda houve espaço para a apreciação de outros argumentos. Um dos pontos mais sensíveis nesta discussão toda diz respeito à “teoria do fato do príncipe”. Na prática, os contribuintes atribuíram aos decretos estatais de fechamento das atividades econômicas a qualidade de ato praticado pelo ente estatal que impede o cumprimento da obrigação tributária. Portanto, temos os entes estatais impedindo o funcionamento da atividade econômica e, ao mesmo tempo, cobrando os tributos dos contribuintes.

Por fim, foi invocada também a Constituição Federal para sustentar o pedido dos contribuintes. A Constituição Federal enumera em seu artigo primeiro que a República Federativa do Brasil, enquanto Estado de Direito, tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores do trabalho e da livre iniciativa:

“Artigo 1º — A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I a soberania;

II a cidadania;

III a dignidade da pessoa humana;

IV os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa

V pluralismo político”.

No artigo 3º da CF/88, estão listados os objetivos fundamentais da República. Dois desse objetivos são erradicar a pobreza e garantir o desenvolvimento nacional.

“Artigo 3º — Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II garantir o desenvolvimento nacional;

III erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Com o amadurecimento das discussões sobre a suspensão de tributos, percebeu-se que o Poder Judiciário passou a ignorar a Portaria do Ministério da Fazenda nº 12/2012, com a alegação de que tal dispositivo infralegal necessita de lei que a regulamente, o que não aconteceu. 

Entretanto, em diversos casos o Judiciário vem se manifestando no sentido de preservar os mandamentos da Constituição Federal, concedendo a suspensão dos tributos quando o pagamento dos mesmos acarreta o atraso no pagamento de fornecedores e, sobretudo, o atraso no pagamento de obrigações trabalhistas, devendo a empresa fazer prova pré-constituída do alegado.

E assim entendeu o Tribunal Regional Federal da 2ª Região em julgamento do Agravo de Instrumento nº 5003596-11.2020.4.02.000/RJ:

“Com efeito, tal atuação deve se dar de forma excepcional, caso a caso, e mesmo assim quando ficar efetivamente demonstrado o abalo financeiro, com risco concreto à subsistência da empresa, à manutenção de empregos e à própria continuidade da prestação do serviço e/ou fornecimento de bens, devendo o interessado comprovar tratar-se de micro ou pequena empresa, que não está demitindo funcionários e que possui histórico de cumprimento dos deveres tributários, não sendo devedor contumaz do fisco, dentre outros elementos necessários a demonstrar a efetiva necessidade do pleito e que não ficaram evidenciados nos presentes autos”.

Portanto, a simples existência da portaria do Ministério da Fazenda que prevê a suspensão dos tributos em caso de decretação da calamidade pública não tem sido acolhida pelo Poder Judiciário como fundamento para a sua suspensão. Por outro lado, a comprovação de danos à atividade empresarial, de impossibilidade de pagamento de fornecedores e colaboradores tem sido motivo para a suspensão das cobranças.

 é advogado, coordenador de Consultoria Tributária do escritório Stürmer & Wulff Advogados, pós-graduado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e membro da rede internacional IR Global e da rede internacional GGI.

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O Direito Constitucional, a saúde e sua evolução

A pandemia da Covid-19 impôs ao mundo uma nova realidade ao reconfigurar o cenário político-econômico e, consequentemente, alterar as pautas prioritárias no debate público. Questões relacionadas à saúde ganharam relevância e se tornaram onipresentes em diferentes aspectos da vida humana. Para o universo jurídico, e aqueles que orbitam em torno dele, isso implica na necessidade de aprimorar as discussões que envolvem direito e saúde, sendo o fornecimento judicial de medicamentos um tópico de elevada controvérsia que se pretende abordar neste artigo.

Pertinente contextualizar que a abordagem contemporânea sobre saúde tem sua origem no período do pós-guerra, época em que foi constituída a Organização Mundial da Saúde (OMS). Rompeu-se com a tradição negativista que vigorava e conceituava a saúde como a ausência de doenças e passou a prevalecer a concepção positivista que a define como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente de ausência de enfermidades [1]. A saúde se tornou um saber social a ser empregado em políticas governamentais para elevar a qualidade de vida da população.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada em 1948, reconheceu a saúde como direito inalienável de toda e qualquer pessoa e como um valor social a ser perseguido por toda a humanidade. Tal direito objetiva assegurar as condições de bem-estar e de desenvolvimento mental e social, conectando-se diretamente ao direito à vida, seja como pressuposto indispensável para sua existência, seja como elemento agregado à sua qualidade.

Incorporando ampla gama de direitos sociais, a Constituição brasileira de 1988 consagrou o direito fundamental à saúde nos artigos 1º, III; 6º, 23, II, 196, 198, II e § 2º, e 204. Qualificado pela doutrina pátria como direito de segunda dimensão [2], exige para seu implemento uma atuação ativa do poder público por meio de prestações positivas e materiais que podem ser legitimamente reivindicadas pelos cidadãos e, inclusive, por estrangeiros residentes no país. Por ser um direito fundamental, deve possuir a máxima eficácia e efetividade possível, configurando-se ainda como requisito essencial para a dignidade humana que é fundamento da República segundo o artigo 1º, inciso III, da Constituição.

Sua relevância motivou o constituinte a inserir na própria Carta Magna os meios para garantir a efetividade deste direito ao criar um orçamento específico para o financiamento da seguridade social, que inclui a saúde, com recursos oriundos da União, dos estados, do Distrito Federal e de outras fontes. Nesse ínterim, a Emenda Constitucional nº 29 aprimorou o arcabouço de garantias à saúde ao estabelecer a obrigatoriedade da aplicação, anualmente, de recursos mínimos pelos entes da federação em ações e serviços públicos de saúde.

O Brasil, segundo dados coletados pelo IBGE, gasta 3,8% do PIB em saúde pública, posicionando o país ligeiramente acima dos países de renda média e abaixo dos países desenvolvidos. Esse quadro impõe aos administradores públicos a formulação e implementação de políticas públicas eficientes que garantam acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar considerando a escassez de recursos disponíveis para aplicação no sistema de saúde.

Parte essencial desse planejamento consiste em organizar a compra e a distribuição de medicamentos à população. Em que pese inexistir previsão constitucional expressa nesse sentido, cabe ao poder público o fornecimento de fármacos à população, eis que o direito dos enfermos de receber o devido tratamento medicamentoso provém do direito constitucional à saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) é o arranjo organizacional do Estado brasileiro responsável por essa tarefa, fornecendo suporte à efetivação da política de saúde no Brasil e operando a distribuição de fármacos com base na política nacional de medicamentos.

Apesar do estabelecimento de diretrizes e do crescente aperfeiçoamento da gestão pública, o SUS não consegue fornecer medicamentos a todos que dele precisam. Os limites orçamentários do sistema de saúde são um empecilho concreto que refletem a teoria da reserva do possível. Surgida na Alemanha, a teoria aponta a limitação dos direitos sociais de acordo com as capacidades financeiras do Estado em prover as prestações materiais necessárias para concretizá-los.

Esses limites se tornam ainda mais evidentes em contextos de crise econômica, como a atual, na qual o orçamento público é pressionado pela necessidade de dar respostas imediatas à pandemia da Covid-19. Ao passo em que crescem as despesas com medidas de prevenção e de profilaxia ao vírus, além do auxílio econômico direto à população, as receitas tributárias sofrem queda devido à suspensão, por prazo indeterminado, de serviços, atividades ou empreendimentos com circulação ou potencial de aglomeração de pessoas e que não se enquadram como atividade essencial.

Na tentativa de ultrapassar essa falha de prestação material do Estado, tornou-se comum recorrer ao Poder Judiciário para se ter acesso ao medicamento pretendido. O fenômeno ganhou tal proporção que convencionou-se falar em “judicialização da saúde” diante do grande número de processos envolvendo solicitações no setor de saúde. Segundo o Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça, publicado em 2019 na sua 15ª edição, tramitam nos tribunais do país 2.228.531 processos referentes à judicialização da saúde, sendo que 544.378 dizem respeito ao fornecimento de medicamentos.

As demandas judiciais sobre o tema são cada vez mais frequentes e consequência da deficiência do sistema de saúde proposto pelo Estado, que fornece apenas alguns medicamentos previamente listados. A população, então, vê-se obrigada a procurar a tutela judicial de seus direitos, principalmente por meio de provimentos liminares. Busca-se obrigar a Administração Pública a cumprir o dever que lhe foi imposto pela norma constitucional de prestação universalizada do serviço de saúde.

O amplo acolhimento em juízo das ações de concessão de medicamentos demonstra a eficácia da proteção constitucional do direito à saúde, mas também gera preocupação por frequentemente impor aos administradores públicos vultuosos gastos não previstos em medicamentos de eficácia duvidosa. Alcançou-se um quadro em que a própria continuidade das políticas de saúde pública é posta em risco, dificultando a alocação racional dos escassos recursos públicos. Tornou-se urgente uniformizar entendimentos e critérios para a concessão de medicamentos na via judicial a fim de dar previsibilidade ao gestor público e segurança para o jurisdicionado.

O Superior Tribunal de Justiça buscou dar previsibilidade à questão ao julgar os casos de medicamentos requeridos pelos jurisdicionados que não estão previsto em atos regulamentares do SUS, principalmente a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), um elemento técnico-científico que orienta a oferta, a prescrição e a dispensação de medicamentos nos serviços do SUS. Nesse contexto, a corte resolveu afetar o Recurso Especial nº 1.657.156 ao rito dos recursos repetitivos. Atribuiu-se ao julgamento daquele recurso a uniformização de entendimento nos processos cujo tema versasse enunciado “Obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS”.

Sob relatoria do ministro Benedito Gonçalves, a Primeira Seção fixou tese de que nesse casso a concessão dos medicamentos exige a comprovação de três requisitos com base na jurisprudência do STJ e do STF: I) comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; II) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; III) existência de registro na Anvisa do medicamento.

Posteriormente, em sede de embargos declaratórios, o terceiro requisito teve sua redação alterada para “existência de registro do medicamento na Anvisa, observados os usos autorizados pela agência”, objetivando evitar que o sistema público seja obrigado a fornecer medicamentos que, devidamente registrados, tenham sido indicados para utilizações não previstas na bula registrada na Anvisa (utilização off label), nem mesmo em caráter excepcional. A decisão determina ainda que, após o trânsito em julgado de cada processo, o Ministério da Saúde e a Comissão Nacional de Tecnologias do SUS (Conitec) sejam comunicados para que estudem a viabilidade de incorporação do medicamento pleiteado no âmbito do SUS.

O Supremo Tribunal Federal também foi instado a se pronunciar sobre a questão nos Recursos Extraordinários com repercussão geral reconhecida 657718 e 566471, ambos sob a relatoria do ministro Marco Aurélio. O RE 657718 aborda a obrigatoriedade, ou não, de o Estado, ante o direito à saúde constitucionalmente garantido, fornecer medicamento não registrado na Anvisa, enquanto o RE 566471 trata do dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo.

Ao analisar o RE 657718, a maioria dos ministros da corte entendeu que o Estado não deve ser obrigado à fornecer o medicamento, salvo em caso de mora irrazoável [3] da Anvisa em apreciar o pedido quando preenchidos três requisitos: I) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); II) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e III) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. Também decidiram que as ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.

A aguardada decisão da corte deu-se por meio da conclusão pela constitucionalidade do artigo 19-T da Lei 8.080/1990, que veda, em todas as esferas de gestão do SUS, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento experimental ou de uso não autorizado pela Anvisa. Ponderou-se que o direito fundamental à saúde deve observar as possibilidades materiais do Estado e o planejamento de políticas públicas para a área, sob pena de restringir o acesso da coletividade ao aparato de saúde estatal que possui recursos escassos.                      

Nesse ponto, importa citar o voto do ministro redator do acórdão, Luis Roberto Barroso, que afirmou não se tratar de negativa ao direito fundamental à saúde, mas de perceber que o orçamento público é finito. O ministro destacou em seu voto que, para cada decisão judicial concedendo a oferta de medicamentos, há de ser feito um replanejamento da gestão do sistema de saúde estatal. Asseverou que esse sopesamento é necessário, pois “senão, não teremos universalidade, mas seletividade, onde aqueles que obtêm uma decisão judicial acabam tendo preferência em relação a toda uma política pública planejada”.

O julgamento do RE 566471, embora ainda pendente de formulação da tese, alcançou solução similar, tendo a corte, por maioria, estabelecido que o Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo solicitados judicialmente quando não estiverem previstos na relação do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, do SUS. Situações excepcionais ainda serão definidas na formulação da tese de repercussão geral.

Os citados julgamentos pretendem fornecer balizas aos juízes do país no que tange à concessão de medicamentos pela via judicial. O tema da judicialização da saúde é repleto de complexidades e sutilezas que não foram exauridas com as conclusões extraídas dos julgados do STJ e do STF e espera-se que essas cortes se debrucem novamente sobre a questão a partir de outros ângulos.

Entretanto, o esforço para uniformizar parâmetros e critérios demonstra que o Poder Judiciário não está alheio às dificuldades de planejamento que os gestores públicos de saúde enfrentam devido ao elevado número de decisões judiciais que geram custos não previstos. O estabelecimento de teses com critérios objetivos para o fornecimento de medicamentos pela via judicial, com as devidas resguardas para casos excepcionais, parece ter sido o caminho encontrado para equilibrar a efetividade do direito à saúde e as restrições orçamentárias do sistema de saúde público.

Essas diretrizes são fundamentais no momento atual em que a imprensa noticia medicamentos que supostamente curam o coronavírus. Espera-se que o Judiciário receba diversos pedidos para o fornecimento desses fármacos e caberá aos julgadores considerarem em cada caso, além das diretrizes jurisprudenciais, as dificuldades reais do gestor conforme o artigo 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). A observância desses fatores é um elemento-chave para que se atravesse o quadro de pandemia com a manutenção da promessa constitucional de um sistema de saúde público universal que concretize o direito à saúde e à vida.

[1] MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. São Paulo: Atlas, 2005.

[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª edição. São Paulo: Malheiros, 2008.

 é advogado, doutor em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha), ex-presidente do Conselho Federal da OAB e presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da entidade.

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A “descoberta” da mediação no Brasil

O último relatório estatístico anual — “Justiça em Números 2019″ [1] — publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que foi o 15º da série, inovou ao englobar a fase pré-processual no índice de conciliação total. O CNJ, desde que implantou o Movimento pela Conciliação, em agosto de 2006: I) vem proporcionando as Semanas pela Conciliação, com o intuito de estimular acordos, nas fases pré-processual e processual; II) criou os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs), que se tornaram Unidades Judiciárias por força da Resolução CNJ 219/2016, e os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemecs  — Resolução CNJ 125/2010); III) fortificou o Programa Resolve, que incentiva a autocomposição de litígios — conciliação e mediação — em questões previdenciárias, bancárias, habitacionais, consumeristas e trabalhistas, além de execuções fiscais; e IV) estabeleceu o índice de conciliação (percentual de sentenças e decisões resolvidas por homologação de acordo em relação ao total de sentenças e decisões terminativas exaradas).

Os Cejuscs alcançaram o número de 1.088 nas Justiças Estaduais ao final do ano de 2018.

Naquele ano, o percentual de sentenças homologatórias de acordo, em comparação com o total de sentenças e decisões terminativas exaradas, foi de 11,5%, índice esse em queda se comparado com o ano anterior. No mesmo ano, as sentenças homologatórias de acordo, na fase de execução, corresponderam a 6%, enquanto na de conhecimento, a 16,7%.

Se o índice de conciliação total levar em conta os procedimentos pré-processuais e as classes processuais como inquéritos, reclamações pré-processuais, termos circunstanciados, cartas precatórias, precatórios, requisições de pequeno valor, etc., o índice de conciliação sobe de 11,5% para 12,3% [2].

Em matéria de solução de litígios, o Brasil, ao independizar-se politicamente de Portugal, herdou a tradição lusa de solução judiciária. Realizada por juízes em nome do Estado, tal espécie de solução era, praticamente, a única que seria ensinada, por largo tempo, nas escolas de direito do país, que seguiam a tradição conimbricense. Tardiamente, por ocasião do quarto ordenamento processual [3] — o Código de Processo Civil de 1973 (artigos 447 e 448) — seria instituída a conciliação prévia obrigatória (hoje regida pelos artigos 165 a 175 do CPC/2015). Em 1996, acolheríamos a arbitragem pela Lei 9.307 (que, profundamente alterada pela Lei 13.129/2015, continua regendo o instituto). Unicamente por meio da Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, aderiríamos à mediação [4], que continua sendo regida por essa lei.

Os três institutos — arbitragem, conciliação e mediação — possuem duas características em comum: não fazer parte da jurisdição estatal e contar com a participação de um terceiro. Na arbitragem o terceiro é escolhido pelas partes, a quem compete exarar uma decisão (heterocomposição). Na conciliação, o terceiro aproxima os litigantes, cabendo-lhe sugerir decisões (autocomposição). Na mediação, auxilia os contendores a chegar a um acordo, sem apontar solução (autocomposição). Portanto, a diferença entre conciliação e mediação é somente de grau [5].

A Lei 13.140/2015 (Lei da Mediação) é aplicável à solução de conflitos, tanto no âmbito particular quanto na esfera da administração pública; desde que referentes a direitos disponíveis ou a direitos indisponíveis que admitam transação (artigos 1º, caput, e artigo 3º, caput). Esse diploma legal conceitua mediação como sendo a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia” (artigo 1º, parágrafo único).

Logo no início da lei, são explicitados os princípios que devem presidir a mediação e, por conseguinte, servir de guia para a interpretação de todo o seu articulado: imparcialidade do mediador, isonomia entre as partes, oralidade, informalidade, autonomia da vontade das partes, busca do consenso, confidencialidade [6] e boa-fé (artigo 2º, caput).

O mediador será designado pelo tribunal ou escolhido pelas partes (artigo 4º, caput), devendo conduzir o procedimento na busca do entendimento, do consenso e facilitando a resolução do conflito (artigo 4º, § 1º), sendo a ele aplicáveis as hipóteses legais de impedimento e suspeição do juiz (artigo 5º, caput), além de ser equiparado a servidor público com relação aos efeitos da legislação penal (artigo 8º).

A Lei versa sobre mediação judicial e extrajudicial, sendo disposições comuns ao procedimento de mediação: I) poderá haver mais de um mediador (artigo 15); II) em havendo processo arbitral ou judicial em curso, deverá ser requerido ao juiz ou ao árbitro a suspensão do processo pelo prazo suficiente, sendo irrecorrível tal decisão (artigo 16, § 1º); III) mesmo suspenso o processo, o juiz ou o árbitro poderá conceder medidas de urgência (artigo 16, § 2º); IV) ficará suspenso o prazo prescricional durante o transcurso do procedimento de mediação (artigo 17, parágrafo único); V) a primeira reunião da mediação marca a data de sua instituição (artigo 17, caput), que se encerra com a lavratura do termo final (artigo 20, caput); e VI) na hipótese de acordo, o termo final possui a força de título executivo extrajudicial e, após homologação judicial, de título executivo judicial (artigo 20, parágrafo único).

As principais regras sobre a mediação extrajudicial encontram-se a seguir. Os únicos pressupostos para atuar como mediador extrajudicial são possuir capacidade e deter a confiança das partes (artigo 9º). As partes poderão ser assistidas por advogados ou defensores públicos (artigo 10º). O convite à outra parte para iniciar procedimento de mediação, feito por qualquer meio de comunicação, conterá objetivo da negociação, data e local da primeira reunião (artigo 21), convite esse que será tido por rejeitado se não houver resposta até o trigésimo dia do recebimento (artigo 21, parágrafo único). Se a parte convidada não comparecer à primeira reunião de mediação e, posteriormente, vier a vencer procedimento arbitral ou judicial com escopo idêntico ao da mediação proposta, deverá pagar 50% de custas e honorários sucumbenciais (artigo 22, § 2º, inciso IV). A previsão contratual deverá conter os itens seguintes: prazo mínimo e máximo para a realização da primeira reunião de mediação, local da primeira reunião, critérios de escolha do mediador e penalidade para o não comparecimento da parte convidada à primeira reunião (artigo 22 e incisos de I a IV). Entretanto, essa exigência poderá ser substituída pela adesão a regulamento, publicado, de instituição idônea prestadora de serviços de mediação. (artigo 22, § 1º).

Regras mais relevantes sobre mediação judicial: o mediador judicial deverá ser graduado, ao menos há dois anos, por instituição de ensino superior e capacitada por escola de formação de mediadores, ambas reconhecidas, além de cumprir requisitos do CNJ e do Ministério da Justiça (artigo 11); os tribunais regulamentarão a inscrição e o desligamento de seus mediadores, mantendo cadastro dos habilitados, assim como fixarão a respectiva remuneração, a ser paga pelas partes (artigo 12, caput e §§ 2º e 3º e artigo 13); cabe aos tribunais criar centros judiciários de solução consensual de conflitos e desenvolver programas que facilitem a autocomposição, em consonância com normas do CNJ (artigo 24 e parágrafo único); a aceitação dos mediadores pelas partes não é pressuposto (artigo 25); é regra geral as partes serem assistidas por advogados ou defensores públicos (artigo 26); sendo apta a petição inicial, o juiz designará audiência de mediação (artigo 27), devendo o procedimento ser concluído, em princípio, em até 60 dias da primeira audiência (artigo 28); em havendo acordo, o juiz determinará o arquivamento do processo e, a requerimento das partes, homologará por sentença o acordo, bem como o termo final da mediação e arquivará o processo (artigo 28, parágrafo único); e se antes da citação do réu o conflito for resolvido por mediação, não serão devidas custas (artigo 29).

O capítulo II da lei (artigos 32/40) refere-se detalhadamente à autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público. Abre-se a possibilidade para que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios criem câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos junto aos seus órgãos da Advocacia Pública,  desde que competentes para: dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública; avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, em controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público; e promover celebração de termo de ajustamento de conduta (artigo 32 e incisos). A prescrição ficará suspensa caso instaurado procedimento administrativo (artigo 34). Poderão ser objeto de transação por adesão as controvérsias jurídicas que envolvam a Administração Pública Federal direta, suas autarquias e fundações, uma vez cumpridos certos pressupostos (artigo 35 e incisos). 

Com claro intuito de dar maior abrangência à lei, ressaltem-se as regras inseridas na Disposições Finais. No que couber, ela é aplicável nas áreas de competência de outras formas de resolução conflitual (mediações comunitárias, escolares e em serventias judiciais), muito embora não o seja no âmbito trabalhista (artigo 42 e parágrafo único). Havendo acordo das partes, poderá ser feita mediação por meios que permitam transação à distância (internet, etc.). facultando-se aos domiciliados no exterior submeterem-se à mediação nos termos dessa lei (artigo 46 e parágrafo único).

A contar da entrada em vigor da Lei 13.140/2015, a mediação tem-se revelado bastante hábil como meio de solução não judicial de controvérsias. O fato de agora ser dotada de quadro legislativo descomplicado, adaptável e ao mesmo tempo abrangente, fez com que a mediação despontasse. Se o Judiciário já se encontrava assoberbado, mais o estará em razão da desarrumação que a pandemia vem causando no mundo jurídico. Urge ser a mediação mais conhecida e utilizada, tanto no setor privado, quanto no público. Por essa razão, o Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) oferecerá, gratuitamente, online, palestra do especialista professor Rubens Tilkian, no dia 13 de maio, das 8h30 às 10h. Ele exporá as dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário e os benefícios proporcionados pela mediação às empresas e às pessoas físicas. Abordará, em detalhe, as diferenças entre mediação judicial e privada; em quais áreas a mediação é cabível; e os caminhos possíveis para iniciá-la e levá-la a bom termo. Ao final, apresentará case de sucesso, além de reflexões sobre o futuro do instituto no Brasil. Inscrições gratuitas: cursos@cedes.org.br.  

Com toda a certeza, a mediação fará com que o índice anual de conciliação apresentado pela “Justiça em Números”, atualmente em 11,5%, avançará de modo célere. Tanto questões de baixo valor econômico entre pessoas físicas quanto milhares de ações repetitivas entre pessoas jurídicas de grande porte, prestadoras de serviço, e pessoas físicas serão resolvidas.

 

[6] A Seção IV do Capítulo I da Lei intitula-se “Da Confidencialidade e suas Exceções”, possuindo dois artigos.

 é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).