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A pandemia, os humanos e a natureza

“O mundo parou. Os humanos estão recolhidos e amedrontados. A economia preocupa e há quem diga que o day after será mais difícil que o dia de hoje. Digladiam-se, ao invés de convergir, os que defendem a proteção da vida (isolamento social, redução de atividades) e os que defendem a proteção da economia (continuidade das atividades econômicas, proteção do emprego e da renda, proteção do trabalhador informal). Os cientistas buscam a origem da epidemia, vacinas que evitem e remédios que curem a doença: uma febre, mal-estar, tosse seca que pode evoluir para uma séria pneumonia, bloqueio dos pulmões e morte por insuficiência respiratória. A doença é transmitida por contato pessoal, de pessoa a pessoa; e a rapidez com que se espalhou pelo planeta, país a país, e com que contaminou em poucos dias boa parte da população surpreende.

Assim começava o meu último artigo, em 28 de março [1], quando a realidade ainda não se havia mostrado por inteiro. Passados 30 dias do artigo, 90 dias desde a chegada do coronavírus ao Brasil, 135 mil infectados e dez mil mortes aqui, vemos que algo diferente está acontecendo. Os bilhões de dólares gastos anualmente em armas e equipamentos de destruição são incapazes de destruir esse pequeno, vulnerável vírus que, se não contido por vacinas ou medicamentos, ou se não criarmos anticorpos, se transformará em uma das maiores ameaças aos humanos desde a nossa criação.

Em 1972, assisti por acaso no Cine Bijou, um pequeno cinema de arte situado na Praça Roosevelt, em São Paulo, que há muito deixou de existir, a um filme denominado “A Crônica de Hellstrom” [2]; o filme não fez muito sucesso na ocasião e, segundo sei, nunca foi exibido depois, embora tenha me impressionado tanto que dele me lembro após todos esses anos. Seu tema, nada romântico e com cenas impressionantes do mundo natural (a vida depende da morte), cuida da batalha diária pela sobrevivência e conclui que das milhões de espécies que popularam a Terra apenas duas sobreviveram e aumentaram a própria população após as diversas hecatombes de nossa história geológica: os insetos (e aqui incluo, para o efeito deste artigo, os vírus, as bactérias e quetais) e os humanos. O filme anota que a sobrevivência dos dois decorre de uma especial adaptação às mudanças que ocorreram na planeta, e que sobreviverá quem melhor se adaptar às mudanças ainda por vir. Não conto o final da batalha para não estragar o interesse de quem se animar a ver o filme.

Desmond Morris em “O Macaco Nu” (nós), escrito por um biólogo, zoólogo e etólogo, escreveu: “Sou zoólogo e o macaco pelado é um animal. É, portanto, caça ao alcance de minha pena e recuso-me evitá-lo mais tempo, só porque algumas de suas normas de comportamento são bastante complexas e impressionantes. A minha justificativa é que, apesar de ter se tornado tão erudito, o homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado e, embora tenha adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das mais primitivas e comezinhas. Isso causa-lhe muitas vezes certo embaraço, mas os velhos instintos não o largaram durante milhões de anos, enquanto os mais recentes não têm mais de alguns milhares de anos e não resta a menor esperança de que venha a desembaraçar-se da herança genética que o acompanhou durante toda a sua evolução” [3].

Os humanos nasceram e evoluíram na natureza. Mas o que é “a natureza” de que tratamos? Como se vê em uma busca rápida na internet, “Latim, naturacomp. pelo tema natus, p.pass. de nascere = nascer e urus = sufixo do particípio futuro de oritur = surgir, gerar, a força que gera. Aquilo que surge, que se dá por nascimento. Aquilo que é e faz por nascimento segundo leis universais aplicadas a um preciso contexto. Ordem ou sistema de leis que precedem a existência das coisas e a sucessão dos seres. O conjunto de todos os seres que compõem o universo” [4]. A natureza é a força que gera a ordem ou sistema de leis que precedem a existência das coisas e a sucessão dos seres; a natureza não “nasce”, mas é nela, segundo suas regras, que coisas e seres nascem, vivem e morrem.

A natureza contém as regras que regulam a formação das galáxias, estrelas, planetas e tudo que é contido no Universo; mas é a natureza na Terra que nos preocupa. Não adentro a discussão da presença de Deus na criação da natureza, própria a outro momento e local; basta-nos aqui anotar a existência de regras que precedem a existência das coisas que existem, inclusive a vida, lembrando a sedutora Hipótese ou Teoria Gaia de James Lovelock, segundo a qual a Terra é um organismo vivo com suas regras, nas quais nos movimentamos [5]. Uma dessas regras é o equilíbrio, que sempre retorna após rompido, ainda que em uma relação diferente da anterior.

Assim são as coisas inanimadas, que após o terremoto voltam a imobilizar-se em outra posição. Assim são as coisas vivas, que dependem da conversão de energia e não podem consumir mais do que a energia disponível: as plantas convertem em energia o sol, o carbono do ar, os nutrientes do solo; são a fonte de energia de animais, insetos, micróbios que delas vivem, que são a fonte de energia de outros seres que deles se alimentam, até o topo final da cadeia alimentar. O desequilíbrio implica na adequação de toda a cadeia alimentar, com a extinção de alguns, a alteração de outros, a chegada de seres novos, até que se estabeleça um novo equilíbrio em um movimento lento, próprio à evolução e aos processos naturais.

O equilíbrio foi rompido pelos humanos ao desenvolver uma forma de vida fora desse tempo e dessas regras, como anota Jared Diamond (em tradução livre): “Na maior parte dos seis milhões de anos da evolução humana, todos os humanos e proto-humanos viveram como um tipo diferenciado de chimpanzés, em uma população de baixa densidade espalhada pela paisagem como famílias ou pequenos bandos. Apenas nos últimos seis mil anos, uma pequena fração da histórias humana, alguns de nossos antepassados se juntaram em cidades. Mas hoje mais da metade da população do mundo vive nesses novos locais, alguns com dezenas de milhões de habitantes” [6].

Esse crescimento da população humana implicou na apropriação de parte cada vez maior do mundo natural através do desenvolvimento de novas formas, ou técnicas, de conversão de energia: a caça e a extinção das espécies desde a pré-história, a agricultura e a pecuária, a conversão de matas para a produção de alimentos, de bens e para a criação de cidades. Esse desequilíbrio terá um fim, pois como visto acima a natureza caminha sempre para o equilíbrio, com uma ordem diferente desta que conhecemos.

Curiosamente, a parte mais antiga da vida no planeta é pouco conhecida por nós e está em nosso entorno, inclusive no ar que respiramos, como anota Nathan Wolfe depois de 15 anos de pesquisa sobre micróbios (em tradução livre): “Como resultado, comecei a pensar no ar como o meio para a próxima pandemia, mais que um modo de sustento da vida. Mas respire sem medo: a maioria dos micróbios no ar nos causa pouco ou nenhum mal, e alguns certamente nos faz bem. A verdade é, nós ainda sabemos muito pouco sobre eles” [7]. Esse pouco conhecimento é manifesto no caso da Covid-19, como informa Nísia Trindade, presidente da Fiocruz: “Nossos estudos já apontam mutações que é uma característica dos vírus. Mas ainda estamos estabelecendo correlações entre essas mutações e o tipo de manifestações clínicas relacionada. Não quero causar pânico, mas esse vírus é um grande desconhecido, um estrangeiro” [8].

Sabemos que as pandemias têm origem na transmissão de vírus por animais e pássaros, as chamadas zoonoses, e que essa transmissão vem ocorrendo com mais facilidade por causa da redução dos habitats, pelo contato de espécies que antes pouco ou não se encontravam e pelo contato dessas espécies com os humanos, como decorre do tráfico de animais, dos mercados de animais vivos, da proximidade dos humanos com a natureza de que se separou; decorrem das intervenções mal pensadas e do simples crescimento exponencial dos humanos, de uma forma de vida perdulária e da perda de respeito pela natureza.

Não basta aprender mais sobre os micróbios, pois eles e os insetos continuarão sua rápida mutação e a transmissão de doenças; a simples multiplicação da nossa população, somada às mudanças climáticas, à destruição dos habitats e das espécies, trará novas pandemias e novas crises. A tecnologia e a ciência têm limites e lembro se desenvolvem na natureza, dentro da natureza, cujas regras não prevalecem contra as regras da natureza. É preciso que os humanos vejam o que está à sua volta e repensem a estrutura maior em que estão inseridos, deixem de lado a arrogância do nosso aparente sucesso e lembrem que essa nossa forma de vida não apaga, como disse Desmond Morris, que “o macaco pelado é um animal” que não submete a natureza, mas a ela está submetido.

Retorno à crônica de Hellstrom. A dimensão da pandemia causada por um pequeníssimo vírus nos força a enfrentar perguntas que evitamos no dia a dia e a pensar em nossa espécie e em nosso planeta, decidindo agora o que vai moldar a vida dos humanos que ainda não nasceram. Difícil? Sim, mas necessário, pois a natureza não reclama, ela se vinga.

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O debate Hart-Fuller: discussão sobre veículos no parque público

Em 1957, a Harvard Law School recebeu a visita de um dos mais renomados juristas da época, o Professor H. L. A. Hart, para ministrar palestra e expor a sua teoria positivista do Direito. Hart havia sido convidado por ninguém menos que Lon Fuller, à época, Catedrático de Jurisprudência da casa, quem esteve presente ao longo de toda sua exposição. Conta-se a história de que, durante a fala de Hart, Fuller, conhecido por seus estudos acerca da moralidade do Direito e por afirmar um posicionamento antipositivista, “ia de lá para cá no fundo da sala como um leão faminto”[1], angustiado com as conclusões que ali estavam sendo concebidas, pedindo, ao final, o direito a sua réplica.

O direito foi concedido, oportunizando, naquele momento, um dos debates mais importantes e mais ricos para a Teoria do Direito, rendendo, no ano seguinte, a publicação de dois artigos na Harvard Law Review: um de Hart, sustentando seus argumentos, e um de Fuller, contrapondo-os, agora de forma escrita.

Mas com o que, afinal, Fuller angustiava-se? É preciso esclarecer o contexto em que se deu a discussão. À época, havia uma grande questão, de natureza dupla, acerca do Direito na Alemanha Nazista: (1) se ele, conforme estabelecido, poderia ser considerado um sistema efetivamente jurídico e (2), a posteriori, como um sistema jurídico pós-Nazismo deveria responder aos atos institucionais autorizados pelo Reich, que eram revestidos de imoralidade.

Após a Segunda Guerra Mundial, os Tribunais alemães viram-se obrigados a julgar alguns casos de crimes de guerra, de espiões e informantes do regime nazi. As pessoas acusadas destes crimes defenderam-se no entendimento de que suas ações não foram ilegais, pois estavam conforme a legalidade do regime dominante naquele momento. Ou seja, tais agentes apenas cumpriram ordens de uma autoridade hierarquicamente superior. Esse argumento foi contraposto a partir da ideia de que tais leis deveriam ser consideradas inválidas, isto por serem contrárias a princípios fundamentais da moralidade. É o caso, por exemplo, de uma mulher que, em 1944, na tentativa de se separar do marido, à época, membro do exército alemão, denunciou às autoridades algumas manifestações injuriosas sobre Hitler que ele havia feito enquanto estava de licença em sua casa, violando as leis que protegiam o Terceiro Reich de afirmações prejudiciais ao governo. Após a queda do regime, a mulher fora acusada do crime de privar uma pessoa de sua liberdade (positivado na Alemanha desde 1871) e defendeu-se sob o argumento de que estava amparada pelas leis anteriores. A questão que se criou, portanto, é a seguinte: a legislação que amparou a conduta da esposa, por ser era contrária a princípios de moralidade, deveria ser considerada inválida?

Positivism and the Separation of Law and Morals, de Herbert Hart
Apesar de Hart iniciar a discussão analisando as teorias de Austin e Bentham, nosso foco não será nesta parte do artigo, tendo em vista que seu propósito foi única e exclusivamente aprofundar tais teorias para adentrar no fio condutor da argumentação acerca da separação entre ser/dever ser. Segundo Hart, há dois problemas que se seguem a partir de uma filosofia que não faz a devida diferenciação conceitual entre as esferas do Direito e da moralidade, que já haviam sido diagnosticados pelos autores utilitaristas referidos acima: a derivação de um dever-ser, ought, de um ser, is; dito de outro modo, a derivação de uma premissa normativa de premissas descritivas. Isso geraria dois tipos de problemas: o primeiro deles é o fato de que, ao permitir a aproximação do sistema jurídico com a moralidade, o intérprete estaria legitimado a desobedecer ao que fora previamente positivado, por acreditar que tal positivação devesse ser diferente. Ou seja, permitiria uma consequente dissolução do Direito e de sua fidelidade nas concepções humanas do que ele deve ser. O segundo deles seria inversamente proporcional, no sentido de dizer que o Direito já é aquilo que ele deveria ser, ultrapassando qualquer crítica reformadora.

Para confrontar as respostas dos realistas americanos, Hart traz à tona uma questão importantíssima, que, futuramente, serviu de guia para o seu raciocínio argumentativo. Ao considerar, por exemplo, uma regra que proíbe veículos nos parques públicos, de pronto compreende-se pela proibição de automóveis. Há, nesse sentido, um núcleo de significação padrão, compreensível a qualquer um, em relação ao termo “veículos”. No entanto, segundo Hart, existem determinados casos concretos que elevam a norma a um nível de indeterminação: “mas o que dizer das bicicletas, skates, automóveis de brinquedo? O que dizer sobre aviões? Estes, como dizemos, devem ser chamados de ‘veículos’ para os fins da regra ou não?”[2]. Tais indeterminações são chamadas por ele de “problemas de penumbra”, impossibilitando a aplicação da regra de forma imediata. Nesse contexto,, em razão da insuficiência do sentido literal do termo, no momento da aplicação prática da regra ao caso em zona de penumbra, alguém deverá assumir a responsabilidade de decidir qual o alcance das palavras, o que elas abrangem e o que deixam de abranger.  Esse alguém, portanto, trata-se do julgador, quem possui a legitimidade para a interpretação.

Seguindo seu raciocínio, Hart conclui a seguinte questão: nos casos em que não exista controvérsia sobre a aplicação da norma, ou seja, em que o problema de penumbra não se faz presente, o intérprete simplesmente descreverá o Direito, aplicando a norma tal como ela está posta. A norma, portanto, apenas é, sem interferências externas, como política, moralidade ou economia. Em contrapartida, quando houver indeterminação em relação à aplicação do sentido literal a algum caso concreto extraordinário, é preciso ir além. O intérprete deverá escolher uma das várias possibilidade daquilo que o Direito deve ser[3], em consonância com a sua concepção, que pode ser tanto política quanto econômica ou moral. Aceita-se, nesse contexto, um poder discricionário que se assemelha ao poder do legislador, capaz de promover a criação da regra. Há, por parte do julgador, um exercício interpretativo criativo. E — apenas — então, aceita-se a interferência de aspectos de moralidade no Direito.

 

Obviamente, Hart identificou o problema da interpretação meramente literal dos textos jurídicos[4], oferecendo como resposta a interpretação criativa do julgador, afirmando a dicotomia existente entre o Direito como ele é e o Direito como ele deve ser (evidenciando a diferenciação juspositivista entre fato e valor). No entanto, é importante ressaltar que tal discricionariedade, conforme os termos elencados por Hart, não significa necessariamente uma junção entre ser/dever ser, ou seja, entre Direito e moral. Obviamente, também é necessária a consideração dos fins, das políticas sociais e dos propósitos utilizados pelos juízes, mas estes devem ser considerados em si mesmos como parte do sistema jurídico. Isso não significa que o termo dever ser seja um produto de intersecção daquilo que o Direito é, mas, sim, que a distinção é feita entre aquilo que o Direito é e as variadas e diferentes concepções daquilo que ele deve ser. Ou seja, refere-se a um standard de análise crítica, rejeitando-se, ainda, que haja uma conexão necessária.

E qual a relação disso tudo com os julgamentos do Tribunal de Nuremberg? Bem, afirmar uma separação entre Direito e moralidade, leia-se, entre o fato e o valor, significa, também, afirmar que o Direito é independente de concepções morais acerca de como ele deve ser. Nesse sentido, após o contexto nazista, a comunidade jurídica da época visualizou a necessidade de se juntar aquilo que os utilitaristas haviam separado. No entanto, Hart descarta que essa possibilidade seja essencial para que os julgamentos tomem um rumo racional. O efeito de uma desobediência aos critérios estipulados pelo Direito, ainda que tais critérios sejam considerados imorais ou injustos, poderiam ensejar o enfraquecimento da própria autoridade do sistema jurídico. Por isso, em que pese tais atos sejam extremamente repreensíveis, estavam dentro da legalidade, ou melhor, dentro da juridicidade, e, sendo assim, Hart compreende que as suas punições apenas poderiam ser feitas por meio de legislação retrospectiva[5]. O contrário seria confundir o Direito como ele é daquilo que ele deveria ser, com todos os problemas que isso pode acarretar.

Positivism and fidelity to Law: a reply to Professor Hart – Lon Fuller
Será mesmo que uma concepção baseada na relação necessária entre as instâncias do Direito e da moralidade acarretaria tantos problemas assim? Fuller fornece respostas diferentes para a questão, objetando os pressupostos filosóficos da teoria de Hart.

Sua leitura sobre as análises de Hart concluem que há uma confissão positivista de que os fins perversos poderiam ter tanta coerência e lógica interna como os fins não perversos. Fuller se recusa a aceitar tal presunção. Sua crença, embora – assumidamente – “ingênua”, é de que a coerência e a bondade possuem maior afinidade entre si do que a coerência e a maldade. É em razão disso que, quando os indivíduos veem-se obrigados a explicar e justificar suas decisões, geralmente, direcionam-as em uma argumentação que se relacione com a bondade, qualquer que seja o standard de uma boa moralidade. Nesse contexto, se é verdade que o Direito é um dos refúgios mais seguros, não seria assim pelo fato de que, inclusive nos regimes mais corruptos, há uma hesitação em legalizar crueldades, intolerâncias e atos desumanos? E, não é claro que essa hesitação deriva não da separação entre Direito e moral, mas, precisamente, de uma identificação do Direito com as demandas mais urgentes de moralidade?[6]

Fuller, então, contradiz a tese positivista da separabilidade, pois haveria uma finalidade inerente ao Direito e uma consequente conexão deste com a Moral. Para que uma legislação seja efetiva, deve ser aceita, ao menos provisoriamente, não somente como Direito mas também como um bom Direito. Em outras palavras, o filósofo americano compreende que, para que uma legislação tenha condições mínimas de cumprimento, suas disposições devem, por consequência, serem simples e fáceis de entender, não somente em virtude de sua linguagem mas também em razão de seu propósito.

O que ele pretende demonstrar é que, para que seja possível chamar um sistema jurídico de Direito (e tratá-lo como tal), deve haver, necessariamente, uma administração mínima que observe princípios de moralidade procedimentais (posteriormente, em sua obra The Morality of Law[7], Fuller os desenvolve com maior profundidade). Tais princípios de moralidade observam, basicamente, questões como a publicidade, a clareza, a não contradição, a prospectividade e a consistência das regras, considerando que, nos sistemas que não lhes conferem o devido respeito, verifica-se a impossibilidade de serem considerados como sistemas jurídicos. O Direito, nesse sentido, sendo uma ordem, contém sua própria moralidade implícita, que é condição de possibilidade para a sua própria existência. Nas palavras de Fuller, trata-se da moralidade que torna o Direito possível; um sistema jurídico que não observa essas demandas não é apenas um sistema ruim, mas sequer é um sistema efetivamente jurídico digno do rótulo.

É com essas reflexões que Fuller contesta não apenas a diferenciação feita entre fato/valor, Direito/moral, mas, sobretudo, a conclusão de que o regime nazista não poderá ser considerado direito para os julgamentos do Tribunal de Nuremberg (o que possibilita outro campo de debate, que, por questões de limitação de espaço, não nos debruçaremos). Tais princípios de moralidade interna não foram respeitados pelas autoridades nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Um Direito que é injusto, ou seja, que não observou um princípios mínimos para a sua administração, não é (e não deve ser) considerado Direito. Essa aproximação fulleriana das instâncias do is e do ought é explicada por sua concepção teleológica. Fuller entende que não se pode separar os planos do ser e do dever-ser quando tratamos de empreendimentos que se destinam a um fim. Algo só é, ontologicamente, na medida em que se põe como aquilo que se pretende ser. Sendo o Direito um empreendimento coletivo que tem como objetivo coordenar, guiar e orientar a conduta humana por meio de regras estabelecidas, um sistema jurídico só será Direito quando efetivamente respeitar os princípios mínimos que tornam esse objetivo possível.

Mas a discussão não termina nesse ponto. Fuller contrapõe, também, a resposta que Hart oferece ao problema da interpretação das regras. Segundo ele, há um defeito gritante na suposição hartiana de que os problemas de interpretação aparecem tipicamente em relação aos termos termos individualmente considerados, tendo em vista que o significado não está adstrito apenas a uma palavra, mas sim a uma frase, a um parágrafo ou às demais partes do texto. Fuller descarta que exista um significado nuclear das palavras que se mantenha constante independente do contexto em que apareça. Nesse sentido, por meio do significado de uma frase, de um parágrafo ou, até mesmo, de uma página, é possível extrair o propósito daquele conjunto, que sempre estará lá.

Se a regra que proíbe veículos nos parques públicos é aplicada facilmente nos casos considerados não complexos, isso se dá em razão de claramente ser possível interpretar o propósito das regra em linhas gerais, ou seja, de extrair qual finalidade ela possui. Nesse sentido, todos que estão sujeitos a essa regra não precisam se preocupar com a diferença entre Fords e Cadillacs[8]. Também o intérprete não precisará se preocupar em ser discricionário (e nem deverá fazê-lo), tendo em vista que, diante de um caso de grande complexidade, em que o termo não se ajusta de forma direta ao caso concreto, basta que essa busca pelo propósito/finalidade da norma seja novamente percorrido para que a solução seja fornecida. Qual a finalidade da norma que proíbe veículos nos parques públicos? Se ela serve para permitir que se tenha um melhor tráfego de pedestres, não faz sentido, diante dos seus termos, proibir que um veículo seja exposto como monumento histórico no meio do parque. O Direito, afinal, não é apenas um conjunto de regras isoladas e abstratas, mas um corpus juris, que, tomado em seu conjunto, orienta-se em uma determinada direção a partir de sua lógica própria. Os princípios mesmos que informam a possibilidade de existência do Direito qua Direito permitem também que os sistemas sejam orientados a partir de diretrizes que possibilitam sua interpretação como sistemas que são.

Conclusões
O debate Hart-Fuller não se resumiu apenas à discussão acerca da validade do direito nazista, da tese da separabilidade e do problema da interpretação. Tratou-se, sobretudo, de uma divergência acerca do próprio conceito de Direito. Para Hart, as regras jurídicas não são capazes de estabelecer com antecedência todos os casos concretos, abrindo-se a possibilidade extraordinária de existir uma zona de penumbra, que, consequentemente, permitirá a discricionariedade judicial. Para Fuller, a discricionariedade não é necessária nem legítima, pois o julgador deverá observar a finalidade (o propósito) da norma, que está adstrita ao texto, recorrendo àquilo que a própria regra tem a dizer. Hart e Fuller, portanto, cada um a seu modo, desenvolveram, articularam e anunciaram perguntas e proposições que constituem o que há de mais importante na teoria do Direito: questões sobre legitimidade, sobre interpretação, sobre o que é, afinal, Direito.


[1] Lacey, Nicola. A Life of H.L.A. Hart. Oxford University Press, 2004, p. 197.

[2] H. L. A. Hart. Positivism and the separation of Law and Morals. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 607 (tradução livre).

[3] H. L. A. Hart. Positivism and the separation of Law and Morals. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 613.

[5] H. L. A. Hart. Positivism and the separation of Law and Morals. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 620.

[6] FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to Law: a reply to Professor Hart. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 637.

[7] FULLER, Lon L. The Morality of Law. Edição revisada. New Haven: Yale University Press, 1964.

[8] FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to Law: a reply to Professor Hart. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 663.

 é mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Giovanna Dias é graduanda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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A responsabilidade do Poder Judiciário ante a crise da Covid-19

Introdução

Direito e Medicina sempre foram áreas do conhecimento que aparentam autonomia e independência entre si. No entanto, vários fatores vêm aproximando essas duas áreas cada vez mais: dificuldade de atendimento no sistema público de saúde; interferência do Judiciário em políticas públicas; obtenção de medicamentos e tratamentos; ética médica e erros médicos, para citar alguns. Agora, em um cenário de pandemia de escala global, definitivamente já não há como abraçar a tese da autonomia entre as áreas. A crise sanitária nos mostra uma zona de superposição, na qual os interesses — e as soluções oferecidas — são conflitantes.

No Brasil, há um crescente apelo para a efetivação do direito à saúde. Pesquisa elaborada pelo Insper a pedido do Conselho Nacional de Justiça [1] revelou que, entre 2009 e 2017, o incremento percentual das demandas de saúde no Judiciário foi maior do que o aumento percentual do total de demandas ajuizadas: ou seja, em matéria de saúde, há um crescimento acima da média da litigância nacional. E tudo indica que, em cenário de pandemia, essa porcentagem aumentará.

Tal quadro de judicialização, combinado com a iminência de colapso do sistema de saúde por força da Covid-19, é uma bomba-relógio para as instituições e para os próprios profissionais de saúde, que já enfrentam inúmeras dificuldades em condições normais de funcionamento.

Judicialização da saúde em tempos de crise

A deficitária infraestrutura da saúde brasileira, as desigualdades regionais e sociais e mesmo a vulnerabilidade de grande parcela da população maximizam as chances de acionamento do Judiciário para dirimir conflitos que surjam em decorrência da pandemia.

Dentre eles, especificamente na área da saúde, destacam-se: (i) a judicialização da ocupação de leitos hospitalares, sobretudo de unidades de terapia intensiva, em um cenário no qual não há vagas para todos, mesmo para casos que não envolvam a Covid-19; (ii) pedidos de adoção de tratamentos que não possuam eficácia cientificamente comprovada, ainda que também não haja evidência do contrário; e (iii) pedidos para fornecimento de medicamentos que se encontram em falta no mercado.

Esses conflitos presumidamente majoritários possuem ao menos dois pontos em comum: (i) todos visam a tutela judicial tão somente para o atendimento de demandas individualizadas, o que acaba por comprometer o Estado em detrimento do coletivo; e (ii) em todos corre-se o risco do Judiciário se sobrepor ao Executivo em matéria de políticas públicas de saúde, principalmente se os magistrados não possuírem meios adequados de informação e suporte técnico para decisão. E serão justamente essas questões as fiéis da balança entre a concessão da tutela judicial individualizada ou sua negativa.

O primeiro dos conflitos versa sobre a judicialização de leitos hospitalares. O que está em jogo é a capacidade de atendimento do sistema de saúde ante suas diversas limitações, afinal, o elevado crescimento da curva de contaminação pode levá-lo ao colapso.

Sob esta perspectiva, faltariam leitos em UTIs, respiradores artificiais e recursos humanos para lidar com a quantidade de pacientes. Haveria aqueles que, mesmo atingido o limite da capacidade de internação hospitalar, recorreriam ao Judiciário para conseguir sua vaga.

Não há receita certa para solucionar a questão, tampouco a retirada de leitos da cartola dos entes federados da noite para o dia. A adoção de medidas de restrição de circulação de pessoas e de isolamento social pretende achatar a curva de contágio, atrasar seu pico e dar alguns dias de fôlego ao sistema. Enquanto isso, gestores públicos buscam providenciar a estrutura necessária para receber os pacientes, por meio da criação de novos leitos, da construção de hospitais de campanha e da aquisição de insumos — que necessitam de tempo para serem providenciados.

A progressiva concessão de tutelas jurisdicionais, ainda que sirva para atender a demandas de pacientes específicos, tem o potencial de trazer grave problema a esses gestores, que se veriam forçados ao cumprimento das ordens judiciais em detrimento da observância de protocolos clínicos — e é natural que uma família pense mais no atendimento de seu ente do que na concretização de uma política pública geral.

Quanto ao segundo conflito, acerca da obrigação de adoção de protocolos clínicos com eficácia não comprovada, vale trazer uma retrospectiva de um marcante episódio que, embora muito menor em escala se comparado à Covid-19, deixou algumas lições que podem ser aproveitadas: trata-se do caso da fosfoetanolamina, a “pílula do câncer”, ocorrido entre 2015 e 2016.

Naquela ocasião, alegava-se que a substância, sintetizada artificialmente e em caráter experimental por um docente da USP, teria propriedades miraculosas que poderiam curar o câncer.

A repercussão e pressão popular foram tamanhas que milhares de ações foram propostas para ordenar ao Estado o fornecimento da pílula a pacientes com câncer. Até mesmo uma lei chegou a ser editada autorizando o uso terapêutico e sua produção farmacêutica (Lei n° 13.269/16, de autoria, dentre outros, do então deputado Jair Bolsonaro). Cerca de um mês após a entrada em vigor, a norma foi suspensa por decisão do STF em sede de medida cautelar no âmbito da ADI 5.501.

Mesmo hoje, passados quase quatro anos dessa decisão, o Judiciário continua processando essa enxurrada de demandas, sendo ainda inúmeros os pedidos para fornecimento da substância. [2]

No terceiro e último conflito, relativo ao fornecimento de medicamentos em falta no mercado ou que não foram adquiridos pelo Estado, há o problema adicional de falta de efetividade da tutela jurisdicional, ocasionado, por exemplo, pela logística de aquisição e distribuição dos mesmos. Muitas vezes os magistrados, por falta de apoio técnico e conhecimento específico, não sabem a real situação do fármaco no mercado ou a existência de tratamento alternativo, dentre outros aspectos.

Nestes casos, obter ou não a tutela não tem efeito algum para a saúde do paciente, uma vez que este não receberá o fármaco de imediato. Novamente, há um problema sistêmico, pois seu deferimento, neste caso, obrigaria o Estado a buscá-lo no exterior — o que demanda tempo e elevados gastos — ou deixar de atender à decisão judicial.

Problemas complexos, soluções conjuntas

Se são inevitáveis as ações judiciais — e ninguém deseja impedir os jurisdicionados de exercerem seu direito de ação —, os tribunais precisarão de lastro técnico e informações completas para decidir com racionalidade e serenidade. Nesse momento, é preciso que haja forte articulação interinstitucional e atuação conjunta de diversos órgãos para evitar que as decisões judiciais sirvam de força motriz do colapso do sistema. A palavra-chave, aqui, é “cooperação”.

A cooperação interna já é conhecida no meio jurídico. Há casos bem sucedidos, como o projeto do NAT-JUS Nacional, desenvolvido pelo CNJ em 2019. [3] Derivado do Fórum Nacional do Judiciário para o monitoramento e resolução das demandas de assistência à Saúde, iniciado em 2010, programas como o NAT-JUS Nacional devem ser vistos como o paradigma colaborativo ideal para o momento atual, na medida em que a plataforma permite ao Magistrado requisitar subsídio científico para ampará-lo na tomada de decisões. Este conhecimento é fundamental em matéria de saúde, na qual o julgador tem, diante de si, situação pouco conhecida e que enseja rápida resposta.

Em março de 2020 surgiu outro interessante exemplo: a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), vinculada ao STJ, criou plataforma para dar suporte a magistrados em casos relacionados à pandemia. [4] Seu intuito é disponibilizar um repositório de legislação, artigos, estatísticas, pareceres, notas técnicas, decisões e cursos à distância para auxiliar na tomada de decisão com visão sistêmica e interdisciplinar.

Nessa linha, o CNJ também divulgou estudo realizado pelo Hospital Sírio-Libanês acerca da hidroxicloroquina para tratamento ao Covid-19, para orientar magistrados no julgamento de demandas que visam a sua concessão. A pesquisa concluiu pela incerteza quanto aos seus efeitos clínicos e de segurança, não recomendando seu uso indiscriminado até que novos estudos a avaliem apropriadamente.

E isso pode revelar outro complicador: mesmo para casos de fármacos com eficácia comprovada já há uma dificuldade natural no julgamento de processos. Nos casos envolvendo a Covid-19, a questão ganha contornos dramáticos. Mesmo com plataformas como o NAT-JUS, a incerteza científica sobre a Covid-19 é latente.

Nestes termos, poderia ser cogitado o descarte da colaboração recíproca, já que não há certeza científica suficiente para amparar com segurança absoluta as decisões judiciais. Entretanto, a situação atual enseja medida diametralmente oposta: a articulação interinstitucional deve ser observada no maior grau possível de intensidade – e não apenas na tomada de decisões judiciais, mas na construção de políticas públicas que possam atenuar essa excessiva judicialização.

Entram em cena, aqui, os Comitês Estaduais de Saúde, órgãos derivados da Resolução 238/2016 do CNJ, que vêm a desempenhar essa função de cooperação interinstitucional. Em São Paulo, o Comitê foi implantado no TJSP, tendo como parceiros o TRF da 3ª Região, o MPF, o MPSP, a AGU, a PGE, a PGM de São Paulo, a DPU, a DPE, as Secretarias de Saúde, o Conselho dos Secretários Municipais de Saúde, e os Conselhos Profissionais de Medicina, Farmácia e Administração. A interação entre esses diferentes segmentos possibilita visão sistêmica dos problemas e soluções conjuntas.

Outro instrumento de que o Judiciário pode lançar mão são as câmaras de conciliação. A partir da identificação de pontos de contato entre demandas, é possível montar estruturas para estimular a autocomposição, garantindo-se efetividade às decisões e desafogando os gabinetes de parte das demandas.

Durante a eclosão da Covid-19, o Gabinete de Conciliação do TRF da 3ª Região estruturou fluxo específico para analisar a possibilidade de conciliação de demandas pertinentes à saúde ou a reflexos das medidas de combate à pandemia. Em parceria com o TJSP, o MPF, o MPSP, a DPU, a DPE, a AGU, a PGE e a PGM de São Paulo, além de Secretarias de Saúde, possibilita-se aos juízes que, ao receber uma demanda, possam consultar os GABCONCI e CECONs da Justiça Federal, o CEJUSC do TJSP, os órgãos de saúde e os responsáveis pelo cumprimento de eventuais liminares, no intuito de se buscar, em até 48 horas, uma resposta — e eventualmente, uma proposta — sobre conciliação.

Naturalmente, tal fluxo — também válido em fase pré-processual — não resolverá todas as ações judiciais, mas tem a vantagem de reunir de forma rápida e informal diversos órgãos — e possivelmente evitar longos conflitos. Sua utilização está em fase de expansão para outras localidades e matérias.

Essa colaboração é vantajosa em uma pandemia na qual o conhecimento científico ainda é incipiente e a parca infraestrutura de saúde pública aumenta a chance de escolhas difíceis e complexas pelo Judiciário. Pela conciliação podem também ser trabalhados conflitos entre entes federativos, a exemplo dos já acontecidos pelo direito de comprar e usar medicamentos e equipamentos hospitalares.

Considerações finais

Com os exemplos citados, vislumbra-se um lado positivo da atuação do Judiciário nessa zona superposta entre as áreas de Direito e Medicina: o de atuar como mediador de conflitos externos entre Poderes, agentes públicos, entes privados e especialistas, como o recente apelo feito ao STF. [5]

Este momento, tal qual nas grandes crises, é propício para promover reflexões sobre como analisamos as situações e sobre os modelos e paradigmas tradicionais. Uma dessas reflexões toca o mito da incompatibilidade entre Direito e Medicina, que deve ser deixado de lado, para que estas áreas, convivendo harmoniosamente, amparem os seres humanos em suas esferas social e clínica.

Muitos dos conflitos gerados são inevitáveis, principalmente em tempos de crise sanitária, e podem ser agravados se faltarem informações e suporte técnico ao responsável pela tomada de decisões. Cabe ao Judiciário fomentar mecanismos de cooperação institucional e articulação entre os demais órgãos para reduzir as arestas entre eles, possibilitando a criação de políticas públicas articuladas e sistêmicas, bem como a racionalização no processo de tomada de decisões.

O triste período vivido pelo Brasil — e, de forma geral, por todo o mundo — não é o primeiro em que Direito e Medicina são instados simultaneamente a dirimir problema de ordem prática, e tampouco será o último. Contudo, a razoabilidade deve prevalecer: é tempo de deixar o protagonismo individual de lado e medir esforços contra um inimigo comum, sob risco de perecimento da própria sociedade.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


[1] https://www.cnj.jus.br/demandas-judiciais-relativas-a-saude-crescem-130-em-dez-anos/

[2] Vide AI n° 2033560-98.2020.8.26.0000 (Rel. Des. Viana Cotrim, j. 26/03/20) e AI n° 2247968-47.2019.8.26.0000 (Rel. Des. Marcos Tamassia, j. 18/12/19)

[3] https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude-3/nat-jus-nacional/

[4] https://www.enfam.jus.br/portal-covid19/

[5] https://www.conjur.com.br/2020-abr-02/saude-privada-chama-stf-mediar-requisicoesdos-governos

Paulo Sergio Domingues é desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Mestre em Direito pela Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha) e professor de Processo Civil da Faculdade de Direito de Sorocaba.

Arthur Balbani é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Michel Lutaif é mestrando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogado.

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Epidemia não justifica quebra de contrato de exclusividade

A crise econômica e financeira causada pela epidemia do novo coronavírus abrange a todos, cabendo às partes suportar os impactos negativos em seus negócios. 

Juiz considerou que crise não justifica quebra de contrato de exclusividade

Com base nesse entendimento, o juiz Jones Gattass Dias, da 6ª Vara Cível de Cuiabá (MT), decidiu que a crise gerada pela Covid-19 não justifica quebra em contrato de exclusividade.

O caso concreto envolve a BR Distribuidora e a rede de postos Comercial Amazônia de Petróleo. O mesmo juízo havia, no início de abril, autorizado liminarmente a suspensão do contrato. No entanto, refez a decisão depois que o Tribunal de Justiça de Mato Grosso suspendeu a concessão da tutela antecipada. 

A primeira determinação foi tomada com base nos artigos 317 e 478 do Código Civil, que preveem correção judicial da desproporção sofrida no valor de uma determinada prestação em razão de motivos imprevisíveis. 

Ao revisar a decisão, entretanto, o juiz entendeu que o artigo 317 pode ser usado apenas quando há mudança no valor da prestação de um determinado pagamento, o que não ocorreu.  O 478, por sua vez, pressupõe onerosidade excessiva entre as partes, de forma que uma delas acabe tendo vantagens em detrimento da outra. 

“Não se está aqui diante de situação em que a parte requerida esteja em extrema vantagem sobre a requerente, uma vez que não se alega na petição inicial que eventual prestação contratual tenha sofrido modificação, de modo que a manutenção do deferimento da medida acaba por implicar” em desequilíbrio contratual, afirma. 

O magistrado ressaltou que a relação de exclusividade tem como contrapartida o fato de os postos de combustíveis estarem instalados em imóveis de propriedade da distribuidora ou em que a BR figura como locatária, permissionária ou concessionária. 

Por fim, a decisão afirma que a quebra da exclusividade teria efeito lesivo ao consumidor. “Os produtos vendidos nos postos de combustíveis com a bandeira da distribuidora agravante poderão não ser correspondentes àquela bandeira, interferindo-se, assim, de forma viciada e com aval judicial, na correta indicação do produto ofertado”, diz. 

Clique aqui para ler a decisão

1014132-41.2020.8.11.0041

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Juiz suspende parcelas do Fies para estudantes de universidade de SC

Crise econômica

Justiça suspende parcelas do Fies para estudantes de universidade de SC

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A crise econômica causada pela epidemia do coronavírus é caso fortuito ou hipótese de força maior. Com esse entendimento, a 2ª Vara Federal de Chapecó concedeu, nesta quarta-feira (6/5), liminar para suspender as parcelas do Financiamento Estudantil (Fies) de estudantes da Unochapecó a partir de 18 de março — data em que Santa Catarina declarou estado de emergência.

Alunos podem deixar de pagar parcelas do Fies enquanto perdurar calamidade
Reprodução

A ação foi movida pelo Diretório Central dos Estudantes da Unochapecó, representado pelo escritório Mauricio Solano, Salles & Passos Advogados Associados. A entidade afirmou que, como a maioria das atividades comerciais está suspensa, os alunos estão com dificuldades de pagar as parcelas do financiamento.

O juiz federal Narciso Leandro Xavier Baez apontou que a crise do coronavírus é fato que autoriza o enquadramento dos contratos do Fies nas hipóteses de caso fortuito ou força maior, previstas no artigo 393 do Código Civil.

Nesse cenário, destacou o julgador, o não pagamento das parcelas não pode ser considerado inadimplemento contratual e não justifica a cobrança de juros e inclusão em órgãos de proteção ao crédito.

A decisão abrange apenas os estudantes que estavam em dia com as parcelas em 18 de março e vale enquanto durar o estado de calamidade pública decretado pelo Congresso Nacional.

Clique aqui para ler a decisão

Processo 5003161-08.2020.4.04.7202

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 9 de maio de 2020, 7h13