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Banco terá que indenizar estudante que perdeu o Enem

Prestadores devem zelar pela perfeita qualidade do serviço oferecido ofertado, estando incluído o dever de informar, proteger e ter boa-fé objetiva para com o consumidor. 

Segundo corte, pagamento não foi efetuado por culpa do banco

Com esse entendimento, a 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais determinou que o Banco do Brasil indenize uma estudante que não pôde fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) por erro da instituição. A decisão foi proferida em 10 de março.

Segundo os autos, a estudante agendou o pagamento da inscrição, mas, por falha do banco, o processamento da operação acabou não sendo concretizado, o que a impossibilitou de participar da edição do exame em 2015. 

O banco alegou que o erro ocorreu por culpa exclusiva da vestibulanda, que inseriu a data de vencimento errada. Disse, ainda, que a operação só ocorre quando todos os dados são preenchidos de maneira exata. 

No entanto, segundo o desembargador Pedro Bernardes, relator do caso, “o agendamento de pagamento de título é um serviço disponibilizado apenas pelas instituições bancárias, sendo público e notório, que o cliente pode informar a data de pagamento do título desde que respectiva data se limite à data de vencimento, podendo ser o pagamento realizado para data anterior ao vencimento”. 

Assim, afirma, o pagamento deveria, sim, ter sido efetuado apenas com os dados disponibilizados durante o agendamento. “Havendo saldo na conta e agendado o pagamento para um dia antes do vencimento, resta patente o defeito na prestação do serviço, que culminou no indeferimento da inscrição do Enem”, prossegue. 

Em primeiro grau, foi fixado o valor de R$ 6 mil por danos morais. O TJ-MG majorou a indenização para R$ 12 mil, com juros de 1% ao mês, a partir de maio de 2015, além de correção monetária, que deve ser seguida de acordo com a Tabela da Corregedoria. 

Clique aqui para ler a decisão

1.0000.19.122150-6/001

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Marcello Miller: Notas sobre o caso Moro x Bolsonaro

Ao discorrer publicamente sobre os motivos por que pediria exoneração do cargo de ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro atribuiu ao presidente da República condutas que, se provadas, tendem a constituir múltiplos crimes, em especial os de falsidade ideológica e prevaricação ou embaraço à investigação de organização criminosa.

O primeiro teria consistido em fazer publicar no Diário Oficial da União ato de exoneração do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal com falso referendo do ministro da Justiça e falsa informação de que o ato se dera a pedido do exonerado. O segundo, em substituir o diretor-geral para que o novo nomeado pudesse ser contraparte de interação direta do presidente da República para fins de colheita de informações e por preocupação com inquéritos sob supervisão do Supremo Tribunal Federal.

O procurador-geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal que determinasse a instauração de inquérito para apurar o que chamou de supostos fatos noticiados. Destaca-se o seguinte parágrafo do requerimento:

“A dimensão dos episódios narrados, especialmente os trechos destacados, revela a declaração de ministro de Estado de atos que revelariam a prática de ilícitos, imputando a sua prática ao presidente da República o que, de outra sorte, poderia caracterizar igualmente o crime de denunciação caluniosa”.

O esforço de cautela é evidente (“A dimensão… revela a declaração… de atos que revelariam…”), embora desnecessário: a narrativa de um relato não traduz, por si só, fé em seu conteúdo, tanto mais em requerimento de instauração de investigação criminal.

O aspecto mais controvertido do requerimento está na parte final desse parágrafo: “…o que, de outra sorte, poderia caracterizar igualmente o crime de denunciação caluniosa”. Esse segmento provocou discussão sobre o escopo do inquérito a ser instaurado, em especial sobre se abrangia a conduta de Sergio Moro em sua fala final como ministro de Estado.

O procurador-geral da República declarou à imprensa que “o inquérito apura fatos” e que “vai apurar fatos relativos a ambos”. Esse é, com efeito, o discurso mais frequente das autoridades de persecução penal a propósito do objeto das investigações criminais que elas investigam fatos, e não pessoas.

O presente trabalho pretende examinar, contra o pano de fundo desse pedido de instauração de inquérito, três questões:

I  Qual é o escopo jurídico de uma investigação criminal?

II — O que é necessário para a instauração de uma investigação criminal a partir de uma notícia-crime?

III — A investigação criminal pode ser bifronte, com apuração simultânea dos fatos noticiados e de possível crime contra a administração da Justiça do noticiante ao efetuar a notícia?

Não há, no presente trabalho, viés de opinião sobre os personagens envolvidos e suas hipóteses de conduta. Ele pretende apenas examinar questões jurídicas pouco debatidas, mas  postas em evidência pelo caso.

O escopo jurídico das investigações criminais
O bordão segundo o qual “o inquérito apura fatos” não resiste à análise da casuística. Perante o próprio Supremo Tribunal Federal, é comum que o procurador-geral da República requeira a instauração de inquérito cujo balizamento não é apurar quem praticou determinado fato ou elucidar todas as circunstâncias da prática desse fato, e, sim, investigar o que exatamente determinada pessoa fez, a partir de elemento inicial que aponta para essa pessoa como autora de fatos incertos ou ilícitos ainda por elucidar.

Ainda que a linguagem comporte contorcionismos diversos, o escopo da investigação é, na segunda hipótese, claramente subjetivo: a investigação partirá da pessoa para os fatos. Se a descrição tivesse de ser binária, faria mais sentido dizer e é o que normalmente ocorre que a pessoa apontada será investigada.

Mas o dilema que opõe pessoas a fatos a propósito do escopo das investigações criminais é falso. Investigações criminais não têm por objeto nem pessoas, ao menos não no Estado Democrático do Direito, nem fatos, cujos contornos e dimensões a princípio não se conhecem os fatos podem, inclusive, nem ter ocorrido. O componente inicial de toda investigação criminal é uma suspeita, isto é, uma percepção inicial, geralmente incompleta, que remete a uma hipótese de infração penal.

Os contornos iniciais da suspeita podem ser predominantemente objetivos ou predominantemente subjetivos conforme as circunstâncias. O encontro de cadáver com sinais de morte violenta criará suspeita em torno do fato e ensejará investigação concentrada em apurar a autoria de provável homicídio. A visão de pessoa ensanguentada, mas não ferida, com faca na mão, criará suspeita em torno da pessoa e ensejará investigação da materialidade de provável crime violento.

O Estado Democrático de Direito acomoda sem dificuldades investigações criminais originadas por suspeitas predominantemente subjetivas. Há clara distinção entre investigar uma suspeita, ainda que ancorada em uma pessoa, e investigar uma pessoa. A questão-chave é a viabilidade jurídica da suspeita, o que remete à segunda questão

II  Standard probatório para a instauração de investigação criminal

Chama-se de notícia-crime a transmissão formal à autoridade de persecução penal da suspeita de um ilícito penal
ainda que o grau de convicção do noticiante seja mais elevado, a autoridade não deve, ao receber a notícia-crime, ir além de um juízo de suspeita. Como é intuitivo, não é qualquer suspeita nem qualquer notícia-crime que determinará a instauração de investigação criminal. Por um lado, uma notícia-crime aparelhada, isto é, acompanhada de elementos de convicção, pode abreviar ou até tornar dispensável a investigação criminal, conforme a solidez e o potencial de elucidação de seus  elementos. Por outro lado, haverá notícias-crime tão vagas ou tão improváveis que a instauração de investigação criminal não será cabível.

A viabilidade jurídica da suspeita dependerá de plausibilidade fática, objetividade perceptiva e concretude narrativa. A plausibilidade fática exige contraste do conteúdo da suspeita com a realidade sensível a notícia de um grande complô, com ramificações internacionais, que empreende perseguição implacável de pessoa comum, embora não seja impossível, não tem plausibilidade fática, ou seja, não faz sentido à luz da normalidade. A objetividade perceptiva remete à origem intelectual da suspeita ela deve basear-se em apreensão racional e racionalmente explicável de fato, dado, elemento ou informação; sonhos e palpites não autorizam atuação estatal investigativa. A concretude narrativa mensura a proximidade contextual entre sujeito e objeto da suspeita noticiar que “há corrupção no governo” ou que “a milícia matou Marielle” pode até fazer sentido e decorrer de apreensão intelectual da informação, mas a distância contextual entre o noticiante e o possível fato tende a ser tamanha que seu relato é demasiado vago para autorizar a atuação estatal investigativa.

Deve ser afastada a noção de que a instauração de investigação criminal exige justa causa. A menos que a expressão esteja aí empregada em sentido próprio e específico, o sistema de Justiça criminal estaria incorrendo em autofagia procedimental se impusesse standard probatório para instaurar investigação criminal idêntico ao que impõe para avaliar a viabilidade probatória de ação penal.

III — Investigação criminal bifronte?

A investigação criminal parte, como visto, de uma suspeita, que precisa ser plausível quanto à hipótese fática, objetiva quanto à percepção e concreta quanto à narrativa. Como se trata de juízo inicial e precário sobre o que possa ter acontecido, admite-se razoável fluidez de seus contornos e mesmo alguma grau de alternatividade de hipóteses. A título de exemplo, a descoberta de grande quantidade de moeda estrangeira oculta no interior de uma parede pode ser o fio da meada de variadas modelagens penalmente relevantes ou até de nenhuma, sem que haja obrigação de apostar, já de início, em uma única hipótese.

Mas a flexão da suspeita inicial encontra limites, determinados pelo próprio conceito de suspeita e pelo imperativo de racionalizar o acionamento do aparato estatal investigatório. A suspeita não pode ser, ao mesmo tempo, uma coisa e seu contrário, sob pena, inclusive, de não se poder considerar existente e criar situação hamletiana para o investigador criminal.

Não é de se excluir que surja, na formação da suspeita, dúvida sobre a veracidade da notícia, tanto mais quando resulta apenas ou essencialmente de um relato trata-se de suspeitar da própria suspeita. Mas, para a autoridade instaurar a investigação criminal, a soma vetorial dessas duas suspeitas a de que houve o ilícito penal noticiado e a de que a notícia seja deliberadamente falsa não pode ser zero; se for, a autoridade não terá, a rigor, formado juízo de suspeita algum.

A hipótese mais frequente é, contudo, a de que uma das suspeitas seja mais densa. Deverá ser ela, então, a nortear o escopo da investigação. A suspeita menos densa só pode tornar-se o norte da investigação se a suspeita antes tida por mais densa se revelar, com alguma nitidez, falsa. Deve haver consecutividade, e não concomitância, não só a bem da lógica, como ainda para fazer uso mais eficiente do aparato investigatório.

IV — O caso concreto
O ex-ministro Sergio Moro fez relato capaz de ensejar juízo de suspeita de clara viabilidade jurídica o que ele relatou era plausível diante das circunstâncias; ele articulou racionalmente o relato, indicando como e onde e quando teria apreendido os fatos; e ele tinha inteira proximidade contextual com os fatos. Ademais, ele apresentou elementos de corroboração em princípio críveis.

Os fatores que poderiam respaldar a hipótese de que o relato de Sergio Moro constitua denunciação caluniosa são pouco densos. A mágoa e o vezo de prejudicar o presidente da República, caso existam, não parecem capazes de ensejar relato tão extenso e detalhado, com tão clara ancoragem contextual. Os elementos de corroboração apresentados pelo ex-ministro, bem como a já comprovada inexistência de assinatura dele no ato de exoneração do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal e de pedido deste de exoneração, tornam a hipótese de denunciação caluniosa ainda mais remota.

A suspeita de que Sergio Moro tenha cometido denunciação caluniosa só pode ganhar corpo, portanto, caso a suspeita em torno do presidente da República se revele, ao menos indiciariamente, falsa. A investigação só terá condições práticas de avançar se puder nortear-se, ao menos em seus primeiro movimentos, por apenas uma dessas suspeitas.

Não há sentido processual, de resto, em que a hipótese de denunciação caluniosa por Sergio Moro seja investigada em inquérito supervisionado pelo STF. A competência do foro especial para supervisionar investigação de  não-titular de prerrogativa de foro é estreita: limita-se às hipóteses de conexão ou continência e, mesmo assim, conforme jurisprudência do próprio STF, desde que haja alto grau de imbricação entre as condutas do titular e do não titular de prerrogativa de foro, a ponto de recomendar, a bem da coerência das decisões judiciais, a reunião das investigações.

Mas não há como falar em conexão ou continência entre as condutas atribuídas ao presidente da República e a hipótese de denunciação caluniosa de Sergio Moro, pois o delineio das suspeitas não comporta a ideia de que um e outro possam ter cometido crimes se o presidente da República tiver delinquido, Moro não o terá feito, e vice-versa. Por isso, a investigação só pode passar a apurar a suspeita de denunciação caluniosa do ex-ministro se ficar demonstrado, com alguma nitidez, que os crimes que ele atribuiu ao presidente da República não ocorreram.

V — Conclusões
Investigações criminais apuram, antes de tudo, suspeitas. Para respaldar a instauração de investigação, a suspeita deve ser plausível, objetiva e concreta. A suspeita contra o presidente da República, conforme levantada por Sergio Moro, assim se afigura; a suspeita contra Sergio Moro, não.

Pode ser que o procurador-geral da República tenha pretendido apenas externar cautela e imparcialidade com a ressalva da possibilidade de denunciação caluniosa de Sergio Moro. Nesse caso, contudo, a ressalva terá sido redundante: esse crime sempre é possível em tese quando alguém dá causa à instauração de investigação criminal.

Caso a intenção tenha sido a de impor ao aparato investigatório apuração simultânea da conduta de Sergio Moro, a imposição é inexequível. Múltiplos passos investigatórios em torno da outra suspeita têm de ser cumpridos antes que a suspeita de denunciação caluniosa ganhe corpo, porque esta depende da demonstração, ainda que por indícios, de que aquela é falsa.

À questão da inexequibilidade, soma-se a da competência: o STF não seria competente para supervisionar a investigação criminal relativamente a Sergio Moro, pois, se ele tiver cometido crime, o presidente da República necessariamente não o terá, não havendo de se falar em conexão ou continência, e, sim, em alternatividade mutuamente excludente de hipóteses delitivas.

Marcelo Miller é procurador da República no Rio de Janeiro.

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Direitos fundamentais: para que servem as leis gerais da internet?

I. Na última quinta-feira (07.05.2020), o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do Referendo na Medida Cautelar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.389, 6.390, 6.393, 6.388 e 6.387, suspendendo a aplicação da Medida Provisória nº 954/2020. O ato normativo obrigava as prestadoras de serviços de telecomunicações (STFC e SMP) a compartilharem dados dos usuários de seus usuários com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus.

Para além dos resultados práticos do julgamento, o caso assume uma relevância única para a teoria dos Direitos Fundamentais: foi a primeira vez em que o STF reconheceu explicitamente a autonomia do Direito Fundamental à Proteção de Dados, enquanto projeção da proteção constitucional à personalidade (art. 5º, inciso X, da CF/88).

Não são propriamente estranhas à tradição da jurisdição constitucional decisões de Cortes Constitucionais que consagram novos direitos fundamentais em razão de mudanças tecnológicas. No Direito Alemão, por exemplo, além da célebre decisão da Lei do Censo de 1983, que afirmou o direito à autodeterminação informacional (Informationelle Selbstbestimmung), o Bundesverfassungsgericht em 2008 reconheceu a existência de um direito constitucional à confidencialidade e integridade dos sistemas informáticos (Grundrecht auf Gewährleistung der Vertraulichkeit und Integrität informationstechnischer Systeme). Já na experiencia norte-americana, debates semelhantes se desenvolveram historicamente em torno da aplicabilidade da Quarta Emenda Constitucional para as hipóteses de interceptação de comunicação por meios telemáticos.

II. É inegável que as relações sociais desencadeadas no ciberespaço ampliam profundamente o papel criativo dos Tribunais Constitucionais diante dos riscos de comprometimento de garantias constitucionais básicas.

A própria dimensão objetiva de direitos fundamentais, como os de liberdade de expressão, de participação política, e mesmo de direitos de segunda geração relacionados ao trabalho, cultura e saúde passa a ser permeada por considerações técnicas dos meios de comunicação digital. A internet pode tanto alterar o contexto factual de uma dada tecnologia, levantando questões sobre como a Constituição a ela se aplica, quanto pode gerar novas oportunidades de realização das liberdades não comparáveis àquelas que recebem proteção constitucional explícita.

Quando confrontadas com essas situações, dois caminhos se abrem às Cortes Constitucionais. Em geral, elas podem (i) optar por uma abordagem de deferência à cultura jurídica consolidada, evitando que o controle de constitucionalidade resulte em soluções interpretativas inteiramente novas ou (ii) entender que a natureza única da internet demandaria respostas judiciais efetivas que façam frente à racionalização privada das relações sociais e à intervenção governamental na internet.

Os dois caminhos obviamente tencionam o debate sobre legitimidade democrática da jurisdição constitucional. De um lado, a atualização da proteção constitucional – inclusive com a enunciação de novos direitos fundamentais – é essencial para a preservar a força normativa do texto constitucional. De outro, o avanço do Tribunal na aplicação do texto constitucional em realidades não imaginadas pelo constituinte suscita inevitavelmente as acusações de ativismo. Como afirmam com clareza Alessandro Morelli e Oreste Pollicino: “é necessário compreender se a abordagem mais apropriada nestes casos é a da deferência judicial ou do activismo judicial, considerando também a questão da importância não negligenciável da relação entre a política e os tribunais no contexto do direito digital” (tradução livre).

O presente artigo, na linha de diversos outros sobre o tema, sustenta que existe uma solução intermediária para esse dilema. A proposta aqui apresentada deriva da aplicação do marco teórico do Constitucionalismo Digital à jurisdição constitucional e consiste em colher das cláusulas gerais das leis de proteção aos direitos dos usuários da internet novas possibilidades de interpretação de normas constitucionais envolvidas no exercício de direitos fundamentais no ciberespaço. Explica-se.

III. Na última década, diversos juristas vinculados ao movimento teórico do Constitucionalismo Digital (Digital Consticionalism) passaram a discutir o impacto que declarações de direitos, posicionamentos de organizações internacionais e propostas legislativas exercem sobre a proteção de direitos fundamentais no ciberespaço. Nos estudos iniciais sobre o tema, o foco das investigações se voltava à identificação de normais gerais de articulação de direitos, regras de governança e limitações dos poderes públicos e privados na internet.

Trabalhos como os de Lex Gill et. al., por exemplo, mapearam diversas reações normativas de afirmação desses direitos na forma de leis em sentido formal, declarações oficiais de organizações intergovernamentais, termos e regulamentos de uso de plataformas digitais, entre outros. Essas reações normativas são difusas e não se limitam ao âmbito dos atos normativos formais.

Nos últimos anos, porém, o Constitucionalismo Digital evoluiu de uma mera corrente aglutinadora de experiências políticas e passou a compor verdadeiras prescrições normativas para a proteção de garantias individuais no ciberespaço. Estudos como os de Eduardo Celeste, Claudia Padovani e Mauro Santaniello e Meryem Marzouki atribuíram ao Constitucionalismo Digital a marca de uma verdadeira “ideologia constitucional”, a qual se estrutura em um quadro normativo de proteção dos direitos fundamentais e de reequilíbrio de poderes na governança da internet.

A principal implicação dessa transformação é que o Constitucionalismo Digital passou a contribuir para identificação e construção de princípios constitucionais que podem ser empregados como parâmetro de controle de constitucionalidade de normas que eventualmente colidam com direitos fundamentais associados à experiencia social no mundo digital. Alguns exemplos desses princípios podem estar associados à afirmação de um direito de acesso à internet, ao direito ao esquecimento, ao direito à neutralidade da rede e, é claro, ao próprio direito à proteção de dados.

Uma tese nuclear desse movimento teórico consiste na compreensão de que as cartas jurídicas de enunciação direitos dos usuários da internet muitas vezes contêm escolhas de matriz constitucional quanto ao tratamento jurídico a ser conferido às relações sociais on-line. Como bem destacado por Mauro Santaniello et. al., em países como Brasil, Filipinas, Itália, Nova Zelândia e Nigéria, que adotaram essas legislações formais, não há como negar que os Parlamentos têm buscado “desempenhar as funções fundamentais do constitucionalismo clássico no sub-sistema da Internet, produzindo atos dirigidos ao estabelecimento e à proteção dos direitos digitais, à limitação do exercício do poder em e através das obras da rede digital e à formalização dos princípios de governança”. Além de estabelecerem princípios materiais claros, essas leis em geral são construídas a partir de um amplo processo participativo, o que reforça a legitimidade democrática do seu uso.

IV. Esses diagnósticos se amoldam com precisão ao caso brasileiro. Entre nós, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) conferiu centralidade a cláusulas gerais de dimensão evidentemente constitucional, como a proteção da liberdade de expressão (art. 3º, inciso I), da privacidade (art. 3º, inciso II) e da preservação da natureza participativa da rede (art. 3º, inciso VII). Por esse motivo, é possível afirmar que o MCI incorpora diversos elementos da crescente literatura sobre constitucionalismo digital aqui discutida.

O mesmo pode ser dito em relação à Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018). Verifica-se no seu texto a consagração de fundamentos como a autodeterminação informativa (art. 2º, inciso II), que define a dimensão subjetiva do direito à privacidade, e ainda princípios como os da proibição (equivalente ao princípio da necessidade, art. 6º, III), da vinculação à finalidade (art. 6º, I), e da transparência (art, 6º, VI). A rigor, esses princípios conformam a própria atuação do legislador ordinário. Mesmo que eles não estejam expressamente previstos no texto constitucional, eles são projeções da tutela constitucional à privacidade (art. 5º, inciso X, da CF/88).

É claro que a posição aqui defendida não equivale a dizer que leis como o MCI ou a LGPD poderiam ser utilizadas, de forma direta, enquanto parâmetros de controle de constitucionalidade de leis ordinárias. Contudo, em casos em que a discussão posta se relaciona essencialmente com a adaptabilidade da fruição de direitos fundamentais pelo uso da internet, essas legislações podem servir como verdadeiros “ganchos” interpretativos para que se extraia do texto constitucional possibilidades interpretativas mais adequadas aos conflitos de direitos na esfera digital. É nessa linha que autores como Lex Gill et. al. defendem que algumas legislações formais sobre a internet, se apresentam como “blocos de construção intelectual para a interpretação das constituições formais na esfera digital” .

Construções hermenêuticas desse gênero podem ser bastante úteis para a jurisdição constitucional brasileira. Foi o que parece ter ocorrido justamente no julgamento recente da MP nº 954/2020 nesta semana. O texto da norma impugnada nas ADIs referenciadas previa, de maneira bastante genérica, que as empresas de telecomunicação prestadoras do STFC e do SMP deveriam disponibilizar à Fundação IBGE, em meio eletrônico, a relação dos nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas e que os dados seriam utilizados “para a produção estatística oficial, com o objetivo de realizar entrevistas em caráter não presencial no âmbito de pesquisas domiciliares” (art. 2º, § 1º, da MP 954/2020).

Nesse ponto, poder-se-ia entender que a MP violaria o chamado princípio da vinculação a finalidade (art. 6º, inciso I, da LGPD), que exige que tratamento dos dados só pode ocorrer nos estritos limites da finalidade legitimamente atribuída pelo interesse público pela norma. Nesse sentido, ainda em sua decisão monocrática que deferiu a cautelar, a relatora Min. Rosa Weber pontuou que a norma impugnada não delimitava com precisão “o objeto da estatística a ser produzida, nem a finalidade específica, tampouco a amplitude” e que a MP “igualmente não esclarece a necessidade de disponibilização dos dados nem como serão efetivamente utilizados”.

Outra deficiência da norma bastante debatida pelos membros da Corte no referendo da Cautelar se refere à falta de cuidados do legislador para criação de medidas efetivas que garantissem possibilidades de fiscalização, pelos titulares, das fases de tratamento levadas a cabo pelo controlador. Essa questão foi diretamente abordada no voto do Min. Gilmar Mendes ao afirmar que “a incidência do princípio da transparência impõe que a norma garanta ao titular dos dados um nível de controle suficiente para a verificação prospectiva da licitude do tratamento de dados”. Ainda nas palavras do Ministro, isso se desdobraria em um dever não cumprido pelo legislador da MP (reconhecimento da dimensão objetiva) de “de dar ao titular condições de proceder a um controle próprio da forma como o Estado lida com os dados”.

Essa integração entre a Constituição e as cláusulas previstas nas leis gerais de direitos dos usuários na internet também pode vir a ser explorada pelo Tribunal em casos ainda pendentes de julgamento, como na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 403, de relatoria do Ministro Edson Fachin, e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5527, de relatoria da Ministra Rosa Weber, em que se discute a constitucionalidade do histórico de decisões judiciais que bloqueavam o funcionamento do serviço WhatsApp em todo país em razão do descumprimento de ordens de juízes criminais de interceptação de comunicações.

Ao lado das alegações de que tais decisões judiciais feririam o princípio da proporcionalidade, há um importante debate nesse caso sobre se como o uso da criptografia ponta-a-ponta nos sistemas de comunicação instantânea se relaciona com a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento (art. 3º, inciso I, do MCI) e ainda com a ideia de liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet (art. 3º, inciso VII, do MCI).

V. Em todos esses exemplos, verifica-se que as possibilidades de diálogo entre o Constitucionalismo Digital e a jurisdição constitucional apresentam-se como decorrências das próprias transformações que marcam a Teoria Constitucional contemporânea. A consagração do constitucionalismo enquanto modelo universal de organização e legitimação do poder político ocorreu no século passado graças a um conjunto de pré-condições da relação entre Estado e Sociedade que hoje se encontram em mutação frente aos avanços tecnológicos. Na tentativa de se manter vivas essas pré-condições, os valores normativos do Constitucionalismo Digital podem se mostrar verdadeiras válvulas de reintegração dos direitos fundamentais na internet.


FETZER, Thomas; YOO, Christopher S. New technologies and constitutional law. Faculty Scholarship at Penn Law, n. 13, p. 23, 2012, p. 1 e LESSIG, Lawrence. Reading The Constitution in Cyberspace. Emory Law Review, v. 45, p. 869–910, 1996, p. 41.

Essa posição é defendida em: SUNSTEIN, Cass R. Constitutional Caution The Law of Cyberspace. University of Chicago Legal Forum, 1996, p. 374 (defendendo que quando questões difíceis de valor e de facto relacionadas à internet são deslocadas por referência a categorias constitucionais, algumas delas bastante arcaicas, elas provavelmente não se adequam a uma boa compreensão dos fenômenos subjacentes, de modo que: “in cyberspace, constitutional lawyers should be (at least relatively) cautious”). Em sentido semelhante, cf. KERR, Orin S. The Fourth Amendment and New Technologies: Constitutional Myths and The Case For Caution. Michigan Law Review, v. 102, p. 801–888, 2004.

Para uma abordagem contra a deferência judicial, com foco no direito norte-americano, cf. SOLOVE, Daniel J. Fourth Amendment Codification and Professor Kerr’s Misguided Call for Judicial Deference. Fordham Law Review, v. 74, p. 747–777, 2005.

MORELLI, Alessandro; POLLICINO, Oreste. Metaphors, Judicial Frames and Fundamental Rights in Cyberspace. American Journal of Comparative Law, v. 2, p. 1–26, 2020, p. 9.

Por todos, cf. CELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers and Technology, v. 33, n. 1, p. 76–99, 2019.

GILL, Lex; REDEKER, Dennis; GASSER, Urs. Towards Digital Constitutionalism? Mapping Attempts to Craft an Internet Bill of Rights. Research Publication No. 2015-15 November 9, 2015, v. 7641, 2015, p. 5.

PETTRACHIN, Andrea. Towards a universal declaration on internet rights and freedoms? International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 337–353, 2018. (argumentando que “a discourse on Internet-related human rights is being shaped, autonomous from the broader discourse on Internet governance”) e BASSINI, Marco. Fundamental rights and private enforcement in the digital age. European Law Journal, v. 25, n. 2, p. 182–197, 2019, p. 185. (“Internet activists, members of international fora and supporters of Internet freedom called for the adoption of an Internet Bill of Rights, an international covenant binding on both public and private actors to secure protection of individuals’ liberties and rights”).

CELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers and Technology, v. 33, n. 1, p. 76–99, 2019, p. 89.

PADOVANI, Claudia; SANTANIELLO, Mauro. Digital constitutionalism: Fundamental rights and power limitation in the Internet eco-system. International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 295–301, 2018. (definido que “digital constitutionalism is an effort to bring political concerns and perspective back into the governance of the Internet, deeply informed by economic and technical rationalities”).

MARZOUKI, Meryem. A Decade of CoE Digital Constitutionalism Efforts: Human Rights and Principles Facing Privatized Regulation and Multistakeholder Governance. International Assotiation for Media and communication Research Conference (IAMCR), v. July, n. 1, 2019.

SANTANIELLO, Mauro et al. The language of digital constitutionalism and the role of national parliaments. International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 320–336, 2018, p. 2.

GILL, Lex; REDEKER, Dennis; GASSER, Urs. Towards Digital Constitutionalism? Mapping Attempts to Craft an Internet Bill of Rights. Research Publication No. 2015-15 November 9, 2015, v. 7641, 2015, p. 6.

Victor Oliveira Fernandes é assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal. Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito Econômico nos cursos de Graduação e Pós-graduação lato sensu do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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Debate entre ex-presidentes na TV ConJur foi destaque

Contra crises econômica, sanitária e institucional ampliadas pela pandemia do coronavírus, é necessário que as lideranças brasileiras observem duas vias para minimizar as consequências: união institucional e respeito à Constituição. É o prognóstico feito por quem já foi governo: os ex-presidentes da República Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer em seminário virtual promovido pela TV ConJur.

O evento — que até o fim da tarde desta sexta-feira já contava com 55 mil visualizações — foi apresentado por Nelson Jobim, ex-presidente do STF e ex-ministro da Justiça, e pautou o noticiário nacional.

Veículos como a  CNN BrasilO GloboO portal da ExameUOLEstado de Minas Jovem Pan repercutiram o evento. O seminário promovido pela TV ConJur foi patrocinado pelo Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (Iree) e pela Aliança de Advocacia Empresarial.

TV CONJUR

Veja o que foi publicado nesta semana em nosso canal do YouTube:
Saída de Emergência — Voz da experiência
Saída de Emergência — Desafios processuais em tempos de pandemia
Saída de Emergência — Tributação e federalismo em tempos de crise

FRASE DA SEMANA

 

Pode-se interpretar a Constituição Federal, mas quanto menos interpretativo for a opinião, melhor. Quanto mais próximo do que está escrito, melhor. Não porque acho que não se pode aperfeiçoar. Mas não agora. Temos que buscar apoio constitucional”, ex-presidente Fernando Henrique Cardoso pregando respeito a Constituição como saída para crise provocada pelo avanço da Covid-19 no Brasil

ENTREVISTA DA SEMANA

Em 2004, quando deixou sua carreira diplomática, Rubens Ricupero — ministro da Fazenda quando da implantação do Plano Real — tinha se acostumado com a posição de prestígio alcançada pela diplomacia brasileira. De lá para cá muita coisa mudou. O historiador também formado em Direito pela USP, deu entrevista à ConJur, por telefone, analisando a política externa atual e o legado da “lava jato”.

Crítico da atual política externa e do consórcio formado a partir da 13ª Vara Federal de Curitiba, Ricupero diz que a força-tarefa perdeu força no decorrer dos anos e dá seus últimos suspiros.

“Aqueles filhotes da ‘lava jato’ que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a ‘lava jato’ hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade”, afirma. A conversa ocorreu antes de Sergio Moro deixar o Ministério da Justiça.

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Com 231 mil acessos, o texto mais lido da semana foi o artigo de Ives Gandra Martins sobre a sua discordância em relação à decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que revogou a nomeação de Alexandre Ramagem para a chefia da Polícia Federal.

No texto, o jurista sustenta que “a simples suspeita de que foi escolhido por ser amigo do presidente da República e poder influenciar procedimentos administrativos levantados por um desafeto do primeiro mandatário não justifica, constitucionalmente, a invasão de competência de um poder em outro”.

Com 188 mil acessos, a segunda notícia mais lida da semana foi sobre a decisão do  ministro Luiz Fux, presidente da Comissão de Regimento do Supremo Tribunal Federal, que deu andamento à uma proposta apresentada pelo ministro Marco Aurélio Mello, que sugeriu uma emenda regimental.

As dez mais lidas
Harmonia e independência dos poderes?
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TSE acata pedido de deputada federal de desfiliação partidária

Manchetes da semana
Supremo passa a admitir HC contra ato de ministro da Corte
FHC, Temer e Collor analisam o presente e cenários para o futuro
Credibilidade da Comissão de Ética da Presidência é questionada
Decisão do STF que admite HC contra ato de ministro é elogiada
TRF-3 suspende decisão que obrigava Bolsonaro a mostrar exame
“A ‘lava jato’ acabou e pertence mais ao domínio da história”
Divergências entre decretos estaduais e municipais chegam aos TJs
Ex-presidentes fazem chamado por diálogo e pela Constituição
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CNMP retoma prazos processuais
STJ vai julgar novamente cerca de mil processos não incluídos na pauta
Vídeo de reunião de Bolsonaro deve ser entregue em 72 horas

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Quase metade dos países proibiu que população saia de casa

Em um contexto de crise sanitária e de saúde pública, como é o caso da pandemia de Covid-19, os sistemas normativos dos Estados tendem a ser alterados. Afinal, para enfrentar a situação excepcional, medidas emergenciais — muitas delas implicando em restrições a liberdades — precisam ser tomadas.

Estudo avaliou sistema de justiça de 51 países
Reprodução

Para avaliar como os Estados têm reagido à pandemia, um estudo da Global Access to Justice fez um levantamento sobre as medidas administrativas e legislativas adotadas por 51 países. O relatório também avaliou o comportamento dos sistemas de Justiça durante a crise, conforme informou reportagem da ConJur.

Os 51 países considerados compõem uma base de análise bastante heterogênea. Além do Brasil, foram avaliados os sistemas de justiça de vários países da Europa — como Espanha, França, Holanda, Itália e Portugal — e da América — Chile, Colômbia, Cuba e Estados Unidos, por exemplo.

Isolamento social

Segundo o estudo, 92% dos países adotaram medidas especiais, de modo que 47% deles proibiram totalmente que a população saísse de casa — exceto para compras de mantimentos ou medicamentos. Em 20% deles, a saída é permitida, mas com um limite de pessoas e tempo.

Entre os Estados que adotaram alguma das medidas especiais, o seu descumprimento pode resultar em prisão em 41% dos casos. E em 73% deles há previsão de multa.

A restrição a viagens internacionais foi determinada por 86% dos 51 países. A modalidade mais frequente dessa restrição diz respeito à proibição de entrada de estrangeiros: 39%. E em 20% dos casos essa proibição se aplica a qualquer pessoa, incluindo cidadãos e residentes que queiram voltar ao país.

Democracia

Outra frente do estudo aferiu se houve violações de direitos humanos — a pretexto de combater a propagação do vírus. Em quase um terço dos estados (31%), sim. Em 61%, diz o estudo, tal situação não foi verificada. E em 8% não foi possível a aferição.

Quanto à hipótese de haver concentração de poder, também a pretexto de combater a Covid-19: em 25% dos estados as instituições não foram suficientes para impedir que governantes concentrassem mais prerrogativas. 

Grupos vulneráveis

Em outra frente, a pesquisa verificou se os países adotaram medidas para proteger alguns grupos, como presidiários, moradores de rua, mulheres (em contexto de violência familiar) e pessoas em vulnerabilidade econômica. 

A garantia de acesso a benefícios sociais ocorreu em 86% dos países. Em 47% das 51 nações, presos foram colocados em liberdade. E em 92%, a visita a encarcerados foi restringida.

Quanto à possibilidade de que a “quarentena” possa causar violência de gênero ou familiar, apenas um quarto dos governos adotou alguma medida para mitigar essa hipótese. E moradores de rua foram objeto de políticas habitacionais em apenas 37% dos casos.

Clique aqui para ler o relatório

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Procon-SP impõe renegociação nas mensalidades escolares

Ensino a distância

Procon-SP impõe renegociação nas mensalidades escolares e ameaça multar

O Procon de São Paulo publicou nesta quinta-feira (7/5) diretrizes para que escolas particulares ofereçam algum tipo de desconto nas mensalidades durante a epidemia de coronavírus. O não cumprimento pode ser penalizado com multa.

123RF

Um dos itens diz que “a instituição de ensino deverá oferecer um percentual de desconto na mensalidade escolar, cujo valor pode ser proposto pela própria instituição, de acordo com sua situação econômico-financeira”. “Embora livre o percentual de desconto a ser fixado, sua concessão é considerada diretriz obrigatória.”

As diretrizes do Procon-SP estabelecem também que qualquer cobrança extra (transporte escolar, alimentação, atividades extracurriculares) devem ser suspensas neste período e que as escolas devem criar um canal específico para conversar com os pais sobre as questões financeiras. As medidas são válidas para colégios de educação infantil, ensino fundamental e médio.

O órgão informou ainda que vai publicar nos próximos dias uma nota específica para o ensino superior.

O Sieeesp, sindicato que representa as escolas particulares no estado, diz que vem orientando as instituições a negociarem com as famílias que estão tendo dificuldades econômicas.

Clique aqui para ler as diretrizes do Procon-SP

Clique aqui para ler o comunicado do Sieeesp

Revista Consultor Jurídico, 9 de maio de 2020, 9h13

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Restrições do lockdown não dependem de estado de sítio

Ainda que restrinja os direitos de ir e vir e de reunião, o bloqueio total de atividades (lockdown) pode ser implementado sem que haja estado de defesa ou de necessidade. E por mais que a crise do coronavírus venha se aprofundando, o Estado tem mecanismos para enfrentar a epidemia sem aderir a esses regimes de exceção.

Combate ao coronavírus justifica a restrição de direitos fundamentais
Kateryna Kon

No lockdown, em regra, as pessoas só podem ir à rua para fazer compras em supermercados e farmácias ou trabalhar em atividades essenciais.

O primeiro caso ocorreu no Maranhão. A Justiça estadual ordenou, em 30 de abril, que o Maranhão e o município de São Luís implementassem o lockdown na região metropolitana da capital. Isso porque as medidas de isolamento social têm sido insuficientes para conter a propagação do coronavírus.

Depois disso, foi decretado lockdown em Belém e mais nove cidades do Pará, em Fortaleza, Salvador, Niterói e partes da capital fluminense. No entanto, a Justiça negou pedidos para instaurar o bloqueio total no Amazonas e em Pernambuco.

Nesse regime, há limitação de alguns direitos fundamentais. Especialmente os de ir e vir e de reunião. Por isso, tem quem questione a constitucionalidade da medida — como o juiz que a decretou em São Luís.

A Constituição permite a restrição desses direitos fundamentais pelos estados de defesa ou de sítio — o Brasil não decretou nenhum deles, e sim o estado de calamidade pública. O estado de defesa pode ser instituído para preservar ou restabelecer a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. Tal situação pode limitar os direitos de reunião e de sigilo de correspondência e comunicação telefônica.

Mais rigoroso, o estado de sítio pode ser decretado nos casos de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; ou declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Nesse regime, o poder público pode obrigar pessoas a permanecer em um certo local; deter indivíduos; restringir a inviolabilidade da correspondência, o sigilo das comunicações, a prestação de informações e a liberdade de imprensa; suspender a liberdade de reunião; promover buscas e apreensões em domicílios; intervir em empresas de serviços públicos e requisitar bens.

Tanto o estado de defesa quanto o de sítio devem ser propostos pelo presidente da República, dependendo de aval do Congresso. O primeiro deve durar 30 dias, podendo ser prorrogado uma vez. Já o segundo não pode ultrapassar um mês, salvo em caso guerra.

Embora a Constituição só autorize expressamente a restrição dos direitos de ir e vir e de reunião nos estados de defesa e de sítio, não é necessário decretar um deles para instituir o lockdown. Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, afirma que tais regimes excepcionais se aplicam melhor a situações de violência e de ordem pública, e não são necessários em crises de saúde pública. Na visão dele, mecanismos como os estados de emergência e de calamidade pública — instituído pelo Congresso — são suficientes para combater o coronavírus.

Serrano diferencia um momento de legalidade extraordinário — como o que vivemos devido à epidemia — de um estado de exceção. Aquela é a forma como o Estado Democrático de Direito reage a uma situação emergencial. Mas não há anomia (ausência ou suspensão de leis e direitos), como neste tipo de regime. Na legalidade extraordinária, o Estado segue submisso à legislação e deve criar o mínimo possível de novas leis. A ideia é solucionar os problemas com base no ordenamento jurídico em vigor.

“Vale ressaltar que esse período de legalidade extraordinária pode ser interpretado como um momento em que o Executivo e o Estado em geral têm mais poderes. Mas, na realidade, eles têm mais deveres. Autoridades públicas têm limitações às suas prerrogativas, tanto ou mais do que os cidadãos têm restrições aos seus direitos. E elas têm que agir muito mais por dever do que por poder nesse período”, destaca.

O professor de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Gustavo Binenbojm diz que a imposição do lockdown sem decretação de estado de defesa ou sítio não é inconstitucional porque estabelece medidas menos agressivas aos direitos fundamentais do que as que ocorreriam nestes regimes. “Sendo menos gravosas, essas medidas são preferíveis do ponto de vista da proporcionalidade, por serem menos limitadores de direitos fundamentais.”

Além disso, ressalta o professor, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que estados e municípios têm competência para adotar providências de polícia administrativa sanitária em defesa da saúde pública. Ou seja: os entes podem restringir a circulação de pessoas, mas não no nível dos regimes de exceção previstos na Constituição.

Nem o direito de ir e ir nem o direito de reunião são absolutos, lembra Binenbojm. E eles podem ser limitados em prol da saúde pública. Dessa maneira, se a circulação ou aglomeração de pessoas ameaça o bem-estar da população, o Estado pode usar o poder de polícia para impedir o exercício desses direitos, analisa.

E não é só nesses estados de exceção que tais direitos sofrem restrições, declara Carolina Fidalgo, professora de Direito Público da pós-graduação da Uerj. Bem ou mal, as necessidades de se obter habilitação para dirigir, de se observar as regras de trânsito e de se respeitar barreiras de locomoção de pessoas e veículos em dias de grandes exemplos são limitações a essas garantias. Assim como as prisões, desde que decretadas com base nos requisitos legais.

A Lei 13.979/2020, que reconheceu a situação de emergência na saúde pública, também mitigou tais direitos ao autorizar a adoção de medidas como quarentena, isolamento e restrição de locomoção, afirma Carolina.

“A situação de emergência em questão impõe a adoção de medidas adequadas e necessárias para conter o espalhamento da doença e colapso das redes pública e privada de saúde, inclusive com restrições justificadas ao direito de ir e vir. Se é discutível a necessidade de prévia decretação de estado de sítio ou de defesa, é certo que tais medidas devem ser fundamentadas em lei (e aí se pode discutir se a Lei 13.979/2020 já é suficiente para isso) e devem ser justificadas diante da situação específica de cada município”, opina.

Sem necessidade

Ainda que a crise do coronavírus venha se agravando no país — até esta sexta-feira (8/5), já havia 145.328 infectados e 9.897 mortos em decorrência da Covid-19 —, não é necessário decretar estado de defesa ou sítio para enfrentar a epidemia, avaliam os professores.

Gustavo Binenbojm diz que Estado pode aplicar multa a quem descumprir lockdown

Na visão de Binenbojm, não há circunstâncias objetivas que autorizem a implementação desses regimes excepcionais. Segundo ele, há medidas de polícia administrativa sanitária que podem ser tomadas pelos governos federal, estaduais e municipais para combater a epidemia. Apenas se elas foram insuficientes é que se deve cogitar providências mais duras.

Por sua vez, Serrano acredita não ser preciso suspender tantos direitos para enfrentar o coronavírus. E os estados de defesa e sítio abririam oportunidade para disputas políticas, como a perseguição de adversários e a implementação de limitações abusivas.

Punições cabíveis

Também há controvérsia sobre as punições que podem ser impostas a quem descumprir o lockdown. Leis estaduais e municipais podem prever multa para a pessoa que circular pelas ruas sem justificativa, aponta Binenbojm. Caso o sujeito não pague, poderá sofrer execução fiscal.

Agentes públicos também podem conduzir coercitivamente os infratores a suas residências ou recolhê-las em abrigos, ressalta o professor da Uerj. Isso para que essas pessoas não descumpram as normas de restrição à ocupação de espaços públicos e de aglomeração, que afetam o direito coletivo à saúde.

Porém, as multas administrativas devem ter valores proporcionais às violações, argumenta Carolina Fidalgo. Ela diz que as penalidades têm que ser estabelecidas na norma que instituir o lockdown.

Não há consenso, entretanto, sobre a prisão em flagrante e acusação penal daquele que desrespeitar o bloqueio total. Binenbojm entende que só isso só seria possível se houvesse previsão em lei federal.

Por outro lado, Serrano avalia ser aplicável o crime de epidemia. O delito, estabelecido pelo artigo 267 do Código Penal, consiste em “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”.

Mas Serrano crê ser injusto punir – criminalmente ou administrativamente — os pobres. “O governo não conseguiu até agora viabilizar auxilio-econômico para as pessoas ficarem em casa. Assim, não é possível puni-las quando elas vão para a rua para trabalhar — nesse cenário, estão em estado de necessidade. Só é possível cobrar os pobres quando o Estado der condições para os pobres ficarem em casa.”

A seu ver, as multas deveriam ser aplicadas a quem tem um certo padrão social — proprietários de veículos ou detentores de uma determinada renda. O professor da PUC-SP ainda destaca que as sanções administrativas são mais eficazes em coibir comportamentos do que as criminais. Como exemplo, cita a proibição de dirigir embriagado. A medida só obteve mais adesão da população quando o valor da penalidade foi consideravelmente aumentado, indica.

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

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Juiz nega pedido para alterar enquadramento sindical de atacadista

Atividade Preponderante

Juiz nega pedido para alterar enquadramento sindical de empresa atacadista

Por 

O direito coletivo brasileiro estabelece que a representação sindical do empregado tem correspondência com a atividade preponderante do empregador. 

Para magistrado, empresa do ramo de alimentos não se enquadra em categoria diferenciada
123RF

Com esse entendimento, o juiz Fábio Ribeiro da Rocha, da 53ª Vara do Trabalho de São Paulo, negou pedido de sindicato para alterar enquadramento de uma empresa atacadista. 

No caso concreto, o Sindicato dos Trabalhadores na Movimentação de Mercadorias em Geral e Auxiliares na Administração em Geral de São Paulo (Sintrammsp) solicitou que centenas de funcionários de uma empresa atacadista de alimentos fossem transferidos para sua base. Ocorre que o magistrado considerou que a autora pertence à categoria diferenciada, ao contrário da ré. 

“Ora, sendo a atividade preponderante da reclamada o comércio varejista/atacadista de mercadorias, com predominância de produtos alimentícios, não há como o sindicato autor pretender o enquadramento de alguns empregados em categoria diferenciada, mesmo que exercendo função de natureza diversa e, assim, ver aplicadas as convenções coletivas por ele firmadas, devendo ser respeitada a atividade preponderante do empregador”, afirma a decisão. 

Ainda segundo o magistrado, “a simples movimentação de mercadorias não torna o empregado integrante de categoria diversa da atividade principal da empresa, sob pena de se concluir que a totalidade dos empregados no comércio estaria enquadrada na categoria representada pelo sindicato autor”.

A ré foi defendida pelo advogado Heraldo Jubilut Junior, sócio fundador do Jubilut Advogados. Segundo ele, a atuação no processo “deu trabalho, a discussão foi longa e tensa, mas conseguimos juntar argumentos suficientes para que o juízo pudesse analisar a questão de forma cuidadosa, atenta aos direitos de todas as partes”.

Clique aqui para ler a decisão

1001226-18.2019.5.02.0053

 é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 9 de maio de 2020, 8h37

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Empregado vencido em ação não terá de pagar honorários

Antes da reforma trabalhista

Empregado vencido em ação não terá de pagar honorários advocatícios a empresa

Um analista de sistemas não terá de pagar honorários advocatícios em favor da empresa após perder ação trabalhista. A empresa pedia a aplicação da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), que passou a exigir que a parte vencida pague os honorários à parte vencedora. Todavia, a 7ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho rejeitou o recurso, por verificar que a ação foi ajuizada antes da vigência da lei.

O relator do recurso de revista, ministro Cláudio Brandão, observou que deve ser aplicada ao caso a Teoria do Isolamento dos Atos Processuais (artigos 14 e 15 do CPC).  Segundo a teoria, a lei nova, nos casos de processo em desenvolvimento, respeita a eficácia dos atos processuais já realizados e disciplina o processo a partir de sua vigência. Ou seja, é válida a lei em vigor no momento em que o ato foi praticado, e cada ato deve ser considerado separadamente dos demais para o fim de se determinar qual lei o rege.  

No caso, a reclamação trabalhista foi ajuizada antes da alteração imposta pela Lei 13.467/2017. Segundo ele, de acordo com a jurisprudência dominante do TST (Instrução Normativa 41/2018), a condenação em honorários sucumbenciais será aplicável apenas às ações propostas após 11/11/2017, quando a reforma entrou em vigor.

Como a ação fora proposta em 26/9/2017, menos de dois meses antes da vigência, devem ser aplicadas ao caso as Súmulas 219 e 329 do TST. A decisão foi unânime.

Outro caso

Em março deste ano, a 4ª Turma do TST, julgou ação em que uma ex-copeira foi condenada a pagar honorários advocatícios sucumbenciais, apesar de ser beneficiária de justiça gratuita. Como ela, ao contrário do analista de sistemas, tinha obtido créditos em outro pedido na ação, o colegiado entendeu que o fato a tornou apta a suportar o pagamento. Com informações da assessoria de imprensa do TST.

RR-1001618-83.2017.5.02.0422

Revista Consultor Jurídico, 9 de maio de 2020, 8h10