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Ministro do STF arquiva pedido contra novos cursos jurídicos

É incorreta a atuação do Supremo Tribunal Federal em suspender ou reformular políticas públicas sem que haja “clara, manifesta, inequívoca ou, pelo menos, potencial violência aos preceitos invocados”.

ReproduçãoConselho Federal da OAB pediu a suspensão da abertura de novos cursos de Direito

Com esse entendimento, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, arquivou ação que pedia para o MEC suspender a abertura de novos cursos jurídicos. A decisão é desta sexta-feira (15/5).

De acordo com o ministro, para a admissão da ADPF devem ser demonstradas as “graves e amplas repercussões jurídicas capazes de afetar, seriamente, a segurança jurídica como um todo”. “Mais do que isso, seria preciso que, desta potencial controvérsia constitucional relevante, não derivasse nenhuma outra via de impugnação judicial”, afirmou.

Lewandowski apontou que haveriam outros meios judiciais para questionar a atividade estatal de autorizar e avaliar as instituições de ensino superior.

“Pensar diferente significaria obstar o funcionamento de centenas de cursos jurídicos, providência, a meu ver, desproporcional, na medida em que existem outras vias de impugnação à disposição do autor para que se examine, caso a caso, quais atos do Poder Público são ofensivos à Carta da República e à lei, e, por consequência, quais instituições não poderiam entrar ou continuar em funcionamento”, afirmou.

O ministro concorda com os argumentos da OAB de que a educação de qualidade é um dos direitos sociais de maior relevo. No entanto, afirma que é evidente que as universidades “devem passar pelo crivo do MEC, revestido da incumbência de autorizar o seu funcionamento e de avaliá-las, com o uso dos diversos instrumentos postos à sua disposição”.

Pedido da OAB

A ADPF foi proposta pelo Conselho Federal da OAB, que sustentava que o regime constitucional e legal da promoção da educação superior deve ser submetido ao controle da administração pública federal, que tem o dever de autorizar a qualidade dos cursos e das instituições.

A entidade pediu também a nulidade de autorizações já concedidas, caso os cursos ainda não estejam em funcionamento, e a suspensão de abertura de novas vagas em graduações já existentes. 

A OAB também reclamou dos números alarmantes: entre 2 e 29 de abril foram autorizados 22 novos cursos de Direito, com oferta de 2.975 vagas, apontou a entidade.

Crítica antiga

Há tempos que o aumento de cursos jurídicos no país incomoda. A OAB critica com frequência as autorizações do MEC para criação de novos cursos. A questão é resumida como um “estelionato” pelo presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, em entrevista à TV ConJur.

O estelionato também já foi apontado pelo ex-presidente do Conselho Federal da OAB, Claudio Lamachia, em artigo publicado no Dia do Advogado.

De acordo com Santa Cruz, o Ministério da Educação é absolutamente fechado a qualquer debate. A sensação está longe de ser isolada, pelo contrário, é compartilhada com outros presidentes de seccionais, que reclamam da “derrama de bacharéis” no mercado.

A análise que faz o ministro Herman Benjamin, do STJ e diretor da Escola Nacional de Formação de Magistrados, vai ao encontro da de Santa Cruz. Em entrevista à ConJur, Benjamin afirmou que famílias estão sendo enganadas por acreditarem que todos os formandos terão espaço na área.

O ministro Marco Aurélio Bellizze, do Superior Tribunal de Justiça, defende ainda que não se pode culpar Exame de Ordem por profissionais desqualificados. Se há um culpado, disse em entrevista, esse é o ensino jurídico ministrado no país, fruto de desigualdades regionais e políticas públicas adotadas. Bellizze é coordenador da área acadêmica do Exame de Ordem.

Clique aqui para ler a decisão

ADPF 682

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Governança estratégica deve nortear reforma do Estado na era digital

Há algum tempo tenho defendido aqui neste espaço o conceito de reengenharia constitucional como a necessária e radical reconfiguração estrutural das instituições oitocentistas do liberalismo democrático que fomentaram a ideia de Estado de Direito.

Tendo em vista o diagnóstico cada dia mais consensual de que existe uma crise nos postulados da democracia liberal e que essa crise pode se tornar um retrocesso civilizatório com o aumento do autoritarismo em escala global, parte-se da ideia de que a superação desse quadro tornou imprescindível a implantação de medidas estruturantes para salvaguardar valores universais como os direitos humanos, o governo democrático, a liberdade, a separação dos poderes e os limites do poder estatal, bem como a redução de desigualdades e a concretização de direitos sociais.

Assim, para preservar esses objetivos da gestão pública e fazer cumprir o papel que se espera do Estado, as formas estruturais pensadas há aproximadamente três séculos não se mostram efetivas atualmente.

Pelo contrário, sua perda de legitimidade é evidente. Na Era Digital, o tempo do Estado burocrático não é o tempo da vida, o que tem gerado forte descrença e rejeição da política, aliado a arroubos autoritários.

Desta feita, é preciso transformar as estruturas e preservar as finalidades públicas, notadamente a concretização dos direitos fundamentais e a busca de vida plena aos cidadãos.

As mesmas reflexões se aplicam ao contexto brasileiro: a fim de assegurar o conteúdo funcional da Constituição de 1988 é preciso reconstruir sua arquitetura estrutural, ou seja, novos meios para realmente alcançar a efetividade dos fins constitucionais.

Nesta oportunidade, ouso enunciar algumas ideias que possam se tornar diretrizes para o futuro do Estado, em uma perspectiva ensaísta e provocativa para que o debate e o tempo amadureçam as reflexões.

A Constituição de 1988, inspirada nos ideais do Estado de Bem-Estar europeu (keynesiano, providencialista) que emergiu após a Segunda Grande Guerra, trouxe consigo fortes preocupações com os sistemas de controle, com a impessoalidade na gestão pública e um arquétipo estatalista que rapidamente se mostrou esgotado ante as demandas do fim do milênio. O grande avanço na salvaguarda dos direitos fundamentais individuais e sociais não veio acompanhado de estruturas sustentáveis fiscalmente e capazes de garantir sua efetividade.

O modelo pensado tinha uma tendência irrefreável para o avanço das corporações e o inchaço da máquina pública, de modo que o excesso de estruturas estatais se tornou obstáculo para a efetividade dos direitos fundamentais, e não meio para concretizá-los.

Sem demoras, vieram as pressões por reformas. Especialmente a partir de 1995, emergiu o Plano Diretor da Reforma do Estado proposto pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), cujo objetivo era operar um câmbio entre o paradigma burocrático-controlador para o gerencial-fiscalista na Administração Pública.

Novos conceitos foram introduzidos. Pregava-se a redução do tamanho do Estado, a descentralização e desconcentração dos serviços públicos, a flexibilização de controles, maior autonomia dos gestores em prol de resultados, maior abertura à sociedade civil, maior relacionamento com o chamado terceiro setor, a necessidade de novos entes gestores sob a tutela técnica e não política (p. ex. agências reguladoras) e um rígido controle das contas públicas.

Veio uma série de concepções empresariais, como a ideia do cidadão-consumidor, o princípio da eficiência em uma perspectiva mercadológica, privatizações e a crença nos mecanismos de mercado como vetores de desenvolvimento. O conceito de eficiência estava atrelado a uma noção rudimentar de Estado-empresário.

Como pano de fundo teórico, o paradigma gerencial-fiscalista se apresentava conectado à concepção de Estado-Regulador.

Em palavras ligeiras, um Estado-Regulador é aquele que ao invés atuar diretamente nas políticas públicas, gastando ele mesmo os recursos auferidos via tributação, estabelece normas e regula as atividades privadas para que elas gerem desenvolvimento a partir de condições de funcionamento eficiente, conforme ensina La Spina e Majone.

Passados alguns anos das reformas estruturantes, cujo marco legal se revela nas emendas constitucionais n. 19 e n. 20 de 1998, inúmeras são as razões que obstacularizaram a implantação desse modelo no Brasil.

Dentre elas, pode-se mencionar a cultura política avessa ao planejamento de longo prazo e ao tratamento técnico de questões públicas até a resistência burocrática a ações orientadas pelo desempenho, especialmente em um ambiente de rigor fiscal.

Contudo, além do plano prático relativo ao contexto brasileiro, novos desafios se impõem ao novo Estado que não podem ser relativizados: i) o advento da era digital e o incrível desenvolvimento das novas tecnologias, ii) as mudanças no mindset dos cidadãos, cada vez mais ansiosos, impacientes e (des)informados, iii) os limites internos e externos à soberania nacional, os quais impõem constrangimentos e condicionantes aos poderes estatais, cerceando o potencial de atuação centralizada do Estado, iv) a necessidade de maior integração com a sociedade civil e atuação em rede, bem como v) a maior participação dos cidadãos na produção normativa, ante o aumento de complexidade na base social e o incremento do pluralismo nas expectativas e modos de vida.

Daí é imprescindível a adoção de uma lógica pós-burocrática radicalmente inovadora, digital e conectada com as demandas contemporâneas, um Estado enquanto centro de inteligência e governança estratégica.

Pautado por uma racionalidade pública e no interesse coletivo, não necessariamente estatal e nem mesmo empresarial, esse modelo prioriza a inteligência de análise e tratamento de dados, as evidências e os mecanismos de governança para o fim maior de concretização dos direitos fundamentais individuais e sociais por meio de políticas públicas. Seu compromisso não é com a estrutura, mas com os resultados.

No olhar proposto, as inovações de governo digital ou govtech não são apenas instrumentos a facilitar as medidas executivas. Elas adquirem forte assento no nível estratégico de decisão.

A primeira característica desse modelo é a prioridade no nível estratégico: ao lado dos mandatários eleitos, um corpo de executivos públicos de alta qualificação e bem preparados formam um conselho de governança no Poder Executivo, cuja missão é analisar dados, avaliar diagnósticos, planejar, definir atribuições táticas e operacionais, estabelecer indicadores e monitorar o cumprimento das metas a serem executadas na própria gestão pública ou por meio de parceiras com a iniciativa privada.

Assegurada a atuação direta do Estado em atividades consideradas essenciais e que demandam garantias igualmente públicas, os demais serviços públicos não necessariamente teriam execução estatal. Tampouco se submeteriam à razão mercadológica.

Para que seja possível o monitoramento na execução das políticas públicas, o controle e fiscalização dos seus agentes, a adoção de políticas de integridade (compliance) e responsabilização de agentes públicos e privados (accountability) o modelo estratégico deve se aliar ao compromisso fortemente regulador.

Regulação e monitoramento são imprescindíveis para bons resultados. Por isso, a prestação de serviços públicos de índole meramente operacional ou direta deve prestigiar a parceria com a iniciativa privada, restando ao Estado maior foco na atividade regulatória em detrimento da prestação direta e ação operacional.

Neste quesito, não há grandes novidades. A inovação é aliar essa regulação com um modelo de governança estratégia e inteligência pública ditando os rumos do futuro e que não se restringe à regulação tradicional. Ele atua também como indutor do desenvolvimento.

Superando as dicotomias da modernidade entre Estado e sociedade civil, o modelo proposto atua dialeticamente com a esfera privada, de modo a promover novos vetores de desenvolvimento a partir da síntese dessas duas forças dialogantes.

Nessa dialética supera-se a leitura desenvolvimentista clássica, que credita ao Estado o papel de motor da história, sem atribuir exclusividade à sociedade civil e aos mecanismos de mercado a missão de fomentar os avanços sociais.

O novo Estado induz, provoca, gera incentivos e estabelece punições. Indica caminhos, constrói meios em conjunto e atua com a sociedade no progresso civilizatório e na promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Por fim, esse modelo há de ser interativo: ante a insuficiência contemporânea da produção normativa puramente estatal, a governança deve interagir com os diferentes atores sociais, de modo a permitir sua participação e adotar mecanismos de construção colaborativa e compartilhada tanto no âmbito da formulação das políticas, quanto de seu arcabouço legal regulatório.

Um exemplo prático e que revela uma tendência é o Comitê Gestor de Internet composto por membros do setor empresarial, acadêmico-científico, empresarial e entidades não governamentais. Sua atribuição principal é a formulação de orientações estratégicas sobre o uso e o desenvolvimento da internet no Brasil, além de promover estudos e pesquisas sobre a temática (conferir: www.cgi.br),

Estratégico, regulador, indutor do desenvolvimento e interativo: eis um conjunto de diretrizes para se pensar o novo Estado e assim orientar as reformas administrativas em prol de resultados, a reelaboração dos marcos regulatórios e a formulação de políticas públicas baseadas em evidências.

Um Estado leve, porém forte, necessário e dotado de lógica pública não necessariamente estatal. Afinal, na Era Digital se tornou urgente que as instituições funcionem e forneçam respostas às necessidades da população, de modo a possibilitar a efetividade dos direitos fundamentais individuais e sociais, resgatar a legitimidade da política e preservar importantes postulados da democracia liberal.


LA SPINA, Antonio. MAJONE, GIANDOMENICO. “Lo Stato Regolatore” Bologna: IlMulino, 2000. p. 24 e ss.

Para aprofundamento, conferir: REZENDE, Flávio da Cunha. Razões da crise de implementação do estadogerencial: desempenho versus ajuste fiscal. In: Revista de Sociologia e Política n. 19: 111-121. Curitiba: Ufpr, 2002. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rsp/article/viewFile/3622/2879 Acesso: 07maio2020.

 é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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Roberto Wanderley Nogueira: O “AI-5” judiciário

Eis que se calardes, até as pedras falarão.” (Lucas 19:40)

No último dia 13 de dezembro, o país fez memória do Ato Institucional nº 5 (AI-5), um diploma normativo que data de mais de 45 anos, o qual tinha força de norma constitucional, mas compunha uma topografia legal paralela, metajurídica. Era como que uma constituição à parte da Constituição Federal e que, na prática, valia talvez mais do que a outra, muito em função do autoritarismo à época estabelecido, institucionalmente, no Brasil.

Em verdade, o seu valor atual é menos histórico que arqueológico, motivo pelo qual o título deste artigo é apenas uma alegoria, tanto quanto se tem reverberado nos últimos dias pela crônica política da Nação.

Felizmente, deu-se a redemocratização do país, editou-se a Constituição Federal de 1988 – chamada de “cidadã” por Ulysses Guimarães — e mais não existe o traço formal do autoritarismo do passado, embora nossa democracia insista na incipiência de seus fundamentos e no primitivismo corporativista, patrimonialista e fisiológico de suas relações, decorrentes do “constitucionalismo semântico” referenciado por Karl Loewenstein em sua “Teoria da Constituição”.

Nada obstante, hoje em dia, o papel de editar comandos normativos com aspectos de “AI-5” parece ter se transferido às atribuições dos juízes, sobretudo os das Cortes Superiores. Vez ou outra, num crescendo atitudinal que já se convencionou denominar de “ativismo judicial”, eles adotam decisões inteiramente descoladas do sistema jurídico (normativo), atropelando funções próprias dos demais poderes de Estado e vão muito além dos limites das lides, haja vista motivos conjunturais e até estatísticos dos quais não se costuma fazer cerimônia. É prática arraigada.

Sobre isso, há quem na outra ponta do exercício jurisdicional, locupletando-se dessa estranha atmosfera, proponha demandas ao talante de construções voluntarísticas e estritamente subjetivas (chicanas) que, em vez de refutadas, acabam de algum modo acolhidas para a perplexidade das partes e da Nação impactada. É como se múltiplos subsistemas estivessem ativados e em operação mais eficaz do que o próprio sistema de normas em vigor.

A hermenêutica pode operar milagres, quando arbitrariamente gerenciada, o mesmo que acontecia ao tempo dos Militares. Convém lembrar que isso não é exclusividade de instância judiciária alguma, em particular. Nas instâncias inferiores podem-se considerar dois outros fatores igualmente importantes: 1) o desconhecimendo de causa (despreparo e disfuncionalidade associadas ao processo de seleção e de fiscalização dos Magistrados, tudo associado ao volume da demanda e à escassez de recursos para enfrentá-la); e 2) o carreirismo, que açula o receio de impopularidade e o anseio de promoção com a possibilidade de graves prejuízos à prestação jurisdicional devida aos cidadãos.

De fato, a pretextos diversos, interpretação extensiva, historicista, sociológica, conforme ao que se julga ser ou não ser constitucional, dentre outros truísmos, menos o que se revela juridicamente válido em sua literalidade e no seu sentido próprio, adotam-se decisões inteiramente inusitadas em relação à Ordem Constitucional, retarda-se a eficácia de dispositivos superiores, enquanto outros são substituídos por diversos procedimentos de vernissage, assim encarada, referida Ordem, na literalidade de seus conteúdos normativos quanto no seu sentido. Tudo isso sem risco de controle político, jurídico e social, sobretudo quando os veredictos são de última ou única instância. A Constituição até que preconiza remédios sanadores desses quadros e dessas atitudes, mas, no momento, não há atores dispostos a executarem suas regras. A interdependência entre os poderes do Estado brasileiro cedeu, na prática, ao temor reverencial.

A democracia, desse modo, é, paradoxalmente, o cenário político mais favorável à denominada “Ditadura do Judiciário” na qual o primado da ignorância e da prepotência ressurge com força e esmerada aplicação tática, quer no âmbito da jurisdição, propriamente dita, quer na atividade censória dos Tribunais e do Conselho Nacional de Justiça, que é o órgão que encara um suposto controle externo do Poder Judiciário, criado à luz da Emenda Constitucional nº 45/2004. Esse dispositivo (artigo 103-B, § 4º, da CF/EC 45) não faz acepção de Juiz algum, mas se convencionou que os Ministros do Supremo Tribunal Federal não se submetem a ele.

Pois bem. Sobre a iniciativa regulatória das atividades dos juízes nas redes sociais por parte do CNJ, destaco, em primeiro lugar, que o STF não é instância constituinte e nem o CNJ, legisferante. Tratam-se de órgãos constituídos que devem, por isso mesmo, ater-se ao Ordenamento Jurídico, tal como se encontra positivado (“In claris cessat interpretatio”).

A consciência de limites dos seus agentes é fundamental ao Estado de Direito. Se lhes falta essa virtude, dessume-se ser chegada a hora exata de reciclar atores e procedimentos em razão da necessidade de manutenção da higidez do seu sistema de normas, que não deve sofrer abalos idiopáticos ou voluntarísticos de quaisquer espécies, haja vista tratar-se de uma estrutura lógica com unidade de sentido e autopoiética (que se basta a si mesma).

O esforço de regular o que já se acha regulado traduz uma inutilidade jurídica clarificada, no caso, em função da disciplina judiciária preexistente, nos termos da Constituição e da LOMAN. Se a LOMAN, norma específica, que data dos dias de ferro do militarismo, vem se revelando, todavia, hipossuficiente ou inadequada ao justo, democrático e ponderoso regulamento da ação judicial nos dias que correm e da Magistratura Nacional, seria o caso de se enviar ao Congresso a última das disciplinas para carreira de Estado ainda represada pelo burocratismo judiciário da República: o novo Estatuto da Magistratura, cujo projeto foi o constituinte de 1988 que atribuiu ao STF a responsabilidade de empreendê-lo e encaminhá-lo, mesmo que sem data aprazada. Há 31 anos foi passado esse comando, mas até agora ele não foi obedecido e a Magistratura Nacional segue como a última carreira de Estado ainda não regulada sob o pálio da Constituição Federal de 1988.

Com efeito, o CNJ não substitui o STF nessa dinâmica de obediência jurídica à vontade do legislador constituinte, ainda que por vias transversas ou pretextos de um pseudoadministrativismo expresso em resoluções, provimentos, portarias e demais atos autoconsiderados “interna corporis”, mas que disso não se trata em absoluto. A natureza jurídica de certas resoluções do CNJ tem, sim, caráter de legislação primária e isso lhe é vedado pela Constituição Federal. Corre-se, pois, o risco de autoritarismos. Desse modo é que não pode parecer estranho à Nação, crescentemente impactada, que ainda haja dignitários em atividade que exortem, com toda convicção e nenhuma cerimônia, para um suposto caráter “divinal” dos Magistrados, eis que “julgam pessoas”, não condutas. Só acreditei nessa manifestação porque a fonte da informação era boa, mais tarde comprovada, mas se trata, na realidade, de um nada cognitivo. Tempos estranhos, muito estranhos… O fato é que os juízes são tão mortais quanto a quaisquer outras pessoas e estão do mesmo modo sujeitos às misérias desta vida.

A tal exortação pública, outrossim, evoca uma outra tragédia do Poder Judiciário Nacional: o formato personalista e antirrepublicano de como suas composições são comumente eleitas e as brechas legais que permitem serem elevados aos Tribunais quadros inteiramente inusinados à função jurisdicional e à vida dos pretórios. Ora, não é difícil especular acerca das razões de certos experimentalismos que são comumente observados no sistema de Justiça brasileiro, e pelos quais a imprevisibilidade resulta bem aflorada na vida forense com alguns adminículos corporativos altamente perniciosos à boa imagem da Magistratura Nacional, a exemplo do carreirismo judiciário e de um espectro de emulações na evolução dessas carreiras e até mesmo de seus cargos isolados. O apego ao poder, sobretudo nas esperas mais acima da jurisdição, parece patológico ao ponto de atropelar dispositivos constitucionais muito específicos como os resultantes da Emenda Constitucional nº 88/2015 (“PEC da Bengala”), que obrigou os membros dos Tribunais Superiores a se submeterem a uma sabatina de retenção de seus cargos perante o Senado Federal, ao ensejo de completarem a idade limite de 70 anos para fins de permanência na atividade por mais um lustro. Essa regra, todavia, continua sendo negligenciada por força de decisão liminar adotada, por maioria, pelo próprio STF, que a considerou contrária às garantias da Magistratura, desconsiderando, outrossim, que o tema era outro: Regime Jurídico da Administração Pública Judiciária para o quê não há direito adquirido, inclusive (ADI nº 5.316).

Ao fim, a estrutura das liberdades públicas, mesmo aquelas que dizem respeito aos Juízes, é intocável por meio de medidas administrativas, não previstas em lei. Ainda, aos Juízes é deferida essa pauta de liberdades, nos termos do que a lei e somente a lei delimita. A Magistratura, sobre restringir algumas condutas de seus membros, “ex-vi-legis”, não retira dos Juízes a própria cidadania. Pensar diferente é idiossincrático, quando não traduzir abuso.

O juiz que não se sente livre na sociedade em que atua, simplesmente não decide coisa alguma, guardados os limites que a lei lhe impõe por dever de seu ofício. O valor da liberdade forja os talentos mais necessários à arte de julgar. O juiz que não se sente livre, porém, jamais estará apto a decidir os destinos de seus semelhantes.

Desse modo, a iniciativa do CNJ em regular ou restringir, para além dos limites legais, a liberdade do juiz quanto ao uso das redes sociais, é de fato um monumental contrassenso, para dizer o mínimo. Estamos, pois, diante da possibilidade de cerceamento da liberdade de expressão dos Juízes, predicado da cidadania, para além do que preconizam a Constituição Federal e a Loman. Esse tipo de experimentalismo judiciário diverge do Estado de Direito e conduz o sistema de controle da Magistratura ao arbítrio. Sobre isto, o Poder Judiciário precisa ser revisto nos mecanismos de formação de seus quadros e o controle externo da Magistratura Nacional deve ser social e jamais corporativo.

Nada obstante, cada qual deve fazer a autorregulamentação da própria atividade, justamente à luz da Constituição e da Loman. O CNJ e as Corregedorias de Justiça sempre exercerão o controle censório da disciplina judiciária, fenômeno bem distinto daquele que se intenta agora proceder sem amparo jurídico e por argumento de pura autoridade.

Diante de todo o exposto, pode-se concluir que os Juízes estão fazendo na democracia (“ativismo judicial”) o mesmo papel que os Militares fizeram na ditadura (“AI-5”).

Roberto Wanderley Nogueira

Doutor em Direito

 é juiz federal em Recife e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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Opinião: Vírus do autoritarismo na pandemia do coronavírus

O presente texto não vem questionar os critérios técnicos científicos do isolamento horizontal para fins de evitar a propagação do vírus e o debate econômico que defende o isolamento vertical. Também não deseja ingressar nas razões ideológicas que cercam o debate. Mesmo porque as posições contrapostas estão misturadas e invertidas. O que se deseja abordar são os limites dos poderes do Estado na limitação do direito de ir e vir e na livres iniciativa econômica — sob a premissa de que se o isolamento é a estratégia correta, deve ser voluntário.

Importante artigo de Raúl Zibechi veio tratar da militarização da crise do Corona vírus. O autor denuncia que “É necessário voltar aos períodos do nazismo e do estalinismo, há quase um século, para encontrar exemplos de controle de população tão extenso e intenso como os que acontecem na China, nesses dias, com a desculpa do coronavírus. Um gigantesco panóptico militar e sanitário, que limita a população”. Continua revelando que as cidades parecem “campo de concentração a céu aberto pela imposição de quarentena a todos os seus habitantes (…) Cidades desertas, onde transita apenas gente da segurança e da saúde.”[1]

Nesse contexto, foi realizada pesquisa, divulgada em 6 de abril, demonstrando que 76% da população aprova o isolamento[2], denotando o apoio popular às medidas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Acompanhando esse sentimento popular, em 8 de abril, o Supremo Tribunal Federal, por meio do ministro Alexandre de Moraes, decidiu que o governo federal não pode derrubar decisões de estados e municípios sobre restrições na atividade econômica e circulação de pessoas que correspondam a formas de combate ao avanço da atual pandemia[3].

O pedido formulado pela OAB na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 672 à corte constitucional visava impedir a presidência do governo federal de interferir no trabalho técnico do Ministério da Saúde e nas decisões dos governadores. Na decisão o Min. Alexandre de Moraes afirmou ser grave a divergência de posicionamentos entre autoridades dos diversos níveis federativos, concluindo que não compete ao poder executivo afastar decisões de governos estaduais que adotaram medidas “reconhecidamente eficazes para a redução de número de infectados e de óbitos”, posicionamento que faz coro com a opinião majoritária da população, mas diverge do presidente da república — este defende a “voltar à normalidade” e o fim do “confinamento em massa” resultante de “pavor” que os meio de comunicação teriam espalhado[4].

Com efeito, o medo move o sentimento da população que apoia massivamente essa espécie de controle populacional, ocorre que esse medo pode se voltar contra o cidadão – vale recordar a máxima: o preço da liberdade é a eterna vigilância.

Temos um novo “inimigo interno”, invisível, o coronavírus. No imaginário vem cair como uma luva em terra que já foi fértil a doutrina de segurança nacional, que se fundamentou contra os “inimigos da pátria”. Esses inimigos vão mudando de tempos em tempos; os comunistas, os subversivos, depois traficantes e hoje a questão da saúde pública toma o lugar.

A política higienista não é inédita no Brasil, já vivemos as consequências dela no início do século XIX, e fomos o primeiro país do mundo a ter carteira de identidade, controle sob hotéis e transformamos cidades com as destruições dos cortiços sob a justificativa da higiene. Mesmo assim, hoje nos deparamos, em pleno século XXI, com enormes favelas sem água ou sabão. Antes do positivismo a ideologia higienista contra o pobre, o negro, o estrangeiro e as atitudes de “mendigos e ébrios”, “vadios e capoeiras” e “prostitutas e cáftens”, que serão criminalizados pelo Código Penal de 1890 e suas alterações, a fim de limpar a cidade do que era considerado “fezes sociais” e suas atitudes “viciosas” e propagadoras de “doenças[5]”.

A carta fundante da democracia brasileira de 1988 tem no seu artigo como fundamento da República brasileira a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Estão presentes no texto constitucionais garantias das liberdades individuais no artigo 5º, assim como a proteção à livre iniciativa econômica, no artigo 170. De outro lado, a Constituição prevê a possibilidade de suspensão de garantias, em seu artigo 137[6], com a possibilidade do presidente da República solicitar a decretação de estado de sítio em caso de “comoção grave” ou a “ineficácia de medida durante estado de defesa” ou “declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada”, com limitação de 30 dias, e somente nesses casos medidas para “obrigação de permanência em determinadas localidades” “detenção em edifícios” “restrições relativas a inviolabilidade de correspondência” e mesmo a “suspensão de liberdades de reunião” a “intervenção nas empresas de serviços públicos”. Veja, não estamos vivendo os pré-requisitos para estado de sítio, mesmo sendo a saúde um dos fundamentos do artigo sexto da constituição.

A aprovação da Lei 13.979 de 2020, que dispõe sobre o enfrentamento de emergência do coronavírus concede uma série de poderes às “autoridades”, sem a exata definição de competências, possibilitando medidas de isolamento e quarentena. Possibilita a “restrição excepcional e temporária de rodovias, portos ou aeroportos”. Possibilita a requisição de bens e serviços de pessoas físicas ou jurídicas, com indenização posterior. Garante a autorização do Ministério da Saúde, excepcional e temporária de produtos mesmo sem registro da Anvisa. e determinação compulsória de determinados atos, assim como de estudos ou investigação epidemiológica, exumação, necropsia, cremação e de manejo de cadáveres.

Ocorre que o isolamento é exclusivo para “separação de pessoas doentes ou contaminadas”, além de objetos. Portanto, a lei cria uma condição ao exercício do poder de isolamento da autoridade, qual seja, a existência de teste conclusivo de que o destinatário da ordem de isolamento esteja contaminado.

A quarentena de igual forma somente pode ser direcionada a atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação que não estejam doentes de “maneira a evitar a propagação de coronavírus”. Esses poderes, portanto, são limitados e não suspende a garantia de ir e vir de pessoas. Mesmo a “excepcional e temporária” restrição de rodovias, portos e aeroportos precisa de prévia recomendação técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

A emergência sanitária e a necessidade de proteção da vida e a edição de norma nova sem regulamentação acabou por gerar, mesmo que de boa-fé, ações que extrapolam a norma, as competências Federais, Estaduais e Municipais. Isso em especial em um país em que não são cumpridos os objetivos das fundamentais da República, especialmente aquele determinado pelo artigo 3º da Carta Magna, que é erradicar a pobreza e garantir o bem estar de todos. Como resultado, temos enorme parcela da população sob fragilidade, que agora se vê diante de situação ainda mais complicada.

É preciso encontrar equilíbrio na manutenção das garantias constitucionais da liberdade de ir e vir, da livre manifestação do pensamento, vedando por evidente divulgação de informações que coloquem em risco a população. Mas acima de tudo entender que, exceto nos casos de evidente contaminação comprovada, o Direito Penal não é o caminho para lidar com a situação de pandemia.

Bem por isso, os ‘Crimes contra a Saúde Pública” previstos no Código Penal “causar epidemia” (artigo 267), e “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” (artigo 268), não se aplicam as pessoas não contaminadas que decidam negar o isolamento ou a quarentena.

De modo que o caminho democrático é a conscientização da população, se é quarentena e isolamento que poderão auxiliar a controlar a pandemia, deve a imposição à liberdade ser voluntária e motivada pelo ideal de contribuir com a saúde pública. As liberdades individuais de quem não coloca em risco a saúde pública não podem ser sacrificadas com justificativa da crise causada pelo coronavírus, sob pena de no futuro as autoridades encontrarem novos pretextos para tolher a liberdade do cidadão.


1 ZIBECH, Raúl. Coronavírus: a militarização das crises. In: Coronavírus e a luta de classes. São Paulo: Terra Amos, 2020, P. 37.

2 https://exame.abril.com.br/brasil/76-dizem-que-isolamento-social-e-o-mais-importe-agora-aponta-datafolha/

3 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441075

4 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/24/bolsonaro-pede-na-tv-volta-a-normalidade-e-fim-do-confinamento-em-massa.ghtml

5 FERNANDES, Fernando Augusto. Voz Humana: a defesa perante os tribunais da república. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

6 Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

 é sócio do Fernando Fernandes Advogados, advogado criminalista e doutor em Ciência Política.

 é sócio do Fernando Fernandes Advogados e criminalista especializado em compliance.