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Turma do STF condena Aníbal Gomes por corrupção passiva e lavagem

A 2ª turma do Supremo Tribunal Federal condenou nesta terça-feira (9/6) o ex-deputado federal Aníbal Gomes (DEM-CE) e seu assessor Luiz Carlos Batista Sá pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Foram 3 votos a 2.

Maioria do colegiado acompanhou voto do relator para condenar Aníbal Gomes

Eles são acusados de participar de um esquema de corrupção na Petrobras em 2008. No julgamento, os ministros concordaram em absolvê-los do crime de corrupção ativa por falta de provas. E ainda impuseram pagamento de R$ 6,8 milhões por danos morais coletivos, além da interdição para o exercício de cargo ou função pública. 

Sobre a dosimetria da pena, ficou fixado que Aníbal Gomes deve cumprir 13 anos e 1 mês de prisão em regime fechado e pagar 101 dias-multa. Ele não terá direito a substituição da pena por restritiva de direitos. 

Por sua vez, Luiz Carlos Batista Sá deverá cumprir a pena de 6 anos e 11 meses de prisão, em regime semiaberto, além do pagamento de 50 dias-multa. Ele também teve extinta a punibilidade do crime de corrupção passiva por prescrição.

Acordo extrajudicial

Na denúncia, o Ministério Público Federal aponta que Aníbal Gomes recebeu vantagem indevida do escritório de advocacia para interceder com o Paulo Roberto Costa, então diretor de abastecimento da Petrobras , mediante oferecimento de R$ 800 mil. 

O objetivo deles, segundo o MPF, seria firmar um acordo extrajudicial com empresas da zona portuária. O acordo foi assinado em agosto de 2008 e envolveu R$ 69 milhões. A denúncia aponta que Aníbal e Luís Carlos receberam R$ 3 milhões com a ajuda de outro escritório de advocacia.

Maioria do colegiado

O julgamento havia começado em dezembro de 2019, com a leitura do relatório e sustentações orais. Na última semana, votaram os ministros relator e revisor, Luiz Edson Fachin e Celso de Mello, respectivamente. Ambos concordaram com a condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro; e pela absolvição por corrupção ativa. Eles foram acompanhados pela ministra Cármen Lúcia e formaram maioria.

De acordo com Fachin, os acusados usaram “estratégias aptas a dissimular a origem da vantagem financeira percebida pela prática da conduta típica de corrupção passiva no recebimento total da vantagem”. 

Acerca das acusações de corrupção passiva, o ministro considerou que foram juntados diversas provas, dentre elas depoimentos de colaboradores e testemunhas, e documentos. Para o relator, essas provas demonstraram o dolo do recebimento da vantagem indevida. 

Já sobre as acusações de lavagem de dinheiro, Fachin entendeu que as transações bancárias e laudos nos autos demonstram que os acusados agiram para esconder a origem do dinheiro que foi usado no esquema. 

Tráfico de influência

Os votos divergentes foram apresentados pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, que entenderam que não houve crime de corrupção passiva, mas sim tráfico de influência. 

Lewandowski apontou que os crimes não ocorreram em função do cargo e sim de relação pessoal de Aníbal com Paulo Roberto. 

Da mesma forma, Gilmar afirmou que a situação se aproxima do tráfico de influência, considerando que o pedido de vantagem indevida aconteceu para influenciar em ato praticado de funcionário público.

AP 1.002

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Porte de arma branca pode ser enquadrado como contravenção

É possível enquadrar o porte de arma branca como contravenção, prevista no artigo 19 do Decreto-Lei 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais). Com esse entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou recurso em habeas corpus em que a defesa pretendia que fosse reconhecida a atipicidade da conduta de portar uma faca, bem como a ilegalidade da condenação por esse fato.

ReproduçãoÉ possível enquadrar porte de arma branca como contravenção, reafirma STJ

Na origem do caso, policiais militares encontraram com o réu uma faca de aproximadamente 22 cm de comprimento. Pela prática da contravenção penal prevista no artigo 19 do Decreto-Lei 3.688/1941, ele foi condenado à pena de um mês de detenção, substituída por pena restritiva de direitos consistente em prestação pecuniária.

A Defensoria Pública estadual interpôs o recurso no STJ argumentando que não haveria justa causa para o prosseguimento da ação penal, em razão da atipicidade do fato. Segundo a recorrente, não há qualquer possibilidade de concessão de licença para o porte de arma branca, como exigido pelo artigo 19, especialmente de uma faca, e por isso seria ilegal a execução da pena imposta, por decorrer de condenação por fato atípico.

O relator do recurso, ministro Ribeiro Dantas, explicou que, em relação às armas de fogo, o artigo 19 da Lei das Contravenções Penais foi tacitamente revogado pelo artigo 10 da Lei 9.437/1997, que por sua vez também foi revogado pela Lei 10.826/2003.

Segundo ele, o porte ilegal de arma de fogo caracteriza, atualmente, infração aos artigos 14 ou 16 do Estatuto do Desarmamento, dependendo de ser a arma permitida ou proibida. Contudo, destacou, o artigo 19 do Decreto-Lei 3.688/1941 continua em vigor quanto ao porte de outros artefatos letais, como as armas brancas.

“A jurisprudência desta corte é firme no sentido da possibilidade de tipificação da conduta de porte de arma branca como contravenção prevista no artigo 19 do Decreto-Lei 3.688/1941, não havendo que se falar em violação ao princípio da intervenção mínima ou da legalidade, tal como pretendido”, disse.

Ribeiro Dantas observou que está pendente de apreciação no Supremo Tribunal Federal agravo no RE 901.623, que discute a mesma controvérsia. Para o ministro, “isso não obsta a validade da interpretação desta corte sobre o tema, não havendo nenhuma flagrante ilegalidade a ser reconhecida pela presente via, mormente porque não se determinou a suspensão dos processos pendentes”. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

RHC 56.128

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Arma branca é circunstância desabonadora para dosimetria da pena

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que o emprego de arma branca no crime de roubo pode servir como circunstância judicial desabonadora no cálculo da primeira fase da dosimetria da pena, em virtude da revogação do artigo 157, parágrafo 2º, I, do Código Penal, pela Lei 13.654/2018.

ReproduçãoUso de arma branca no roubo pode ser circunstância desabonadora, diz STJ

O entendimento veio na análise de habeas corpus impetrado em favor de uma pessoa condenada a seis anos de reclusão pela prática de roubo. Na primeira instância, ao impor a pena-base acima do mínimo legal para o delito, que é de quatro anos, o juiz considerou o fato de o crime ter sido cometido com uso de faca e aumentou a pena-base pela metade.

Interposta a apelação, a pena-base foi reduzida para cinco anos, pois o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro considerou que a fração aplicada pelo juiz para majoração da pena-base foi desproporcional. A corte estadual optou pela fração de um quarto.

Ao STJ, a defesa alegou a ocorrência de constrangimento ilegal, tendo em vista a desproporcionalidade do aumento da pena-base na fração de um quarto em razão de uma única circunstância negativa, o que estaria em desacordo com a jurisprudência.

Em seu voto, o ministro relator do caso, Ribeiro Dantas, registrou que, embora à época do crime o emprego de arma branca não fosse considerado circunstância majorante na terceira fase do cálculo da pena por roubo, em virtude da revogação do artigo 157, parágrafo 2º, I, do CP pela Lei 13.654/2018, nada impede a sua eventual valoração como circunstância judicial desabonadora na primeira fase da dosimetria.

No entanto, o magistrado apontou flagrante ilegalidade em relação à fração de aumento adotada na primeira fase, visto que a corte estadual majorou a pena-base em um ano apenas em razão de uma circunstância judicial.

“Considerando o aumento ideal em um oitavo por cada circunstância judicial negativamente valorada, a incidir sobre o intervalo de pena abstratamente estabelecido no preceito secundário do tipo penal incriminador, que corresponde a seis anos, chega-se ao incremento de cerca de nove meses por cada vetorial desabonadora”, concluiu o ministro. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Clique aqui para ler o acórdão
HC 556.629

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Improbidade em razão de atos anteriores praticados pelo presidente

Já tivemos a oportunidade de tratar neste espaço de temas caros ao estudo da improbidade, como foro por prerrogativa de função e dupla dimensão de responsabilização (improbidade/crimes de responsabilidade). Por isso, não é nenhuma novidade repisarmos que não ignoramos o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que inexiste o chamado foro privilegiado em ações de improbidade e de que os agentes políticos, à exceção do Presidente da República, estão sujeitos a duplo regime, podendo responder tanto por improbidade quanto por crimes de responsabilidade.

A questão que se põe é justamente a exceção, restrita ao Presidente da República. Que não pode ele ser alvo de improbidade por atos praticados no exercício do mandato, isso é certo, mas e por atos anteriores?

A pergunta não parece ser muito complexa: se a exceção diz respeito ao Presidente, que no exercício do mandato se submete aos crimes de responsabilidade (que derrogam o regime de responsabilização da improbidade), o agente, se Presidente ainda não era, pode sim ser alvo de ação de improbidade. O ponto, contudo, exige aprofundamento.

Sabido que a ação de improbidade admite afastamento cautelar do cargo; igualmente conhecida a divergência no âmbito da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça sobre se a sanção de perda da função pública se atrela ao cargo em que praticado o ilícito ou se ela se estende para o cargo atualmente desempenhado, ainda que posterior ao ilícito. Daí a reflexão: imagine-se a hipótese de um agente que seja réu em ação de improbidade e posteriormente se torne Presidente; ou a hipótese de alguém que se torne Presidente, mas passe a ser investigado por possível improbidade praticada anteriormente à assunção ao cargo.

Em ambas as hipóteses, questionamentos surgem: dada a inexistência de foro por prerrogativa de função em improbidade, seria possível ao membro do Ministério Público que oficia perante o primeiro grau empreender procedimento inquisitório tendo como alvo o Presidente? Ajuizada a demanda, seria possível afastamento cautelar do Presidente em razão de ato supostamente praticado anteriormente à posse? Tramitando a ação, a sanção de perda de função pública poderia atingir o cargo de Presidente?

Particularmente, entendemos que a resposta é negativa para as três questões. A Constituição, bem assim a lei dos crimes de responsabilidade, previu regime detalhado e excepcional de responsabilidade para o Presidente da República. As situações que admitem sua retirada forçada do cargo são absolutamente extremas e exigem grandes solenidades, enunciadas taxativamente no artigo 86, § 1º, da Constituição. A par desse dispositivo, merece destaque o § 4º do mesmo artigo, a rezar que “o Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.

É dizer, a dinâmica sancionadora da ação de improbidade estaria bem mais próxima das condições de procedibilidade e da impossibilidade de responsabilização que norteiam a matriz de responsabilização dos crimes comuns e de responsabilidade e mais distante de uma mera ação cível comum, que admitiria tramitação livre em primeiro grau.

Assim, entendemos (de lege ferenda ou por uma aplicação analógica dos dispositivos acima) que o ajuizamento de ação de improbidade por ato anterior ao mandato potencialmente careceria de interesse processual ou de justa causa, seja pela falta de condição de procedibilidade, seja pela impossibilidade de ela resultar em responsabilização na constância do mandato. Seria o caso, pois, de se extinguir a ação, dada a impossibilidade de suspensão do processo por período prolongado. Por outro lado, o prazo prescricional poderia ser suspenso a partir da assunção do mandato, sendo retomado ao término dele (o paralelo aqui é com o prazo prescricional para exercício de pretensão sancionadora em razão de ato praticado por agente político no exercício do mandato, que somente se inicia ao fim do último período eletivo).


Rcl 2.138 e Pet 3.240.

https://www.conjur.com.br/2019-jul-05/mudrovitsch-pupe-improbidade-perda-funcao-publica

 é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

 é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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Justa causa e in dubio pro societate nas ações de improbidade

Para quem é inocente, o só fato de ser réu numa ação de improbidade se revela sanção por demais gravosa.

Foi tendo bem presente, pois, a potência do instituto da improbidade e dos recursos a ele inerentes que o legislador inseriu na Lei 8.429/1992 não apenas a exigência de que a petição inicial se fizesse acompanhar de “documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade” (artigo 17, parágrafo 6º), mas um duplo filtro judicial (pré-autuação e pré-recebimento) capaz de eliminar, no nascedouro, persecuções sancionadoras desprovidas de justa causa.

Justa causa, a propósito, como corolário do devido processo legal, representaria o conjunto de indícios mínimos aptos a legitimar o regular exercício de uma pretensão sancionadora por parte do Estado. A devassa da vida pessoal e o constrangimento social de se figurar no polo passivo de uma demanda sancionadora ganham o acréscimo, na improbidade, da possibilidade de bloqueios e, até, de afastamento cautelar das funções, o que, em última análise, e inexistindo ato ímprobo, reverte em desfavor do próprio interesse público.

Daí por que entendemos que a justa causa se integraria à necessidade como parte do interesse processual[1], para o fim de tornar sua aferição, em improbidade, mais rigorosa, porque exigiria não só “o relato do ilícito, mas também a demonstração da existência de fortes indícios de sua ocorrência.”[2]

Mais bem explicando, em ação de improbidade, “a petição inicial (…) deve ser proporcionalmente mais substancial do que a de outras ações que não têm esta fase preliminar de admissibilidade da inicial em contraditório tão aguda. Nestas condições, a delimitação dos fatos, da causa de pedir, e a produção da correspondente prova (quando disponível de imediato) devem ser impecáveis, sob pena de comprometer, já de início, o seguimento da ação e, até mesmo, sua rejeição com apreciação de mérito.”[3] Ou seja, o parágrafo 6º do artigo 17 da Lei 8.429/1992 tem o condão de recrudescer a exigência já feita pelos artigos 319, III e IV, e 320 do Código de Processo Civil.

Apesar de tudo isso, como já pudemos pontuar anteriormente, a ação de improbidade parece ter se tornado refém de sua própria efetividade, com o crivo da justa causa sendo gradativamente automatizado até dar lugar ao in dubio pro societate como critério (ou ausência de) para recebimento da inicial. O que chama atenção, porém, é a origem obscura dessa tredestinação conceitual do princípio.

Na doutrina[4], não é incomum identificar uma associação daquela máxima, em sede de improbidade, à defesa do erário e do interesse público, a partir de uma leitura literal do parágrafo 8º do mesmo artigo 17. Essa tese, sem embargo, é antagonizada pelo raciocínio de que não deveria ser menos cara ao interesse público a tutela dos direitos fundamentais, entre os quais o contraditório corporificado no tema pela justa causa.

Indo além, cumpre rememorar que, conquanto censurável, a apropriação do rito da ação civil pública pela pretensão sancionadora por ato de improbidade produziu como resultado franquear ao Ministério Público a possibilidade de instauração de procedimento preliminar inquisitório[5] previamente ao eventual ajuizamento de ação. É dizer, a exigência de justa causa deveria ter sido na verdade agravada frente à possibilidade (ao menos para o órgão ministerial) de procedimento inquisitivo ao longo do qual lhe seria dado funcionar, antes, como juiz da sua própria pretensão, municiando-se de elementos para, então, deduzir ou não sua pretensão — em verdade, a possibilidade de inquérito onera o órgão ministerial em duas vertentes: se instaurado, e tendo resultado no ajuizamento de ação, deve ter tido o condão de municiar a inicial; não instaurado, quando poderia tê-lo sido, exige um crivo rigoroso da inicial, que deve ser robusta em que pese a não instauração prévia de procedimento para reforçá-la.

A par do exame criterioso já exigido pelo parágrafo 6º, a defesa preliminar ainda traz ingrediente adicional que subsidia o juízo de delibação, em favor de um exame lúcido e atento da inicial. Curiosamente, a introdução legislativa dessa etapa no rito da improbidade, segundo nos noticia a doutrina, se deu em resposta a um uso abusivo do instituto:

O objetivo do novo procedimento, que a princípio pode parecer repetitivo, é o de filtrar as ações que não tenham base sólida e segura, obrigando o juiz (…) a examinar efetivamente, desde logo, com atenção e cuidado, as alegações e os documentos da inicial (…). O instituto da defesa preliminar funciona como uma proteção moral para o agente público acusado, para quem o simples fato de ser réu pode implicar mancha na reputação.[6]

A despeito de tudo isso, o in dubio pro societate, mesmo sem previsão legal, receberia a chancela jurisprudencial para se tornar uma espécie de álibi argumentativo, um fundamento em si apto a desonerar fundamentações adicionais. Pedro Passos, em importante trabalho acadêmico[7] orientado por Rafael Araripe Carneiro, investigaria as origens do acolhimento judicial do princípio no Superior Tribunal de Justiça, identificando o Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 842.768/PR, julgado em 2009, como aquele que primeiro se associou o princípio à seara da improbidade, ainda que para o fim de rechaçar honorários sucumbenciais em desfavor do Ministério Público. A incidência do brocardo para fins de justificativa de recebimento da inicial se daria também em 2009, mas no Recurso Especial 1.108.010/SC, de cujo acórdão constaria a seguinte passagem:

O objetivo da decisão judicial prevista no art. 17, parágrafo 7º, da Lei 8.429/1992 é tão-só evitar o trâmite de ações clara e inequivocamente temerárias, não se prestando para, em definitivo, resolver – no preâmbulo do processo e sem observância do princípio in dubio pro societate aplicável na rejeição da ação de improbidade administrativa tudo o que, sob a autoridade, poder de requisição de informações protegidas (como as bancárias e tributárias) e imparcialidade do juiz, haveria de ser apurado na instrução.

Dali em diante, até o final de 2019, Pedro Passos identificaria 149 acórdãos abordando o tema do recebimento da ação de improbidade à luz do in dubio pro societate. Desses julgados, 30 acórdãos (20,13%) reformaram decisões que deixavam de receber a petição inicial, 2 acórdãos (1,35%) reformaram decisões para determinar a extinção da ação por ausência de justa causa e 13 casos (8,72%) mantiveram decisões de rejeição — o saldo presumidamente diria respeito a acórdãos que se limitaram a pressupostos de admissibilidade recursal.

Se os números acima demonstram a consagração jurisprudencial do in dubio pro societate em sede de improbidade, a verdade é que a posição produziria ainda outros desdobramentos, como a relativização da nulidade decorrente da ausência de notificação para apreciação de defesa preliminar.[8] O paradoxo que se instaura, pois, é o de criar presunção relativa em desfavor do requerido no que concerne ao recebimento da ação e à sua convolação em réu, ao mesmo tempo em que também se inverte em seu desfavor o ônus da demonstração de eventual prejuízo oriundo da não oportunização sequer da chance de se desincumbir daquele primeiro ônus (!).

Em outras palavras, a jurisprudência, placitando a banalização do recebimento da inicial de improbidade, criou premissa segundo a qual a defesa preliminar, presumidamente, não faria diferença, cabendo ao réu demonstração de prejuízo, o que, na prática, é inútil, eis que, revelados argumentos que convenceriam sobre o potencial da defesa para impedir o recebimento da ação, o resultado seria a extinção do feito com fundamento no parágrafo 11 do artigo 17, tornando inócuo o reconhecimento de qualquer nulidade. Por tudo isso, estamos com a parcela da doutrina que entende que a demonstração de prejuízo pela não oportunização de defesa preliminar é prova diabólica[9], devendo a falta ser tratada como verdadeira nulidade absoluta.[10]

Concluindo, não pretendemos subverter o parágrafo 8º do artigo 17, mas lê-lo em seus termos, à luz da justa causa como parte integrante do interesse processual e corolário do devido processo legal, além de tomar em conta os instrumentos disponíveis para que uma inicial de improbidade seja robusta, consentânea com o crivo mais rigoroso por que passa em relação às demais ações. Na esteira disso, temos que o “convencimento” exigido para a rejeição liminar da inicial deve ser harmonizado com a cognição sumária e com a delibação da etapa em que ocorre; um convencimento, portanto, pautado em (in)verossimilhança e (im)probabilidade. Ainda que assim não seja, o que seguramente não podemos conceber é uma automatização do juízo de admissibilidade em sede de improbidade sob o color de um in dubio pro societate, que, a pretexto de fundamentar, não fundamenta. Que a admissibilidade seja real, e não ilusória.

 é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

 é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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Leniência: força maior, imprevisão, função social e boa-fé (parte I)

O texto desta semana de nossa coluna, em primeira de duas partes, tem como objetivo analisar se, no contexto das recentes implicações causadas pelo Covid-19, seria possível pleitear algo similar a um reequilíbrio econômico-financeiro em acordos de leniência celebrados entre companhias e o Ministério Público. Antecipamos nossa resposta afirmativa, passando a demonstrar os fundamentos para tanto em seguida.

O acordo de leniência é um negócio jurídico, porque celebrado entre sujeitos de direito, com aptidão para produzir efeitos e dotado de sinalagma. Seu aspecto negocial, aliás, é evidenciado mais claramente por expressões como “proposta” e “negociação”, constantes da Lei n. 12.846/2013 e do Decreto n. 8.420/2015.

Como negócio que é, com potencial de protrair suas consequências no tempo, o acordo de leniência não deve fugir à regra regente dos demais ajustes a admitir revisitação das obrigações assumidas em razão de fatos supervenientes. Ilustram o que se está a dizer: (i) a teoria da imprevisão, o rechaço aos ônus oriundos de caso fortuito ou de força maior e a resolução por onerosidade excessiva (artigos 317, 393 e 478 do Código Civil), que subordinam o pacta sunt servanda à preservação das condições que ensejaram a avença (rebus sic stantibus); e (ii) o reequilíbrio econômico-financeiro nos contratos administrativos, com assento constitucional (artigo 37, XXI, da Constituição) e detalhamento pelos artigos 57, § 1º, 58, I e § 2º, e 65, II, d, da Lei n. 8.666/1993, e 9º, § 2º, da Lei n. 8.987/1995, além, quando menos, do partilhamento de riscos trazido pelos artigos 4º, VI, 5º, III, da Lei n. 11.079/2005.

Todos os institutos acima são tributários de uma constatação simples: não faltam mecanismos no direito que buscam recompor obrigações supervenientemente desequilibradas por fatores capazes de alterar as condições originárias das bases negociais que conduziram ao ajuste.

Assentada a premissa sob uma perspectiva negocial, importa analisarmos o tema pelo prisma sancionador, invocando-se, para tanto, disposições normativas que, de igual modo, buscam prevenir punições desproporcionais, ainda que essa desproporcionalidade se dê supervenientemente.

No ponto, o artigo 2º, VI, da Lei n. 9.784/1999, versa sobre a necessidade de observância de uma adequação entre obrigações e sanções e o atendimento ao interesse público. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por seu turno, reforçou em seus artigos 22 e 23 a necessidade de uma correspondência entre circunstâncias fáticas e punições. Não destoa, finalmente, a própria Lei n. 12.846/2013, que, ao dispor sobre as sanções cabíveis em processo administrativo de responsabilização, prevê em seu artigo 7º critérios para dosimetria, entre eles valendo destacar o inciso VI, que cuida da situação econômica do infrator.

Ou seja, à luz do que exposto até aqui: (i) as punições na seara sancionadora devem guardar proporcionalidade, levando em conta como uma das variáveis para seu cálculo a situação econômica do agente; e (ii) nos acordos de leniência, em que há disposição negocial sobre sanções, os efeitos se protraem no tempo, possuindo por isso aptidão para conviver com mudanças supervenientes capazes de repercutir sobre as obrigações contraídas de modo a mantê-las proporcionais.

Ainda além, convém apontar que as sanções pecuniárias versadas em acordo de leniência, quando do seu cálculo negocial, declaradamente levam em consideração a viabilização da continuidade da pessoa jurídica, seja por sua função social, seja, precisamente, para que garantam condições para que ela possa inclusive fazer frente às obrigações que assumiu no ajuste (ability to pay). Nesse particular, fazemos menção à própria exposição de motivos (EMI n. 00207/2015 MP/AGU/CGU/MJ) da Medida Provisória n. 703/2015:

(…) Assim, em razão da urgência de se contar com procedimentos mais céleres para firmar acordos de leniência e salvaguardar a continuidade da atividade econômica e a preservação de empregos é que se faz necessária a edição desta Medida Provisória, de texto análogo ao já aprovado pelo Senado Federal.

No mesmo sentido se deu decisão judicial que homologou um dos primeiros acordos de leniência celebrados no Brasil fora da seara concorrencial, proferida pelo Juízo da 13ª Vara Federal da Seção Judiciária do Paraná e novamente realçando a importância da continuidade e da preservação da companhia:

(…) com o acordo, preserva-se a própria existência da empresa e a continuidade de suas atividades, o que, apesar dos crimes, encontra justificativa em evitar os efeitos colaterais negativos na economia e nos empregos por ela gerados, direta ou indiretamente.

A partir do acordo, espera-se que a empresa, resolvendo a sua situação jurídica, logre obter paulatinamente a sua reabilitação, inclusive com a possibilidade de participar de novas licitações e contratos públicos.

Tendo presente a preservação da empresa como benefício difuso da leniência, a viabilizar o próprio cumprimento dos compromissos assumidos, o objeto de reflexão passa a ser então exatamente saber se fatos supervenientes não teriam o condão de convolar obrigação, em princípio suportável, em sanção que posteriormente se torne desproporcional.

Contribui para a construção da resposta o entendimento de que a seara negocial aberta pela leniência não se exaure em definitivo; dito de outro modo, se foi dado às partes celebrar ajuste, decerto que poderiam rescindi-lo (vide Pet 7.003 no Supremo Tribunal Federal) ou aditá-lo, como ocorre por exemplo, nessa última hipótese, quando há adesão de novos lenientes ou de outros órgãos ou pessoas jurídicas que pretendam fazer uso das provas propiciadas pelo ajuste.

Se o acordo, então, admite inovação subjetiva, não há por que não se possa conceber a possibilidade de inovação objetiva, por exemplo com novação de obrigações; essa percepção se revela ainda mais promissora quando essa revisita aos termos do acordo se dá precisamente para o fim de reequilibrar obrigações de modo a resguardar a preservação da companhia e sua capacidade de fazer frente às obrigações que assumiu (ability to pay).

Em linha com o que se está a dizer, tome-se o artigo 16, § 4º, da Lei n. 12.846/2013, que enuncia que o acordo deverá estabelecer “condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo”. A teleologia dessa norma orienta que o ajuste deve projetar sua existência no tempo, buscando antever possíveis problemas e endereçá-los aprioristicamente de modo a assegurar a consecução de seu fim.

Natural, nada obstante, que o acordo não seja capaz de divisar todas as ameaças à ultimação de seu escopo, hipótese em que seria não somente uma possibilidade, mas uma verdadeira consequência natural da celebração em primeiro lugar do ajuste que as partes atuem para resguardá-lo.

A obrigação tornada supervenientemente insuportável é inegavelmente uma daquelas hipóteses, haja vista que a falência da companhia (ou sua morte, em sentido prático) seguramente prejudicará a efetividade do acordo, seja no que diz respeito à elucidação de fatos, seja no que diz respeito ao adimplemento das obrigações contraídas.

Como se viu mais acima, o artigo 7º, VI, da Lei n. 12.846/2013 prevê a situação financeira do agente como elemento a ser tomado em conta para a dosimetria de sanções pecuniárias. O que se está aqui a dizer, objetivamente, é que se aquele parâmetro influenciou a obrigação quando da sua fixação, também deve influenciar sua readequação quando a forma de seu cumprimento se estender no tempo.

Não estamos, de modo algum, a advogar em favor de uma redução de sanções. Em verdade, num raciocínio mais próximo à ideia de correção monetária, a possibilidade de revisita à obrigação firmada em acordo de leniência tem mais a ver, isto sim, com uma recomposição que mantenha intacto seu caráter punitivo-pedagógico, sem, contudo, desconsiderar mudanças importantes que possam ter ocorrido de modo a alterar os parâmetros balizadores da punição.

É falar: o reequilíbrio em sede de leniência revela na verdade não uma comutação, uma anistia ou uma redução a posteriori de pena, mas sim a inibição a que acontecimentos práticos acabem por agravar a obrigação convencionada. Dito de outro modo, se causaria espécie qualquer tentativa de se minorar os compromissos assumidos, certamente está a merecer idêntica repulsa o incremento posterior das sanções suportadas resultante de fatos supervenientes imprevisíveis. Se mudam os parâmetros, devem mudar as medidas.

Pontuados todos esses aspectos, os fatos supervenientes que serão objeto de nosso exame na semana que vem, porque a nosso juízo são aptos a justificar a revisita às obrigações estipuladas em acordos de leniência, são, cumulativa ou isoladamente: (i) a proteção deficiente conferida pelos ajustes, que não lograram desencadear efeitos na medida esperada pelos atores envolvidos; (ii) a recuperação judicial de companhias lenientes, com impactos sensíveis em sua ability to pay; e (iii) a pandemia de Covid-19 e seus impactos na macroeconomia. Até lá!


A revisão ou resolução por onerosidade excessiva tem sido reconhecida até mesmo em contratos aleatórios, conforme evidencia o enunciado n. 440, aprovado na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “É possível a revisão ou resolução por excessiva onerosidade em contratos aleatórios, desde que o evento superveniente, extraordinário e imprevisível não se relacione com a álea assumida no contrato.”

Leciona Caio Mário da Silva Pereira que os contratantes estão vinculados ao fiel cumprimento das cláusulas na medida em que as circunstâncias ao tempo da celebração sejam conservadas ou não sofram alterações que afetem o seu cumprimento. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. 3, p. 98.

A Medida Provisória caducaria, mas, tendo sido editada dois anos após o início da vigência da Lei n. 12.846/2013, para alterá-la especificamente na parte relacionada ao acordo de leniência, sua exposição de motivos lançou importantes luzes sobre o instituto.

Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2017/05/homologacao-acordo-odebrecht.pdf?amp&_gl=1*1qjts6t*_ga*YW1wLXRncTlfenI2WjgyZWluX05hRnNtYjZNYUdsVFpUbi1hcml2SWVGWTdNMVlCb2hCSklvcmpQU2NUc1BfQmZ2TW4

 é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

 é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.