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É preciso tornar os crimes de estupro e feminicídio imprescritíveis

O crime de estupro sempre foi apenado com reprimendas severas em nossa legislação penal. Não há dúvida de que a conduta de forçar alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar um ato sexual contra a sua vontade é muito lesiva e, portanto, repugnante. O Código Penal (CP) de 1940, na época em que entrou em vigor, estabelecia duas modalidades de agressão sexual parecidas porém distintas (artigos 213 e 214 do CP), uma envolvendo somente a relação sexual vaginal violenta, que era chamada de “estupro”, e outra modalidade referente aos “outros atos libidinosos diversos da conjunção carnal”, denominada de “atentado violento ao pudor”. Assim, durante sete décadas, tecnicamente os homens não podiam ser estuprados, o termo “estupro” só se referia à vítima mulher. Os homens, ao serem submetidos a atos sexuais forçados, eram “violentados”, embora as penas previstas para ambas as condutas fossem as mesmas. Claro que não era apenas uma questão de nomenclatura, mas também de preconceito que estigmatizava mais a mulher vítima do que o homem, tendo em vista que a palavra “estupro” sempre teve uma conotação mais forte do que suas substitutas, tais como “violação”, “abuso”, “ataque”, “ofensa sexual”, etc. Velhos tempos, velhas normas, muita discriminação.

Pior inadequação era, porém, outro dispositivo previsto nas Disposições Gerais, esse sim totalmente absurdo, gerador de muita impunidade. Os artigos do CP referentes aos crimes sexuais, em suas variadas formas, eram de ação penal privada, ou seja, estavam condicionados à iniciativa da própria vítima para investigar e dar início à ação penal, processando o agressor e tendo que pagar o(a) advogado(a) de seu próprio bolso, se não fosse pobre na acepção jurídica do termo. Ou seja, além de ter sofrido agressão brutal, a(o) ofendida(o) tinha que arcar com o ônus de processar e buscar a condenação do estuprador. Posteriormente, a reforma penal trazida pela Lei n. 12.015, de 07/08/2009, estabeleceu que, nos crimes definidos nos Capítulos I e II do Título VI do CP, a ação penal seria pública, condicionada a representação, salvo em caso de a vítima ser menor de 18 anos ou pessoa vulnerável. A mencionada modificação legal melhorou a situação, mas não resolveu o problema.  A representação penal tem prazo de seis meses a contar da data do fato e vítimas de ataques sexuais, em geral, levam muito mais tempo do que isso para se recuperar e acionar a Justiça, comparecendo à Delegacia e manifestando inequívoca vontade de ver investigado e processado o autor do delito.  Passados seis meses do estupro, a vítima decaía do direito de ação. Evidentemente, poucos agressores eram julgados (e raramente condenados) diante de tantas dificuldades.

Além disso, na versão original do CP de 1940, havia um dispositivo legal que perdoava o estuprador se ele se casasse com a vítima, reparando o dano causado… Draconiano? Sim, reflete a posição do patriarcado à época.

Voltando à Lei nº 12.015/2009, que reformou a regra da ação penal privada, esta também condensou os artigos 213 e 214 do Código Penal, dando-lhes a seguinte redação: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”: Pena — reclusão de 6 a 10 anos. Se da conduta do autor resultar lesão corporal grave ou se a vítima for menor de 18 anos e maior de 14 anos, a pena será de reclusão de 8 a 14 anos. Se da agressão resultar a morte, a pena será de 12 a 30 anos.

Antes da reforma de 2009, a Lei nº 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos) já havia incluído o estupro em seu rol, demonstrando que nosso ordenamento jurídico não seria tolerante com tal tipo de conduta. Porém, o verdadeiro avanço veio em 2018 (quase ontem!), com a Lei nº 13.718/2018, que tipificou os crimes de “importunação sexual e de divulgação de cena de estupro” e tornou pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecendo causas de aumento de pena para esses crimes e incluindo outras causas de aumento de pena para os estupros coletivos e corretivos. Porém, apesar dos esforços já envidados para coibir os ataques sexuais, ainda resta um item muito importante: tornar o estupro crime imprescritível. Da mesma forma, o feminicídio.

Está em tramitação no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 64/2016 que altera o inciso XLII, do artigo 5º,  da Constituição Federal para tornar imprescritíveis os crimes de estupro. Essa PEC já foi aprovada no Senado e está, no momento, tramitando na Câmara dos Deputados desde agosto de 2017. Em sua justificativa, a PEC observa que “o estupro é um crime que deixa profundas e permanentes marcas nas vítimas, sendo que a ferida psicológica dificilmente cicatriza”. Além disso, a justificativa argumenta que “a coragem para denunciar um estuprador, se é que um dia apareça, pode demorar anos”.

No presente momento, o Brasil acompanha estarrecido os desdobramentos do “caso João de Deus”, médium de Abadiânia (GO), que foi apontado por muitas mulheres como um abusador sexual compulsivo. Segundo a Polícia Civil e conforme dados publicados pelo G1, foram mais de 500 relatos de mulheres vítimas de violência sexual atribuídas a ele. No entanto, diante das limitações impostas pelo instituto da prescrição, é possível que algumas delas não consigam ver punido criminalmente o agressor nem recebam a indenização por dano moral que lhes for devida, diante da prescrição que, no cível,  em regra é de 3 anos (artigo 206, §3º, inciso V, do Código Civil). Ainda assim, as vítimas continuam clamando por Justiça e buscando formas de receber o devido ressarcimento pelos danos físicos e morais sofridos.

Fica o nosso apelo ao Congresso para que, o quanto antes, aprove a PEC 64/2016, referente ao estupro, bem como a PEC 75/2019 que torna imprescritível e inafiançável também o feminicídio.  A proposta que tramita altera o art. 5º, inciso XLII, da Constituição Federal, para tornar “imprescritíveis e inafiançáveis, sujeitos à pena de reclusão, as práticas de racismo, do estupro e do feminicídio.”

A realidade dos fatos, no Brasil, não deixa dúvidas de que a Constituição Federal precisa ser aperfeiçoada para que a proteção aos direitos da mulher se torne, finalmente, uma realidade.

 é advogada, foi Promotora e Procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça, no governo FHC. É autora de sete livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” (ed. Saraiva).

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TJ-PB proíbe estado de punir hospitais privados

Unimed entrou com ação para suspender obrigatoriedade de atender não segurados
Divulgação

O desembargador Abraham Lincoln da Cunha Ramos decidiu manter decisão liminar do juiz Gutemberg Cardoso Pereira, da 3ª Vara da Fazenda Pública de João Pessoa, que proibiu a aplicação de multa aos hospitais da rede Unimed com base na Lei Estadual nº 11.686/2020, que estabelece “fila zero” nos hospitais públicos e privados enquanto houver decretação de estado de calamidade pública.

No caso, a Unimed alega que a obrigação de prestar atendimento e internar todos que procurarem tratamento com suspeita de Covid-19 irá fazer com que sua rede entre em colapso em pouco tempo.

Ao decidir pela decisão liminar, Gutemberg Cardoso entendeu que a competência para legislar sobre o assunto é da União. “No caso em discussão, os contratos firmados entre a parte promovente — Unimed — e seus associados e ou segurados, contratos firmados na forma da legislação civil em vigor, devem ser preservados e não cabe ao Estado membro alterar essas normas contratuais. Muito menos invadir a competência legislativa do Congresso”, escreveu na decisão que foi mantida.

O Estado da Paraíba interpôs agravo de instrumento para suspender a decisão de primeiro grau sob a alegação que, diante da impossibilidade de a liminar esgotar o mérito da ação; a ausência de interesse processual pela via eleita; ausência do direito invocado em face da competência legislativa concorrente entre Estado e União sobre saúde e a existência de perigo de dano inverso.

Ao negar o pedido do Estado, o desembargador ressaltou que “a suspensão da eficácia da decisão atacada poderia fulminar o equilíbrio econômico-financeiro da operadora do plano de saúde e inviabilizar o funcionamento dos hospitais Alberto Urquiza Wanderley e Moacir Dantas, bem assim como os demais da rede credenciada, deixando à míngua seus quase 250 mil usuários, que regiamente cumprem a obrigação da contraprestação mensal”.

O desembargador citou, ainda, a informação divulgada pelo Conselho Regional de Medicina na Paraíba de que se o plano de contingência estadual estivesse ativo, a taxa de ocupação de UTI’s seria de apenas 46% e a taxa de enfermaria, de 30%.

“Assim, uma vez cumprido o plano de contingência pelo ente público, verifica-se que o sistema público de saúde estadual ficará longe da exaustão/colapso, não havendo, pois, que se falar em perigo de dano inverso pela não concessão do efeito suspensivo perseguido”, observou.

Clique aqui para ler a decisão

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Barroso confirma decisão que impede expulsão de diplomatas

Durante a epidemia

Ministro Barroso confirma decisão que impede expulsão de diplomatas venezuelanos

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, confirmou liminar concedida no início do maio que autoriza a permanência de diplomatas venezuelanos no Brasil enquanto durar o estado de calamidade pública e emergência sanitária reconhecido pelo Congresso Nacional. O mérito do Habeas Corpus ainda será julgado, sem previsão de data.

Carlos Humberto/SCO/STFBarroso confirma decisão que impede expulsão de diplomatas venezuelanos

No começo de maio, o ministro havia suspendido a expulsão por 10 dias, até que o governo apresentasse informações sobre a urgência da retirada dos venezuelanos. A nova decisão foi tomada após análise das informações apresentadas pelo Ministério das Relações Exteriores, Advocacia-Geral da União e parecer da Procuradoria-Geral da República.

O ministro ressaltou na decisão que é válida a ordem do presidente da República que determinou a expulsão por estar na sua esfera de discricionariedade política. Segundo Barroso, não se discute se o presidente poderia ou não determinar a expulsão porque cabe a ele, presidente, decidir sobre relações internacionais e reconhecimento (acreditação) dos diplomatas que representam os países estrangeiros.

Barroso entendeu, porém, que os efeitos da decisão que ordenou a retirada imediata devem ser suspensos enquanto durar a situação de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional. Isso porque não se trata de providência de urgência ou emergência que justifique romper o isolamento social recomendado pela OMS e todas as entidades médicas, expondo os diplomatas venezuelanos a uma longa viagem por terra, cruzando estados brasileiros em que a curva da doença é ascendente e os hospitais estão lotados.

“Diante do exposto, ratifico a medida liminar deferida para, sem interferir com a validade da decisão político-administrativa do Presidente da República, suspender temporariamente sua eficácia, assegurando que os pacientes permaneçam em território nacional enquanto durar o estado de calamidade pública e emergência sanitária reconhecido pelo Congresso Nacional”, disse. Com informações da assessoria de imprensa do STF.

HC 184.828

Revista Consultor Jurídico, 17 de maio de 2020, 11h28

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AGU não pode forçar estados e municípios a relaxar quarentena

Ainda que a Advocacia-Geral da União venha a tentar forçar judicialmente estados e municípios a seguir as ordens do governo federal sobre relaxamento das medidas de isolamento social — como quer o presidente Jair Bolsonaro —, a ação deve ser inócua. Afinal, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que tais entes federativos podem limitar atividades no combate à epidemia do coronavírus.

Jair Bolsonaro quer forçar governadores e prefeitos a liberarem o funcionamento de academias e salões de beleza
Tânia Rêgo/Agência Brasil

Nesta segunda-feira (11/5), um decreto de Bolsonaro incluiu salões de beleza, barbearias e academias de esportes no rol de atividades essenciais, permitindo que os estabelecimentos fiquem abertos no atual estágio da epidemia. No entanto, diversos governadores e prefeitos afirmaram que vão manter as restrições a essas atividades.

Bolsonaro afirmou que os governantes que descumprirem o decreto estarão “partindo para a desobediência civil” — e que usaria a AGU para forçá-los a obedecer a norma.

“Se porventura o governador disser que não vai cumprir, a AGU vai tomar a devida medida. Quando qualquer um de nós achar que uma lei ou decreto está exagerado, tem a Justiça ou o Parlamento. Nós definimos quais eram as profissões essenciais. Fora daquilo, os governadores e prefeitos tomam as próprias providências. Aí entra em descumprimento de uma norma. Tem a ver com descumprimento, a AGU vai se empenhar para que aquele governador cumpra o decreto”, disse o presidente na terça-feira (12/5).

Na quinta-feira (14/5), em reunião com empresários — e da qual participou o ministro da Economia, Paulo Guedes —, o presidente subiu o tom. Referiu-se a “guerra” para descrever o conflito entre a União e alguns governadores.

A AGU exerce advocacia de Estado, representando a União. Dessa maneira, pode ser instada a ir ao Supremo alegar que estados e municípios estão violando o decreto que permitiu a abertura de academias e salões de beleza.

Contudo, a ação muito provavelmente seria inócua, avaliam os ex-advogados-gerais da União Luís Inácio Adams e José Eduardo Cardozo. “Não acho que seja eficiente a AGU mover ação no Supremo por esse motivo, pois a corte decidiu que estados e municípios têm competência para estabelecer regras para combater a epidemia. Eles têm a prerrogativa de ajuizar essa ação. Mas não acho que seja muito frutífero”, opina Adams.

Já Cardozo aponta que a AGU deveria orientar Bolsonaro no sentido de que ele está errado nessa situação. Primeiro, pela decisão do STF. Segundo porque o decreto que permitiu a abertura de academias e salões de beleza ofende o princípio da razoabilidade, pois essas atividades não são essenciais durante a epidemia.

“Bolsonaro está fazendo a AGU seguir uma postura juridicamente insustentável. O presidente precisa perceber que a Constituição Federal e o Estado não são ele. E AGU é advocacia de Estado. A postura correta da AGU seria informar o presidente que ele não pode fazer tudo o que quer, porque estamos em um Estado Democrático de Direito”, declara Cardozo.

Decisões do STF

No mês passado (15/4), no julgamento da ADI 6.341, o Supremo estabeleceu que, além do governo federal, os governos estaduais e municipais têm competência administrativa para determinar regras de isolamento, quarentena e restrição de transporte e trânsito em rodovias em razão da epidemia do coronavírus — conforme determina o artigo 23, II, da Constituição de República. Além disso, os ministros fixaram que governadores e prefeitos têm competência para definir quais são as atividades consideradas essenciais durante a crise do coronavírus.

No julgamento da ADPF 672, o ministro Alexandre de Moraes, relator da ação, reconheceu que “não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas”. Assim, reconheceu e assegurou a competência concorrente dos governos estaduais e distrital para a adição de medidas de enfrentamento à epidemia — com concorrência suplementar dos municípios (conforme artigo 30, II, da Constituição).

Dessa maneira, ressaltam os ex-advogados-gerais da União, o descumprimento, por governadores e prefeitos, do decreto presidencial não é um ato de “desobediência civil”, como disse Bolsonaro. “Ninguém é obrigado a cumprir uma norma ilícita”, diz Cardozo.

Por sua vez, Adams destaca que, de acordo com as decisões do Supremo, estados e municípios têm competência para adotar medidas específicas para combater a epidemia na região. Portanto, se entenderem que salões de beleza e academias de ginástica não são atividades essenciais em seu território, podem ordenar que os estabelecimentos do tipo permaneçam fechados.

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.