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Não cabe ao Judiciário definir quais atividades devem funcionar

Não cabe ao Poder Judiciário decidir qual ramo de atividade econômica pode ou não funcionar durante a epidemia do novo coronavírus, ainda que medidas profiláticas estejam sendo adotadas ou que determinado setor abra epenas parcialmente. 

Para Toffoli, não cabe ao Judiciário definir quais atividades devem ou não funcionar    Nelson Jr./SCO/STF

O entendimento é do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, ao considerar válido decreto municipal em vigência que determina o fechamento dos escritórios de advocacia em João Pessoa (PB). A decisão, em antecipação de tutela, foi proferida nesta segunda-feira (15/6).

Toffoli apreciou um pedido de suspensão liminar ajuizado pelo próprio município de João Pessoa contra decisão do Tribunal de Justiça da Paraíba. A corte estadual, acatando a uma solicitação feita pela OAB-PB, permitiu a reabertura dos escritórios, a despeito do decreto que vigora na cidade. 

Para o presidente do STF, “apenas eventuais ilegalidades ou violações à ordem constitucional vigente devem merecer sanção judicial, para a necessária correção de rumos, mas jamais promover-se a mudança de políticas adotadas, por ordem de quem não foi eleito para tanto e não integra o Poder Executivo, responsável pelo planejamento e execução dessas medidas”. 

Ainda segundo ele, “não se mostra admissível que uma decisão judicial, por melhor que seja a intenção de seu prolator ao editá-la, venha a substituir o critério de conveniência e oportunidade que rege a edição dos atos da administração pública, notadamente em tempos de calamidade como o presente, porque ao Poder Judiciário não é dado dispor sobre os fundamentos técnicos que levam à tomada de uma decisão administrativa”. 

Portas fechadas

De acordo com o município de João Pessoa, o simples fechamento físico das bancas não impede a prestação dos serviços de advocacia, inexistindo, portanto, óbice ao normal exercício da profissão. 

A prefeitura argumentou, ainda, que a decisão do TJ-PB coloca a ordem pública e a saúde pública em risco, uma vez que foi registrado aumento dos casos de contaminação pelo novo coronavírus no estado da Paraíba e em sua capital. 

Na decisão, Toffoli argumentou não ser demais “ressaltar que a gravidade da situação por todos enfrentada exige a tomada de providências estatais, em todas as suas esferas de atuação, mas sempre através de ações coordenadas e devidamente planejadas pelos entes e órgãos competentes, e fundada em informações e dados científicos comprovados e não em singelas opiniões pessoais de quem não detém competência ou formação técnica para tal”. 

Sobre o fechamento físico das bancas, ressaltou que “em nenhum momento foi impedido o exercício da advocacia, naquele urbe, ou mesmo a entrada dos advogados em seus escritórios, tendo sido determinada, tão somente, a manutenção de suas portas fechadas, como forma de preservação das necessárias medidas de isolamento social”. 

SS 5.395

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Encerrar instrução sem ouvir corréus viola direito de defesa

Encerrar a fase de instrução, abrindo o prazo para as alegações finais sem que todos os corréus envolvidos no processo sejam ouvidos, viola o pleno exercício da defesa. 

Ministro afirmou que corréus devem ser ouvidos para que processo tenha prosseguimento
STJ

O entendimento é do ministro Nefi Cordeiro, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao encerrar ação penal que apura um suposto esquema de venda de sentenças em Mato Grosso até que todos os corréus sejam ouvidos. A decisão foi proferida em 12 de junho e publicada nesta terça-feira (16/6). 

O ministro apreciou os argumentos da defesa do advogado Rodrigo Vieira Komochena, que é investigado junto com outras 34 pessoas. A defesa de Komochena é feita por Pierpaolo Cruz Bottini e Marcio Martagão Gesteira Palma, do escritório Bottini e Tamasauskas Advogados. 

A defesa apontou que não foram juntadas aos autos as oitivas do pecuarista Loris Dilda e do advogado Max Weyzer de Mendonça. A ausência dos interrogatórios impossibilitaria o encerramento da instrução.

De acordo com os autos, foram expedidas cartas precatórias para que os dois corréus fossem ouvidos. A abertura do prazo para requerimento de diligências, entretanto, foi feita antes que os depoimentos viessem aos autos. 

“É evidente a ausência de razoabilidade e amparo legal do entendimento de que se poderia encerrar a instrução de ação penal antes da realização, ainda que por carta precatória, do interrogatório de corréus”, afirma a defesa de Komochena em Habeas Corpus ajuizado no STJ. Para eles, a falta de interrogatórios justifica a suspensão do prazo previsto no artigo 402 do Código de Processo Penal. 

Nefi acolheu o argumento. “Esta é a situação presente, onde respondem os corréus pelos mesmos fatos imputados ao paciente [Komochena], o que evidencia a relevância recíproca de suas manifestações, e a necessidade de conhecimento dos interrogatórios para o pleno exercício da defesa de todos”, afirma.

Nefi também disse vislumbrar “constrangimento ilegal que justifica a superação da Súmula 691/STF, para determinar a suspensão da ação penal originária até a efetiva devolução e juntada das cartas precatórios com a oitiva dos corréus”. 

A súmula citada pelo ministro prevê a não admissão de HC impetrado contra decisão do relator, que em HC requerido a tribunal superior, indefere a liminar. 

O caso

Os réus foram denunciados pelo Ministério Público Federal em 2010, no curso da chamada “operação asafe”, que apontou a existência de um suposto esquema de venda de sentenças no Tribunal de Justiça e no Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso. 

Ao todo, foram denunciadas 37 pessoas. As acusações envolvem advogados, juízes, desembargadores, servidores e lobistas. As investigações começaram três anos antes, quando a Polícia Federal em Goiás apontou possível exploração de prestígio em MT. 

O inquérito judicial que apura o caso foi aberto pela ministra Nancy Andrighi, do STJ, levando em conta o fato de que alguns acusados possuem foro privilegiado. 

O julgamento acabou desmembrado, sendo mantido no STJ quantos aos réus com foro. Os demais passaram a ser julgados na primeira instância de MT. O processo tramita na Vara Especializada Contra o Crime Organizado, Crimes Contra a Ordem Tributária e Econômica, Administração Pública e Lavagem de Dinheiro da Comarca de Cuiabá. 

Em novembro de 2017, o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, chegou a suspender desdobramentos da operação, concedendo liminar em HC a Komochena. 

Na ocasião, o ministro identificou problemas nas interceptações telefônicas da investigação. Para ele, os grampos, sucessivamente prorrogados, não foram devidamente justificados.

A 1ª Turma do STF, no entanto, derrubou a decisão. Em 2019 o caso voltou a tramitar em primeira instância.

Clique aqui para ler a decisão

HC 580.685

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Advogado que usou “meme” em petição manifesta-se sobre o caso

O advogado Caio Martins Cabeleira impetrou na segunda-feira da semana passada (11/5) um mandado de segurança contra o rodízio especial que havia sido adotado na cidade de São Paulo. 

O impetrante, em sua inicial, utilizou-se de “meme” e, segundo o juiz que apreciou a peça — Luis Manuel Fonseca Pires, da 3ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo —, fez “referências jocosas ao prefeito” (Bruno Covas).

Por isso, o magistrado criticou o advogado, além de determinar o envio da petição ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB para “adoção das medidas que se entender adequadas”. No mérito, houve desistência e, portanto, o juiz julgou extinto o feito.

Após a repercussão da notícia, Cabeleira divulgou nota de repúdio ao magistrado. Em suma, alega que não cabe ao Judiciário “avaliar a utilidade ou adequação dos recursos argumentativos empregados no exercício da advocacia”. Confira a íntegra:

Uma resposta ao juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública

Na última semana viralizou na internet um mandado de segurança impetrado por mim (processo 1023383-30.2020.8.26.0053), em causa própria, na qual o magistrado da 3ª Vara da Fazenda Pública da Capital, ao invés de simplesmente homologar um pedido de desistência da ação feito por mim, julgando-a extinta, decidiu dar uma bronca pública neste que vos fala.

O crime? Ter ousado usar humor sarcástico e expressão jocosa contra um ato ilegal e abusivo, que violava direitos fundamentais, perpetrado pelo Prefeito de São Paulo. 

Nenhum magistrado pode se avocar a condição de fiscal da argumentação dos advogados. Não cabe ao Poder Judiciário avaliar a utilidade ou adequação dos recursos argumentativos empregados no exercício da advocacia. Ao apontar que o modo de agir deste advogado “apequena a justiça” e “não serve a demonstrar direito algum”, o juiz viola as prerrogativas e o livre exercício da advocacia mediante uma análise absolutamente equivocada e inapropriada.

O rodízio era um ato administrativo não só eivado de diversas nulidades, como ausência de fundamentação legal e violação do direito de livre locomoção e do direito à vida, mas era nitidamente uma medida ineficaz para o fim de combater a pandemia. Ao contrário, ele aumentou o número de pessoas utilizando o transporte público e, consequentemente, a possibilidade de contaminação.  

Tamanho era o desacerto e ineficácia da medida que o próprio prefeito a revogou, o que apenas demonstra o acerto do que foi exposto na petição. 

Todavia, diante de todas essas arbitrariedades devidamente relatadas na petição inicial na típica linguagem forense, apontando-se fontes legais e precedentes do e. Tribunal de Justiça paulista, a que se voltou o horror e desprezo do magistrado sorteado para julgar a causa? 

Ao fato de eu ter me referido ao Prefeito como “Sua Majestade, o Prefeito” (título de um livro de Jose Alvarenga, aliás) de forma jocosa e ao fato de eu ter colado na petição uma foto do Prefeito e logo abaixo, o título de abertura da petição com os dizeres “Bom dia, como posso atrapalhar seu dia?”, designado pelo magistrado como sendo um “meme”. 

A decisão segue criando um verdadeiro espantalho da petição inicial, como se ela não tivesse nenhuma base jurídica e fosse limitada a fazer um meme do Prefeito, para “viralizar na internet”. 

Ao d. magistrado bastava extinguir o processo, diante de meu pedido de desistência, no qual informei que estava desistindo da ação para ajuizá-la no Tribunal de Justiça (onde o processo tramitava até hoje, quando pedi nova desistência por perda de objeto), pois só me atentei ao fato do prefeito da capital do estado ter foro privilegiado depois de ter distribuído o processo às varas da fazenda pública. Repito: o pedido de desistência foi protocolado ANTES DA DECISÃO. 

Diz a sabedoria popular que “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. Quando o magistrado declara que a argumentação do advogado “apenas se presta para viralizar na internet”, fica a dúvida: a que se presta uma decisão dessa natureza, num processo em que se advogava em causa própria e já havia desistência da ação para ajuizá-la no foro competente? Os dias que se seguiram, com a divulgação dessa decisão em grupos de whatsapp e portais da internet, talvez revelem quem buscou “viralizar na internet” se valendo da atividade jurisdicional.

Diante dessas circunstâncias, sem dúvida alguma, a decisão é um flagrante ataque à liberdade profissional, à dignidade da justiça e aos preceitos éticos, exatamente o que ela hipocritamente alega proteger. 

O advogado deve ter plena liberdade no exercício de sua profissão, tal como garantido na Constituição Federal e no Estatuto da OAB. Só a ele cabe o discernimento sobre qual é a melhor estratégia a seguir para obtenção do resultado que se almeja. 

O uso do humor e da ironia na retórica, a arte da argumentação, são mecanismos importantes e milenarmente reconhecidos como meios eficazes de convencimento, principalmente como meio de denúncia de algo inapropriado (cf. Perelman e Olbrechts-Tyteca, Tratado da Argumentação, Martins Fontes, São Paulo, §49; Ana Cristina Carmelino, Humor: uma abordagem retórica e argumentativa, in Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo – v. 8 – n. 2 – p. 40-56 – jul./dez. 2012; além das clássicas obras de Cícero, Quintiliano, e Aristóteles sobre o uso retórico do humor). A retórica nos ensina que o humor é o meio mais eficaz para expor um absurdo cometido pelo adversário. O termo jocoso e a imagem utilizada têm, assim, objetivos claros: ressaltar o absurdo e a teratologia do decreto impugnado.  

Ressalto ainda que em momento algum fui ofensivo com a pessoa do prefeito. Fui combativo, e assim serei, enquanto Deus permitir, na defesa de minhas causas quando a situação exigir, mas sem cometer qualquer tipo de ilicitude ou mesmo conduta antiética. Meu sarcasmo não foi dirigido à justiça, ao juiz ou serventuários, mas aos atos do Prefeito, enquanto no exercício de seu cargo. O prefeito, pessoalmente, sequer é parte no processo e consta no polo passivo apenas uma exigência formal da Lei de Mandado de Segurança. 

Quanto ao ato temerário e abusivo do mm. Juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública, medidas legais e administrativas serão tomadas para resguardar a liberdade profissional da advocacia.

São Paulo, 18 de maio de 2020.

Caio Martins Cabeleira

OAB/SP 316.658

Graduado e Doutor em Direito Civil pela USP. 

Foi pesquisador bolsista no Max-Planck Institut de Hamburgo, Alemanha.

Advogado

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Corrêa da Veiga: TAS veda influência de terceiros em transferências

Em recente decisão, o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) apreciou recurso do atleta Thomaz dos Santos e o absolveu da condenação de pagar uma multa de U$ 80 mil (cerca de R$ 440 mil), além de isentar o jogador das despesas com arbitragem e honorários, em importância aproximada de U$ 30 mil (R$ 165 mil), segundo informações do jornal La Razón [1]

O caso traz questões peculiares, com reflexos no direito ao trabalho dos atletas, e que vêm sendo observadas com alguma frequência, com decisões conflitantes, tanto pelas câmaras de resolução de conflitos quanto pelo próprio Poder Judiciário, quando a este submetidas.

Thomaz Santos defendeu o clube Jorge Wilstermann, da Bolívia, de 2014 a 2017, ano em que foi contratado pelo São Paulo. Em 2018, foi cedido para clubes brasileiros, sendo que no ano de 2019 foi cedido ao Bolívar, de La Paz.

Com a alegação de que havia sido assinado um documento no qual o atleta se comprometia a defender o Jorge Wilstermann no caso de retorno à Bolívia, sob pena de pagamento de multa de U$ 80 mil, o clube de Cochabamba apresentou demanda perante o Tribunal de Resolução de Disputas da Federação Boliviana de Futebol, tendo em vista a opção do atleta pelo Bolívar.

Insatisfeito com a decisão, o jogador recorreu à mais alta corte arbitral do esporte, que deu provimento ao seu recurso para afastar o pagamento da multa pleiteada e condenar o Jorge Wilstermann e a Federação Boliviana de Futebol, cada um, ao ressarcimento com os gastos e honorários legais arcados pelo recorrente e ao pagamento das custas processuais.  

No intuito de estimular o debate e analisar o objetivo da decisão, convém trazer posicionamentos doutrinários e do próprio Regulamento da Fifa.

As cláusulas que impõem restrições ou condições após a ruptura contratual trazem um ônus muito grande para o atleta e muitas das vezes, além de não oferecerem contra-partidas, são desprovidas de fundamento racional que as justifiquem.

Não há dúvidas de que no meio empresarial, quando se trata de proteção de segredos industriais, as cláusulas de não-competição podem (e são) aplicadas. Até mesmo no meio desportivo há situações em que são defensáveis quando se trata de desenvolvimento de programas de treinamentos, por exemplo.

No âmbito do desporto há peculiaridades e nuances que despertaram a atenção do legislador, que foi firme ao assegurar a ampla liberdade contratual desportiva sem imposições ou restrições contratuais.

No Brasil, a Lei Geral do Desporto [2] é expressa ao afirmar que são nulas quaisquer cláusulas que interfiram no livre exercício do trabalho, influenciem transferências, interfiram em desempenho e influenciem assuntos laborais. 

Dessa forma, por imperativo legal constante no diploma desportivo brasileiro, a liberdade de trabalho desportivo não pode ser restringida.

Essa é a visão do professor da Universidade de Coimbra João Leal Amado [3]. Verbis:

“Em sede de contrato de trabalho desportivo não há, porém, lugar para dúvidas: qualquer cláusula de não concorrência, enquanto cláusula que, por definição, visa a ‘condicionar ou limitar a liberdade de trabalho do praticante desportivo após o termo do vínculo contratual’, será nula”.

O professor Rafael Teixeira Ramos [4] traz entendimento semelhante e lembra, inclusive, da já extinta figura do passe. Verbis:

“Admitir que por uma avença contratual um dos clubes se ponha em superposição privilegiada em detrimento de uma posição restrita do concorrente arquirrival, prejudica a livre concorrência perante os demais empregadores do mercado desportivo, gerando reflexões negativas no próprio equilíbrio competitivo e na incerteza dos resultados, princípios nucleares da atividade econômica desportiva”.

Nota-se, portanto, que a atividade profissional desportiva deve ser livre, sem limitações contratuais que possam ser consideradas abusivas ou desproporcionais, sob pena de serem consideradas nulas de pleno direito.

O artigo 18bis do Regulamento de Transferências de Jogadores da Fifa traz a seguinte previsão:

“1  No club shall enter into a contract which enables the counter club/counter clubs, and vice versa, or any third party to acquire the ability to infl uence in employment and transfer-related matters its independence, its policies or the performance of its teams”.

Em tradução livre, resta dizer que a Fifa estabelece que nenhum clube poderá celebrar contratos com qualquer outra parte contratante ou qualquer terceiro para fins de adquirir a capacidade de influência na relação de emprego e nas transferências, e ainda em questões relacionadas a sua independência, suas políticas ou desempenho de suas equipes.

Portanto, a estipulação pactuada entre o clube Jorge Wilstermann com o atleta Thomaz violou princípios do desporto e o próprio regulamento de transferências da entidade máxima do futebol, que assegura a ampla liberdade profissional sem restrições contratuais, razão pela qual não poderá haver influência de terceiros na transferência do atleta.

 é advogado, sócio no escritório Corrêa da Veiga Advogados, membro da comissão de Direito do trabalho da Seccional OAB-DF e pós-graduado em Direito Trabalho e Processo do Trabalho no IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público.

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Entrevista: Rubens Ricupero, diplomata e ex-ministro da Fazenda

Em 2004, quando deixou sua carreira diplomática, Rubens Ricupero — diplomata e ministro da Fazenda quando da implantação do Plano Real — tinha se acostumado com a posição de prestígio alcançada pela política externa brasileira. Historiador e formado em Direito pela USP, ele deu entrevista à ConJur, por telefone, analisando a política externa brasileira e o legado da “lava jato”.

Desde a redemocratização, em 1985, o modo que o país encontrou para se projetar internacionalmente foi regido pelo mesmo princípio: diplomacia é a busca da autonomia por meio da participação. 

O conceito, segundo o diplomata, começou a cair por terra quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência. De lá para cá, diz, a política externa se tornou cada vez mais alinhada ao governo de Donald Trump e contrária a Pequim.

Mas política externa, antes de vir ao mundo, é gestada intestinamente. Em 2016, Ricupero afirmou que existia à época um “partido togado”, que podia interromper o jogo político a qualquer momento — em referência à força das autodenominadas “operações” que se arvoraram como combatentes da corrupção. 

Revisitando o assunto, Ricupero disse que a “lava jato” perdeu força no decorrer dos anos e dá seus últimos suspiros. “Aqueles filhotes da ‘lava jato’ que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a ‘lava jato’ hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade”, afirma. A conversa ocorreu antes de Sergio Moro deixar o Ministério da Justiça. 

Se a “lava jato” é passado, o “partido da toga” legou ao país um novo presidente — e sua nova política externa, conduzida por agentes que negam o isolamento social como saída para enfrentamento da epidemia de Covid-19, mas que aceleram o isolamento do país no mundo.

“O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas”, afirma.

Confira a entrevista na íntegra: 

ConJur — Em entrevista concedida ao El País, o senhor afirmou que havia dois teatros durante a ditadura: o da vida política e o dos bastidores. Os fardados podiam intervir, interrompendo a peça a qualquer momento. De lá para cá, referindo-se à “lava jato” em Curitiba, disse que o partido fardado deu espaço ao partido togado. Ainda vê essa força toda emanando da “lava jato”?

Rubens Ricupero —
Vejo uma espécie de esgotamento natural da operação, em parte por mudanças políticas — a eleição do Bolsonaro, a decisão de Moro aceitar ser ministro da Justiça, as revelações [do site] Intercept e toda a desmoralização que veio disso. A “lava jato” acabou. Ela continua existindo em tese, porque há condenações pendentes, assim como os recursos relativos ao Lula. Muito está por resolver, mas a “lava jato” acabou, assim como a “mãos limpas” acabou na Itália. O juiz que substituiu Moro não tem, nem de longe, aquele tipo de ativismo jurídico que o Moro tinha, ou aquele entendimento com os procuradores. Houve também uma certa aversão do STF e de outras instâncias. Aqueles filhotes da “lava jato” que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a “lava jato” hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade. 

ConJur — O senhor já afirmou em algumas ocasiões que o confronto inicial gerado pela “lava jato” teve importância e gerou consequências positivas. Hoje, com tudo que se sabe sobre a atuação do ex-juiz Sergio Moro e dos procuradores, mantém essa opinião?

Rubens Ricupero —
Como consequência política, a “lava jato” teve um impacto enorme na história brasileira. É responsável por boa parte do que aconteceu nos últimos anos. Basta ver que os escândalos de corrupção colocaram fim ao período de hegemonia do PT. Até hoje o PT não se reergueu do golpe que levou. Por outro lado, sempre tive dúvidas sobre a duração da “lava jato”, que parecia exagerada enquanto operação judiciária. Além desse aspecto, a operação, em essência, pela própria natureza do Judiciário, continha uma limitação que, cedo ou tarde, acabaria por comprometê-la: operações policiais e judiciárias podem ser importantes para trazer luz sobre esquemas de corrupção, mas não conseguem por fim a eles. Isso acontece porque as soluções só podem ocorrer por meio de mudanças legislativas, algumas até de ordem constitucional, já que o que existia na raiz da corrupção eram problemas que apontavam para as imperfeições das instituições, para os defeitos que vão desde a politização das estatais até a ineficácia dos mecanismos de fiscalização. 

O saldo da “lava jato” é que algumas pessoas foram punidas, com grau maior ou menor de adequação, mas as raízes do problema não foram removidas. Esse problema permanece, tanto que uma das suas consequências foi a de dar ao presidente Jair Bolsonaro a justificativa de não tentar fazer um presidencialismo de coalizão, negociando com os partidos políticos ministérios, verbas e cargos de estatais. Por outro lado, isso cria um conflito maior com o Congresso, o que, novamente, demonstra o quanto as instituições são defeituosas. Em resumo, vejo a “lava jato” como uma tentativa de atacar os sintomas, não as causas da doença. Talvez tenha conseguido inibir os sintomas por um tempo, mas não removeu as causas profundas e não fez isso porque não podia fazer. A operação teve um papel histórico, mas, por todos os defeitos práticos, e em certos momentos deixando visível um ativismo jurídico muito grande, a “lava jato” deixou de existir.

ConJur — Falando agora de política externa: é possível resumir a diplomacia brasileira, a partir da redemocratização, como a busca da autonomia por meio da participação. Com essa atuação, o país conquistou prestígio. Agora, a marca definidora da política externa é o alinhamento com os Estados Unidos. Quais os impactos disso?

Rubens Ricupero —
É mais do que isso. Não é um alinhamento com os EUA, mas com o governo de Donald Trump, que, por sua vez, conduz uma campanha sistemática contra todas as instituições do sistema internacional criado no pós-guerra — o multilateralismo, um sistema que funciona na base de normas, de leis, não da força. Ao se alinhar com esse governo, o Brasil trabalha contra o seu próprio interesse, pois os EUA têm muito poder. Já o Brasil é um país com pouco poder, que pode se tornar vítima da força alheia. Nosso país não é uma potência econômica e militar. Mas tem poder brando, que é a diplomacia do convencimento, da persuasão, da negociação. Ao se alinhar com os EUA, abrimos mão disso e nos subordinamos a um país que, esse sim, tem poder e que pode utilizá-lo de maneira deflagradora, sem nenhum limite. 

O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas.

ConJur — Outra consequência apontada é o esgarçamento da relação com a China. Essas relações podem se desgastar ainda mais?

Rubens Ricupero —
Essa deterioração é, em grande parte, culpa daquele núcleo mais ideológico, mais fanatizado do governo brasileiro. Mas, para além disso, há uma competição estratégica entre EUA e China, em todos os sentidos — militar, econômico, político etc. Quando o Brasil se alinha a Trump, ele está comprando a agenda norte-americana, que vem com todas as inimizades que os Estados Unidos têm: contra a China, Rússia, Irã, Cuba, e assim por diante.

Portanto, sem nenhuma justificativa para isso, o Brasil está no momento em posição antagônica a todos esses países que constituem grandes mercados para as nossas exportações. É claro que de imediato a China não vai, por exemplo, deixar de comprar soja do Brasil, pois não há uma alternativa fácil para nos substituir como fornecedores de alguns produtos. Mas, no médio e longo prazo, as relações comerciais ser tornarão cada vez mais difíceis. O Brasil está jogando todas as suas esperanças em um país [EUA] do qual ele não pode esperar nada. Nem mercado, nem investimento. 

ConJur — Se não há justificativas, essa postura brasileira com relação à China ocorre por uma questão meramente ideológica?

Rubens Ricupero —
Puramente ideológica. É o equívoco de uma maneira de ver o mundo. O Brasil vê o mundo com os olhos da guerra fria. É uma visão completamente fora do tempo histórico, anacrônica, porque o país se comporta hoje em relação à China como o governo militar do Castelo Branco em 1964 se comportava em relação à União Soviética. O Brasil vê a China como o centro do comunismo mundial, uma espécie de “origem do mal”, quando nada disso corresponde à realidade internacional. 

ConJur — O senhor disse que os EUA — e agora o Brasil — se portam de modo contrário ao sistema criado no pós-guerra, indo no caminho do anti-multilateralismo. Agora o mundo passa por uma pandemia. O coronavírus matou o multilateralismo?

Rubens Ricupero —
O que está acontecendo com a pandemia é que quase todas as reações têm sido majoritariamente de tipo nacional, infelizmente. Em um primeiro momento, é até compreensível que seja assim, porque diante de uma emergência cada nação reage da forma mais rápida que pode e isso quase sempre é mais fácil no plano nacional. Mas deveríamos rapidamente passar a uma fase de coordenação internacional, tanto para combater a doença quanto para combater as consequências econômicas dela. Há algum esboço para utilizar o Grupo dos Vinte [G20, formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das maiores economias do mundo] para sustentar a dívida dos países mais pobres durante um ano. Mas são reações fracas.

Mesmo na União Europeia, os países mais afetados pelo coronavírus, como a Itália e a Espanha, não receberam uma ajuda significativa da comunidade europeia. A Itália recebeu mais ajuda da China do que dos seus vizinhos no começo. Agora a União Europeia começa a reagir, mas o panorama é de sombras e luzes — mais de sombras. Existe algum grau de cooperação, mas é pequeno. E existe muitos, infelizmente muitos exemplos de egoísmo nacional, inclusive esses que afetaram o Brasil, de países que se atravessaram para comprar equipamentos que já tinham sido negociados. Então, sem dúvidas, o multilateralismo está em crise. Mas não desespero dele, porque acho que existem inúmeras perspectivas de que isso melhore. Por exemplo, ainda é incerto o que vai acontecer na eleição dos EUA. É possível que, devido a tudo isso, as eleições acabem enfraquecendo o atual presidente e ele não consiga se reeleger. Se ele não se reeleger, teremos condições de recuperar muito do que se perdeu em matéria de multilateralismo, porque 90% ou mais do que está acontecendo é praticamente resultado da ação do governo Trump. 

ConJur — Dentro desse cenário de pandemia, o senhor vislumbra a possibilidade de que surja uma nova ordem econômica e jurídica?

Rubens Ricupero —
Sobre isso eu tenho dúvidas. Pandemias e epidemias, mesmo as muito mais graves que essa, em geral nunca mudaram o sistema econômico-político. Quando elas foram muito fortes, elas afetaram tendências que já existiam. Mas mesmo a peste negra, a peste bubônica, assim como as pestes que se seguiram, nunca afetaram o sistema político das monarquias da época. As tendências, as rivalidades que existiam, assim como os sistemas econômicos de troca, permaneceram iguais. Os sistemas econômicos, políticos e jurídicos obedecem à ação de forças profundas.

O que podem ocorrer são mudanças de curto prazo, que às vezes se seguem quando há acontecimentos suficientemente poderosos. Eu não ficaria surpreso, por exemplo se, passada essa crise, os países buscarem adquirir uma certa autonomia, uma certa autossuficiência em matéria de produtos farmacêuticos e médico-hospitalares. As nações podem buscar reduzir a dependência sobre esses produtos que existe com relação à China e outros países asiáticos. Isso pode acontecer, mas não vejo a possibilidade de uma reforma profunda na estrutura do capitalismo ou do sistema político que temos hoje. 

ConJur — Com o avanço do novo coronavírus, aliás, foram adotadas algumas medidas emergenciais. O Senado aprovou, por exemplo, o PL 1.179/20, que, entre outras coisas, flexibiliza dispositivos do Código Civil. O que acha de medidas como essa?

Rubens Ricupero —
A ideia básica de tentar encontrar uma solução para o momento é correta. Há um abalo muito grande até no sistema normal de pagamentos. Muitas empresas e indivíduos não são capazes de cumprir suas obrigações. Em certos casos, as regras precisam ser suspensas, da mesma forma como está se fazendo com regras de contrato de trabalho, flexibilização que busca manter a existência do emprego. Portanto, acredito que essas iniciativas são necessárias. Não me refiro especificamente ao PL citado, mas à tentativa de dar uma resposta ao que está acontecendo. Os contratos são vigentes enquanto mantidas as condições em que eles foram celebrados. Quando as condições se alteram de modo muito radical, muitas vezes não há a possibilidade de manter os termos tal como foram acordados. 

ConJur — Nos últimos anos, uma série de conflitos entre Legislativo e Executivo acabaram sendo resolvidos pelo Judiciário. O que pensa a respeito dessa judicialização?

Rubens Ricupero —
Eu tenho a impressão de que esse fenômeno coincide com o agravamento da crise institucional. Vivemos uma crise prolongada, que começa no primeiro governo da Dilma Rousseff e que se prolonga até hoje. O impeachment não resolveu a crise e em cada governo surgem problemas novos. No fundo, o quadro é de mau funcionamento das instituições. O sistema presidencialista tem uma rigidez que não permite a solução de problemas quando há impasse entre Executivo e Legislativo — e a tendência é a de que esses poderes entrem cada vez mais em conflito.

Um exemplo que vem logo à mente é a incapacidade que o Legislativo tem de resolver problemas com conteúdos ligados à questões de tipo moral: moral familiar, moral sexual, aborto, casamento entre homossexuais etc. O Legislativo fica paralisado diante dessas questões porque há uma representação grande de grupos religiosos. Então, embora sejam claramente do âmbito do Legislativo, esses temas acabam indo ao Judiciário. Quase todas as grandes decisões envolvendo temas como esses — o aborto no caso de fetos anencéfalos, casamento homoafetivo — foram talhadas pelo Judiciário. Creio que isso continuará acontecendo, porque a solução definitiva é fazer uma reforma profunda do sistema político, o que não parece estar no horizonte. Assim, as pautas continuarão indo ao Judiciário. 

ConJur — Em casos como esses, em que o Legislativo deixa um vácuo ao não tratar de certas questões, é justificável a atuação do Judiciário?

Rubens Ricupero —
Existe a necessidade colocada pelo próprio sistema político. Não se pode conviver com o vácuo de poder. Há decisões que precisam ser tomadas. Se não forem pelas instâncias que normalmente deveriam resolver o problema, acabam indo aos tribunais. Nesse sentido, a necessidade justifica as decisões judiciais. Não é o ideal, mas não vejo outra saída.