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Felipe Lara: A respeito das alterações na Lei 9.099

Como sabido, entrou em vigor em 24 de abril a Lei 13.994, que alterou os artigos 22 e 23 da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis) a fim de possibilitar a conciliação não presencial no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis. Contudo, o que se vê, na prática, é que diversos magistrados se encontram com receio de designar audiência instrutória, até porque a alteração se deu somente na audiência de conciliação, silenciando-se em realização da audiência instrutória.

Ocorre que a omissão em questão não impede a designação da audiência de instrução por meio não presencial, tendo em vista o artigo 4º, 5º, da LINDB, vejamos:

“Artigo 4º — Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito.

Artigo 5º — Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Também ressalta-se o artigo 5º da Lei 9.099/95, o qual prevê que o juiz dirigirá o processo com liberdade.

Dessa forma, é possível estabelecer uma interpretação extensiva para propiciar que não apenas sejam realizadas as audiências de conciliação mas, também, as de instrução e julgamento por meio não presencial.

Se limitar apenas às audiências de conciliação a videoconferência, proibindo-se o ato instrutório, afrontaria os princípios norteadores dos Juizados Especiais, tais como a celeridade e a economia processual.

Ademais, na atual conjuntura, em virtude da pandemia que se instaurou em nosso país, outra alternativa, a curto prazo, não há.

Saliente-se que nas audiências designadas é de suma importância que as partes tenham a compreensão de que, mesmo diante da possibilidade da contestação ser juntada até o ato, recomenda-se a sua disponibilização aos autos dias antes. Da mesma forma, a impugnação e a contestação.

Acrescento que nessas audiências de instrução por videoconferência não deve haver a produção de prova testemunhal, para a qual deve se aguardar em cartório até a normalização da situação e o retorno das audiências de forma presencial.

Na prática, o que vem acontecendo é que o juiz leigo cria o link no Google Meet, disponibiliza-o nos autos, o cartório intima as partes e, assim, é realizado o ato.

Portanto, tem-se que as alterações dadas aos artigos 22 e 23 da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis), a fim de possibilitar a conciliação não presencial no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, devem ser aplicadas às audiências de instrução e julgamento no âmbito desses juizados, até porque a Lei 9.099/95 prevê a obrigatoriedade da realização do ato, não havendo margem para o julgamento antecipado no âmbito do Juizados Especiais.

 é advogado, juiz leigo, representante dos juízes leigos e conciliadores do Mato Grosso do Sul e membro do Conselho de Supervisão dos Juizados Especiais.

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Tamoio Marcondes: Abandono de competição e abuso de direito

O presente artigo apresenta um limite temporal para que a agremiação esportiva possa abandonar a disputa de um torneio da respectiva modalidade sem incorrer nas sanções do Código Brasileiro de Justiça Desportiva.

O CBJD, no que toca às infrações relativas à administração desportiva, às competições e à Justiça Desportiva, dita em seu artigo 204:

“Artigo 204 — Abandonar a disputa de campeonato, torneio ou equivalente, da respectiva modalidade, após o seu início.

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), sendo as consequências desportivas decorrentes do abandono dirimidas pelo respectivo regulamento”.

É sabido que a sistemática de classificação para um torneio envolve o campeonato anterior pelo qual a agremiação obteve a classificação para o ano posterior. Essa sistemática influencia na expectativa dos torcedores, dos adversários na competição e das outras agremiações desclassificadas que perderam o direito de participar do torneio do ano subsequente.

Portanto, a partir da aquisição do direito de participar do campeonato, torneio ou equivalente, a agremiação deve zelar por esse direito a fim de não praticar ato de ilícito civil e ilícito desportivo.

A presente afirmação se baseia na Lei nº 10.406/2002 (Código Civil Brasileiro), que traz em seu artigo 187 a figura do abuso de direito como ato ilícito:

“TÍTULO III

Dos Atos Ilícitos

Artigo 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Na definição clara e objetiva de Nader (2004), “abuso de direito é espécie de ato ilícito, que pressupõe a violação de direito alheio mediante conduta intencional que exorbita o regular exercício de direito subjetivo” [1].

Como bem coloca o professor e magistrado Carlos Roberto Gonçalves (2014), “o instituto do abuso do direito tem aplicação em quase todos os campos do direito, como instrumento destinado a reprimir o exercício antissocial dos direitos subjetivos. As sanções estabelecidas em lei são as mais diversas, podendo implicar imposição de restrições ao exercício de atividade e até a sua cessação, declaração de ineficácia de negócio jurídico, demolição de obra construída, obrigação de ressarcimento dos danos, suspensão ou perda do pátrio poder e outras” [2].

Apesar do campo doutrinário guerrear entorno da classificação objetiva ou subjetiva do abuso de direito, é certo que a jurisprudência tem evoluído no sentido de reconhecer a responsabilidade civil objetiva do titular de um direito que o exerce excedendo manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Nesse sentido, cabe sublinhar o Enunciado 37 na 1ª Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.

Confirmando os termos do Enunciado 37, reconhecendo o abuso de direito sob a dimensão objetiva da responsabilidade civil, encontramos Cavalieri (2012), para quem a concepção adotada em relação ao abuso de direito é a objetiva, pois não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico do direito; basta que excedam esses limites [3].

Conforme trazido no início dessa exposição, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva considera infração disciplinar abandonar a disputa de campeonato, torneio ou equivalente, da respectiva modalidade “após o seu início”.

Temos que a conduta da agremiação que abandona torneio após seu início caracteriza-se como abuso de direito. Ainda, considerada a responsabilidade civil objetiva pelo ato ou omissão que caracterize o abandono da competição, é importante fixar o marco temporal em que fica configurado abuso de direito.

Considerando que o CBJD é silente quanto ao que é considerado início do torneio e sabendo que a sistemática de classificação de um campeonato envolve direito de terceiros, seria temerário não fixar um marco temporal. Portanto, é necessário trazer um critério objetivo ao artigo 204, CBJD.

Nesse sentido, devemos nos socorrer à legislação pátria, mais precisamente à Lei nº 10.671/2003, Estatuto do Torcedor.

Em 2003, com a publicação do estatuto, o artigo 42 trouxe dispositivo no sentido da necessidade de o Conselho Nacional de Esporte (CNE) promover a atualização do CBJD, adequando-o ao Estatuto do Torcedor:

“Artigo 42 — O Conselho Nacional de Esportes – CNE promoverá, no prazo de seis meses, contado da publicação desta Lei, a adequação do Código de Justiça Desportiva ao disposto na Lei no 9.615, de 24 de março de 1998, nesta Lei e em seus respectivos regulamentos”.

Verifica-se que por lei foi reconhecido que o CBJD se submete ao disposto na Lei 9.615/1998 e ao Estatuto do Torcedor e seus regulamentos. Assim, enquanto espécie normativa hierarquicamente inferior, o CBJD deve ser lido em consonância com a Lei Pele e o Estatuto do Torcedor, servindo esses diplomas legais como paradigmas de interpretação das normas disciplinares do CBJD.

Portanto, o Estatuto do Torcedor traz em seu artigo 9º o marco temporal à fixação do “após o início” do artigo 204 do CBJD. Ao abandonar a competição após esse prazo, resta caracterizado o abuso de direito por parte da agremiação em ato lesivo ao interesse de terceiros, principalmente dos torcedores cujos interesses são tutelados pelo Estatuto do Torcedor.

“Artigo 9º — É direito do torcedor que o regulamento, as tabelas da competição e o nome do Ouvidor da Competição sejam divulgados até 60 (sessenta) dias antes de seu início, na forma do § 1º do artigo 5º. (Redação dada pela Lei nº 12.299, de 2010).

§ 1º — Nos dez dias subsequentes à divulgação de que trata o caput, qualquer interessado poderá manifestar-se sobre o regulamento diretamente ao Ouvidor da Competição.

§ 2º — O Ouvidor da Competição elaborará, em setenta e duas horas, relatório contendo as principais propostas e sugestões encaminhadas.

§ 3º — Após o exame do relatório, a entidade responsável pela organização da competição decidirá, em quarenta e oito horas, motivadamente, sobre a conveniência da aceitação das propostas e sugestões relatadas.

§ 4º — O regulamento definitivo da competição será divulgado, na forma do § 1º do artigo 5º, 45 (quarenta e cinco) dias antes de seu início. (Redação dada pela Lei nº 12.299, de 2010).

§ 5º  — É vedado proceder alterações no regulamento da competição desde sua divulgação definitiva, salvo nas hipóteses de:

I — apresentação de novo calendário anual de eventos oficiais para o ano subsequente, desde que aprovado pelo Conselho Nacional do Esporte – CNE;

II — após dois anos de vigência do mesmo regulamento, observado o procedimento de que trata este artigo.

§ 6º — A competição que vier a substituir outra, segundo o novo calendário anual de eventos oficiais apresentado para o ano subsequente, deverá ter âmbito territorial diverso da competição a ser substituída”.

Conforme se observa, é direito do torcedor que o regulamento e as tabelas da competição sejam divulgados até 60 dias antes de seu início.

Também se extrai do artigo 9º que o regulamento definitivo da competição deve ser divulgado 45 antes do seu início.

Finalmente, a legislação veda a alteração do regulamento desde a sua divulgação definitiva, ou seja, no período de 45 dias antes do início da competição.

O CBJD, ao sancionar a conduta da agremiação que abandona a disputa de campeonato da respectiva modalidade após o seu início, pretende coibir o abuso de direito perante a entidade desportiva de administração do torneio da modalidade; perante as agremiações que participam do mesmo campeonato nos termos do seu regulamento e tabela de jogos pré-estabelecida; e perante os torcedores, que têm seus direitos tutelados e protegidos pelo Estatuto do Torcedor.

Interpretar o artigo 204 no sentido de fixar o início da competição como sendo o momento em que ocorrer a primeira partida do torneio (início real da competição) ou mesmo em data inferior a 45 dias desse evento seria temerário aos interesses dos terceiros mencionados alhures e estaria em confronto com a proteção dada pela Lei nº 10.671/2003 ao torcedor, aos atores desportivos e ao desporto em geral.

Nesse sentido, deve o artigo 204 do CBJD ser lido em consonância com o artigo 9º do Estatuto do Torcedor, configurando-se o abuso de direito por parte da agremiação quando houver o abandono do torneio 45 dias antes da data estipulada para seu início.

Ao retirar-se de uma competição, uma agremiação classificada provoca a alteração da tabela, da ordem das partidas, dos competidores e até mesmo a alteração do regulamento do campeonato para se adequar à nova realidade imposta pela retirada de uma peça dessa engrenagem competitiva.

Portanto, permitir que o início da competição para fins do artigo 204 do CBJD se dê no dia calendário da primeira partida da competição é permitir que o abuso de direito de uma agremiação prejudique o conjunto de atores envolvidos na competição e sua própria realização, visto não haver mais possibilidade de em menos de 45 dias antes do início oficial da competição haver alteração do regulamento (artigo 9º, § 5º do Estatuto do Torcedor).

Conclui-se que o artigo 204 do CBJD deve ser interpretado em acordo com o artigo 9º do Estatuto do Torcedor e, nesse sentido, configura-se abuso de direito o abandono a disputa de campeonato, torneio ou equivalente, da respectiva modalidade, nos 45 dias que antecedem o início material da competição.

 


[1] NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Parte Geral – vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2004. P 553

 é Procurador Federal, auditor do Superior Tribunal de Justiça do Vôlei e presidente da Comissão de Estudos Jurídicos Desportivos do Conselho Nacional do Esporte.

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Nomura: Sanções pecuniárias tributárias no pós-pandemia

Reconhecida a ocorrência de estado de calamidade pública pelos governos federal, estaduais e municipais, por conta da pandemia da Covid-19, caminhamos, agora, para a possível retomada da economia com a abertura gradual de alguns estabelecimentos comerciais e de serviços.

Entretanto, dando um pequeno passo atrás, sabe-se que, embora a interrupção total ou parcial de certas atividades comerciais tenha constituído, de um lado, medida necessária para evitar maior alastramento do novo vírus, de outro, acarretou sensível redução de receitas, afetando, pois, o fluxo de caixa das empresas, obstando, assim, o cumprimento de diversas obrigações.

É certo que o governo federal anunciou medidas para amenizar os impactos econômicos decorrentes da pandemia. Mas é sabido que tais medidas, de certo modo, foram tímidas e que, de fato, não forneceram uma base de apoio que conferisse um mínimo de expectativa de manutenção, ou, até mesmo, de recuperação da saúde financeira das empresas pós-pandemia.

Em vista disso, teses objetivando a suspensão temporária dos prazos de recolhimento de tributos federais, estaduais e municipais e de parcelas de programas de parcelamento começaram a ser levadas à apreciação do Judiciário, tendo-se notícia, até então, de diversas decisões liminares acolhendo, em princípio, o pleito dos contribuintes, e outras, não.

Dignas de aplausos são as decisões judiciais proferidas que, compreendendo o momento excepcional em que vive o Brasil e o mundo, reconheceram a necessidade da adoção de medidas urgentes e efetivas em prol da manutenção da empresa e dos empregos.

Por outro lado, a par de alguns juízos terem se posicionado pela inviabilidade da prorrogação do prazo de pagamento dos tributos, duas decisões merecem aqui destaque: as pronunciadas pelas  presidências do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Pedido de Suspensão de Liminares nº 2066138-17.2020.8.26.0000) e do Supremo Tribunal Federal (Suspensão de Segurança nº 5.363/SP), as quais determinaram a suspensão dos efeitos de diversas liminares que autorizaram a postergação do prazo de recolhimento de tributos estaduais.

Os entendimentos ali adotados, com o devido respeito, são equívocos, pois, antes do alegado risco de lesão à ordem pública, as liminares proferidas pelas instâncias ordinárias, tal como exposto acima, além de primarem pela preservação da empresa e dos empregos, com inegável caráter social, atuaram diante da inquestionável omissão dos Poderes Executivo e Legislativo quanto à adoção de medidas tributárias efetivas para mitigação dos impactos negativos decorrentes da pandemia e da quarentena decretada pelos Estados.

De fato, seria improvável e como, de fato, foi que os contribuintes, preocupados não só com a situação atual, mas, principalmente, com o porvir da crise provocada pela pandemia, permanecessem estáticos aguardando uma posição concreta do poder público acerca de ações efetivas na área tributária.

Assim, ausente uma postura mais concreta dos Poderes Executivo e Legislativo em prol da preservação dos valores fundamentais da ordem econômica (artigo 170, CF/88), expondo ao risco a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1°, incisos III e IV, CF/88), perfeitamente necessária seria a intervenção do Poder Judiciário como ator legitimado constitucionalmente para o saneamento de tal omissão, cumprindo a nobre função de pacificar conflitos, mas antes de tudo, sua missão precípua de garantir os direitos fundamentais, pela observância dos magnos princípios explícitos e implícitos previstos em nossa Constituição. 

A despeito da discussão se a prorrogação da data de vencimento de tributos se trata de moratória ou não, fato é que a suspensão das liminares, determinada pelas referidas decisões proferidas pelas presidências daquelas cortes, por certo, agrava a situação e o desespero dos contribuintes, já que não se vislumbra, concretamente, a alegada organização harmônica e coerente do Poder Executivo, na adoção de medidas fiscais necessárias para o enfrentamento da atual crise.

Ademais, ainda que as decisões liminares que deferiram a prorrogação das datas de recolhimento de tributos possam, realmente, interferir na redução da receita derivada do Estado, também é verdadeiro que este mesmo Estado, ao contrário dos contribuintes, detém maiores condições para financiar a máquina administrativa por outros meios.

Por tudo que se apresenta, o cenário que se avizinha, não só no Brasil, mas no mundo, aparenta ser devastador.

A par de alguns noticiários terem enfatizado os efeitos econômicos imediatos da pandemia sobre as médias e pequenas empresas, é certo que as grandes companhias também estão sofrendo forte impacto, especialmente aquelas detentoras de menor liquidez por conta do acesso mais restrito de crédito no mercado.

Dito isso, vem à tona uma questão fundamental: pós-pandemia, as empresas terão, de fato, capacidade financeira para honrar seus compromissos, especialmente, os tributários?

Certamente, a opção de muitos empresários (talvez a mais coerente) será colocar o pagamento de tributos no fim da lista das suas obrigações, primando pela quitação da folha de salários, dos pagamentos aos fornecedores e demais custos necessários, viabilizadores do reinício das suas atividades e da retomada da geração de receitas.

No entanto, postergar o cumprimento de obrigações tributárias acarretará, obviamente, ônus aos contribuintes consistentes na exigência de juros e de multa, até porque, tratando-se de obrigação legal, o seu descumprimento implica, via de regra, na imposição de sanção. E, exercendo a autoridade fiscal atividade vinculada e obrigatória, o lançamento da penalidade pecuniária será inevitável.

Ademais, o entendimento firmado pelo STF sobre a possibilidade de os sócios responderem por crime de apropriação indébita tributária constitui também preocupação, não só por possíveis inadimplências ocorridas durante a pandemia, mas mesmo quando, retomadas as atividades comerciais, o empresário, por certo período de tempo e, por necessidade de se reerguer e se manter, optar por cumprir outros compromissos em detrimento dos tributários.

Assim, diante desse cenário e das consequências da pandemia, seria razoável penalizar o contribuinte por imputação de sanções pecuniárias em razão da sua inadimplência, diga-se, ainda que praticada de forma consciente, mas, exclusivamente, pelo propósito de sobreviver e se reerguer, ou seja, de continuar sua atividade depois desta crise que assola o Brasil e o mundo?

Aqui vertemos nossa atenção às multas moratórias (decorrentes do atraso no pagamento do tributo) e às punitivas isoladas (imputadas quando do descumprimento de obrigações acessórias sem repercussão no valor do tributo), via de regra, aplicadas quando injustificada a inadimplência do contribuinte, considerando que, ante as circunstâncias, ambas não deveriam ser exigidas.

Isso porque, sendo fato público e notório (artigo 374, inciso I, do CPC/2015) a determinação de suspensão total ou parcial das atividades empresariais de diversos segmentos, o que, inquestionavelmente, acarretou sensível redução até mesmo, inexistência de faturamento das empresas, vale dizer, tudo por conta do novo coronavírus (constituindo, assim, caso de força maior de que trata o artigo 393 e parágrafo único do Código Civil), não seria — ou não será razoável penalizar os contribuintes com imputação de multas por descumprimento, frise-se, justificado de uma dada obrigação tributária (principal ou acessória).

Ainda que se pense no caráter objetivo da aplicação das sanções pecuniárias, não há como ignorar, por outro lado, o elemento subjetivo da conduta do contribuinte, tal como afirmado pelo ministro do STF Luis Roberto Barroso nos autos do Agravo de Instrumento nº 727.872/RS, decisão esta que, embora desenvolvida em contexto distinto do atual e a partir de uma situação fática diversa, pode servir de parâmetro inicial para a circunstância de que estamos tratando neste texto.

Ora, se em casos de simples equívocos permite-se a análise do elemento subjetivo da conduta para quantificação da pena pecuniária ali fixada, mais justificável ainda será tal sopesamento quando se estiver diante da necessária preservação da empresa, dos empregos e, via de consequência, da própria dignidade da pessoa humana, pois, conforme leciona Renato Lopes Bechoa tributação, antes de mera técnica, deve ser um ato do Estado que respeite os valores que dão dignidade ao homem.

 Obviamente, não se pretende aqui defender que a inadimplência injustificada, ou seja, ocasionada fora das circunstâncias que vivenciamos hoje, com inegáveis reflexos negativos futuros por conta da Covid-19, seja merecedora de eventual isenção de penalidades.

Quer-se, a bem da verdade, realçar uma realidade posta logo à frente: a necessidade de revisitação de certos conceitos até então lidos e interpretados a partir de circunstâncias totalmente diferentes da que estamos vivenciando hoje.

Assim, a prevalência e, até mesmo, a superação de determinadas visões tradicionais sobre dados princípios, constituem posturas que, inegavelmente, deverão ser exigidas do poder público, especialmente, diante de uma realidade nunca antes vivida na história contemporânea, cujo rastro, aliás, é inevitável.

 é advogado no escritório Nelson Wilians & Advogados Associados, e mestre em Direito Constitucional.

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Aras se manifesta contra apreensão do celular de Bolsonaro

O procurador-geral da República, Augusto Aras, se manifestou no Supremo Tribunal Federal contra a apreensão do celular do presidente Jair Bolsonaro. O pedido foi feito por partidos políticos no curso do inquérito que apura a suposta interferência presidencial na Polícia Federal.

Aras enviou manifestação nesta quarta-feira (27/5)
Marcelo Camargo/Agência Brasil

Segundo Aras, como a PGR é responsável por propor diligências investigadas contra o presidente perante o STF, não cabe às legendas partidárias interferirem no processo de apuração.

“Quanto às diligências requeridas pelos noticiantes, como sabido, a legislação processual não contempla a legitimação de terceiros para a postulação de medidas apuratórias sujeitas a reserva de jurisdição, relativas a supostos crimes de ação penal pública”, afirma a manifestação, enviada nesta quarta-feira (27/5). 

Ainda de acordo com Aras, “cabe ao procurador-geral da República o pedido de abertura de inquérito, bem como a indicação das diligências investigativas, sem prejuízo do acompanhamento de todo o seu trâmite por todos os cidadãos”. 

O pedido foi formulado pelo PDT, PSB e PV por meio de uma notícia-crime.

Além do presidente, as siglas solicitam a apreensão dos celulares de Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ);  Maurício Valeixo, ex-diretor-geral da Polícia Federal; do ex- Ministro da Justiça Sergio Moro; e da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP). 

Inquérito

A manifestação de Aras foi enviada ao ministro Celso de Mello, relator do inquérito que apura as acusações feitas por Moro ao pedir demissão do Ministério da Justiça. 

Em despachos feitos no último dia 21, o ministro já havia se posicionado no sentido de que compete ao PGR a análise das notícias-crime apresentadas no curso do inquérito. 

Além da notícia-crime apresentada pelas siglas, outros dois pedidos foram enviados ao STF. Celso determinou a remessa de todas elas à Procuradoria-Geral da República. 

Clique aqui para ler a manifestação

Inq. 4.831

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Leandro Guerra: Ilegalidades da contribuição ao SAT

A atualidade tem demandado atenção para a redução dos custos vinculados às atividades empresárias, notadamente na área tributária. Segundo levantamento da PGFN, já existem milhares de ações judiciais no país com este objetivo.

Neste contexto, a contribuição ao SAT volta a assumir relevância. Embora antiga e já questionada no Judiciário, a exação vem recebendo renovadas objeções quanto à sua legalidade, as quais nunca foram analisadas pelos Tribunais Regionais Federais, tampouco pelos Tribunais Superiores.

Provavelmente a discussão mais conhecida sobre o SAT, tem-se a possibilidade de Decreto Presidencial fixar os riscos das atividades econômicas, em contraposição à regra da legalidade tributária (risco leve, médio ou grave, e as alíquotas de 1, 2 ou 3%).

O STF, como sabido, julgou constitucional a possibilidade do Executivo estabelecer os riscos das atividades, sob o fundamento de que o caso não se trata de uma delegação pura. Conforme decidido, a situação seria uma hipótese de delegação técnica, pois a aplicação da lei exige a aferição de dados específicos pela Administração (RE 343.446/SC).

Em 2009, o Governo Federal editou o Decreto 6.957, que modificou o risco/alíquota de várias atividades econômicas (a maior parte delas foi penalizada, diga-se de passagem). À época, a única informação publicada pelo Executivo para embasar o referido ato foi a quantidade de acidentes registrados em cada atividade econômica. Nenhum outro dado foi apresentado, a exemplo da metodologia empregada no reenquadramento.

Passados dez anos da edição do Decreto 6.957/09, outras informações referentes ao reenquadramento dos riscos têm vindo à tona. Atendendo solicitação feita por contribuinte através do Sistema de Acesso à Informação, a União justificou o agravamento do risco da atividade com base em uma “nota” fornecida pela Secretaria da Previdência, que até então não havia sido disponibilizada ao público.

De acordo com tal documento, foi aplicada, por analogia, a metodologia de cálculo do Fator Acidentário de Prevenção (FAP). Para tanto, foram utilizados os índices de frequência, gravidade e custo, referentes à acidentalidade do trabalho verificada em cada atividade econômica e, após a realização de alguns cálculos, cada CNAE recebeu um índice de 0% a 100%. Quanto mais próximo de 0% o índice estivesse, menor o risco da atividade; e vice-versa[1].

A presente análise não objetiva adentrar nas minúcias do cálculo, mas expor as sérias ilegalidades do procedimento.

Em primeiro lugar, cabe frisar que o uso da analogia em matéria tributária está regulado no art. 108, I, do CTN[2], segundo o qual a analogia deve ser empregada diante da “ausência de disposição expressa” para uma determinada situação fática.

Trata-se de técnica interpretativa que auxilia a aplicação do direito em situações excepcionais, para as quais não há uma referência expressa na legislação. De modo que, frente à uma situação omissa na lei, a autoridade competente aplica a disposição prevista para hipótese análoga.

No caso em exame, porém, a analogia não foi utilizada com esta finalidade. Ela foi empregada de forma abstrata, com o objetivo de fixar o grau de risco de todas as atividades econômicas do país. Ao invés do ente público editar um Decreto prevendo os procedimentos a serem observados para o reenquadramento dos graus de riscos, simplesmente foram aplicados os parâmetros do FAP (os referidos percentis).

Outra incongruência, referente à utilização deste método de integração do Direito, decorre da circunstância de que a analogia deve ser empregada pela autoridade competente para aplicar a legislação tributária (“a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará”). Ou seja, diante de um caso concreto, sua aplicação cabe ao contribuinte, ao fisco, ou ao Judiciário, se necessário.

O que não se pode permitir, em hipótese alguma, é o indevido emprego da analogia fora de situações concretas, com evidente finalidade legiferante e por autoridade absolutamente incompetente para tal.

Em segundo lugar, constata-se a ofensa à legalidade, pois não existe previsão legal que autorize a aplicação da metodologia do FAP para promover a alteração do risco das atividades econômicas.

Em terceiro lugar, e novamente sem previsão legal, foram implementadas inovações na metodologia do FAP, com o objetivo de ajustá-la ao intento do Governo. Trata-se da regra, contida na mencionada “nota”, de que cada intervalo de índice composto corresponde a um determinado grau de risco/alíquota. Não há, no ordenamento jurídico, qualquer previsão nesse sentido.

Retomando o precedente do STF sobre a matéria, percebe-se que a premissa estabelecida para validar a fixação das alíquotas pelo Executivo ainda não foi cumprida. Até hoje, inexiste Decreto disciplinando a forma de variação dos graus de risco.

Mais uma oportunidade, portanto, para os contribuintes prejudicados adequarem suas obrigações fiscais.

Clique aqui para ler a nota enviada à Secretaria da Previdência

 é sócio do Araújo Guerra Sociedade de Advogados, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Batista: Considerações sobre o agravo em recurso especial

A fala ora rascunhada aborda a dinâmica do recurso menos estudado pela doutrina, em razão de sua restrita finalidade: o agravo em recurso especial. A necessidade de abordar o tema surge da pouca atenção dada pelas academias de Direito a explicá-lo e, assim, contribuir para a formação deficitária dos novos advogados.

Como é sabido por todos os operadores do Direito, a Lei 13.256/2016 alterou a redação originária do atual Código de Processo Civil (CPC) relativamente ao processamento dos recursos especiais e extraordinários, revigorando a sistemática processual anterior quanto à submissão dos recursos de natureza excepcional a um duplo juízo de admissibilidade.

Assim, interposto o recurso especial e oferecidas as contrarrazões ou transcorrido sem manifestação o prazo de impugnação, o presidente ou o vice-Presidente do tribunal de origem procederá o juízo provisório de admissibilidade do apelo extremo, de acordo com o artigo 1.030, V, do CPC.

Caso o juízo de admissibilidade do recurso especial seja negativo, única hipótese de recorribilidade, cabe a interposição de agravo (artigo 1.042 do CPC), o qual, contraminutado e sem juízo de retratação, será encaminhado ao tribunal superior.

O agravo em recurso especial tem, assim, como única finalidade, possibilitar que o apelo obstado seja apreciado pela instância superior. Para isso, porém, deve ultrapassar o filtro da dialeticidade, isto é, o inconformismo nele contido está condicionado apenas à superação dos óbices aplicados na origem, mediante a refutação analítica.

Essa é a regra processual de seu conhecimento, simples e clara.

Esse cenário de trivialidade, porém, na prática, não se vislumbra, pois, majoritariamente, os agravos do artigo 1.042 do CPC não conseguem ultrapassar esse filtro.

Por mais simples que o tema possa parecer, ele se apresenta com grande relevância na vida da prática forense. Isso porque, apenas à guisa de ilustração, no ano passado, para se ter a exata compreensão do problema ora abordado, foram julgados 220.447 agravos em recurso especial. Desse total, 4% foram providos, 30%, desprovidos e 66% não foram conhecidos, segundo o Boletim Estatístico Processual do STJ, divulgado no sítio eletrônico do STJ em dezembro de 2019.

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça, anualmente, promove o Encontro Nacional sobre Recursos Repetitivos com os Tribunais de Justiça e regionais. Esse evento, que conta com divulgação pública na mídia especializada, busca, entre outros temas, minorar a taxa de congestionamento na instância superior, debatendo o aprimoramento nas decisões de inadmissibilidade, em busca da isonomia no julgamento dos processos e na celeridade da prestação jurisdicional.

Percebe-se, portanto, que a preocupação dada pelo STJ à técnica da interposição do Aresp é maior do que aquela dispensada pelos advogados, que, em grande parte, nesse recurso, apenas repetem as razões do recurso especial ou não compreendem as técnicas de superação de seu filtro.

Pontuam-se, para tanto, os seguintes desconhecimentos mais comuns, a seguir analisados.

Primeiro, o desconhecimento da amplitude de incidência dos óbices de conhecimento, por exemplo, as Súmulas 7 e 83 do STJ. Essas súmulas obstam o conhecimento do recurso especial interposto tanto pela alegação de violação de lei federal quanto à de dissídio pretoriano. Muitos advogados não sabem disso. Suscitam erroneamente que não refutaram os óbices pois eles são inaplicáveis ao recurso especial interposto pela alínea “c” do texto constitucional (AgInt no AREsp 1082715/RS, relator ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, DJe 26/9/2019).

Segundo, a decisão de inadmissão do recurso especial é incindível em capítulos autônomos, tornando imprescindível a impugnação específica de todos os seus fundamentos (EAREsp 746.775/PR, relator ministro João Otávio de Noronha, relator p/ acórdão ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, Dje 30/11/2018).

Transcreve-se, para melhor compreensão, o seguinte trecho registrado na ementa do julgado acima citado:

A decisão que não admite o recurso especial tem como escopo exclusivo a apreciação dos pressupostos de admissibilidade recursal. Seu dispositivo é único, ainda quando a fundamentação permita concluir pela presença de uma ou de várias causas impeditivas do julgamento do mérito recursal, uma vez que registra, de forma unívoca, apenas a inadmissão do recurso. Não há, pois, capítulos autônomos nesta decisão”.

Ao contrário, a impugnação, no agravo regimental ou interno, de capítulos autônomos da decisão de mérito recorrida, proferida seja em recurso especial ou em agravo (artigo 1.042 do NCPC), apenas induz preclusão das matérias não impugnadas. Isso porque possui natureza diversa do reclamo interposto contra decisão de inadmissão de recurso especial (artigo 1.042 do NCPC), pois o agravo interno, dada a sua natureza voluntária e o seu efeito devolutivo irrestrito, pode, sim, neste caso, cindir o seu inconformismo, insurgindo-se a parte tão somente quanto a um ponto que entender mal aplicado o direito, conformando-se com os demais, o que, de fato, não impede, nessa hipótese, o conhecimento do recurso de agravo interno/regimental, restando, portanto, em tais situações, afastada a incidência da Súmula 182 do STJ.

E, em terceiro e por último, a necessidade de refutação analítica, ou seja, o debate dialético. Superar o óbice não é, de forma simplória, alegar que não se aplica, deve-se mostrar o equívoco de sua incidência no caso. Tem-se, aqui, como exemplo, o óbice da Súmula 83 do STJ, a qual, antes de ser aplicada, é fundamenta por meio de citação de precedentes do STJ. Para se superar esse obstáculo é preciso que o advogado demonstre a sua inadequação ante a sua superação, colacionando precedentes mais recentes, ou a sua imprecisão, com julgados contemporâneos que corroboram a existência de uma divergência na corte.

Em que pese a possível discordância do leitor quanto à relevância do exame dado ao agravo em recurso especial, são essas as situações que se apresentam cotidianamente no Superior Tribunal de Justiça e são a causa do insucesso da ascensão e da análise do recurso especial, cabendo aos professores de Direito Processual Civil abordar com maior precisão técnica o estudo das regras de conhecimento deste recurso nas academias de bacharelado.  

 é assessor de ministro do STJ, professor de Direito Processual Civil da graduação e da pós-graduação lato sensu do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e mestre em Direito.

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Felipe de Lara: Os Juizados Especiais Cíveis

Cumpre esclarecer, inicialmente, que entrou em vigor em 24 de abril de 2020 a Lei 13.994, que alterou os artigos 22 e 23 da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis) a fim de possibilitar a conciliação não presencial no âmbito dos JECs.

Denota-se que a lei não facultou, mas, sim, obrigou as partes a aderir às audiências de conciliação por videoconferência.

E, como sabido, os Juizados Especiais se norteiam pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, conforme previsto no artigo 2º da Lei 9.099/95, sendo que a alteração em vigor se coaduna com os princípios da informalidade e da celeridade.

Isso porque, de acordo com o novo teor do artigo 23, caso o demandado/réu não compareça ou se recuse a participar da tentativa de conciliação não presencial, o juiz togado proferirá sentença. Isso significa que, na prática, o servidor e/ou auxiliar que intimar a parte ré sobre a designação da audiência conciliatória não presencial deverá certificar, nos autos, que não houve consenso do réu a fim de participar da autocomposição do litígio de forma virtual. Ato posterior, o processo deverá ser concluso, a fim de ser reconhecida a revelia.

Impende ressaltar que o reconhecimento da revelia diverge da aplicação dos seus efeitos (artigo 20 da Lei 9.099/95).

Caso o juiz togado tenha plena convicção dos fatos ali alegados, proferirá sentença. De outro viés, caso entenda ser necessária a comprovação de algum fato ou diligência, poderá designar audiência de instrução e julgamento, conduzida por juiz togado ou leigo.

Por fim, saliente-se apenas que os Juizados Especiais deverão observar a disponibilidade de salas ou outro meio para atender aos jurisdicionados que não possuem mecanismos suficientes para a realização do ato.

Anote-se, ainda, que a vigência da lei se deu em meio a uma pandemia (Covid-19), o que torna ainda mais difícil a elaboração de projetos dos tribunais para se adequar à nova realidade, o que deverá unir a Ordem dos Advogados do Brasil e os Tribunais de Justiça a fim de consentir sobre o assunto.

 é advogado, juiz leigo, representante dos juízes leigos e conciliadores e membro do Conselho de Supervisão dos Juizados Especiais.

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Uma boa notícia em tempos difíceis: o STF e os danos ambientais

Em tempos de pandemia e crise generalizada, tomamos a liberdade de interromper a sequência de colunas sobre os Direitos Fundamentais em tempos de pandemia, para tratar de algo que pode ser tido como uma das decisões mais importantes e impactantes do STF em matéria ambiental, no sentido da proteção do direito e dever humano e fundamental à proteção de um ambiente equilibrado, somando-se a uma plêiade de julgados nessa mesma linha.

Concluído em 17/4/20, o julgamento do STF proferido no âmbito do Recurso Extraordinário 654.833, relator Ministro Alexandre de Moraes, fixou a tese controversa, como é sabido da imprescritibilidade da pretensão pela reparação civil de dano ambiental. A tese exarada, nada obstante a importância, será ainda objeto de diversos estudos, seja para sistematizar sua aplicação, seja para compreender seus efeitos e consequências.

A despeito de ainda não terem sido divulgados os votos proferidos por ocasião do julgamento e carente de publicação o respectivo Acórdão, considerando-se, ainda, que se tratou de sessão virtual de julgamento do Tribunal Pleno, pretende-se neste texto tecer alguns comentários sobre a tese fixada, ademais de se avaliar alguns dos seus efeitos diretos, inclusive no que diz com a efetividade do direito fundamental à proteção ambiental no contexto do marco jurídico-constitucional brasileiro.

Antes disso, indispensável, todavia, que se escreva algumas linhas sobre o caso em si, que teve origem no ajuizamento de Ação Civil Pública pelo Ministério Público Federal (MPF), pleiteando a reparação por danos materiais, morais e ambientais decorrentes de extração madeireira ilegal realizada mediante invasões ocorridas entre os anos de 1981 a 1987 em área indígena ocupada pela comunidade Ashaninka-Kampa localizada no Rio do Amônia no estado do Acre.

Com a condenação em primeiro grau, confirmada em segunda instância, e mediante o não provimento do Recurso Especial no Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi interposto Recurso Extraordinário, em razão do reconhecimento da imprescritibilidade do dano ambiental pelo STJ em julgamento que teve como relatora a Ministra Eliana Calmon (REsp 1.120.117/AC).

No RE ora comentado, o Ministro Relator Alexandre de Moraes, reconheceu a repercussão geral e a tese da imprescritibilidade, ponderando da necessidade e relevância de serem estabelecidas balizas precisas e seguras quanto ao instituto da prescrição nos casos envolvendo direitos individuais ou transindividuais lesados, de forma direta e indireta, em razão de danos ambientais oriundos de ação humana.

Quando do julgamento pelo Tribunal Pleno, por maioria, extinguiu-se o processo, com fundamento no artigo 487, inciso III, alínea b, do Código de Processo Civil, em virtude de um acordo firmado entre as partes, restando o recurso prejudicado, vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Dias Toffoli, que deram provimento ao pleito recursal. Além disso, foi fixada a tese da imprescritibilidade da pretensão de reparação civil de dano ambiental, mediante a apreciação do tema da repercussão geral.

Embora o STJ já contasse com sólidas decisões sustentando a imprescritibilidade do dano ambiental[1], a matéria não deixou de ser causa de incertezas jurídicas, que se acentuaram com o reconhecimento da repercussão geral no ora comentado Recurso Extraordinário. Também, de se notar que, avaliando as classificações atribuíveis ao dano ambiental[2], a imprescritibilidade era reconhecida em decisões do STJ para os danos não individuais, ou seja, quando relacionados à reparação de danos ambientais que detivessem relação com a dimensão coletiva do direito ao ambiente.[3]

Assim, de acordo com a jurisprudência do STJ, seriam prescritíveis os danos ambientais individuais, isto é, os casos de danos reflexos. Nesse sentido, o STJ estabeleceu diferença entre as concepções de dano ambiental transindividual e individual para a aplicação dos efeitos da prescrição. No primeiro caso (danos coletivos e difusos), a pretensão pela reparação civil estaria coberta pela proteção da imprescritibilidade, enquanto no segundo caso incidiria a prescrição, obedecendo-se, em regra, aos prazos do Código Civil, apesar da possibilidade de aplicação do prazo quinquenal, em uma relação consumerista, ainda que bystander, como determinado pelo Código do Consumidor.[4]

A singularidade atribuída ao dano ambiental de natureza transindividual (coletivo e difuso) aliada à ausência de regras específicas sobre a prescrição de uma pretensão de reparação civil sustentada em um direito difuso com as características peculiares à proteção ambiental, exigiu que se pensasse para além das regras de direito privado relativamente aos danos individuais. Porém, embora houvesse obras e decisões sobre o tema, a insegurança jurídica não foi por completo superada, o que, em princípio, poderá vir a ocorrer com a decisão ora comentada do STF, quando da publicação do Acórdão. 

Note-se que, nada obstante o RE tenha tido como objeto hipótese de dano transindividual, o STF, ao fixar a tese em nível de repercussão geral, limitou-se a reconhecer que os danos ambientais são imprescritíveis, de modo que não se sabe, ainda, ao certo, se tal imprescritibilidade também alcança os danos individuais e, nos dois casos, as modalidades direta e indireta. Assim, tais aspectos de subida importância e mesmo as razões determinantes do reconhecimento da tese da imprescritibilidade pelo STF somente ficarão esclarecidos pela leitura do Acórdão e dos votos dos Ministros.

De qualquer sorte, algumas considerações já nos parecem podem ser arriscadas. 

Nesse contexto, calha anotar que é necessário ter como premissa que, se o dano ambiental, considerado coletivamente, pode se estender por um longo período de tempo, isso não significa dizer que a imprescritibilidade do dano ambiental está assentada na ideia de um dano abstrato, ou futuro, o qual não se sabe realmente se ocorrerá.[5] Assim, o que reforça a tese da imprescritibilidade do dano ambiental é a própria natureza fundamental do bem jurídico protegido: o ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, como expressamente consagrado e garantido no artigo 225, CF.[6]

Outro ponto digno de nota e altamente controverso diz respeito à tese de que a imprescritibilidade não alcança apenas danos já ocorridos, mas também danos futuros que venham a ocorrer na sequência e pelas mesmas razões, isto é, para os casos em que os efeitos do dano se protraem no tempo, muitos deles somente vindo a ser conhecidos futuramente. Porém, o reconhecimento da imprescritibilidade do dano ambiental não assegura indenização por conta de um dano ambiental que ainda não ocorreu, inclusive inexistem posicionamentos na jurisprudência do STJ favoráveis à responsabilidade civil por danos futuros, embora seja uma questão debatida doutrinariamente.[7] Para tanto, veja-se que a contagem do prazo para a prescrição em caso de dano ambiental individual, relativamente ao qual o STJ não tem reconhecido a imprescritibilidade, tem início quando se toma conhecimento do dano ambiental.[8]

Outro aspecto a considerar diz respeito à aplicação da imprescritibilidade do dano ambiental para os casos em que a conduta lesiva ocorreu em momento anterior à promulgação da CF. Esse era precisamente o caso do RE 654.833, porém a solução do mérito se deu pela homologação da transação, de tal sorte que tal ponto somente restará elucidado quando da publicação do Acórdão.

Nesse sentido, embora o desencadeamento dos danos ambientais tenha se dado antes de 1988, como pode acontecer dos danos perdurarem ou mesmo aparecerem após determinado tempo, a imprescritibilidade, que decorre principalmente do fato de se tratar de lesões a um direito fundamental, deveria alcançar as mais diversas formas de lesão ao ambiente. Mediante tal expediente, estar-se-á levando a sério o princípio da máxima eficácia e efetividade possível dos direitos fundamentais, até mesmo por se tratar, ao fim e ao cabo, de dano continuado.

Além disso, é claro que a responsabilidade civil por dano ambiental precede a CF, com a responsabilidade objetiva generalizada mediante o artigo 14, parágrafo 1º, da Lei 6.938/1981, e antes disso, tendo o Decreto 79.437/1977 promulgado a Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo, que introduziu a responsabilidade objetiva do proprietário do navio, ademais de prevista, no artigo 4º, da Lei 6.453/1977, a responsabilidade objetiva do operador de instalação nuclear pela reparação de dano causado por acidente nuclear.

O grau emblemático da fixação, pelo STF, da tese da imprescritibilidade do dano ambiental pode ser visualizado com base em dois pontos de grande importância. O primeiro deles, remete diretamente à própria efetividade do direito fundamental ao ambiente como previsto no artigo 225, da CF, bem como dos deveres fundamentais ambientais correlatos.

Nesse contexto, ainda que ausente uma previsão explícita da imprescritibilidade do dano ambiental na CF ou na legislação infraconstitucional, ao contrário do que ocorre com a expressa menção à imprescritibilidade da prática de racismo ou da ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (artigo 5º, incisos XLII e XLIV, da Constituição) e da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário (artigo 37, §5º, da Constituição), o fato de ter o STF fixado tal tese revela o grau de importância da proteção ambiental com efetividade na ordem jurídica brasileira e o quanto a nossa Suprema Corte a tem levado a sério.

O segundo aspecto a destacar, aponta para uma robusta e clara sinalização contrária à impunidade pelos danos ambientais que assolam os mais diversos ecossistemas do país. Mais do que isso, por se tratar de um caso de desmatamento ilegal, a tese adotada pelo STF reforça com contundência o combate ao desmatamento ilegal que persiste em acontecer na Amazônia Legal, com aumento considerável nestes últimos tempos.[9]

Por fim, é possível dizer que a fixação da tese da imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento por dano ambiental pelo STF representa um marco histórico no desenvolvimento do instituto da responsabilidade civil por dano ambiental no Brasil.

Isso não quer dizer que não existam agora mais questões a desafiarem equacionamento, merecendo outros estudos, porquanto mesmo a questão da prescrição em matéria de dano ambiental, em especial no que diz com questões que envolvem a geração de riscos e sua conexão com o princípio da precaução, ainda não está sedimentada, em especial em relação aos efeitos decorrentes das mudanças climáticas,[10] bem como nas situações que envolvem o assim chamado direito dos desastres.[11]

 


[1]  REsp 647.493/SC (Relator Ministro João Otávio de Noronha); REsp 1.644.195/SC e REsp 1.559.396/MG (ambos do Relator Ministro Herman Benjamin).

[2] Veja-se, por exemplo, a classificação de Morato Leite e Ayala em dano ambiental puro, dano ambiental lato sensu e dano individual ambiental ou reflexo. Cf. LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial: teoria e prática. 7 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 104-105.

[3] São os casos, por exemplo, do REsp 1.641.167/RS (Relatora Ministra Nancy Andrighi) e do REsp 1.346.489/RS (Ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva).

[4] Vide o Resp 1.354.348/RS (Relator Ministro Luis Felipe Salomão) e o AgRg no REsp 1.365.277/RS (Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino).

[5] Milaré, ao considerar o risco abstrato ou incerto, também denominado dano ambiental futuro, refere a sua distância para que seja viabilizada a aplicação do instituto da responsabilidade civil, devido as suas características, invisíveis, incertas, de dimensões inimagináveis e inestimáveis. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 426.

[6] Há que ter em conta que a reparação civil dos danos ocorre independentemente da responsabilidade administrativa e penal (artigo 225, §3º, da Constituição).

[7] Vide, por exemplo, o mencionado posicionamento contrário e crítico de Milaré à existência do dano ambiental futuro, e o posicionamento favorável, ainda que para fins de medidas preventivas, de Carvalho. Cf. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 426; CARVALHO, Délton Winter de. A teoria do dano ambiental futuro: a responsabilização civil por riscos ambientais. Lusíada. Direito e Ambiente, Lisboa, n. 1, p. 71-105, 2008, p. 102.

[8] Assim já se manifestou o STJ, no sentido de vincular o termo inicial da contagem do prazo prescricional à ciência inequívoca da incapacidade laboral, nos termos da Súmula 278 do Superior Tribunal de Justiça. E, especificamente sobre um dano ambiental, veja-se o REsp 1.346.489/RS (Ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva).

 

 

[9] É possível constatar um aumento no desmatamento realizado na Amazônia Legal conforme os dados disponibilizados pelo projeto PRODES: http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/legal_amazon/increments

[10] Sobre a litigância climática, vide obra paradigmática, no Brasil, de WEDY, Gabriel de Jesus Tedesco. Litígios climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro, Norte-Americano e Alemão. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 82-96.

[11] A respeito do tema: FARBER, Daniel A. Catastrophic Risk, Climate Change, and Disaster Law. Asia Pacific Journal of Environmental Law, v. 16, 37-54, 2013, p. 40-48; no Brasil, v. CARVALHO, Délton Winter de. Desastres ambientais e sua regulação jurídica: deveres de prevenção, resposta e compensação ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 29-52.

 é professor, desembargador aposentado do TJ-RS e advogado.