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Mottola e Mottola: O juiz das garantias é uma solução?

No dia 8 do corrente mês, foi publicado na ConJur o artigo “Juiz das garantias: para acabar com o faz-de-conta-que-existe-igualdade-cognitiva…“, de autoria dos advogados Ruiz Ritter e Aury Lopes Jr., no qual os autores criticam a crença em uma “blindagem psíquica dos juízes” e defendem a criação do juiz das garantias como solução para o problema.

A frase “enquanto não houver preservação da originalidade cognitiva do juiz — o que somente é possível com juízes diferentes para as fases pré-processual e processual, a fim de que o julgador do caso conheça dos fatos livre de pré-juízos formados pela versão unilateral e tendenciosa do inquérito policial”, resume a ideia central do artigo e é bem um exemplo do motivo pelo qual as nossas leis penais acolhem as teorias acadêmicas em prejuízo da eficácia que provém da realidade em que deveriam se inserir.

O que é essa “originalidade cognitiva do juiz”?

É a condição de ignorância em relação ao caso penal que recebeu para instruir e julgar. Para os defensores da tese, só o desconhecimento do que foi apurado na investigação dos fatos garante a imparcialidade do julgador para o exame das provas que vierem a ser produzidas na instrução do processo.

Pode soar bonito, mas, no fundo, é apenas retórica!

No Brasil, as sentenças penais de primeira instância raramente são reformadas por má análise da prova. Considerando que as três instâncias que as reexaminam (tribunais de segunda instância, STJ e STF) são dotadas de “originalidade cognitiva”, pode-se tomar os números como evidência de que a esmagadora maioria dos juízes criminais do nosso país não tem a sua imparcialidade comprometida pelo que quer que seja.

Além disso, se a questão é evitar os “pré-juízos”, não há como desconsiderar que, no processo crime, o conhecimento da prova se dá de maneira gradativa e, como regra, inicia pela prova acusatória em razão da ordem estabelecida pelo CPP. Ela não é “despejada” em um único instante, para uma única análise. Mesmo tendo contato com o processo apenas na fase de sentença, o juiz precisará ler peça a peça, ouvir (em tempos de gravação) depoimento a depoimento. E é inevitável que, à medida em que ele avança (e não apenas ao final), faça uma análise crítica daquilo que leu e ouviu, formando vários pré-julgamentos que vão se confirmando ou não a cada novo elemento introduzido.

Por isso a convicção que vai justificar a sentença quase nunca será fruto de um exame único e ininterrupto da totalidade dos documentos e provas contidos na instrução, mas será o produto de uma sucessão de convicções provisórias confirmadas ou postas de lado.

Ter contato com a prova do inquérito em nada prejudica a imparcialidade, já que o juiz aprende a formar sua convicção a partir dos elementos que a lei autoriza. Se o ato decisório a ser proferido não permite mais o uso de determinada prova, o julgador simplesmente retira-a da equação e analisa a repercussão disso.

A verdade é que imparcialidade não tem a ver com ignorância. Tem a ver com isenção. Que, por sua vez, é um atributo do caráter, aprimorado, no caso do juiz, pelo treinamento e pela experiência. Assim como o médico é treinado para controlar a empatia e manter a mente clara, e o policial é preparado para dominar o medo e enfrentar os perigos da profissão, assim também o juiz é ensinado que o processo criminal, como o futebol, é uma “caixa de surpresas” e nenhuma convicção pode ser tida como definitiva enquanto a última testemunha não tiver sido ouvida, e o último argumento, apresentado.

E por isso, com absoluta naturalidade, diariamente juízes revogam prisões que decretaram e absolvem réus em processos cujas denúncias receberam, embora, ao recebê-las, tenham identificado elementos suficientes para embasar a acusação.

Em outras palavras, a imparcialidade de quem julga não depende do momento processual em que tomou conhecimento das provas, mas da capacidade de não formar convicções definitivas antes de o processo estar pronto para ser julgado.

A criação do juiz das garantias é um fato. A verdade por trás do fato é que ela não garante coisa alguma, exceto morosidade. Em nome de um “princípio tonitruante” justificou-se a duplicação de juízes nos processos criminais de primeira instância, uma exigência de difícil atendimento em comarcas pequenas, especialmente quando separadas por enormes distâncias, como ocorre em vários estados brasileiros. Um problema que se agrava com a proibição de o juiz das garantias voltar a atuar em qualquer processo no qual tenha desempenhado essa função.

Gostem ou não os defensores da tese, o bom juiz não torce por ninguém. Ele busca apenas a verdade e a correta aplicação da lei.

Exceções existem? Claro que devem existir, mas elas são exatamente isso: exceções, cuja causa da quebra de imparcialidade ninguém pode afirmar com certeza estar relacionada com o conhecimento da prova do inquérito ou com a análise de medidas cautelares. Para esses casos existem a arguição de “suspeição” e um exasperante leque de recursos. E, se eles não forem acolhidos, então, quem sabe, o problema não seja a incapacidade de superação de pré-julgamentos, mas apenas a diversidade natural de aplicação do direito e análise da prova.

 é juiz de Direito da comarca de Araranguá, do Poder Judiciário de Santa Catarina.

 é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

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TJ-CE deve cumprir normas sobre audiência de custódia, diz CNJ

As recomendações do Conselho Nacional de Justiça durante a epidemia do coronavírus buscam assegurar os direitos fundamentais das pessoas presas. Por esse motivo, tribunais estaduais devem incorporar às suas rotinas processuais e não podem deixar de cumprir alguma diretriz fixada.

Conselheiro entendeu que TJ do Ceará tem provocado o esvaziamento da audiência de custódia ao se distanciar das diretrizes fixadas pelo CNJ
Luiz Silveira/Agência CNJ

Assim entendeu o conselheiro Mário Guerreiro, do CNJ, ao determinar o Tribunal de Justiça do Ceará cumpra as recomendações que tratam de audiência de custódia. Segundo o magistrado, o TJ-CE estava se distanciado das diretrizes. A decisão é desde sábado (16/5).

O conselheiro atendeu ao pedido ajuizado pela Defensoria Pública do Ceará, que pedia a aplicação da Resolução CNJ 213/2015, que trata das audiências de custódia, na parte em que não está suspensa: realização dos exames de corpo de delito e à disponibilização do laudo e registros fotográficos no auto de prisão em flagrante.

O defensor Jorge Bheron Rocha alegou que o tribunal vem descumprindo as Resolução 213/2015 e ainda a Recomendação CNJ 62/2020, que fixa diretrizes para a prevenção da propagação do coronavírus no sistema criminal. 

Por sua vez, o TJ cearense afirmou que está buscando a garantir a juntada célere do exame ao auto de prisão em flagrante, com a devida complementação por registro fotográfico. No entanto, ponderou que podem haver “situações excepcionais, em que se verificam irregularidades procedimentais, como o atraso na juntada dos exames”.

Ao analisar o caso, o conselheiro considerou que a situação atual do tribunal tem provocado o esvaziamento da audiência de custódia, que busca prevenir à tortura e aos maus tratos e “que pode ser alcançado mediante a análise do exame de corpo de delito e dos registros fotográficos pertinentes”.

“Não está o TJ-CE obrigado a seguir a Recomendação nº 62 do CNJ, deixando de realizar, assim, as audiências de custódia; se, contudo, aderir às orientações constantes da referida recomendação, não poderá fazê-lo parcialmente, sendo obrigado a adotar as medidas mitigadoras da não realização da audiência de custódia, previstas pela recomendação, sob pena de grave violação de direitos fundamentais assegurados por resolução deste Conselho e, mais recentemente, pelo Código de Processo Penal”, afirmou.

Clique aqui para ler a decisão

0003065-32.2020.2.00.0000

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Gustavo Favero Vaughn: Contra a jurisprudência defensiva

Piero Calamandrei, em seu clássico Elogio, ao tratar de tristezas e heroísmos da vida dos advogados, escreveu que certa vez um velho causídico lhe dizia que, em geral, os advogados trabalham sem se poupar até o último suspiro, para chegar à morte sem pensar nela.[1]

São inúmeras as questões profissionais que preocuparão nós, advogados, até o último suspiro. A jurisprudência defensiva é, sem dúvida, uma dessas questões de rotineira e incessável angústia.

A jurisprudência defensiva consiste, nos dizeres do ministro Humberto Gomes de Barros, em referência ao Superior Tribunal de Justiça, “na criação de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos.”[2] Muitos desses entraves e pretextos são ofensivos a garantias constitucionais basilares, tais como o acesso à justiça e o devido processo legal.

Se se pudesse resumi-la em uma única sentença, poder-se-ia dizer que a jurisprudência defensiva é o arquétipo do que Botelho de Mesquita chamou de processo incivil.[3][4]

O Código de Processo Civil de 2015 exerce papel relevante no combate à jurisprudência defensiva, especialmente porque prevê, como norma fundamental, o princípio da primazia do julgamento do mérito. Isso significa dizer que o legislador deixou claro aos quatro ventos que os intérpretes devem prestigiar a resolução da crise de direito material levada à apreciação do Poder Judiciário, e não se pautarem em filigranas processuais que, sem o enfrentamento da questão posta em juízo, fulminam a pretensão dos jurisdicionados, neles deixando aquele travo de insatisfação de que falou Barbosa Moreira.[5]

Dito protagonismo da lei processual civil surtiu efeitos. É salutar reconhecer que determinadas orientações dos tribunais superiores antes consideradas defensivas hoje não mais subsistem, pelo que parece lícito concluir que o advento do CPC/2015 proporcionou, em alguma medida, o enfraquecimento da jurisprudência defensiva.

Mas o atual Código não foi suficiente para exterminá-la. Essa prática perversa, para se valer aqui das palavras de José Rogério Cruz e Tucci, remanesce entre nós.[6] Há uma específica tendência do STJ que ainda preocupa: a tormentosa controvérsia em torno da comprovação do feriado local.

Inicialmente, o STJ considerava descabida a comprovação de feriado local após a interposição de recurso.[7] Ao final de 2012 tal orientação foi superada, passando a prevalecer a judiciosa tese de que seria cabível a comprovação posterior de feriado local.[8] Ao que consta, em 2017, fazendo uma leitura rigorosa do CPC vigente, sucedeu nova guinada jurisprudencial, tendo o STJ assentado o entendimento de que seria admissível que o recorrente comprovasse posteriormente a existência de feriado local.[9]

O STJ voltou a debruçar-se sobre o tema em 2019. Em julgamento paradigmático, a Corte Especial por maioria de votos decidiu, em suma, que a interpretação sistemática levaria a crer que o CPC/2015 atribuiu à intempestividade o epíteto de vício grave, pelo que não seria possível saná-lo após o manejo do recurso.[10] A transcrição do primeiro item da ementa do referenciado aresto é suficiente para compreender a posição vencedora:

“O novo Código de Processo Civil inovou ao estabelecer, de forma expressa, no § 6º do art. 1.003 que ‘o recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso’. A interpretação sistemática do CPC/2015, notadamente do § 3º do art. 1.029 e do § 2º do art. 1.036, conduz à conclusão de que o novo diploma atribuiu à intempestividade o epíteto de vício grave, não havendo se falar, portanto, em possibilidade de saná-lo por meio da incidência do disposto no parágrafo único do art. 932 do mesmo Código.”

Nada obstante a insistência na tese defensiva, em prejuízo dos que postulam a prestação jurisdicional do Estado, a Corte Especial, firme no princípio da segurança jurídica, modulou os efeitos da aludida decisão, limitando sua aplicação aos recursos apresentados após a publicação do acórdão respectivo.

Esse cenário piorou com o julgamento de questão de ordem suscitada após o trânsito em julgado do acórdão. Tendo em conta uma alegada contradição entre as notas taquigráficas e o voto elaborado pelo relator, decidiu-se, por maioria de 7 votos a 3, que a modulação de efeitos abrangeria especificamente o feriado da segunda-feira de Carnaval, não se aplicando aos demais feriados, inclusive os feriados locais, pois essa seria a tese que refletiria a convicção manifestada pelo órgão colegiado que apreciou o recurso.[11]

Com efeito, de acordo com o mais recente entendimento do STJ, a comprovação posterior de causa suspensiva ou interruptiva do prazo recursal é admissível apenas no que diz respeito ao feriado da segunda-feira de Carnaval e relativamente aos recursos interpostos até a publicação do acórdão do REsp 1.813.684-SP, acima citado.

Mesmo que o direito seja um fenômeno interpretativo-argumentativo, não se pode conceber a atribuição da severa pena de intempestividade a recurso manejado no prazo legal, mas que não tenha sido instruído com a comprovação do feriado local. De fato, o CPC/2015 determina ao recorrente a comprovação documental de feriado quando da interposição do recurso. Mas nada, absolutamente nada, condiciona a comprovação somente ao ato de interposição. E a ausência de tal advérbio — ou outro equivalente — tem relevância na exegese da regra legal.

A leitura sistemática do CPC/2015 à luz do modelo constitucional de processo, como é de rigor, naturalmente se opõe à jurisprudência defensiva, desautorizando a declaração imediata de intempestividade de recurso não acompanhado da comprovação do feriado local. O que se defende, por ser lógico e plausível, é que ao recorrente seja dada a oportunidade de, após o protocolo do recurso, se for o caso, comprovar a ocorrência de feriado local.

Espera-se que, numa realidade não tão distante, prevaleça essa tese em prol da efetividade processual.

 é advogado do Cesar Asfor Rocha Advogados, mestrando em Processo Civil pela Universidade de São Paulo e membro da Comissão de Mediação da OAB-SP, do IBDP, do Ceapro e do CBAr.

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Arichiello: Revisão de parcelas em acordos de colaboração premiada

A ordem mundial repousa e amanhece sob o manto de um preceito em comum: a pandemia provocada pelo novo coronavírus (Covid-19). Partilhamos da mesma — e necessária, sim — política de isolamento social como forma de buscar amenizar a propagação da poderosa infecção proporcionada pela ameaça viral.

Além dos nocivos impactos da Covid-19, responsável por ceifar milhares de vidas pelo mundo, a pandemia também arrebatou a economia global e, com ela, toda a dinâmica de organização da vida social. Não seria diferente, então, com relação às dinâmicas processuais e de resolução de conflitos, que requerem, ainda mais nesse momento, medidas urgentes de redução dos danos já ocasionados pelo coronavírus.

Em meio a diversos exemplos, é preciso tratar dos acordos de colaboração premiada, esses que muito se difundiram com o advento da cognominada operação “lava jato”. Para se ter uma ideia, de acordo com dados da Procuradoria da República no Paraná, em dezembro de 2019, só em relação à força-tarefa em Curitiba, o montante total fixado em colaborações premiadas, em acordos de leniência, em Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) e em renúncias voluntárias, o valor alcançava o marco de R$ 14,3 bilhões, dos quais R$ 4,069 bilhões já haviam sido recuperados aos cofres públicos[1].

Com cifras cada vez maiores — só o acordo de leniência da Odebrecht, por exemplo, foi firmado em R$ 8,5 bilhões —, é impossível que as multas impostas sejam quitadas de uma só vez. A prova disso é que dos R$ 14,3 bilhões previstos pela força-tarefa paranaense, apenas a quantia de R$ 4 bilhões foi restituída nos últimos cinco anos.

Fato é que muitos acordos — e aqui falando especificamente dos de colaboração premiada — contêm uma cláusula de rescisão em caso de não pagamento dos valores ora cominados. E como estamos falando de um instituto ainda sem segurança jurídica, em que cada órgão — Polícia Federal, Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, Procuradoria-Geral da República, entre outros — atua de uma maneira e tem seus próprios métodos, certo é que não encontramos unificação nem mesmo na cláusula de que trata da rescisão do acordo pelo não pagamento.

Veja-se, por exemplo, que os acordos dos irmãos Joesley e Wesley Batista, da JBS, firmados com a Procuradoria-Geral da República, preveem R$ 110 milhões em multa para cada um (cláusula 6ª) e indicam em sua cláusula 26, alínea j, responsável por elencar as hipóteses de rescisão do acordo, que essa ocorrerá “se o colaborador, podendo, não quitar nos prazos estabelecidos nesse acordo as multas nele previstas” (grifos nossos).

Dentro do escopo analisado, vislumbrou-se que o mesmo se deu com os acordos de colaboração firmados por ex-executivos da Odebrecht com a Procuradoria-Geral da República, nos quais foi previsto, no rol de hipóteses que detém o condão de colocar termo ao acordo, que haverá rescisão quando, havendo a possibilidade, o colaborador não quitar as multas nos prazos então estabelecidos. Em similar sentido, o acordo firmado por Alberto Youssef com o Ministério Público Federal no Paraná expressamente frisou, em sede do parágrafo primeiro, de sua cláusula 19 (Parte X – Rescisão), que “não ocasionará rescisão do presente acordo de colaboração a impossibilidade de pagamento pelo COLABORADOR da multa penal prevista na cláusula 5ª, inciso VI” (grifos nossos).

A Polícia Federal, a seu turno, ao firmar acordo de colaboração premiada com Antonio Palocci, nada consignou sobre a impossibilidade de pagamento da indenização de R$ 37.500.000,00, dado que a cláusula 18, alínea j, é expressa ao afirmar que o acordo será rescindido “se o colaborador não efetuar o pagamento da indenização”.

No caso da colaboração de Palocci há uma particularidade: a indenização seria deduzida do valor já constrito, ou seja, não há risco de não pagamento. Essas diferenças, contudo, confluem para um mesmo questionamento: a pandemia de coronavírus é motivo suficiente para se alegar a impossibilidade de não pagamento das multas avençadas? Quais os efeitos da pandemia nos acordos que são categóricos ao afirmar que o não pagamento é causa de rescisão, independente do motivo? Essa alegação seria aceita pelos Tribunais?

De início, é importante apontar que um acordo de colaboração premiada nada mais é do que um “negócio jurídico personalíssimo”, que possui “caráter bilateral e sinalagmático[2], ou seja, a prestação de uma das partes é causa da prestação da outra. É dizer: se o colaborador cumpre com as cláusulas previstas, fornecendo informações relevantes e assegurando a efetividade das investigações, fará jus aos benefícios pactuados.

Sendo, portanto, um negócio jurídico, é natural que esteja sujeito aos princípios e regras do Direito Civil e Processual Civil. E, exatamente por isso, as hipóteses rescisórias devem levar em conta a boa-fé, a razoabilidade e a ocorrência de caso fortuito ou força maior, ainda que que não haja previsão expressa. Nas palavras de André Pinto da Rocha Osório Gondinho: “a atuação da autonomia da vontade não pode mais ser considerada irrestrita, devendo respeitar o ordenamento e seus princípios tutelares[3].

Cumpre dizer que escapa aos intuitos do presente artigo elencar todas as razões pelas quais, ainda que inexistente motivo de caso fortuito ou de força maior, considera-se desproporcional e irrazoável rescindir um acordo de colaboração premiada pelo não pagamento ou pagamento parcial dos valores acordados, especialmente se o colaborador cumprir com grande parte das obrigações assumidas, garantindo a efetividade da colaboração[4].

Assim sendo, tem-se nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira que caso fortuito “é o acontecimento natural, ou o evento derivado da força da natureza, ou o fato das coisas, como o raio do céu, a inundação, o terremoto”. Por seu turno, “conceitua-se a força maior como o damnum que é originado do fato de outrem, como a invasão do território, a guerra, a revolução, o ato emanado da autoridade (factum principis), a desapropriação, o furto etc[5].

Dessa forma, em sendo tanto o caso fortuito como a força maior causas provenientes de fatores externos, alheios à esfera de alcance e vontade da parte, resta inegável que a pandemia do novo coronavírus deve ser assim compreendida.

Bem por isso, parece-nos evidente que aos acordos já firmados, que, ao que se tem notícia, não possuem cláusulas específicas versando sobre as hipóteses de caso fortuito ou de força maior, deve ser a causa de rescisão pelo não pagamento dos valores acordados afastada, tendo em vista que a pandemia que assola o globo consiste motivo idôneo para tanto.

Não se pode olvidar que o Código Civil é expresso ao apontar, em seu artigo 393, que se o devedor não se responsabilizou expressamente pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, ele não responderá por eles. Ou seja, ao se interromper o nexo de causalidade entre o inadimplemento dos valores acordados e a ação voluntária da parte, não há que se cogitar a viabilidade de adimplir ao pagamento das referidas quantias.

Tal argumentação vai ao encontro do que alguns acordos expressamente preveem, isto é, que a rescisão só se dará se o colaborador, podendo, não quitar as cifras nos prazos estabelecidos. Portanto, a este termo restará imperioso aferir a real viabilidade de pagamento dos valores ou das parcelas em tempos de pandemia pelo colaborador, levando-se em conta, como fatores relevantes de análise, o seu setor de atuação, a sua caracterização como serviço essencial ou não, assim como os prejuízos concretamente por ele suportados.

Ademais, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma recomendação[6] sugerindo cautela na punição de empresas em recuperação judicial, seja flexibilizando o pagamento de parcelas, seja permitindo a apresentação de plano modificativo ou avaliando com cautela o deferimento de medidas como despejo por falta de pagamento[7].

Com isso, o que se apresenta é que, em tendo a pandemia da COVID-19 proporcionado efeitos econômicos de extensão incerta e por indeterminado prazo, é evidente que a capacidade econômica de muitos colaboradores restou afetada, de modo que não se pode puni-los de modo tão radical ante a ocorrência de um caso fortuito ou de força maio. Não se pode, tendo sido sua colaboração efetiva, rescindir o acordo ante a incapacidade momentânea de pagamento.

Não se está a sustentar que os valores em questão devam ser perdoados, pelo contrário. A restituição aos cofres públicos segue sendo medida de rigor, razão pela qual faz-se mister pensar em repactuações quanto ao prazo e a forma de pagamento em observância à atual capacidade econômica de cada um dos colaboradores.

Ora, se as autoridades responsáveis pela pactuação do acordo de colaboração premiada podem — e devem — chamar os colaboradores para prestarem esclarecimentos adicionais sobre fatos já deduzidos ou, ainda, auxiliarem com informações relacionadas a fatos novos provenientes da investigação, também podem promover um chamamento com o intuito de repactuar o pagamento dos valores cominados.

Isso posto, tem-se a resposta para os dois primeiros questionamentos formulados: (i) a pandemia de coronavírus é motivo proficiente para ocasionar a impossibilidade do pagamento das multas avençadas, quadro esse que (ii) se aplica, inclusive, aos acordos que não aceitam justificativas para o não pagamento.

Passa-se, assim, ao terceiro e último questionamento: a alegação de caso fortuito ou força maior, causado pela pandemia, será aceita pelos Tribunais? A resposta, por evidente, ainda é incerta. Não há, de partida — e notadamente por se tratar de uma situação excepcional — como dizer qual será o entendimento dos julgadores nos casos em que for requerida a rescisão com fundamento no não pagamento dos valores acordados.

O que se pode fazer, contudo, é esperar que os Tribunais pátrios, com a chancela do Conselho Nacional de Justiça, ajam com cautela, buscando prevenir danos econômicos consideráveis aos colaboradores, cujos efeitos podem, consequentemente, prejudicar também a recuperação de ativos. Em síntese, melhor repactuar do que não receber.

O momento é delicado e exige redobrado cuidado. Ao que nos parece, a única saída viável apresenta-se pela racionalidade da aplicação das normas jurídicas por parte dos operadores do Direito que serão chamados a responder tais questionamentos. Os órgãos investigatórios, referendados pelo Poder Judiciário e em conjunto com os colaboradores, têm que acordar uma alternativa viável de execução. É a única saída para se garantir lampejos de segurança jurídica a um cenário cuja fragilidade irrompe as tradicionais fronteiras normativas e convoca o intérprete ao penoso desafio de pensar o Direito em hipóteses de pandemia.


[2] MARQUES, Lúcio Guimarães. Aspectos e problemas da rescisão do acordo de delação premiada. In: CALLEGARI, André Luís (coord.). Colaboração premiada: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. Pp. 184-185.

[3] MAURO, Roberta. Direitos reais e autonomia da vontade (O princípio da tipicidade dos direitos reais). Resenha do livro de André Pinto da Rocha Osório Gondinho. Rio de Janeiro: Renovar. Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, Rio de Janeiro: PADMA, jul. – set. 2001. P. 242.

[4] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters, 2018. Pp. 288-289.

Victor Ferreira Arichiello é advogado no Urquiza, Pimentel e Fonti Advogados e graduado em Direito pela PUC-SP

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Cecília Mello: Extensão de trabalho remoto do Judiciário

O contexto de pandemia e isolamento mundialmente vivido levou e está levando a sociedade a vários ajustes e adaptações, de maneira a assegurar a manutenção de suas atividades essenciais. São muitas as mudanças, necessárias. Mas o alerta é no sentido de que essas mudanças possam se tornar permanentes mesmo após o estado de emergência de saúde pública. E isso precisa ser muito bem avaliado.

O Poder Judiciário, investido de competência para solucionar conflitos, de realizar o Direito, seja evitando a violação da ordem jurídica, seja determinando a sua restauração, é um dos sustentáculos do Estado democrático, o guardião da Constituição Federal, tão demandada nesses tempos. Consciente da sua relevância no cenário nacional, o Judiciário rápida e eficientemente se estruturou para evitar a interrupção de atendimento à sociedade e aos jurisdicionados.

O CNJ editou as Resoluções 313 e 314, em 19 de março e 20 de abril, respectivamente, disciplinando de maneira uniforme o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio e, ao mesmo tempo, garantir o acesso à Justiça no período de emergência de saúde pública. Além da suspensão dos prazos processuais, cuja contagem será retomada para os processos eletrônicos em 4 de maio, restou assegurada a apreciação de matérias mínimas, tais como habeas corpus, mandado de segurança, medidas liminares e de antecipação de tutela, comunicações de prisão em flagrante, pedidos de concessão de liberdade provisória, imposição e substituição de cautelares diversas da prisão, dentre outras medidas revestidas de urgência.

Referidas resoluções facultaram aos tribunais disciplinar o trabalho remoto de magistrados, servidores e colaboradores. A Resolução 314 determina que sejam buscadas soluções colaborativas com os demais órgãos do sistema de Justiça, para a realização dos atos processuais virtualmente. Ou seja: as diretrizes devem ser encontradas no senso comum das necessidades e, evidentemente, por meio de regras claras, realistas e objetivas.

Os processos físicos permanecem com os seus prazos suspensos, salvo a hipótese de conversão em eletrônicos, vedado o restabelecimento do expediente presencial. Essas regras têm vigência até 15 de maio, podendo haver ampliação ou redução por ato da Presidência do CNJ.

Os tribunais de todo o país diligenciaram na busca de soluções, procurando manter as atividades de prestação jurisdicional, porém por meio de trabalho remoto e mediante a disponibilização de canais de comunicação virtual franqueados em seus respectivos sites. Além dos trabalhos jurisdicionais propriamente ditos, os tribunais ainda precisaram solucionar inúmeros procedimentos correlatos aos processos, especialmente aqueles pertinentes aos levantamentos de valores decorrentes de pagamentos judiciais, de extrema relevância neste momento, tanto para os advogados quanto para os jurisdicionados.

Embora o sistema ainda não apresente uma nova sistemática que possa ser qualificada de forma plenamente satisfatória, há que se considerar o curto espaço de tempo transcorrido desde a sua implementação e a complexidade dessa nova dinâmica, que impõe ajustes não apenas materiais, mas também humanos, haja vista a necessidade de servidores e magistrados adaptarem-se ao trabalho de atendimento a distância. Mas, independentemente do sentimento geral de apreensão, fato é que os tribunais têm apresentado índices bastante elevados de produtividade, no que diz respeito a decisões proferidas.

Com base no êxito dos resultados obtidos pelo STF com a implementação de atividades remotas, a possibilidade de manutenção desse sistema diferenciado de trabalho foi estendida por meio da Resolução 677, de 29/4/2020, até 21 de janeiro de 2021, outorgando-se aos gabinetes dos ministros liberdade para adotarem outras formas de gestão das suas atividades. Embora não haja novas disposições acerca das sessões de julgamento, tudo leva a crer que também permaneçam por sistema de videoconferência, assim como o atendimento judicial, por meios eletrônicos

Na outra ponta dessa relação, sem absolutamente desconsiderar os demais operadores que a compõem, estão os jurisdicionados, assistidos e representados por seus advogados. Aqui, diferentemente dos tribunais que integram o Poder Judiciário, não há uma uniformidade de recursos materiais e humanos. Ao contrário, pode-se dizer que a diversidade da advocacia guarda relação direta com a diversidade da população e, portanto, dos jurisdicionados. Dessa forma, partir da premissa de que todos os advogados têm condições técnicas e materiais de pronta adaptação ao sistema de trabalho remoto é tão equivocado quanto imaginar que todos os alunos da rede de ensino, seja pública ou privada, têm condições de acesso e aproveitamento a aulas on-line.

As prerrogativas previstas na Lei 8906/94 asseguram aos advogados o direito de exercer a defesa plena de seus clientes e aqui se inclui o direito de postular e argumentar oralmente com o objetivo de convencer o julgador sobre o direito postulado. Em suma: o advogado tem o direito de ser ouvido pelo julgador e esse direito está imbricado no próprio exercício do pleno direito de defesa.

As medidas adotadas no âmbito do STF podem trazer resultados promissores à mais alta Corte de Justiça do país, inclusive ampliando e desonerando o exercício da advocacia perante as suas sessões de julgamento, a medida que sustentações orais ou atendimentos judiciais não dependerão de viagens e deslocamentos. Entretanto, o mesmo não se pode dizer quanto à manutenção desse sistema pelos demais tribunais e, especialmente, pela primeira instância, o que poderá resultar prejuízos incalculáveis de acesso à Justiça.

Não se trata de simples “adaptação” quando a maioria dos advogados e da população não dispõe de condições materiais para implementar essa modalidade de trabalho, que demanda recursos tecnológicos de custos incompatíveis com os auferidos por essa significativa parcela da população. Aqui, a Justiça ficaria reservada a poucos, e a advocacia também.

As alternativas encontradas para a manutenção dos serviços e atividades da sociedade em tempos de pandemia precisam ser rigorosamente avaliadas antes de se tornarem perenes, sob pena de criarmos “bolhas” instransponíveis em diversos segmentos, que ficarão reservadas a poucos, mas em detrimento de muitos.  Como diz Yuval Harari: “O verdadeiro antídoto para epidemias não é a segregação, mas a cooperação”.

 é criminalista, sócia do Cecilia Mello Advogados. Foi desembargadora federal por 14 anos no TRF-3.

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Antonio Ruiz Filho: Nova disciplina da prisão preventiva

No final de 2019 entrou em vigor a Lei nº 13.964/19 que, alterando o Código Penal, e o seu processo, também impôs nova disciplina às medidas cautelares, especialmente no que se refere à prisão preventiva.

Ao Direito Penal incumbe estabelecer condutas proibidas e as sanções a serem atribuídas aos infratores. A finalidade do Direito Processual Penal é a tutela das liberdades individuais contra os poderes persecutórios do Estado.

Por isso, o processo penal, com apoio constitucional, consagra a paridade de armas, a proibição de utilizar provas ilícitas, o contraditório, a ampla defesa, estabelecendo um complexo de normas que visam a assegurar ao cidadão a oportunidade de se opor à imputação da culpa criminal; trata-se do devido processo legal, que são garantias processuais a serviço da inocência.

Essas balizas, a que todos devem submeter-se, estão atreladas ao conceito de Estado Democrático de Direito, assim reconhecido no preâmbulo da nossa Constituição Federal.

Nesse contexto, já tardava que se fizesse uma reforma relativa às prisões provisórias, hoje estimadas em torno de 40% da população carcerária. Apenas esse dado já era indicativo de que o sistema clamava por urgente reformulação.

A nova redação do art. 282, § 2º, do CPP, deixa claro que a prisão por decisão de ofício deixou de existir, pois o juiz passa a depender de iniciativa das partes ou de representação da autoridade policial.

O art. 311 do CPP também veda a prisão decretada ex officio.

Regra legal nº 1: os juízes, em qualquer hipótese, estão impedidos de mandar prender sem provocação das partes que lhes outorgue essa faculdade.

O § 3º, do art. 282, do CPP, refere que a decretação de medidas cautelares em geral, ressalvados “os casos de urgência e perigo”, “deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional”.

Isto já deveria ser assim, mas, agora, tais exigências estão positivadas na lei, de sorte a inviabilizar decreto prisional que não as adote.

No caso de descumprimento de outras imposições, o § 4º, do art. 282 do CPP, possibilita a prisão preventiva a pedido, apenas “em último caso”.

Regra legal nº 2: as decisões pela prisão preventiva devem conter elementos do caso concreto que justifiquem a aplicação de medida considerada excepcional e, portanto, a ser decretada apenas em último caso.

O § 5º, do artigo 282, do CPP, permite ao juiz que revogue a prisão de ofício ou a substitua por medidas cautelares mais brandas, quando “verificar a falta de motivo para que subsista”. O mesmo dispositivo parece admitir que o juiz volte a decretá-la “se sobrevierem razões que a justifiquem”. Contudo a regra geral das cautelares impõe que haja provação das partes nesse sentido. Caso contrário, o juiz terá de permanecer inerte.

Regra legal nº 3: a prisão deve ser revogada de ofício ou substituída por medidas cautelares mais brandas se deixarem de existir razões que justifiquem a conduta excepcional.

Na sequência, o § 6º, do art. 282, do CPP, condiciona a prisão preventiva, que “somente será determinada” quando não for possível a substituição por outra medida cautelar do art. 319, o que “deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada”.  

O citado dispositivo já trazia essa recomendação, que foi, no entanto, sistematicamente ignorada, sendo necessário tornar expressa a exigência.

Regra legal nº 4: a prisão preventiva será cabível apenas quando não for possível a aplicação de medida diversa, entre aquelas previstas pelo artigo 319 do CPP, fundada em elementos concretos e que possam ser atribuídas por circunstâncias individualmente reconhecidas, de modo a tornar evidente que nada além da prisão é suficiente para acautelar o processo ou a sociedade.

O artigo 283 do CPP, objeto de muita discussão, foi encurtado, mas mantido na essência. Sobre a impossibilidade de prisão para cumprimento de pena, o artigo 313, § 2º, do CPP, afirma: “Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia”.

Neste ponto, inclua-se a prisão decorrente de pronúncia, de modo que a Súmula 21 do STJ[1] tornou-se sem aplicação.

Regra legal nº 5: não existe prisão provisória possível para o cumprimento de pena, real ou disfarçado, nem pode ser decretada como decorrência natural da evolução das fases processuais.

Os artigos 287 e 310 do CPP incluem a audiência de custódia no direito positivo, até aqui prevista apenas por meio de resolução do CNJ[2]. A rápida avaliação do juiz sobre manter o investigado ou acusado preso vem ocasionando a libertação imediata de inúmeras pessoas, que ficariam encarceradas por meses sem necessidade.

Regra legal nº 6: todo preso será apresentado ao juiz competente, em 24 horas, para a realização da audiência de custódia, com o objetivo de verificar a necessidade de manutenção da prisão provisória.

Incluiu-se, no art. 312 do CPP, um novo pressuposto para a prisão preventiva, o “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. O conceito é vago, o que vai dificultar a sua aplicação.

Criou-se o § 2º para o artigo 312 do CPP, cuja redação estabelece que: “a decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos e contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”.

Fato contemporâneo é aquele que se relaciona com o momento da prisão ou subsiste no tempo desde a sua decretação. Assim, acontecimentos pretéritos ou os fatos primitivos que geraram o decreto inicial não são válidos para admitir a prisão cautelar ou a sua manutenção, se os efeitos tiverem cessado ou se esvaído, perdendo a característica de contemporaneidade.

O § 1º, do art. 315, do CPP, repete o binômio “fatos novos ou contemporâneos”.

Regra legal nº 7: o possível infrator, contra quem cabe prisão preventiva, deve oferecer perigo concreto e atual, de maneira que sua liberdade importe em risco provado, para os fins do processo ou para a proteção da paz social.

O caput do art. 315 do CPP impõe que “A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada”, com elementos concretos, os motivos, mediante adequada fundamentação legal.

O novo § 2º, do art. 315, do CPP, reprodução do art. 489 do CPC, traz um rol de obviedades, mas que são frequentemente desatendidas. Os erros ali descritos, se cometidos, invalidam a decisão.

Regra legal nº 8: a decisão que promova mudança do status libertatis deverá ser suficientemente motivada e fundamentada, sob pena de nulidade.

Pelo art. 316 do CPP, permite-se a revogação da prisão preventiva de ofício pelo juiz ao “verificar a falta de motivo para que subsista” (ausência de contemporaneidade). Entretanto, não poderá agir sem provocação das partes para decretar nova prisão, conforme os artigos 282, § 2º, e 311, do CPP.

Regra legal nº 9: o juiz deve revogar a prisão cujos motivos se mostrem insubsistentes, mas não pode tornar a decretá-la de ofício, e nem deixar de expor os motivos concretos e contemporâneos de validação, além de afastar a suficiência de medidas cautelares diversas da prisão.

O parágrafo único do art. 316 do CPP criou regra com a seguinte redação: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.

A revisão do despacho que deu origem à prisão, como se observa, deve ser promovida de ofício, e o descumprimento dessa obrigatória revisão gera a ilegalidade do decreto prisional. 

Cumpre enfatizar que o estabelecimento desse prazo de 90 dias, pela leitura sistemática dos novos dispositivos processuais, impõe “revisão de necessidade” cujo despacho não pode ser fruto do frequente “copia e cola”, novamente observadas todas as orientações do art. 315 do CPP. Decisão assim mantida haverá de ser considerada absolutamente ilegal.

Revisar significa passar em revista, rever, reexaminar todos os elementos antes considerados para o decreto inicial de prisão preventiva.

A partir da excepcionalidade, expressa de forma abundante nos dispositivos da Lei nº 13.963/19, as prisões cautelares finalmente devem ser reduzidas ao mínimo, para que, de uma vez por todas, cessem os abusos, não apenas quanto à utilização, mas também quanto à duração por prazo excessivo.

Diante de tantas exigências legais para justificar um decreto prisional de índole cautelar, não faria o menor sentido permitir que a prorrogação da prisão preventiva para além dos 90 dias — cuja provisoriedade impõe que seja rápida, breve, efêmera, precária —, fosse derivada de simples renovação ou mera ratificação da decisão cautelar anterior.

Nesse ambiente de expressa excepcionalidade, depois de afastada a possibilidade da aplicação do rol de todas as outras medidas cautelares previstas pelo artigo 319 do CPP, a prisão preventiva poderá perdurar por 90 dias; ao final desse prazo deverá ser criteriosamente avaliada ainda de forma mais exigente por se tratar de ato revisional obrigatório.

Essas prisões provisórias que se eternizam no tempo e em tudo se assemelham a cumprimento antecipado de pena sem julgamento definitivo de mérito, agora expressamente proibidos na lei, devem deixar de existir.

É evidente que, depois de tantos anteparos para a decretação da medida de força de especial excepcionalidade, o parágrafo único do art. 316 do CPP remete a 90 dias, naturalmente, o prazo máximo da prisão preventiva a partir de agora. Aliás, durante muito tempo a duração da prisão provisória foi de 81 dias[3]. Ao final desse período, mesmo sem força de lei, a soltura era praticamente imediata.

Com o passar dos anos esse limite temporal foi sendo abandonado e se permitindo prisões provisórias de muitos meses e até de vários anos, o que não se pode mais admitir.

Se a decisão original de prisão preventiva, ante a nova sistemática, há de ser extremamente bem motivada e fundamentada, com o apontamento de fatos concretos de urgência, perigo e contemporaneidade (art. 282, º 3º, 312 e 315, § 1º, do CPP), e, ainda, com os rigores estabelecidos por vários dispositivos de contenção (art. 315, § 2º, I a IV, do CPP), o que se dirá em relação ao despacho que decide pela sua revalidação depois de três meses de duração?

Regra legal nº 10: a prisão preventiva tem prazo certo de 90 dias, devendo sua prorrogação, de caráter excepcionalíssimo, ser obrigatoriamente revisada após esse período e ser mantida apenas diante de circunstâncias ainda mais especiais, mediante o apontamento de motivos concretos e contemporâneos, uma vez mais afastando-se a possibilidade e suficiência de outras cautelas.

Eis o decálogo das novas diretrizes para a prisão preventiva. 

Ainda, o descumprimento dessas novas regras legais, mediante a comprovação do exigido dolo específico, deverão ser enquadradas como crimes de abuso de autoridade (Lei nº 13.869/19), sendo responsabilizado penalmente o juiz que decretar privação da liberdade em manifesto desacordo com as hipóteses legais (art. 9º, caput), ou que, dentro de prazo razoável, deixe de relaxar prisão manifestamente ilegal (art. 9º, I), de substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível (art. 9º, II).

Tudo isso elevará a qualidade da nossa Justiça criminal, que se tornará mais célere e eficiente, em prol da proteção social e do respeito aos direitos individuais.

 


[1] Súmula 21 do STJ: “Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo da instrução”.

[2] Resolução nº 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça: “Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas”.

[3] “(…) A demora na formação de culpa, excedendo os 81 dias, sem motivo dado pela defesa, caracteriza constrangimento ilegal. Habeas deferido.” – STF, HC 78978/PI, Rel. Min. NELSON JOBIM: 09/05/2000.

 é advogado criminalista, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), foi conselheiro e diretor da seccional paulista da OAB e presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas. Também foi diretor-adjunto do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) por duas gestões.

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Yarshell e Laspro: Recuperação judicial em tempos de pandemia

A Comissão de Estudos de Recuperação Judicial e Falência da OAB-SP e a Escola Paulista da Magistratura, em conjunto, realizaram recentemente dois importantes eventos para discutir as repercussões da pandemia sobre os processos de recuperação judicial. Os painéis contaram com a presença de magistrados, advogados, administradores judiciais e acadêmicos e deles resultaram reflexões importantes, que podem e devem orientar não apenas os debates que por certo prosseguirão, mas igualmente as políticas públicas que venham a ser adotadas — que não necessariamente significam a intervenção do Estado para a solução de todos os problemas.

De fato, nas últimas décadas, criou-se a falsa expectativa de que a simples mudança legislativa ou até mesmo a intervenção jurisdicional fossem capazes de resolver todos os problemas, como se grande parte deles não tivesse origem muito mais complexa, no campo social e econômico, e que não pode ser resolvida como se o legislador ou o juiz tivessem uma vara mágica com a qual, com um simples toque, resolveriam todo e qualquer conflito.

Como era de se esperar, as opiniões manifestadas nos dois eventos ainda estão consideravelmente divididas sobre a maior parte dos temas relevantes. Isso é compreensível e, por paradoxal que possa parecer, também é, em alguma medida, salutar. Com efeito, embora o momento clame por segurança jurídica, mercê de decisões uniformes e estáveis, a eventual precipitação de órgãos superiores em fixar teses — antes que algum debate possa levar ao amadurecimento do problema e das soluções — pode também ser indesejável. De se lembrar que o sistema jurídico brasileiro, no que tange à interpretação da lei federal, sempre optou pela construção difusa e não concentrada baseado na crença de que o debate e o tempo de maturação são essenciais para a interpretação da norma. Ademais, sob certo ângulo, a potencial instabilidade pode funcionar como incentivo às soluções consensuais, diante dos riscos que a imprevisibilidade das decisões judiciais pode trazer.

Associado a esse aspecto parece residir ao menos um ponto de convergência nos pronunciamentos realizados nos dois eventos: há uma convicção generalizada de que, na maior extensão possível, é preciso empregar técnicas que levem à solução não adjudicada do conflito; o que tanto mais se justifica no contexto da recuperação, em que a superação da controvérsia resulta da vontade dos credores e em que o controle jurisdicional é consideravelmente limitado. Há alguma controvérsia quanto aos meios para tanto, sendo ponderável o argumento de que a confidencialidade inerente à conciliação e à mediação são obstáculos de difícil superação no contexto em tela. Além disso, há a circunstancial dificuldade do isolamento social, que pode dificultar — mas que seguramente não impede — o diálogo e a negociação.

Isso parece levar a um outro ponto de convergência: é possível e é preciso seguir com a realização das assembleias de credores à distância, mediante o emprego de ferramentas eletrônicas. Também aqui parece haver um juízo quase unânime de que a utilização desses recursos é irreversível e tende a subsistir em boa escala mesmo depois que as restrições do convívio presencial forem superadas. Há mesmo quem chegue a destacar as vantagens que o uso da tecnologia tem para o sistema de justiça de um modo geral, do que inclusive teria resultado maior eficiência.

Embora tudo isso seja correto e o uso da tecnologia seja hoje um imperativo, é preciso cautela em considerar como permanentes soluções tomadas ao ensejo de situações excepcionais e passageiras — aliás, outra advertência colhida, ainda que de forma generalizada, em vários dos pronunciamentos feitos nos aludidos encontros. Não se pode ignorar que em nosso país parte relevante da população é alijada dos meios tecnológicos e, a pretexto da pandemia, não se pode afastar a representatividade real de todas as classes de credores.

O contato virtual pode ser útil em muitas circunstâncias e ele realmente pode gerar maior eficiência e economia. Mas, ele não pode ser erigido a uma espécie de fetiche, limitador do convívio humano e do exercício de direitos. Parece prematuro dizer, por exemplo, que a oralidade no processo esteja ou suprimida ou fadada a se submeter ao ambiente virtual — e isso em todos os graus de jurisdição em que, sob diferentes formas ela é exercida. Por sorte, a justiça ainda é uma atividade realizada por seres humanos para a solução de problemas de seres humanos e lembrar disso, em tempos de avanço rápido da inteligência artificial, pode ser uma boa prática, para que um dia não nos arrependamos todos de termos renunciado aos vínculos humanos e reais.

No campo da recuperação, a realização das assembleias mediante o emprego de ferramenta eletrônica precisa enfrentar questões como a relativa ao efetivo acesso de todos os interessados à tecnologia e, portanto, à informação que propicie efetiva participação; a titularidade do poder de decidir sobre o uso do expediente; as invalidades que possam decorrer de imperfeição no emprego da tecnologia; o momento em que se deva objetar tal emprego e os limites do controle jurisdicional sobre tudo isso. São questões que foram lembradas, mas para as quais, como era de se esperar, ainda não foram apresentadas soluções adequadas.

Também há aparente convergência sobre o fato de que o fenômeno a enfrentar não é apenas jurídico, mas sobretudo econômico.

Primeiro, embora haja uma razoável consciência de sua complexidade, não parece haver ainda uma consciência plena e generalizada sobre como lidar com o problema econômico ou, em palavras simples, quem deve arcar com a conta. A propósito, muito judiciosas ponderações destacaram que a pura e simples autorização para suspensão de pagamentos não parece ser solução adequada, por considerar apenas um dos lados da equação: beneficiar o devedor é prejudicar o credor que, portanto, pode passar a ter dificuldades de se manter no mercado. De igual modo, a eventual possibilidade de o juiz intervir nas relações privadas, ainda que a pretexto da aplicação da teoria da imprevisão ou na pretensa defesa dos hipossuficientes, pode gerar desequilíbrios econômicos muito mais graves, frutos de uma espécie de efeito dominó. A consciência de que se está diante de vasos comunicantes, portanto, é fundamental, sob pena de a intervenção estatal — legislativa ou jurisdicional — acabar involuntariamente por aumentar o problema, ao invés de resolvê-lo.

Segundo, na mesma linha de raciocínio, há controvérsia sobre qual o papel do Estado diante do custo econômico gerado pela pandemia. Embora haja uma aparente aceitação de que isso deva, dentre outros, dar-se mediante políticas fiscais, não há consenso sobre como isso deva se efetivar. Não se trata apenas do problema de os créditos do Fisco estarem fora da recuperação, mas também de saber até que ponto o Estado deve contribuir para a recuperação econômica, abrindo mão de parte de sua receita tributária.

Como se percebe, trata-se de problema ainda mais amplo e complexo, bem ilustrado no debate acerca da possível e temporária suspensão da exigibilidade dos créditos fiscais. Por outras palavras, a dúvida reside em saber de que forma o custo da pandemia pode e deve ser suportado por toda a sociedade e, nesse caso, qual a forma mais justa de o fazer.

 é advogado e professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Oreste Nestor de Souza Laspro é advogado, administrador judicial, professor doutor da Faculdade de Direito da USP e presidente da Comissão de Estudos de Recuperação e falência da OAB-SP.

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Lewandowski Libertuci: Ainda o imposto sobre grandes fortunas

Em artigo meu publicado pela ConJur, expus entendimento de não ser apropriada a criação do imposto sobre grandes fortunas, ainda mais nos tempos atuais, em que o empobrecimento dos países resultado da propagação de Covid-19 é iminente. Comentei que a criação do referido imposto deflagaria fuga de capitais e que a tributação sobre patrimônio vigente no Brasil é expressiva, mesmo que comparada a países  ricos, como é o caso dos Estados Unidos.

O tema provocou debates, principalmente no tocante à comparação que fiz em relação à tributação sobre herança. A alíquota aplicável em São Paulo é de 4%. Não cheguei a mencionar que nos Estados Unidos é de 40%, o que poderia passar a impressão de que estava sendo tendenciosa ao omitir referida informação. Não é o caso. Mas importante esclarecer que ninguém paga alíquota, mas imposto, que como se sabe é a aplicação da alíquota sobre base de cálculo. E no que se refere aos Estados Unidos, o imposto incide sobre o que exceder a US$ 11,580 milhões.

Partindo disso, importante fazer algumas comparações. Exemplo: herança de US$ 12 milhões. A base de cálculo é de US$ 420 mil. Sobre a alíquota de 40%, chegamos a US$ 168 mil. Acontece que a alíquota efetiva nesse caso é de 1,4% (168 mil sobre 12 milhões) , quase três vezes maior do que a aplicada em São Paulo.

Muitos poderiam contra-argumentar no sentido de que fortunas expressivas obviamente são mais tributadas nos Estados Unidos do que no Brasil. Concordo. Mas aí teríamos que analisar caso a caso. Mas não podemos afastar o argumento de que 4%, sem deduções importantes, implica, sim, tributação bem expressiva e não raras vezes bastante superior ao que acontece em países ricos.

Outro ponto que merece destaque é minha afirmativa de que a instituição do imposto sobre grande fortunas implicará fuga de capitais. Reafirmo que isso efetivamente se apresentará não por uma questão econômica, mas por conta da estrutura jurídica vigente no Brasil. Explico. Implementado o imposto sobre grandes fortunas no Brasil, o residente no Brasil terá que submeter à tributação o patrimônio existente no Brasil e no exterior ante o status de contribuinte no Brasil.

Evidentemente, o não residente se submeterá à tributação apenas sobre o patrimônio localizado no Brasil. Enquanto não residente, o patrimônio do exterior não será atingido pela tributação brasileira ante as limitações tributárias aplicáveis ao não residente e em níveis mundiais. Se é assim, se o brasileiro se transferir definitivamente ao exterior e se desfizer do patrimônio aqui existente, não terá seu patrimônio atingido pela tributação da mesma forma. No contexto, será um não residente sem patrimônio no Brasil. Evidente que cada caso terá de ser analisado com suas particularidades, equivale dizer, prova de efetiva transferência oa exterior e inexistência de patrimônio no Brasil. Contudo, por hipótese, me parece que o imposto sobre grande fortunas tende sim a ser um veículo estimulador ao desfazimento de patrimônio no Brasil, o que, em tempos de empobrecimento mundial, não me parece ser estratégia sensata.

E, por último, para que duvidas não pairem em termos ideológicos, afirmo que não tenho dúvida de que o sistema tributário justo é aquele que tributa menos a produção e mais a concentração de renda. Mas essa é uma outra discussão que deve ser enfrentada no âmbito da reforma tributária. Não no contexto isolado do patrimônio. Projeções bem feitas falam que justamente porque a concentração da riqueza se encontra concentrada em universo restrito, o máximo que o imposto sobre grandes fortunas conseguiria importar em termos de arrecadação seria algo em torno de R$ 6 bilhões. Certamente, uma reforma tributária eficiente importaria em cifras bem mais atrativas e em cenário ideal sem distorções.

O debate é sempre muito bem-vindo.  Que outros argumentos surjam para que eu possa avaliar, concordar ou discordar.

Elisabeth Lewandowski Libertuci advogada em São Paulo, sócia de Lacaz Martins, Gurevich, Pereira Neto & Schoueri e conselheira do Conjur da Fiesp.