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Bolsonaro sanciona lei que dá desconto na venda de imóveis

Pague 3, leve 4

Bolsonaro sanciona lei que dá desconto na venda de imóveis da União

O presidente Jair Bolsonaro sancionou nesta quarta-feira (10/6) lei que permite descontos em imóveis de propriedade da União, caso não haja compradores na primeira tentativa de leilão. Com a medida, o governo espera arrecadar cerca de R$ 30 bilhões nos próximos três anos.

Vista aérea do plano piloto de Brasília
Divulgação

Segundo o texto aprovado, o valor dos imóveis poderá ser reduzido em até 25% do valor inicial de oferta se houver necessidade de um segundo leilão. A medida deve afetar a negociação de 1.970 propriedades pertencentes ao governo federal. A lei vale também para leilões eletrônicos. O desconto poderá ser aplicado sobre vendas diretas de templos para organizações ou para ocupantes.

Em leilões eletrônicos, a Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU) poderá aplicar descontos sucessivos até o limite de 25%. Tais descontos também poderão ser aplicados na venda direta de templos para seus ocupantes.

O imóvel que já tiver sido ofertado duas vezes em leilões poderá ser vendido diretamente, com intermediação de corretores de imóveis. O desconto de 25%, neste caso, ainda será aplicado.

Para interessados em adquirir imóveis da União, o governo manterá um canal de comunicação por este siteCom informações da Agência Brasil.

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Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2020, 20h55

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Os avanços no funcionamento do sistema eleitoral proporcional (página 1 de 3)

No Brasil, um dos exercícios de cidadania mais comuns é o de criticar o sistema político-eleitoral brasileiro. Alvo de constantes reformas, julgamentos e murmúrios desde a Constituição de 1988, o tema da reforma política nunca sai da pauta acadêmica, congressual e, no final das contas, do Supremo Tribunal Federal, que já julgou, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, inúmeros aspectos de nossa complexa legislação eleitoral.

No início desse ano, pouco antes do estouro da pandemia que nos assola, o STF julgou duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) que tratavam de questões bem específicas. A ADI 5.420, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, tinha como objeto a mudança trazida ao art. 109, incisos I, II e III, do Código Eleitoral (Lei n. 4.737/1965 – CE) pela Lei n. 13.165/2015. Já a ADI 5.920, ajuizada pelo Patriota (antigo Partido Ecológico Nacional), tratava da nova redação do art. 108 do CE, também realizada pelo art. 4º da Lei n. 13.165/2015.

Assim sendo, a intenção dessa curta análise e demonstrar os problemas de nosso sistema eleitoral proporcional e como as mudanças legislativas e as duas decisões do Supremo citadas podem influenciar no funcionamento das eleições brasileiras.

O sistema proporcional, independentemente de qual modelo a ser adotado, tem como principais objetivos assegurar que a diversidade de opiniões da sociedade esteja refletida na respectiva Casa Legislativa e garantir equidade matemática entre o voto do eleitorado e a representação parlamentar, tendo como principal virtude o fato de espelhar aritmeticamente no Legislativo as preferências da sociedade, procurando garantir correspondência entre os votos recebidos e o número de cadeiras dos partidos em uma eleição.

Há, porém, críticas a esse tipo de sistema. Jairo Nicolau enfatiza que o sistema proporcional enfatiza demasiadamente a representação, em detrimento à possibilidade de o governo formar maioria no Legislativo. Dificilmente o sistema proporcional proporciona ao partido do governo a maioria absoluta de cadeiras no Legislativo, ocasionando a necessidade de formar maioria por meio de acordos pós-eleitorais para que uma base de sustentação parlamentar seja formada.

O sistema eleitoral para a escolha de candidatos aos cargos de vereador, deputado distrital, deputado estadual e deputado federal no Brasil é do tipo proporcional, conforme prevê o art. 45, caput da Constituição da República (CRFB) e os arts. 84 e 105 a 113 do CE. Utilizamos a fórmula da lista aberta, ou seja, cabe aos eleitores decidirem quais os candidatos de cada partido que ocuparão os postos conquistados pelas agremiações. No sistema de lista fechada, já proposto para vigorar no Brasil, os partidos, em convenção anterior ao período de propaganda eleitoral, escolheriam a sua ordem de candidatos, cabendo ao eleitor votar somente no partido, inexistindo a possibilidade de votar em um candidato individualmente.

O sistema de lista aberta, utilizado no Peru, Chile, Finlândia, Polônia e Brasil, traz consequências ao sistema eleitoral como um todo, principalmente ao sistema partidário e ao financiamento das campanhas eleitorais. Apontava-se, até há pouco tempo, duas principais críticas ao modelo proporcional brasileiro: a possibilidade de coligações partidárias nesse tipo de sistema e a existência, na prática, de candidaturas individuais, ou seja, postulações eleitorais não plenamente ligadas aos partidos políticos que as patrocinam.

A possibilidade de partidos políticos coligarem-se para as eleições proporcionais, conforme previa o art. 105 do CE (derrogado parcialmente com a promulgação da Emenda Constitucional n. 97/2017), não era exclusividade do sistema brasileiro. Mas essa possibilidade apresentava uma singularidade: no Brasil, formava-se no momento da apuração dos votos uma única lista de candidatos da coligação, sendo os candidatos mais votados da coligação os que ocuparão as cadeiras conseguidas pela aliança partidária.

Jairo Nicolau apontava uma singularidade brasileira: a inexistência de um mecanismo intracoligação. Sem esse mecanismo, a distribuição de cadeiras entre os partidos pertencentes à coligação não tem qualquer relação com o número de votos obtido por cada partido. Segundo a antiga regra brasileira (arts. 106 a 108 do CE), apesar da contribuição igual dos partidos para a votação da coligação, o que vale é a ordem de votação individual dentro da coligação.

Jairo Nicolau lembra-se de outro problema grave que tal sistema suscitava: com a possibilidade do voto na legenda, um eleitor pode votar na legenda para ajudar a eleger candidatos de seu partido. No entanto, na prática, o voto será contabilizado, se o partido participar de uma coligação na eleição proporcional, apenas para definir o total de cadeiras obtido pela coligação. Fabiano Santos ressalta que o sistema brasileiro vigente pressupõe a existência de um sistema de partidos, eis que o voto dado por um eleitor a um determinado candidato contribui para a votação de um candidato do mesmo partido. Assim sendo, o eleitor não está apenas votando em seu candidato, mas também no partido a que o candidato é filiado.

Tal regra permitia a distorção na proporcionalidade almejada pela CRFB, já que partidos que obtiveram expressiva votação podem eleger poucos ou até nenhum representante se estivessem em coligação. Muitos votos são, na prática, inutilizados ou têm seu valor diminuído com a antiga regra do Código Eleitoral.

Além do mais, as coligações proporcionais davam aos partidos menos representativos maiores possibilidades de conseguir vagas nas Casas Legislativas, pois se sozinhos teriam problemas para atingir o quociente eleitoral, coligando-se conseguiriam muito mais facilmente alcançar o quociente e talvez eleger algum de seus candidatos.

Havendo maior possibilidade de partidos pequenos conseguirem cadeiras na Câmara dos Deputados, esses partidos tinham maior tempo no horário partidário gratuitoe no horário eleitoral gratuito. Também dispunham de maior verba no Fundo Partidário, além de obter maior poder de barganha nas coligações para as eleições majoritárias pois tinham um tempo maior no horário eleitoral gratuito, quadro esse que incentiva ainda mais a criação de novos partidos inflando o sistema partidário brasileiro.

A EC n. 97/2017, porém, trouxe uma nova perspectiva ao sistema eleitoral brasileiro no ponto aqui debatido. O novo texto do § 1º do art. 17 da CRFB proíbe a realização de coligações partidárias nas eleições proporcionais (dessa forma, manteve-se a possibilidade de realização de coligações nas eleições majoritárias). O art. 2º da Emenda, porém, determinou que essa vedação seria aplicada somente a partir das eleições de 2020. Assim sendo, o pleito vindouro será uma espécie de laboratório eleitoral a respeito desse ponto tão debatido pelos especialistas em suas críticas ao sistema proporcional brasileiro.

Outro fenômeno que caracteriza o sistema eleitoral proporcional de lista aberta brasileiro é a existência de candidaturas individuais. Assim, para ser eleito, não basta ao candidato somente que seu partido ou coligação consiga o maior número de votos.

Há a necessidade do candidato não só lutar contra os postulantes dos outros partidos, mas também concorrer diretamente contra seus colegas de partido. Se o candidato não estiver bem posicionado dentro da lista de votação de seu partido, ele terá poucas chances de ser eleito.

 é advogado e cientista Social. Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP); pós-graduado em Marketing Político e Propaganda Eleitoral pela USP; membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e membro do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade).

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TJ-SP suspende ADI até julgamento de caso semelhante pelo STF

Tramitação paralela

TJ-SP suspende curso de ADI até julgamento de caso das RPVs pelo STF

Por 

Quando tramitam paralelamente duas ações diretas de inconstitucionalidade, uma no Tribunal de Justiça local e outra no Supremo Tribunal Federal, contra a mesma lei estadual impugnada em face de preceitos de reprodução obrigatória, suspende-se o curso da ação direta proposta perante o tribunal estadual até o julgamento final do controle concentrado instaurado perante o STF.

TJ-SPÓrgão Especial do TJ-SP suspende ADI até julgamento de caso semelhante pelo STF

Com esse entendimento, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu o curso de uma ADI ajuizada pelo PTB contra a Lei Estadual 17.205/2019, que reduz o valor referente às requisições de pequeno valor (RPV), nos termos do § 3º do artigo 100 da Constituição. Para o partido, a lei viola os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, além do artigo 103, § 3º, da Constituição.

Acontece que, conforme voto do relator, desembargador Renato Sartorelli, o mesmo ato normativo está sendo questionado no STF por meio da ADI 6.290, sob a relatoria da ministra Rosa Weber, que determinou o processamento do feito adotando o rito abreviado do artigo 12 da Lei 9.868/99. Neste caso, segundo o relator, é preciso aguardar a deliberação do STF.

“É recomendável suspender a tramitação da presente demanda para aguardar o pronunciamento definitivo do Pretório Excelso, em homenagem aos princípios da primazia da Constituição Federal e de sua guarda pela Suprema Corte, evitando-se, com isso, o risco de decisões conflitantes”, disse. Por unanimidade, foi determinado o sobrestamento da ação do PTB até o julgamento definitivo da ADI pelo Supremo.

2267429-05.2019.8.26.0000

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 é repórter da revista Consultor Jurídico

Revista Consultor Jurídico, 5 de junho de 2020, 13h54

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Regra estadual que dispõe sobre Tribunal de Contas municipal é constitucional

Autonomia Municipal Incólume

Regra estadual que dispõe sobre Tribuna de Contas do município de SP é constitucional

Tribunal de Contas do município de SP

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedentes duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 346 e 4.776) que contestavam a instituição de regra na Constituição do Estado de São Paulo que determina a composição do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP).

Por maioria de votos, os ministros se manifestaram pela constitucionalidade das normas (artigo 151, caput e parágrafo único), que fixam em cinco o número de integrantes do órgão e estabelecem que eles obedecerão às regras aplicáveis aos conselheiros do tribunal de contas estadual.

O julgamento foi retomado na sessão desta quarta-feira (3/6), com o voto-vista do ministro Marco Aurélio, que considerou as normas inconstitucionais. No seu entendimento, a constituição estadual invadiu a autonomia do legislador municipal, prevista na Constituição Federal, pois a criação do órgão de fiscalização só poderia ocorrer por meio da lei orgânica municipal.

Prevaleceu, no entanto, o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, proferido em agosto de 2017, no sentido de que a constituição estadual não feriu a autonomia municipal ao estabelecer a composição do TCM-SP nem a aplicação aos conselheiros das mesmas normas pertinentes aos membros do tribunal de contas estadual.

Os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e o decano, Celso de Mello, que também votou nesta quarta-feira, acompanharam o relator. Com informações da assessoria de imprensa do Supremo Tribunal Federal.

ADI 346

ADI 4.776

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Revista Consultor Jurídico, 3 de junho de 2020, 21h37

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Gilmar nega liminar contra limitação do saque do FGTS na pandemia

Como o governo enviou ao Congresso a Medida Provisória 946, que autoriza o saque de até R$ 1.045 do FGTS, a intervenção do Poder Judiciário numa política pública pensada pelo Executivo e em análise pelo Legislativo poderia causar prejuízo ao fundo gestor e ocasionar danos econômicos imprevisíveis.

Medida Provisória 946 já trata de autorização saque do FGTS na pandemia FGTS

Com esse entendimento, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, indeferiu pedido de medida liminar em duas ações diretas de inconstitucionalidade  em que o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB).

Os partidos querem a liberação de saque das contas vinculadas dos trabalhadores no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), em razão da pandemia do novo coronavírus. A decisão em liminar será submetida a referendo do Plenário do STF.

Na ação, o PT alega que o reconhecimento formal do estado de calamidade em decorrência da pandemia seria suficiente para permitir o saque dos valores, sem a necessidade de qualquer outro ato normativo do Poder Executivo ou de seus órgãos.

Segundo o partido, a Lei do FGTS (Lei 8.036/1990) permite a movimentação da conta vinculada nos casos de necessidade pessoal por urgência e gravidade que decorra de desastre natural.

Em sua decisão, o ministro explica que, embora autorize a movimentação, o artigo 20 da Lei 8.036/1990 precisa ser regulamentado para a viabilizar o exercício desse direito subjetivo.

Segundo ele, o regulamento em vigor no momento do ajuizamento da ação aparentemente não se aplica ao caso de pandemia, como a reconhecida pelo Decreto de Calamidade Pública do Congresso Nacional. O relator considera que a pretensão do partido foi alcançada posteriormente, em parte, pela edição da MP 946/2020, o que, a seu ver, impossibilita o deferimento da cautelar, “notadamente em razão da ausência da probabilidade do direito pleiteado”.

O PSB, por sua vez, contesta os pontos da MP 946 que autorizam o saque a partir de 15/6 e a limitação a R$ 1.045. O partido também argumenta que o reconhecimento formal do estado de calamidade é suficiente para permitir o saque dos valores e requer a liberação imediata e prioritária de até R$ 6.220 para pessoas que recebam até dois salários mínimos e para maiores de 60 anos, gestantes e portadores de doenças crônicas.

O ministro observou que, no contexto de uma pandemia mundial, parece ser razoável regulamentar o direito ao saque do FGTS em limites diversos das regras atuais. Segundo ele, a mera declaração de estado de calamidade pública não parece ser suficiente para permitir o levantamento do FGTS, independentemente de expedição de outro regulamento específico e autorizativo.

Impacto

O relator destaca que, segundo informações do Ministério da Economia, a MP 946 beneficiará 60,8 milhões de trabalhadores que têm contas ativas no FGTS, e 30,7 milhões poderão sacar todo o saldo, por ser inferior a um salário mínimo.

Ainda conforme o ministério, até 70% das contas do FGTS dos trabalhadores de baixa renda poderão ser zeradas. Se forem mantidos os limites previstos na medida provisória, o volume máximo potencial de saques é de R$ 36 bilhões, mas o deferimento da liminar “corresponderia a uma perda de liquidez imediata para o FGTS de mais de R$ 137 bilhões, ultrapassando em mais de R$ 100 bilhões a capacidade de pagamento do fundo”.

Ao indeferir o pedido, o relator salientou que, ao menos em juízo liminar, não constatou de que modo a concessão do saque do FGTS nos moldes da MP 946 pode violar os princípios questionados pelo partido. Segundo ele, o perigo da demora é inverso, pois o deferimento da cautelar poderia, “em última análise, prejudicar a capacidade de pagamento do FGTS neste instante”. Com informações da assessoria de imprensa do Supremo Tribunal Federal.

ADI 6371

ADI 6379

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Responsabilização jurídica por uso de cloroquina não é consenso

O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal de ações diretas de inconstitucionalidade — que questionaram a Medida Provisória 966, que restringiu a responsabilização dos agentes públicos durante a epidemia de Covid-19 — sedimentou o entendimento de que ignorar diretrizes científicas constitui erro grosseiro, o que abre a possibilidade para questionamento judicial e posterior condenação.

Uso da cloroquina no tratamento da Covid-19 é controverso no aspecto jurídico
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Apesar da clareza do enunciado jurídico, as dificuldades próprias da produção do saber científico podem ser um entrave à sua aplicação, especialmente no que diz respeito ao coronavírus.

O principal exemplo é o uso da cloroquina. O medicamento, originalmente usado no combate de doenças como malária e lúpus, foi amplamente defendido por políticos, como o presidente Jair Bolsonaro e o mandatário norte-americano Donald Trump, como eficaz no tratamento da Covid-19. 

Apesar do entusiasmo de agentes políticos, o periódico científico The Lancet publicou divulgou estudo que acompanhou 100 mil pacientes em todo o mundo e que apontou não apenas a ineficácia da cloroquina para combater a Covid-19, mas também o risco de ataque cardíaco nos pacientes, com aumento da mortalidade.

Em 25 de maio, a Organização Mundial de Saúde decidiu suspender os testes com o remédio até que sua segurança seja verificada em detalhes. Apesar das informações recentes, o SUS manteve o próprio protocolo, que recomenda a utilização do remédio para pacientes com Covid.

Assim, o médico que receitar cloroquina seguindo o protocolo do SUS estará respaldado juridicamente. O entendimento é do advogado e é presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem), Raul Canal.

Em entrevista à ConJur, Canal explica que a recomendação da OMS não é vinculativa e que a principal autoridade médica no país é o Ministério da Saúde. “Desde que o médico siga o protocolo do Ministério da Saúde e o paciente tenha concordado com o uso da cloroquina, ele [o médico] pode até ser processado, mas está legalmente amparado.”

Segundo ele, a “imunidade” vale inclusive para os autores do protocolo do SUS que recomendou o uso da cloroquina, porque o documento foi baseado nas informações científicas disponíveis no momento.

Canal explica que ainda não existe consenso médico em relação ao tratamento da Covid-19 e que o debate não pode ser contaminado pela discussão política. “No voto da ministra Carmén Lúcia, ela disse que não se pode proteger os servidores 100% ao ponto de permitir que eles possam cometer aberrações, mas também não se pode engessá-los. Se o médico sabe que o paciente é cardiopata e tem problemas nos rins e mesmo assim receitou cloroquina, pode ser responsabilizado”, comenta.

O constitucionalista Eduardo Mendonça também entende que não se poderia responsabilizar o médico com base no entendimento do STF da MP 966 se ele, médico, seguir o protocolo do SUS e informar os riscos do tratamento ao paciente.

“Do ponto de vista jurídico, a premissa é a de que constitui culpa grave o que contrarie os protocolos médicos reconhecidos pelas entidades médicas reconhecidas. Se houver discordância entre essas opiniões técnicas, não acho possível responsabilizar o administrador que segue uma delas. Mas a opção por seguir apenas a própria intuição é temerária e pode gerar responsabilização”, argumenta.

Contraponto

O jurista e colunista da ConJur, Lenio Streck, por sua vez, tem um entendimento diferente. “Erro grosseiro na medicina ocorre de dois modos: por erro na condução do procedimento ou por ministrar tratamento (medicação) sobre a qual não há comprovação científica. Assim, quem ministrar cloroquina poderá cometer erro grosseiro, sim. Veja: não é que não haja consenso sobre a eficácia. É que as pesquisas mostram que é mais perigoso usar do que não usar. Logo, o médico assume o risco de ser processado se o paciente morrer e ficar comprovado que o foi por causa da cloroquina”, explica.

Entendimento parecido tem advogado constitucionalista Paulo Peixoto. “Como não há consenso entre os cientistas, tampouco há estudos que atestem uma alta probabilidade de cura ou atenuação dos efeitos do vírus, possível dizer que não há critérios técnicos e científicos que deem respaldo à aplicação do medicamento no combate à Covid-19. Assim, o Estado pode ser responsabilizado objetivamente pela morte ou pelas sequelas dos pacientes, cabendo contra o médico eventual ação regressiva”, argumenta.

A visão é endossada, ainda, por Luís Inácio Adams, ex-AGU, em artigo publicado na ConJur. “Aparentemente, o elemento catalisador da decisão foi o político e não o técnico. Tudo considerado, o caso do protocolo da cloroquina adotado pelo Ministério da Saúde pode ser o primeiro caso em que venha a ser aplicado o entendimento do Supremo Tribunal Federal do que seja erro grosseiro”, afirma.

Ministério Público 

A atuação do Ministério Público até agora parece indicar que os procuradores vão defender o uso do remédio. Recentemente, procuradores de Minas Gerais e Goiás fizeram recomendações a determinados municípios para ampliar o uso do medicamento. No Piauí foi aberta ação civil pública com o mesmo objetivo.

Em 22 de maio, a Procuradoria Geral da República enviou ofício ao Ministério da Saúde pedindo informações sobre o novo protocolo adotado em relação ao medicamento. O texto, assinado pela subprocuradora-Geral da República, Célia Regina Souza Delgado, também pede que o Ministério da Saúde apresente um plano para evitar desabastecimento do fármaco, que é usado para tratamento de doenças como malária e lúpus.

Nesse caso, os procuradores podem ser responsabilizados pelas ações de incentivo ao uso do medicamento? Para Raul Canal, não: a falta de consenso científico também respalda esses profissionais.”Existem correntes que defendem o uso da cloroquina. A OMS pausou os estudos, mas também não proibiu. O uso da cloroquina é justificável no Brasil por conta do protocolo do SUS”, diz.

O julgamento no Supremo

O voto do ministro Luís Roberto Barroso prevaleceu na decisão colegiada do Supremo Tribunal Federal de manter a vigência da Medida Provisória 966, que restringiu a responsabilização dos agentes públicos a hipóteses de dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados ao combate da epidemia da Covid-19.

O entendimento de Barroso criou um limite claro ao determinar que agentes públicos que pratiquem atos administrativos que violem o direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente por descumprimento de normas e critérios científicos e técnicos cometem erro grosseiro e, portanto, estão sujeitos a sanções legais.

Clique aqui para ler o oficio da PGR ao Ministério da Saúde

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Progressividade de alíquota previdenciária de servidores é mantida

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), indeferiu pedido de medida liminar em cinco Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que questionam a progressividade das alíquotas de contribuição previdenciária dos servidores públicos, introduzida pela Reforma da Previdência (emenda constitucional 103/2019).

Votação da Reforma da Previdência, no Senado
Marcos Oliveira/Agência Senado

O ministro explicou que, como não foi verificada, em princípio, a inconstitucionalidade desses dispositivos, eles devem ser considerados “válidos, vigentes e eficazes” até que o STF examine definitivamente a questão, para evitar decisões judiciais discrepantes em outras instâncias do Judiciário.

O ministro é o relator das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) 6.254, 6.255, 6.258, 6.271 e 6.367, ajuizadas, respectivamente, pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e pela Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco). A decisão será submetida a referendo do Plenário.

Em nome da segurança jurídica, o ministro disse que aplicou o rito abreviado (artigo 12 da Lei 9.868/99) à tramitação dessas ações, para permitir que sejam julgadas diretamente no mérito.

No entanto, como algumas categorias vêm sendo beneficiadas por decisões de instâncias inferiores e outras não, podendo levar a soluções judiciais discrepantes e anti-isonômicas, ele considerou necessário se manifestar, especificamente, sobre a progressividade das alíquotas.

De acordo com o ministro Barroso, não se verificou, de imediato, inconstitucionalidade dos artigos da EC 103/2019 referentes à matéria. Segundo ele, a presunção de legitimidade dos atos normativos emanados do Estado é reforçada quando se trata de emenda à Constituição, cujo controle de legalidade pelo Judiciário só é possível quando há afronta a cláusula pétrea.

“Em juízo cognitivo sumário, próprio das medidas cautelares, não vislumbro ser este o caso relativamente a esse ponto”, afirmou o relator.

Barroso assinalou que os dispositivos impugnados ão considerados constitucionais e, portanto, válidos, vigentes e eficazes. Barroso esclareceu ainda que a decisão se refere apenas à questão da progressividade das alíquotas de contribuição previdenciária dos servidores públicos. Com informações da assessoria de imprensa do Supremo Tribunal Federal.

ADI 6.258

ADI 6.254

ADI 6.255

ADI 6.271

ADI 6.367

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“Derivando seus justos poderes do consentimento dos governados”

Não pretendo aqui discutir o mérito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6399 e 6403 que tramitam no Supremo Tribunal Federal e buscam impugnar o artigo 19-E da Lei n° 10.522, de 2002, introduzido pela Lei n°13.988, de 2020. Desejo refletir sobre o mérito de adotar-se, em situações de empate, no qual uma determinada decisão encontra-se nítida e fundamentalmente dividida quanto à interpretação da norma ou dos fatos, a prevalência de um dos entendimentos a partir de uma premissa valorativa. É o caso de Habeas Corpus, por exemplo, em que o empate favorece o paciente em decorrência da presunção constitucional da inocência. Ou o Mandado de Segurança, em que o empate favorece a legitimidade do ato administrativo. O mesmo ocorre no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, CARF, em que o empate era resolvido pela presunção de qualidade do voto do Presidente do colegiado que, no caso, sempre é um representante da administração tributária.

A pergunta que se coloca é: no caso de empate, é possível adotar a presunção em favor da posição dos contribuintes?

Primeiramente, para a possibilidade do “in dubio pro contribuinte”, remeto à discussão desenvolvida pelos Professores Hugo de Brito Machado Segundo (A Lei 13.988/20 e o fim do voto de qualidade no CARF, 2020); Igor Mauler Santiago (Voto de qualidade para os contribuintes vale tanto quanto o anterior, 2020) e Marcos de Aguiar Villas-Boas (In dubio pro contribuinte reduz as despesas do Estado e aumenta eficiência, 2015), todos publicados na ConJur. Também é oportuno analisar os argumentos apresentados pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – ANFIP, na Ação Direta de Inconstitucionalidade protocolada na última semana. Não pretendo fazer uma repetição do que já foi dito nos artigos citados, mas trazer mais uma nova perspectiva, considerando que já tive a honra de chefiar a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.

Primeiramente, é interessante lembrar que a ideia do in dubio pro contribuinte parte do entendimento já consagrado de que a interpretação da norma é feita contra quem a redigiu. No caso, o Estado, redator da norma e responsável por sua imposição, não pode ter supremacia absoluta. O in dubio pro contribuinte é um mecanismo de contenção ao arbítrio na aplicação da norma.

Todavia, o que mais chama-me a atenção no debate são os múltiplos argumentos não jurídicos a associar a legitimidade da adoção da lei a efeitos nefastos à arrecadação, tomando por base uma premissa de propriedade sobre o interesse público. Em primeiro lugar, tal debate tem como partida que garantir a arrecadação é um valor essencial e que o interesse público é locacional: só existe no Estado e somente os seus agentes estão aptos a declará-lo e defendê-lo. Por outro ângulo, a sociedade, no caso, nada mais é do que o domínio de interesses privados e desconectados de qualquer deferência à defesa de interesses. Quero assim enfrentar, pontualmente, estes dois argumentos.

O conceito de um domínio locacional do interesse público é contrário a toda evolução da moderna democracia, partindo da Revolução Americana, cuja Declaração de Independência expressamente estabelece:

Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade.

O que está ali dito nada mais é do que reconhecer que o Estado não é proprietário do interesse público e que, apesar de ser, por obrigação, vocacionado a buscá-lo, eventualmente está em contradição com o mesmo. Tal princípio, na verdade, não é tão novo, se considerarmos que os Imperadores Chineses eram legitimados pelo que se denominava “Mandato dos Céus”, mediante o qual eles estavam vinculados ao propósito de prover o bem estar de todos os súditos chineses e, caso não o fizessem, era legítimo a estes substituí-los. Em suma, o Estado não vale por si, mas pelo que representa e promove. O interesse público, portanto, não é propriedade dos integrantes da burocracia estatal. O interesse público, por mais difícil que seja identificá-lo, está invariavelmente associado a valores que sejam aderentes e que emanam da Constituição Federal, como lealdade, igualdade, fraternidade, justiça. Não pode, portanto, uma parte da burocracia avocar o domínio absoluto neste quesito.

Aliás, neste aspecto, não é demais lembrar que, no Direito Romano, a lex escrita em oposição à lex tradita parte do conflito com o domínio e arbítrio dos Juízes em dizer a lei. A Leis das XII Tábuas, como ficou conhecida legislação escrita na Roma antiga, decorre do princípio de que todos os cidadãos são portadores do direito de conhecer a lei e aplicá-la, sendo a lei em si um limite ao Estado Juiz que a interpreta.

O segundo ponto que merece crítica é o de que a mudança feita pelo Congresso e sancionada pelo Presidente da República representa um ataque direto à arrecadação pública. A ideia de ética consequencial está diretamente ligada à filosofia utilitarista de Bentham, mediante a qual uma ação é eticamente boa quando promove o bem geral do povo. O que é falacioso no argumento apresentado por aqueles que criticam a norma é estabelecer que o valor “garantir a arrecadação” equivale a promover a felicidade do povo. Garantir a arrecadação só é um valor se associado a outros tão fundamentais, como o devido processo legal, o julgamento por juiz independente, a justiça fiscal, a lealdade para com o contribuinte, a transparência e a clareza nas orientações fiscais. Todos estes comportamentos são essenciais à administração fiscal, e adotar o resultado fiscal como valor único é promover um argumento artificial e sem conexão com um interesse público da sociedade. Nunca esqueçamos, neste ponto, que uma das características dos Estados Nacionais é a centralização do poder e uma das características da burocracia é tornar-se porta voz deste poder.

Portanto, o mérito deste debate é colocar em evidência o permanente comportamento conflituoso da administração tributária e do contribuinte. Esta dinâmica litigiosa permanente, em que as partes realizam, seja a desconsideração de atos ou negócios jurídicos lícitos para obtenção de resultados favoráveis na arrecadação (no caso da administração tributária) ou planejamentos fiscais por vezes abusivos para alcançar a redução tributária (no caso dos contribuintes) é o verdadeiro mal que contamina o país e promove insegurança jurídica. A eliminação do voto de qualidade e a eleição da posição do contribuinte talvez seja uma experiência positiva para quebrar este ciclo vicioso e destrutivo.

Luís Inácio Adams é advogado, ex-procurador da Fazenda Nacional, foi Advogado-Geral da União (2009 a 2016).

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Direitos fundamentais: para que servem as leis gerais da internet?

I. Na última quinta-feira (07.05.2020), o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do Referendo na Medida Cautelar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.389, 6.390, 6.393, 6.388 e 6.387, suspendendo a aplicação da Medida Provisória nº 954/2020. O ato normativo obrigava as prestadoras de serviços de telecomunicações (STFC e SMP) a compartilharem dados dos usuários de seus usuários com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus.

Para além dos resultados práticos do julgamento, o caso assume uma relevância única para a teoria dos Direitos Fundamentais: foi a primeira vez em que o STF reconheceu explicitamente a autonomia do Direito Fundamental à Proteção de Dados, enquanto projeção da proteção constitucional à personalidade (art. 5º, inciso X, da CF/88).

Não são propriamente estranhas à tradição da jurisdição constitucional decisões de Cortes Constitucionais que consagram novos direitos fundamentais em razão de mudanças tecnológicas. No Direito Alemão, por exemplo, além da célebre decisão da Lei do Censo de 1983, que afirmou o direito à autodeterminação informacional (Informationelle Selbstbestimmung), o Bundesverfassungsgericht em 2008 reconheceu a existência de um direito constitucional à confidencialidade e integridade dos sistemas informáticos (Grundrecht auf Gewährleistung der Vertraulichkeit und Integrität informationstechnischer Systeme). Já na experiencia norte-americana, debates semelhantes se desenvolveram historicamente em torno da aplicabilidade da Quarta Emenda Constitucional para as hipóteses de interceptação de comunicação por meios telemáticos.

II. É inegável que as relações sociais desencadeadas no ciberespaço ampliam profundamente o papel criativo dos Tribunais Constitucionais diante dos riscos de comprometimento de garantias constitucionais básicas.

A própria dimensão objetiva de direitos fundamentais, como os de liberdade de expressão, de participação política, e mesmo de direitos de segunda geração relacionados ao trabalho, cultura e saúde passa a ser permeada por considerações técnicas dos meios de comunicação digital. A internet pode tanto alterar o contexto factual de uma dada tecnologia, levantando questões sobre como a Constituição a ela se aplica, quanto pode gerar novas oportunidades de realização das liberdades não comparáveis àquelas que recebem proteção constitucional explícita.

Quando confrontadas com essas situações, dois caminhos se abrem às Cortes Constitucionais. Em geral, elas podem (i) optar por uma abordagem de deferência à cultura jurídica consolidada, evitando que o controle de constitucionalidade resulte em soluções interpretativas inteiramente novas ou (ii) entender que a natureza única da internet demandaria respostas judiciais efetivas que façam frente à racionalização privada das relações sociais e à intervenção governamental na internet.

Os dois caminhos obviamente tencionam o debate sobre legitimidade democrática da jurisdição constitucional. De um lado, a atualização da proteção constitucional – inclusive com a enunciação de novos direitos fundamentais – é essencial para a preservar a força normativa do texto constitucional. De outro, o avanço do Tribunal na aplicação do texto constitucional em realidades não imaginadas pelo constituinte suscita inevitavelmente as acusações de ativismo. Como afirmam com clareza Alessandro Morelli e Oreste Pollicino: “é necessário compreender se a abordagem mais apropriada nestes casos é a da deferência judicial ou do activismo judicial, considerando também a questão da importância não negligenciável da relação entre a política e os tribunais no contexto do direito digital” (tradução livre).

O presente artigo, na linha de diversos outros sobre o tema, sustenta que existe uma solução intermediária para esse dilema. A proposta aqui apresentada deriva da aplicação do marco teórico do Constitucionalismo Digital à jurisdição constitucional e consiste em colher das cláusulas gerais das leis de proteção aos direitos dos usuários da internet novas possibilidades de interpretação de normas constitucionais envolvidas no exercício de direitos fundamentais no ciberespaço. Explica-se.

III. Na última década, diversos juristas vinculados ao movimento teórico do Constitucionalismo Digital (Digital Consticionalism) passaram a discutir o impacto que declarações de direitos, posicionamentos de organizações internacionais e propostas legislativas exercem sobre a proteção de direitos fundamentais no ciberespaço. Nos estudos iniciais sobre o tema, o foco das investigações se voltava à identificação de normais gerais de articulação de direitos, regras de governança e limitações dos poderes públicos e privados na internet.

Trabalhos como os de Lex Gill et. al., por exemplo, mapearam diversas reações normativas de afirmação desses direitos na forma de leis em sentido formal, declarações oficiais de organizações intergovernamentais, termos e regulamentos de uso de plataformas digitais, entre outros. Essas reações normativas são difusas e não se limitam ao âmbito dos atos normativos formais.

Nos últimos anos, porém, o Constitucionalismo Digital evoluiu de uma mera corrente aglutinadora de experiências políticas e passou a compor verdadeiras prescrições normativas para a proteção de garantias individuais no ciberespaço. Estudos como os de Eduardo Celeste, Claudia Padovani e Mauro Santaniello e Meryem Marzouki atribuíram ao Constitucionalismo Digital a marca de uma verdadeira “ideologia constitucional”, a qual se estrutura em um quadro normativo de proteção dos direitos fundamentais e de reequilíbrio de poderes na governança da internet.

A principal implicação dessa transformação é que o Constitucionalismo Digital passou a contribuir para identificação e construção de princípios constitucionais que podem ser empregados como parâmetro de controle de constitucionalidade de normas que eventualmente colidam com direitos fundamentais associados à experiencia social no mundo digital. Alguns exemplos desses princípios podem estar associados à afirmação de um direito de acesso à internet, ao direito ao esquecimento, ao direito à neutralidade da rede e, é claro, ao próprio direito à proteção de dados.

Uma tese nuclear desse movimento teórico consiste na compreensão de que as cartas jurídicas de enunciação direitos dos usuários da internet muitas vezes contêm escolhas de matriz constitucional quanto ao tratamento jurídico a ser conferido às relações sociais on-line. Como bem destacado por Mauro Santaniello et. al., em países como Brasil, Filipinas, Itália, Nova Zelândia e Nigéria, que adotaram essas legislações formais, não há como negar que os Parlamentos têm buscado “desempenhar as funções fundamentais do constitucionalismo clássico no sub-sistema da Internet, produzindo atos dirigidos ao estabelecimento e à proteção dos direitos digitais, à limitação do exercício do poder em e através das obras da rede digital e à formalização dos princípios de governança”. Além de estabelecerem princípios materiais claros, essas leis em geral são construídas a partir de um amplo processo participativo, o que reforça a legitimidade democrática do seu uso.

IV. Esses diagnósticos se amoldam com precisão ao caso brasileiro. Entre nós, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) conferiu centralidade a cláusulas gerais de dimensão evidentemente constitucional, como a proteção da liberdade de expressão (art. 3º, inciso I), da privacidade (art. 3º, inciso II) e da preservação da natureza participativa da rede (art. 3º, inciso VII). Por esse motivo, é possível afirmar que o MCI incorpora diversos elementos da crescente literatura sobre constitucionalismo digital aqui discutida.

O mesmo pode ser dito em relação à Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018). Verifica-se no seu texto a consagração de fundamentos como a autodeterminação informativa (art. 2º, inciso II), que define a dimensão subjetiva do direito à privacidade, e ainda princípios como os da proibição (equivalente ao princípio da necessidade, art. 6º, III), da vinculação à finalidade (art. 6º, I), e da transparência (art, 6º, VI). A rigor, esses princípios conformam a própria atuação do legislador ordinário. Mesmo que eles não estejam expressamente previstos no texto constitucional, eles são projeções da tutela constitucional à privacidade (art. 5º, inciso X, da CF/88).

É claro que a posição aqui defendida não equivale a dizer que leis como o MCI ou a LGPD poderiam ser utilizadas, de forma direta, enquanto parâmetros de controle de constitucionalidade de leis ordinárias. Contudo, em casos em que a discussão posta se relaciona essencialmente com a adaptabilidade da fruição de direitos fundamentais pelo uso da internet, essas legislações podem servir como verdadeiros “ganchos” interpretativos para que se extraia do texto constitucional possibilidades interpretativas mais adequadas aos conflitos de direitos na esfera digital. É nessa linha que autores como Lex Gill et. al. defendem que algumas legislações formais sobre a internet, se apresentam como “blocos de construção intelectual para a interpretação das constituições formais na esfera digital” .

Construções hermenêuticas desse gênero podem ser bastante úteis para a jurisdição constitucional brasileira. Foi o que parece ter ocorrido justamente no julgamento recente da MP nº 954/2020 nesta semana. O texto da norma impugnada nas ADIs referenciadas previa, de maneira bastante genérica, que as empresas de telecomunicação prestadoras do STFC e do SMP deveriam disponibilizar à Fundação IBGE, em meio eletrônico, a relação dos nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas e que os dados seriam utilizados “para a produção estatística oficial, com o objetivo de realizar entrevistas em caráter não presencial no âmbito de pesquisas domiciliares” (art. 2º, § 1º, da MP 954/2020).

Nesse ponto, poder-se-ia entender que a MP violaria o chamado princípio da vinculação a finalidade (art. 6º, inciso I, da LGPD), que exige que tratamento dos dados só pode ocorrer nos estritos limites da finalidade legitimamente atribuída pelo interesse público pela norma. Nesse sentido, ainda em sua decisão monocrática que deferiu a cautelar, a relatora Min. Rosa Weber pontuou que a norma impugnada não delimitava com precisão “o objeto da estatística a ser produzida, nem a finalidade específica, tampouco a amplitude” e que a MP “igualmente não esclarece a necessidade de disponibilização dos dados nem como serão efetivamente utilizados”.

Outra deficiência da norma bastante debatida pelos membros da Corte no referendo da Cautelar se refere à falta de cuidados do legislador para criação de medidas efetivas que garantissem possibilidades de fiscalização, pelos titulares, das fases de tratamento levadas a cabo pelo controlador. Essa questão foi diretamente abordada no voto do Min. Gilmar Mendes ao afirmar que “a incidência do princípio da transparência impõe que a norma garanta ao titular dos dados um nível de controle suficiente para a verificação prospectiva da licitude do tratamento de dados”. Ainda nas palavras do Ministro, isso se desdobraria em um dever não cumprido pelo legislador da MP (reconhecimento da dimensão objetiva) de “de dar ao titular condições de proceder a um controle próprio da forma como o Estado lida com os dados”.

Essa integração entre a Constituição e as cláusulas previstas nas leis gerais de direitos dos usuários na internet também pode vir a ser explorada pelo Tribunal em casos ainda pendentes de julgamento, como na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 403, de relatoria do Ministro Edson Fachin, e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5527, de relatoria da Ministra Rosa Weber, em que se discute a constitucionalidade do histórico de decisões judiciais que bloqueavam o funcionamento do serviço WhatsApp em todo país em razão do descumprimento de ordens de juízes criminais de interceptação de comunicações.

Ao lado das alegações de que tais decisões judiciais feririam o princípio da proporcionalidade, há um importante debate nesse caso sobre se como o uso da criptografia ponta-a-ponta nos sistemas de comunicação instantânea se relaciona com a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento (art. 3º, inciso I, do MCI) e ainda com a ideia de liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet (art. 3º, inciso VII, do MCI).

V. Em todos esses exemplos, verifica-se que as possibilidades de diálogo entre o Constitucionalismo Digital e a jurisdição constitucional apresentam-se como decorrências das próprias transformações que marcam a Teoria Constitucional contemporânea. A consagração do constitucionalismo enquanto modelo universal de organização e legitimação do poder político ocorreu no século passado graças a um conjunto de pré-condições da relação entre Estado e Sociedade que hoje se encontram em mutação frente aos avanços tecnológicos. Na tentativa de se manter vivas essas pré-condições, os valores normativos do Constitucionalismo Digital podem se mostrar verdadeiras válvulas de reintegração dos direitos fundamentais na internet.


FETZER, Thomas; YOO, Christopher S. New technologies and constitutional law. Faculty Scholarship at Penn Law, n. 13, p. 23, 2012, p. 1 e LESSIG, Lawrence. Reading The Constitution in Cyberspace. Emory Law Review, v. 45, p. 869–910, 1996, p. 41.

Essa posição é defendida em: SUNSTEIN, Cass R. Constitutional Caution The Law of Cyberspace. University of Chicago Legal Forum, 1996, p. 374 (defendendo que quando questões difíceis de valor e de facto relacionadas à internet são deslocadas por referência a categorias constitucionais, algumas delas bastante arcaicas, elas provavelmente não se adequam a uma boa compreensão dos fenômenos subjacentes, de modo que: “in cyberspace, constitutional lawyers should be (at least relatively) cautious”). Em sentido semelhante, cf. KERR, Orin S. The Fourth Amendment and New Technologies: Constitutional Myths and The Case For Caution. Michigan Law Review, v. 102, p. 801–888, 2004.

Para uma abordagem contra a deferência judicial, com foco no direito norte-americano, cf. SOLOVE, Daniel J. Fourth Amendment Codification and Professor Kerr’s Misguided Call for Judicial Deference. Fordham Law Review, v. 74, p. 747–777, 2005.

MORELLI, Alessandro; POLLICINO, Oreste. Metaphors, Judicial Frames and Fundamental Rights in Cyberspace. American Journal of Comparative Law, v. 2, p. 1–26, 2020, p. 9.

Por todos, cf. CELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers and Technology, v. 33, n. 1, p. 76–99, 2019.

GILL, Lex; REDEKER, Dennis; GASSER, Urs. Towards Digital Constitutionalism? Mapping Attempts to Craft an Internet Bill of Rights. Research Publication No. 2015-15 November 9, 2015, v. 7641, 2015, p. 5.

PETTRACHIN, Andrea. Towards a universal declaration on internet rights and freedoms? International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 337–353, 2018. (argumentando que “a discourse on Internet-related human rights is being shaped, autonomous from the broader discourse on Internet governance”) e BASSINI, Marco. Fundamental rights and private enforcement in the digital age. European Law Journal, v. 25, n. 2, p. 182–197, 2019, p. 185. (“Internet activists, members of international fora and supporters of Internet freedom called for the adoption of an Internet Bill of Rights, an international covenant binding on both public and private actors to secure protection of individuals’ liberties and rights”).

CELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers and Technology, v. 33, n. 1, p. 76–99, 2019, p. 89.

PADOVANI, Claudia; SANTANIELLO, Mauro. Digital constitutionalism: Fundamental rights and power limitation in the Internet eco-system. International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 295–301, 2018. (definido que “digital constitutionalism is an effort to bring political concerns and perspective back into the governance of the Internet, deeply informed by economic and technical rationalities”).

MARZOUKI, Meryem. A Decade of CoE Digital Constitutionalism Efforts: Human Rights and Principles Facing Privatized Regulation and Multistakeholder Governance. International Assotiation for Media and communication Research Conference (IAMCR), v. July, n. 1, 2019.

SANTANIELLO, Mauro et al. The language of digital constitutionalism and the role of national parliaments. International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 320–336, 2018, p. 2.

GILL, Lex; REDEKER, Dennis; GASSER, Urs. Towards Digital Constitutionalism? Mapping Attempts to Craft an Internet Bill of Rights. Research Publication No. 2015-15 November 9, 2015, v. 7641, 2015, p. 6.

Victor Oliveira Fernandes é assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal. Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito Econômico nos cursos de Graduação e Pós-graduação lato sensu do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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As doenças ocupacionais em tempos de pandemia

Dois fatos jurídicos chamaram a atenção nos últimos dias em plena pandemia, e serão capazes de gerar impactos trabalhistas e previdenciários nas empresas. Um deles foi a revogação da MP 905, que criou o Contrato Verde e Amarelo, e o outro foi a decisão do Supremo no julgamento de sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) ajuizadas contra a MP 927 por entidades representativas de trabalhadores e partidos políticos, que suspendeu a eficácia do artigo 29 da referida medida provisória.

Acidentes de trajeto e a natureza acidentária
Em relação ao primeiro deles, nos referimos especificamente ao artigo 51 da MP 905, que revogou uma série de dispositivos legais, entre eles o artigo 21, inciso IV, alínea “d”, da Lei 8.213/91, que assim dispõe:

“Artigo 21  Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta lei:

(…)

 IV – o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho:

(…)

d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado”.

Importante salientar que, com a Reforma Trabalhista ocorrida em 2017, houve alteração no § 2º do artigo 58 da CLT, excluindo do tempo à disposição do trabalhador justamente o período de percurso da residência até o local de trabalho:

“Artigo 58 A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.

(…)

§ 2º — O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador”.

Ademais, antes mesmo do advento da Lei 13.467/17, o Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) já havia entendido pela ausência de controle ou influência do empregador sobre os seus empregados quanto aos acontecimentos que ocorrem no percurso de ida e volta do trabalho. Tanto é verdade que houve uma alteração na metodologia de cálculo do Fator Acidentário de Prevenção (FAP) através da Resolução 1.329/17, que retirou o acidente de trajeto do seu cômputo a partir de 2018.

O FAP é um multiplicador composto anualmente pelo Ministério da Economia com base nos dados dos dois anos anteriores e no histórico acidentário das empresas. É calculado por estabelecimento comercial e aplicado em conjunto com o Risco Ambiental do Trabalho (RAT), que são alíquotas de tarifação coletiva por subclasse econômica que variam de 1% a 3%, conforme o risco oferecido aos trabalhadores. O RAT, por sua vez, é incidente sobre a folha de salários das empresas para custear aposentadorias especiais e benefícios decorrentes de acidentes de trabalho.

Pela metodologia do FAP, as empresas que registrarem maior número de acidentes ou doenças ocupacionais pagam mais o RAT. Por outro lado, existe uma bonificação das empresas que registram menos acidentes e doenças ocupacionais, sendo possível reduzir até pela metade a tributação.

Tanto em razão da decisão do CNPS, quanto pela nova legislação trabalhista, parte da doutrina passou a entender que o artigo 21, IV, “d”, da Lei 8.213/91, teria sido tacitamente revogado pela Lei 13.467/17, já que a legislação previdenciária não poderia conceituar como de trabalho um acidente de trajeto em contradição com a própria legislação trabalhista, que após a Lei Reformista afastou esse percurso como sendo tempo à disposição do empregador.

Sendo assim, a MP 905 veio para trazer segurança jurídica e pacificação social diante das discussões que já se iniciavam em razão da existência de normas colidentes, já que a conceituação acidentária de um determinado acidente é capaz de gerar algumas consequência de ordem social e fiscal.

Como já existe norma do próprio CNPS afastando o efeito fiscal do acidente de trajeto, conforme vimos acima, com a revogação da MP 905 pelo Presidente da República, o trabalhador que vier a sofrer acidente durante o trajeto, portanto, voltará a ter garantidos alguns dos seus direitos sociais acidentários: I) estabilidade por 12 meses após a cessação do auxílio-doença decorrente de acidente de trajeto; e II) depósitos do FGTS durante o período de licença por acidente do trabalho, devido em decorrência da Lei 8.036/90.

Sendo assim, podemos dizer, neste cenário, que as alterações normativas conduziam para o entendimento de que o acidente de trajeto não deveria ser considerado como acidente de trabalho e a MP 905, em certa medida, pacificava essa questão ao revogar o dispositivo ultrapassado e colidente com novo entendimento. Estava, finalmente, afastada a necessidade de pensar a questão pelo prisma da hierarquia entre as normas. Com sua revogação, volta-se o debate e se faz ainda mais urgente a atuação legislativa para adequação do arcabouço jurídico.

2  Ônus da prova e a Covid-19
Já em relação ao artigo 29 da MP 927, que estabeleceu que os casos de contaminação pelo coronavírus não seriam considerados como equiparados a doenças ocupacionais, exceto quando comprovado o nexo de causalidade, traz luz a outro tipo de discussão: aquela que gira em torno a tecnicidade das decisões.

Durante a vigência do referido dispositivo, em outras palavras, haveria a necessidade de demonstração que a contaminação do empregado pela Covid-19 se deu em razão de alguma ação ou omissão do empregador durante o exercício das funções dos empregados.

Entrementes, após recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) nas ADIs em que se discute a constitucionalidade da MP 927 frente à pandemia de Covid-19, foi acolhida pelo plenário a suspensão da eficácia do artigo 29 e, com essa decisão, a demonstração de que a contaminação do empregado por Covid-19 não se trata de doença ocupacional passou, doravante, a ser ônus de prova, em tese, de parte do empregador. Contudo, propõe-se aqui que a solução da controvérsia passe pelo enfrentamento da legislação previdenciária.

Com efeito, o artigo 19 da Lei 8.213/91 define o acidente do trabalho como sendo aquele que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. Imputa-se à empresa, portanto, na forma da lei, a responsabilidade pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador.

Já o artigo 20 do mesmo diploma legal equipara a acidente de trabalho: I) a doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo órgão ministerial; e II) a doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente. (g.n.)

Assim sendo, apenas em caso excepcional, nos exatos termos do § 2° do citado artigo 20, a Previdência Social deve considerar como acidente do trabalho a doença não incluída na relação oficial por ela elaborada. E, mais, necessário fazer constar que resultou a doença das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente.

O § 1° do artigo 20 da lei previdenciária, por sua vez, elenca taxativamente as causas que não devem ser consideradas ocupacionais, assim prevendo:

“§ 1º — Não são consideradas como doença do trabalho:

a) a doença degenerativa;

b) a inerente a grupo etário;

c) a que não produza incapacidade laborativa;

d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição”. (g.n.)

De outro norte, o artigo 21 da Lei 8.213/91 enquadra como acidente de trabalho a doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade e, mais, o artigo 21-A atribui à perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a competência para caracterizar a natureza acidentária de incapacidade quando constatar ocorrência de nexo técnico.

Fazendo a hermenêutica com os dispositivos acima citados, podemos concluir que, via de regra, a Covid-19 poderia ser tratada como doença do trabalho nos termos do artigo 20 da Lei 8.213/91, que exige a demonstração de que a ela foi adquirida em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente. Como regra geral, contudo, não há uma presunção iuris tantum de estabelecimento de nexo em razão de pandemia. Pelo contrário, existe uma exclusão legal prevista nos casos de doenças endêmicas.

Dito disso, em relação ao coronavírus e à pandemia da Covid-19, é correto afirmar o afastamento da presunção de que a doença não seja ocupacional, podendo, porém, o empregado acometido pela Covid-19, se houver prova nesse sentido, ser considerado como doente ocupacional, invertendo-se o ônus da prova.

Para tanto, seguem as definições de “surto”, “epidemia”, “pandemia” e “endemia”, todas elas extraídas do site do Núcleo do Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes, que é uma parceria entre a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e o Ministério da Saúde [1]:

Surto: Acontece quando há um aumento inesperado do número de casos de determinada doença em uma região específica. Em algumas cidades, a dengue, por exemplo, é tratada como um surto, e não como uma epidemia, pois acontece em regiões específicas (como um bairro).

Epidemia: Uma epidemia irá acontecer quando existir a ocorrência de surtos em várias regiões. A epidemia a nível municipal é aquela que ocorre quando diversos bairros apresentam certa doença; a nível estadual ocorre quando diversas cidades registram casos; e a nível nacional quando a doença ocorre em diferentes regiões do país. Exemplo: em fevereiro de 2020, 20 cidades tinham decretado epidemia de dengue.

Pandemia: A pandemia, em uma escala de gravidade, é o pior dos cenários. Ela acontece quando uma epidemia se estende a níveis mundiais, ou seja, se espalha por diversas regiões do planeta. Em 2009, a gripe A (ou gripe suína) passou de uma epidemia para uma pandemia quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) começou a registrar casos nos seis continentes. E, em 11 de março de 2020, a Covid-19 também passou de epidemia para uma pandemia.

Endemia: A endemia não está relacionada a uma questão quantitativa. É uma doença que se manifesta com frequência e somente em determinada região, de causa local. A febre amarela, por exemplo, é considerada uma doença endêmica da região norte do Brasil.

Neste atual contexto, sempre oportuno lembrar das lições do pensador e filósofo chinês Confúcio, falecido em 479 a.C., que deixou registrada em sua obra a importância do estudo do passado para fins de previsão dos acontecimentos futuros. Tal pensamento não poderia fazer mais sentido quase 2,5 mil anos depois de sua morte, afinal, enfrentamos hoje uma situação semelhante àquela que vivemos em 2009, na pandemia de H1N1.

Aliás, acerca da pandemia de H1N1, em decisão proferida pelo Tribunal Superior do Trabalho, nos autos do processo RR-100800-30.2011.5.17.0009, ficou estabelecido o nexo de causalidade entre o H1N1 e as atividade de uma enfermeira empregada num determinado hospital de combate ao câncer. O voto do relator, ministro José Roberto Freire Pimenta, foi no sentido de que nas circunstâncias específicas do processo, em que a empregada era técnica de enfermagem e foi acometida por doença de fácil contaminação, o hospital, ao sustentar o afastamento do nexo de causalidade, atraiu para si o ônus de provar o contrário, e não o fez.

Naquele processo, inclusive, a reclamante sustentou que a ex-empregadora teria sido negligente quanto às medidas de segurança e de prevenção. Além disso, afirmou que o hospital não prestou a assistência necessária. E, ainda, invocou subsidiariamente a teoria do risco da atividade explorada pela reclamada para caracterizar a responsabilidade objetiva do empregador.

A defesa, ao contrário, foi no sentido de que não haveria responsabilização do empregador em situação de pandemia, tanto é verdade que, à época, mobilizou-se até mesmo o poder público no combate à propagação do vírus H1N1. Além do mais, sustentou o hospital a ausência de prova de que a trabalhadora tivesse contraído o vírus no ambiente de trabalho.

Entrementes, a decisão proferida pelo TRT, e confirmada pelo TST, definiu que a empresa explorava atividade de risco (agentes biológicos diversos) e que, por isso, deveria responder objetivamente pelo dano causado aos herdeiros da trabalhadora, que veio a falecer. Valeu-se, ainda, do disposto no artigo 2º da CLT, segundo o qual o empregador assume os riscos do negócio.

Em outras palavras, mesmo não havendo nos autos informação segura se o agente agressor (vírus H1N1) realmente adveio do ambiente insalubre em que trabalhava a enfermeira, também não havia como descartá-lo em razão do risco inerente à atividade exercida pelo hospital em relação à exposição de seus trabalhadores aos agentes biológicos. Logo, o hospital atraiu para si o ônus de prova pela exclusão do nexo causal em razão da aplicação da responsabilidade objetiva, cuja culpa patronal é presumida quando o empregado labora em atividade de risco.

Bem por isso, como aqui pensamos, comprovada a não observância das regras de segurança, por conduta negligente da empresa, colocando em risco a integridade física dos seus empregados, há nexo causal apto a imputar a responsabilidade empresa pela ocorrência da doença ocupacional. Contudo, se na particularidade do caso, por exemplo, ficar evidenciada a culpa exclusiva da vítima por ter contraído Covid-19, naturalmente rompe-se o nexo de causalidade, afastando o coronavírus como doença equiparada a acidente do trabalho.

Pelo exposto, em situação semelhante à que vivemos hoje, no passado, a visão era no sentido de que havia de ser demonstrado o nexo de causalidade para fins de aplicação da natureza acidentária à contaminação de empregado por doença pandêmica. Ressalva feita, porém, às situações em que determinada empresa exercesse algum tipo de atividade que, por sua própria natureza, pudesse se presumir a exposição do trabalhador ao vírus, como é o caso das atividades hospitalares em geral. Hipótese essa em que, excepcionalmente, inverter-se-ia o ônus probante em razão da teoria do risco.

Em arremate, conquanto o artigo 29 da MP 927 tenha sido suspenso por decisão Plenária do E. STF, entendemos que a visão da Justiça do Trabalho no passado (H1N1) deve ser aplicada no atual momento (Covid-19). Logo, deve-se exigir, regra geral, o nexo de causalidade, na forma do que dispõe a Lei 8.213/91, para fins de justificar o coronavírus como doença equiparada a acidente do trabalho. Pensamento em sentido contrário, em nossa visão, seria imputar prova impossível (negativa) às empresas que, na forma da lei, devem fazer provas de fatos positivos (v.g., tomadas de medidas preventivas no meio ambiente laboral). A presunção de culpa empresarial, porém, só deve ser admitida em casos de atividades de risco, e não essenciais reconhecidas atualmente pelas autoridades públicas, a exemplo dos profissionais de saúde que laborem em hospitais.

 é mestre em Direito pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais, organizador do e-book digital “Coronavírus e os Impactos Trabalhista” (Editora JH Mizuno), palestrante e instrutor de eventos corporativos “in company” pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe.

Maurício Pallotta é advogado atuante na área trabalhista individual e coletiva empresarial, sócio fundador do escritório Pallotta, Martins e Advogados e da STLaw, palestrante, instrutor in company, mestre em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Universidade de São Paulo e especialista em Direito Previdenciário Empresarial.