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Ana Maria Blanco: Súmula 610/STJ, suicídio e seguro de vida

Até pouco tempo atrás, as súmulas 105/STF [1] e 61/STJ [2] asseguravam a indenização do seguro de vida em decorrência de suicídio do estipulante, ressalvada a hipótese de premeditação do ato ao tempo da contratação. Esse entendimento judicial consolidado imperou mesmo diante de cláusulas que estipulavam prazo de carência para cobertura frente a risco de suicídio. E perdurou ainda durante um tempo após a promulgação do Código Civil de 2002, que trouxe dispositivo legal distinto do parágrafo único do artigo 1.440, CC/1916, por não fazer qualquer menção à premeditação, mas eleger critério objetivo, afastando a indenização diante de suicídio praticado nos dois primeiros anos de vigência do contrato.

Retomou-se, por tal razão, o debate, sendo paradigmático o REsp 1.334.005/GO, julgado pela 2ª Seção STJ em 8 de abril de 2015, prevalecendo o voto da ministra Maria Isabel Gallotti no sentido de aplicação do critério objetivo do artigo 798, CC/2002. Posteriormente, sobreveio, com isso, a Súmula 610, segundo a qual “o suicídio não é coberto nos dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, ressalvado o direito do beneficiário à devolução do montante da reserva técnica formada” (DJe de 7/5/2018).

A despeito da nova compreensão consolidada, remanesce relevante questão que não permite dar por pacificado o tema seguro de vida e suicídio no curso do prazo de carência legal, e o REsp 1.721.716/PR é a clara demonstração disso. Nesse caso analisado, o pleito de indenização securitária fora julgado procedente em primeira instância, com base nas Súmulas 105/STF e 61/STJ vigentes à época. Em sede de recurso de apelação cível, o TJ-PR deu provimento ao apelo da seguradora com base na nova interpretação ao artigo 798, CC. Promovido o recurso especial, teve sua admissibilidade negada, situação somente modificada em agravo. Ao proferir seu voto, a ministra Nancy Andrighi inicia delimitando a controvérsia: novo entendimento judicial consolidado alcança os litígios iniciados sob as súmulas anteriores?

Como destaca a relatora, a hipótese examinada diz respeito a julgamento proferido em 2014, antes mesmo do caso paradigmático da mudança de entendimento do STJ (REsp 1.334.005/GO, j. 8/4/2015). No entendimento da ministra Nancy, é o caso de aplicar-se a chamada teoria da superação prospectiva da jurisprudência (prospective overruling), de que teria sido precursor o juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Benjamin Cardozo (por ocasião do julgamento do caso Great Northern Railway v. Sunburst Oil and Refining Company, de 1932, na linha de conferências que vinha proferindo desde 1921, posteriormente reunidas na obra The Nature of Judicial Process). Atenta aos critérios então estabelecidos, a julgadora conclui que a teoria da superação prospectiva tem a “finalidade de proteger a confiança dos jurisdicionados”.

Quanto ao Brasil, a relatora refere que a questão da eficácia retroativa de decisões sequer costumava ser discutida, o que passou a ser enfrentado nas matérias de jurisdição constitucional, sobrevindo somente depois as primeiras disposições legais a respeito (artigo 27 da Lei nº 9.868/99, artigo 12 da Lei nº 9.882/99, e artigo 4º da Lei nº 11.417/06), culminando com a regra específica contida no artigo 927, §3º, NCPC. No pensamento da ministra Nancy, essa aproximação com a common law, mediante a flexibilização da tradição processual da civil law, tem por propósito maior “garantir a isonomia de ordem material a partir da qual questões semelhantes devem receber respostas equivalentes, na medida de suas desigualdades e a proteção da confiança e da expectativa legítima do jurisdicionado, fornecendo-lhe um modelo seguro de conduta de modo a tornar previsíveis as consequências de seus atos”. Reconhece, contudo, não ser qualquer precedente capaz de justificar a aplicação da teoria, uma vez que há de ser observado o sistema de precedentes e seus elementos estruturantes, conforme deveres instituídos no artigo 926, NCPC.

A seguir, a relatora menciona precedente da 2ª Seção do STJ, qual seja REsp 1.312.736/RS, 2ª Seção, Dje 16/08/2018, que reconhece como critério à modulação de efeitos o “interesse social” e “segurança jurídica”. Aponta, outrossim, para a abordagem doutrinária segundo a qual é necessária uma “confiança qualificada” em dado entendimento judicial, concluindo que a modulação propiciada pela prospective overruling deve ser articulada com prudência. No caso sob exame, finaliza a relatora, a aplicação da teoria é “medida que se impõe, pois, mesmo se houve alteração legislativa, que alterasse todo o arcabouço regulatório dos seguros de vida, mesmo em situações de suicídio, a hipótese da recorrente não seria afetada pela irretroatividade das leis, com mais razão não se poderia aplicar retroativamente nos autos que já contava com sentença favorável o novo entendimento jurisprudencial”.

Ainda que, diferentemente do que ocorre nos sistemas common law, as ideias de precedente e vinculabilidade na experiência brasileira estejam sob peculiar processo de construção e consolidação, a adoção da prospective orverruling não se trata de uma importação irrefletida. A solução verificada no REsp 1.721.716/PR sob exame é acertada, não só porque se alinha aos termos da legislação processual civil em vigor responsável por parte da concretização do peculiar processo antes mencionado , como também observa o raciocínio mais elementar subjacente à teoria aplicada.

As primeiras notícias acerca das ideias elementares que ensejaram a prospective overruling são, na realidade, anteriores ao juiz Cardozo, mas todas caminhavam à promoção da segurança jurídica, que é, em última análise, o que se pretende resguardar como fator de promoção de justiça em concreto, opondo-se a oscilações de entendimento judiciais que surpreendam jurisdicionados.

O preceito da segurança jurídica não se trata de novidade no sistema jurídico brasileiro, sobretudo no plano constitucional, que alça à categoria de direito fundamental a preservação de fatos consumados (artigo 5º, XXXVI, CRFB/88). Se a lei, como regra e em vista da segurança jurídica, não retroage, por que a modificação de entendimento judicial retroagiria?

Não se está com isso sustentando que um entendimento judicial consolidado abstratamente considerado possa ter a mesma repercussão de um direito adquirido, ato jurídico perfeito e da coisa julgada no plano concreto de dada relação. Todavia, é inegável que entendimento judicial consolidado em um sentido, como norma interpretativa, possa subsidiar e pautar a conduta do jurisdicionado, sendo, por essa razão, imperiosa a necessidade de modular efeitos diante da modificação substancial do entendimento outrora verificado.

Percebe-se, outrossim, dois aspectos importantíssimos da prospective overruling: I) a existência de um posicionamento judicial consolidado que inspire a “confiança qualificada” do jurisdicionado; e II) sua posterior modificação, com repercussão clara sobre o resultado então legitimamente esperado. Registra-se: quando a doutrina refere “confiança qualificada”, deve-se compreender que não esteja sob questionamento o entendimento consolidado, é dizer, que sua modificação ou revogação não seja previsível.

No caso do seguro de vida, é possível cogitar que, desde a promulgação do CC/2002, seria esperada a revogação das Súmulas 105/STF e 61/STJ. Mas há algo questionável nessa “intuição” que não a autorizaria como algo evidente: o fato de que a interpretação esperada do artigo 798, CC, seria aquela mais consentânea com as súmulas precedentes ora revogadas, ao menos em sua racionalidade mais elementar quanto à presunção.

Isso porque tais súmulas trabalhavam com a ideia de “indenização, salvo premeditação”. Logo, persistia a ideia de presunção da boa-fé do segurado, o que, aliás, é o que costuma pautar o ordenamento jurídico e sua aplicação, facultada prova por parte da seguradora quanto à premeditação. A presunção de “não premeditação” era, de qualquer forma, relativa. A interpretação esperada e mais razoável do artigo 798, CC, deveria se dar na mesma linha.

No entanto, a interpretação dada ao critério objetivo para afastar a garantia e o alcance do capital estipulado ao beneficiário por suicídio do segurado/estipulante no período dos dois primeiros anos, sobretudo após a promulgação da Súmula 610/STJ, indica a presunção absoluta de premeditação durante esse período. Exclui-se, com isso, a possibilidade de o beneficiário demonstrar que, por exemplo, no curso desse prazo, o segurado/estipulante fora acometido por grave patologia que o levou ao ato extremo, circunstância distinta da premeditação.

Dois pesos, duas medidas. Quando interpretada, a norma securitária contida no CC/1916 era compreendida em favor do segurado/estipulante cogitando da sua boa-fé e a presunção em tal sentido era relativa. A partir de dado momento, mais de dez anos após a promulgação do CC/2002, a norma securitária então vigente passou a ser interpretada e compreendida de forma a favorecer a seguradora, instituindo-se uma presunção absoluta no período de dois anos objeto do artigo 798, CC. A situação fática subjacente, à margem das modificações legislativas e de entendimento judicial, segue sendo a mesma: contingências da existência humana que, conforme suas interações e intensidade, pode levar qualquer pessoa, em qualquer tempo e independente de vigências contratuais, à prática de suicídio.

No caso examinado, com mais razão era pouco ou nada esperado que sobreviria interpretação na contramão da proteção do segurado/estipulante e beneficiário, frisa-se, partes mais vulneráveis da relação contratual de especial complexidade técnica e formada por adesão. A sentença de primeira instância, subjacente ao REsp 1.721.716/PR, no sentido de procedência do pleito de indenização securitária data de 2014. Em que pese à essa época já houvesse voto no sentido da atual interpretação ao 798, CC (AgRg no Ag 1.244.022-RS, julgado em 13/4/2011), por maioria a 2ª Seção, nessa ocasião, ratificou os termos das Súmulas 105/STF e 61/STJ.

Quanto ao “interesse social” expressado no voto da ministra Nancy como critério à aplicação da prospective overruling, é de se questionar se a adoção de nova posição judicial, revogando-se a anterior, não é, por si, de extrema relevância a justificar a modulação de efeitos em razão do preceito da segurança jurídica. Se assim não for, e o interesse social se dá em sentido estrito e relativo ao tema objeto do novo entendimento judicial consolidado, tratando-se de cobertura de seguro de vida, a relevância é latente. É inegável a função social desse tipo de contrato e, considerado o ato extremo praticado, são conhecidas as consequências perenes e nefastas aos beneficiários, normalmente familiares, e muitas vezes sob dependência econômica do segurado/estipulante.

Assim, se Súmula 610/STJ é, desde sua promulgação, a consolidação do novo tratamento dos casos de suicídio, é crucial que tenha seus efeitos modulados em relação a fatos e litígios precedentes para que a aplicação desse questionável entendimento judicial seja justa, ao menos nesse aspecto.

 

[1] Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro.

[2] O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado.

 é advogada, sócia do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS).

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Direito ao trabalho e liberdade ao trabalho na calamidade

A MP 945/20, que dispôs de medidas temporárias durante a pandemia no âmbito do setor portuário, considerando que o Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO) é responsável pela escala de trabalhadores avulsos, determinou a proibição de escala de trabalhadores com sintomas de Covid-19 e dos trabalhadores com idade igual ou superior a 60 anos, além de gestante, lactante ou trabalhadores que apresentem risco em razão de doença que menciona (art. 2º).

A questão é de saber se a proibição ao OGMO de escala de trabalho ofende direitos individuais fundamentais do trabalhador portuário, em especial a liberdade ao trabalho assegurada como um dos direitos sociais no art. 6º da Constituição Federal. Em palavras outras, se o momento emergencial de saúde pública permitiria à União medidas de proteção ao grupo de vulneráveis a ponto de excluir de modo temporário o exercício profissional.

A pandemia do Covid-19 obrigou a novos e visíveis comportamentos sociais tomados pela preocupação ou medo. As relações trabalhistas foram afetadas diretamente quer do ponto de vista econômico, com encerramento ou paralisação de empresas e perdas de importantes postos de trabalho, levando ao desemprego crescente. Também naquelas atividades essenciais ou que se ajustaram à adequação do momento, com redução de salário e jornada ou suspensão do contrato de trabalho a incerteza está presente.

O bem jurídico cuja proteção está na primeira linha de preocupação é de natureza coletiva, tanto no que diz respeito no direito à vida (art. 5º da CF “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade….”) como o direito à saúde de todos(artigo 196 da CF “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”),observando-se o princípio de solidariedade, do direito à saúde e da obrigação do Estado.

Para dar conta da emergência de saúde pública foi aprovada a Lei nº 13.979/20 que, dentre outras recomendações trata do isolamento de pessoas doentes ou contaminadas e da quarentena com separação de pessoas suspeitas de contaminação. Ainda assegura a lei (art. 3º) “o respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional…” (Decreto 10.212/20). Para o fim de expandir a garantia de cuidados pessoais com a saúde as ausências ao trabalho motivadas pelo coronavírus as faltas tanto no serviço público como nas atividades privadas passaram a ser justificadas.

Os cuidados nas atividades laborais caminharam até aqui em dois alicerces: (i) manutenção do emprego e da renda e (ii) preservação da saúde dos trabalhadores, evitando riscos de contaminação e isolando a população com vulnerabilidade, dentre eles aqueles trabalhadores com mais de 60 anos e gestantes.

Na esfera trabalhista, a referência aos grupos risco pela OMS e Ministério da Saúde de pessoas com mais de 60 anos, pessoas com doenças crônicas e doenças cardiovasculares e gestantes, exigiu que os empregadores afastassem do trabalho os que estivessem nesse quadro de vulnerabilidade, recomendando que ficassem em casa, prestando serviços, se possível à distância com redução de jornada e salário ou com a suspensão do contrato.  Nestas hipóteses o empregado se habilitaria ao Programa Emergencial de Manutenção de Emprego e da Renda, recebendo o Benefício Emergencial e efeito na garantia de emprego (MP 936/20).

Assim, colocado o tema, equacionado bem ou mal sob o plano trabalhista como socorro emergencial de suporte do Estado para as empresas e empregados, de fato, no âmbito dos trabalhadores avulsos que, pela Constituição Federal (art. 7º, XXXIV) têm equiparados seus direitos ao empregado com vínculo empregatício permanente, não poderiam ficar desamparados em razão das dificuldades econômicas próprias do setor de atividade. Esta a razão da MP 945 que dispõe no art. 2º:

Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, o Órgão Gestor de Mão de Obra não poderá escalar trabalhador portuário avulso nas seguintes hipóteses:

I – quando o trabalhador apresentar os seguintes sintomas, acompanhados ou não de febre, ou outros estabelecidos em ato do Poder Executivo federal, compatíveis com a covid-19:

a) tosse seca;

b) dor de garganta; ou

c) dificuldade respiratória;

II – quando o trabalhador for diagnosticado com a covid-19 ou submetido a medidas de isolamento domiciliar por coabitação com pessoa diagnosticada com a covid-19;

III – quando a trabalhadora estiver gestante ou lactante;

IV – quando o trabalhador tiver idade igual ou superior a sessenta anos; ou

V – quando o trabalhador tiver sido diagnosticado com:

a) imunodeficiência;

b) doença respiratória; ou

c) doença preexistente crônica ou grave, como doença cardiovascular, respiratória ou metabólica.

Chama a atenção especialmente a proibição ao OGMO de escalar trabalhador em faixa etária superior a 60 anos. Inegável que o Estado está cumprindo o dever de natureza coletiva e preventiva da saúde da população no caso da emergência atual e de acordo com as melhores recomendações médicas.

A regra de proteção da saúde não permitiria alegações de violação de direitos individuais subjetivos porque apresenta concepção de ordem coletiva e as normas que buscam a prevenção de todos na sociedade parece ter preferência em relação a direitos individuais. A resistência ao cumprimento da norma rompe com a natureza coletiva do exercício público cujo objetivo é  dar efetividade à proteção da saúde da população.

Frise-se que, assim como outros direitos chamados fundamentais, o direito ao trabalho não é absoluto e não são poucos os exemplos que o direito do trabalho impõe restrições legais quanto à pessoa ou condições de trabalho em vista da proteção da saúde dos empregados. Da mesma forma, o direito à saúde, garantido pela Constituição, é pretensioso na expectativa que gera e o Estado seja onde for, encontra dificuldades na sua efetivação. Assim, resta ao direito da saúde estabelecer normas de proteção e de saúde pública de natureza coletiva mesmo que, em nome do bem jurídico da proteção da vida, exclua, tal como no caso, grupos de vulnerabilidade e que poderiam comprometer a própria saúde e dos demais com que convive.

 é advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas.

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Lei que reestruturou carreiras no Judiciário é inconstitucional

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão virtual, julgou procedente uma ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, contra a Lei estadual 4.620/2005 do Rio de Janeiro, que reestruturou carreiras no Judiciário estadual. A norma permitia a transposição de servidor a cargo com nível de escolaridade distinto do de sua investidura originária.

Ministro Gilmar Mendes foi relator da ADI

A Lei 3.893/2002 havia reestruturado os quadros do Judiciário estadual em carreira de quatro cargos (técnico judiciário I, II e III e escrivão) com exigências de qualificação e com atribuições distintas. A qualificação mínima era de ensino médio completo, mas a norma permitia o reposicionamento dos servidores em cargos de escolaridade superior aos de sua qualificação de ingresso.

Exigência de escolaridade

Essa lei foi revogada pela Lei 4.620/2005, objeto da ADI, que criou a estrutura em duas carreiras (técnico de atividade judiciária e analista judiciário), com exigência de escolaridade a partir do ensino médio completo. Porém, consolidou as transposições e as promoções ocorridas no sistema anterior.

Segundo o relator, ministro Gilmar Mendes, isso contraria o artigo 37, inciso II, da Constituição Federal, que determina a necessidade de concurso público de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou do emprego público. O relator assinalou que a lei possibilita que servidores admitidos para cargo com exigência de escolaridade menor do que o ensino médio completo sejam transpostos para qualquer cargo atualmente existente e que servidores admitidos para cargo que exigem apenas o ensino médio sejam transpostos para o de analista judiciário.

Provimento derivado

O ministro explicou que a permissão de acesso a cargos com níveis de escolaridade distintos do da investidura originária constitui forma de provimento derivado, o que é expressamente inconstitucional, conforme preceitua o enunciado da Súmula Vinculante 43.

De acordo com o relator, os servidores cuja qualificação para acesso aos cargos de provimento originário seja inferior à dos cargos atualmente existentes devem seguir vinculados aos cargos antigos. Nesse sentido, as normas que os regulam, revogadas, devem ter seus efeitos restaurados para esse fim.

Por maioria, o tribunal declarou a inconstitucionalidade do artigo 25 da lei e conferiu interpretação conforme a Constituição aos artigos 17 e 18, para que o reenquadramento neles previsto se faça apenas para os servidores que cumpriam as exigências de qualificação para o novo cargo na época da admissão no serviço público.

Considerando o longo prazo decorrido entre a propositura da ação e seu julgamento, o ministro entendeu necessário modular os efeitos da decisão, para garantir que os servidores não sofram redução de vencimentos em razão do reenquadramento determinado, sendo os valores auferidos a maior absorvidos pelos aumentos futuros. O ministro Marco Aurélio ficou vencido em relação à modulação. Com informações da assessoria de imprensa do STF.

ADI 3.782

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Opinião: O 13º salário e a Medida Provisória nº 936

A profusão de medidas legislativas decorrentes da pandemia da Covid-19 tem trazido aos profissionais do Direito do Trabalho e de recursos humanos uma série de dúvidas quanto aos efeitos práticos das medidas instituídas pelo governo nos contratos de trabalho, especialmente em razão das regras criadas pelas Medidas Provisórias nº 927 e nº 936.

Recentemente, fomos questionados por empregadores quanto à contagem do período de suspensão do contrato para efeitos de pagamento do 13º salário. De início, poderia se supor que o período de suspensão do contrato de trabalho com base na MP nº 936 simplesmente não seria contado para pagamento do 13º salário.

Como se trata de suspensão contratual, com a sustação recíproca das obrigações contratuais entre empregado e empregador, a suposição acima é apenas parcialmente verdadeira, pois o cálculo do 13º tem um critério que, na prática, precisa ser observado caso a caso.

A Lei 4.090, de 13 de julho 1962, estabelece em seu artigo 1º, § 1º, que a gratificação de Natal corresponde a 1/12 da remuneração devida em dezembro, por mês de serviço, no ano correspondente. Esclarece ainda, no § 2º do mesmo artigo, que a fração igual ou superior a 15 dias de trabalho será havida como mês integral para os efeitos da regra de cálculo estabelecida no § 1º.

Portanto, não é possível afirmar como regra geral que o período de suspensão simplesmente não será contado para o cálculo do 13º, pois isso dependerá da quantidade de dias que o trabalhador laborou no mês. Se o contrato, por exemplo, foi suspenso por 30 dias no período de 16 de março de 2020 a 14 de abril de 2020, o trabalhador laborou os 15 dias exigidos pela lei em março e abril e, portanto, esses meses serão contados normalmente para o cálculo da gratificação, correspondendo a 2/12. Logo, nesse exemplo a suspensão não teve qualquer efeito jurídico no cálculo do 13º.

Por outro lado, se em razão da suspensão do contrato o trabalhador não laborou num determinado mês pelo menos os 15 dias exigidos pela norma, aí sim este mês não será contado para o cálculo do 13º.

No caso apenas da redução da jornada, logicamente o trabalhador continuará desempenhando suas funções, ainda que em jornada inferior à usual, e, portanto, o período será contado para o cálculo da gratificação de Natal.

Por fim, uma vez que o valor do salário do empregado será reduzido ou não será pago nos meses em que houve redução de jornada ou suspensão do contrato, poderia surgir a seguinte dúvida: quais serão os efeitos no valor do 13º?

Ao contrário das férias, a variação do valor do salário durante o período de aquisição do direito não tem relevância para o cálculo da parcela. Assim, essa questão é respondida pelo artigo 1º, § 1º, e artigo 3º da Lei 4.090/62, que estabelecem que o valor do 13º é calculado com base na remuneração devida em dezembro ou, no caso de rescisão do contrato, no valor da remuneração do respectivo mês.

Portanto, a eventual redução do salário em razão das medidas previstas na MP nº 936 não importará em redução da base de cálculo do 13º.

 é auditor-fiscal do Trabalho e coordenador do Projeto de Análise e Encerramento de Processos de Multas e Recursos da Superintendência Regional do Trabalho em Goiás.

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Municípios podem aplicar alíquotas diferentes de IPTU, decide STF

São constitucionais as leis municipais que aplicaram alíquotas diferentes de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) para imóveis edificados, não edificados, residenciais e não residenciais em período anterior à Emenda Constitucional 29/2000.

ReproduçãoSTF declara constitucionais leis que aplicaram alíquotas diferentes de IPTU

O entendimento é da maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal em julgamento virtual encerrado nesta sexta-feira (8/5). O caso teve repercussão geral reconhecida em 2012.

Os ministros seguiram voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso que negou recurso de uma empresa contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O TJ decidiu que aplicação de alíquotas diferenciadas de IPTU para imóveis é um instituto distinto da progressividade tributária, fundamentada no princípio da capacidade contributiva.

Já os advogados da empresa argumentam que o artigo 67 da Lei Municipal 691/84, com a redação dada pela Lei Municipal 2.955/99, não pode ser aplicado. Isso porque o dispositivo estabeleceu progressividade de alíquotas do IPTU antes da edição da Emenda Constitucional 29/2000.

Ao analisar o caso, Barroso entendeu que tratava de reafirmação de jurisprudência das Turmas. Apontou que a lei municipal fluminense questionada não trata da progressividade, mas sim da fixação de alíquotas diferentes ou isenções parciais, em valores fixos, concedidas até uma determinada faixa de valor do imóvel que se diferenciam, unicamente, em razão da edificação ou da destinação do imóvel. 

“O STF admite a instituição de alíquotas diferenciadas a depender da situação do imóvel, se residencial ou não residencial, edificado ou não edificado, em período anterior à edição da EC 29/2000, uma vez que tal prática não se confunde com a progressividade, cuja constitucionalidade, em referido período, condiciona-se ao cumprimento da função social da propriedade, nos termos da mencionada Súmula 668”, afirmou.

Citando diversos precedentes das turmas, o ministro lembrou que, antes da emenda constitucional, a Constituição previa a progressividade “apenas como meio extrafiscal para induzir o contribuinte a utilizar a propriedade de acordo com a sua função social”.

A edição da EC 29, disse, aconteceu como uma correção legislativa da jurisprudência para “possibilitar a incidência de alíquotas progressivas para o IPTU, fora do alcance extrafiscal do inciso II do § 4º do art. 182 da Constituição”.

Único a divergir, o ministro Marco Aurélio apontou que apenas depois da Emenda 29/2000 é que foi possível cobrar IPTU com as distinções relativas à destinação e situação do imóvel. “A regra é a aplicação prospectiva da lei. É passo demasiado largo fazer retroagir a Emenda, alcançando situações constituídas”, afirmou.

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RE 666.156