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Jéssica Wiedtheuper: A importância da inspeção predial

Com o intuito de uniformizar a metodologia e nortear a prática da inspeção predial em âmbito nacional, após um longo estudo iniciado em 2013, foram publicadas no dia 21 de maio pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) as Normas Brasileiras (NBR) 16.747:2020, que tratam sobre inspeção predial, expondo diretrizes, conceitos, terminologia e procedimento.

A inspeção predial, conforme definição e objetivo delineado na própria NBR 16.747, consiste em um processo de avaliação, predominantemente sensorial, do estado de conservação e funcionamento da edificação, apontando as suas patologias e as prioridades a serem objeto de manutenção, viabilizando o acompanhamento sistêmico da vida útil da construção e de seus sistemas, a fim de manter condições mínimas de segurança e higidez do edifício e mitigar os riscos técnicos e econômicos associados à falta de manutenção.

Vale lembrar que a norma de inspeção predial não substituirá as vistorias periódicas estabelecidas nos planos de manutenção previstos na ABNT NBR 5.674 [1]. A não observância das normas pode caracterizar a ineficiência na gestão da propriedade e, muitas vezes, em disputas na esfera judicial.

Não raros são os casos em que o síndico é responsabilizado pessoalmente [2] pelos danos ocasionados aos condôminos ou terceiros, decorrentes da negligência quanto a manutenção e conservação das partes comuns da edificação, incumbência que lhe compete nos moldes do inciso V do artigo 1.348 do Código Civil (CC).

Da mesma forma, discussões judiciais por problemas sobre vícios ocultos na propriedade são comuns também na comercialização dos imóveis [3]. Com a inspeção predial, que avalia o real estado da edificação, há uma maior segurança jurídica de que o adquirente de uma unidade habitacional está comprando um imóvel sólido, ou seja, sem vícios omitidos pelo vendedor. A inspeção, assim, é mais um instrumento tanto ao gestor quanto do vendedor, que possuirão grandes chances de afastar eventual responsabilização por danos produzidos por patologias e vícios na edificação.

Vale lembrar que em ações judiciais que envolvam o aparecimento de vícios na edificação a discussão não se limita ao período de garantia de cinco anos pela solidez da edificação, nos termos do artigo 618 do CC, ou a possibilidade de sua extensão, no caso de vícios ocultos na relação consumerista, conforme entende o Superior Tribunal de Justiça [4], mas também se a causa do vício é decorrente da falta de manutenção adequada ou de falha construtiva.

Embora não haja lei no âmbito federal que obrigue a realização de inspeção predial, a nova NBR 16747 está posta e sua observância é importante, mostrando-se relevante a fim de evitar processos judiciais.

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Filosofia e limites da IA na interpretação jurídica (parte II)

Em coluna anterior, destaquei que era preciso aprofundar as reflexões em torno da utilização da Inteligência Artificial (IA) como intérprete do Direito e influencer nas decisões judiciais.

Na ocasião, ficou demonstrada a distinção entre inteligência de dados e consciência hermenêutica por meio das explicações acerca da diferença na abrangência e nível de relacionamento com a linguagem e do logos (pensar e falar) pelas IAs e pelos humanos.

Naquela oportunidade, apontei que o modelo operativo da IA se restringe à dimensão lógico-formal (inteligência de dados) e não trabalha com a chamada consciência hermenêutica e sua racionalidade existencial, o logos hermenêutico.

Em razão dessa limitação, as IAs não alcançam a necessária dimensão do conteúdo material que sustenta o sentido das palavras, o que as tornam insuficientes para a correta interpretação de fatos e sua adequação às hipóteses normativas.

Levantei também o problema da ausência de transparência e de parâmetros de controle nas decisões algorítmicas, o que pode levar a injustiças e discriminações sem a devida motivação.

Sem prejuízo de outros vieses de análise, penso que essas constatações são pontos de partida fundamentais para reflexões filosóficas e políticas mais amplas acerca das possibilidades e limites das IAs em sua interação com a vida social.

Nessa perspectiva, o presente texto investiga o processo humano de formação dos significantes que dão significado às palavras e formam a pré-estrutura de compreensão constitutiva da consciência hermenêutica e do logos hermenêutico que a sustenta.

A elucidação desse processo torna mais visível e complementa a tese esboçada no artigo antecedente de que o logos hermenêutico é limite à interpretação jurídica e à tomada de decisão judicial pelas IAs, conforme será retomado ao final.

Um bom caminho para cumprir essa tarefa vem da explicação aristotélica acerca do processo de formação do conhecimento humano, em especial no que diz respeito à aquisição dos conceitos comuns que possibilitam o pensar e à constituição de premissas para o conhecimento científico.

Diferente de Platão, Aristóteles não faz uma divisão imediata entre o mundo inteligível e o mundo sensível. Ao invés, ele apresenta boas pistas para uma teoria cognitiva quando descreve a formação do conhecimento científico linearmente a partir da dimensão existencial própria de cada sujeito que vive, percebe e sente.

Esse processo se inicia no universo da sensação e evolui para a cognição de acordo com a seguinte linha esquemática:

Sensação (aisthesis) ® memória (mnemósine) ® experiência (empeiria) ® arte (téchne)® teoria/ciência (episteme).

Começando pelas primeiras impressões no nível da sensação (aisthesis), o humano nasce com capacidades sensoriais que vão formando imagens vivas (visuais, olfativas, táteis, gustativas e auditivas), de modo a adquirir percepções do mundo. Portanto, o mundo nos aparece enquanto impressão perceptiva.

Essas impressões perceptivas vão construindo um universo linguístico assentado no binômio “significado/sentido percebido”, formado por significações individuais e comuns (quem vive, vive no mundo histórico pré-existente e vive com os outros).

Esse conteúdo é vivo, multifacetado nas diversas dimensões perceptivas: podem contemplar uma imagem, um som, uma textura, um cheiro e um gosto. Podem ser captados em conjunto ou isoladamente, a depender da experiência sensorial que a pessoa vive quando entra em contato com algo no mundo (uma comida, a chegada em uma nova cidade, encontro com uma pessoa desconhecida, etc).

Um exemplo simples: quando uma pessoa come uma pizza margherita pela primeira vez, ela absorve praticamente todas as sensações dos cinco sentidos. Ao mesmo tempo em que se alimenta, ela associa esse conjunto de sensações com a expressão “pizza margherita”.

Esse conjunto de sensações associado a um conceito linguístico é memorizado gerando impressões positivas e negativas que ficam guardadas (mnemósine ).

A reunião dessas memórias em feixes cognitivos de sentido configura a experiência (empeiria), correlacionando e aproximando acontecimentos linguísticos (p. ex. ao pensar em pizza margherita, a pessoa pode relembrar um momento com um amor antigo) e a capacidade de reviver essas memórias em nível exclusivamente cognitivo.

Desta feita, ao ouvir as palavras “pizza margherita” a pessoa revive e experiencia uma série de sensações memorizadas, desde o cheiro, o gosto, a imagem e o que mais estiver relacionado a elas no seu universo de compreensão (uma cidade, alguém, um evento, etc). Pode-se até mesmo ficar com “água na boca” e com vontade de comer pizza margherita.

Essa aptidão de invocar palavras e expressões linguísticas e junto a elas o significante que lhe confere sentido é a marca fundamental do processo constitutivo do falar e do pensar humanos.

Tal capacidade nunca se restringe à racionalidade lógica. Antes, possui base biológica e existencial.

Ao viver o ser humano vai acumulando experiências e, a partir delas, forma a sua estrutura linguística de pré-compreensão, de onde se originam as opiniões (doxa).

Algumas experiências acumuladas são comuns isto é, compartilhadas entre todos os falantes de uma comunidade. Outras são experiências particulares, entendidas como acontecimentos exclusivos à vida de cada um, ou seja, acontecimentos idiossincráticos.

Daí a opinião é a ideia prévia sobre algo, constituída por concepções comuns e individuais.

Para que seja possível a passagem da opinião para uma premissa verdadeira é necessário um processo tópico-dialético (technè), na qual opiniões pertinentes, que possam ser aceitas pelos demais falantes (chamadas premissas endòxa) são contrapostas umas às outras, em um debate intersubjetivo.

Nesse debate, o objetivo é depurar as experiências particulares, deixando remanescer apenas as experiências comuns, as quais se tornam premissas tidas como verdadeiras e servem de ponto de partida para o conhecimento teórico-científico (episteme) e sua metodologia lógico-dedutiva.

Desse trilhar pode-se concluir que a noção de verdade torna-se uma experiência linguística e existencial.

Aristóteles não chegou até aí. Ainda que haja vozes dissonantes, comumente o filósofo de Estagira é associado ao essencialismo linguístico e à semântica realista, que defendem a possibilidade de a linguagem espelhar a realidade, bem como a concepção clássica de que a verdade é a adequação entre o intelecto e o real.

No entanto, pode-se dizer que ele chegou à antessala da filosofia da linguagem e foi fundamental para o desenvolvimento da hermenêutica filosófica.

Especialmente quando se reflete sobre esse processo de formação do conhecimento, constata-se a dimensão da ideia de logos enquanto pensar e falar, o que vai ser determinante para a compreensão posterior da consciência de mundo em sentido hermenêutico.

A capacidade humana de sentir, memorizar e organizar essas memórias em um feixe de significação para revivê-las, forma um conjunto de significantes entrelaçados que permite a experiência linguística e revela sua indissociabilidade com o pensar e raciocinar humano.

Ora, quem raciocina, opera com uma série de significantes absorvidos durante a existência, organizando-os de maneira lógica e outras vezes, caótica.

Considerando, na linha de Ferdinand de Saussure, que o signo é formado por um conceito (significado) e seu sentido material (significante), basta pensar em um recém-nascido que aprendeu o signo “mãe” e o signo “pai” e consegue, a partir da conexão entre eles, compreender o signo “casal”.

Ao viver, os signos vão se multiplicando e se conectando, formando redes estruturais de linguagem.

Essas redes de estruturas linguísticas adquiridas durante a vida constitui a base do universo de pré-compreensão do intérprete e trabalha com uma lógica própria, o chamado logos hermenêutico.

Esse logos é oriundo da experiência comum de viver em um mundo imerso em sua historicidade e dotado de valores temporalmente/existencialmente comuns e objetivos que são apreendidos pelo sujeito humano, permitindo a compreensão e, assim, a realização de processos comunicativos eficazes.

E é justamente essa estrutura de pré-compreensão que é inacessível para a lógica formal pela qual operam as IAs.

Trata-se de uma outra racionalidade. O logos hermenêutico trabalha no nível do conteúdo e da significação material ao que é dito, enquanto que a racionalidade formal organiza a superfície de enunciados linguísticos, estabelecendo conexões lógicas e probabilísticas.

Daí porque não se confunde a inteligência de dados com a consciência hermenêutica.

Ademais, como já mencionado no artigo anterior, devem ser consideradas as interações biológicas e as incursões do inconsciente na antecipação de sentido, conforme bem demonstra a psicanálise.

Com efeito, é possível constatar também uma espécie de relação concorrencial entre a antecipação de sentido hermenêutica e a antecipação que resulta do filtro desejante operado pelo inconsciente nos processos interpretativos e decisórios.

Por mais que se supere preconceitos negativos e se possa falar em human algorithm design à luz de profundos estudos de ciência da computação e do entendimento da ideia de algoritmo em sentido amplo, como uma tecnologia a serviço dos humanos desde a Idade da Pedra, seus padrões de apoio na interpretação do direito e na decisão judicial são equivalentes às possibilidades da lógica jurídica.

E, tal qual a lógica jurídica, são importantes, mas insuficientes.

Uma vez compreendida a base de formação da consciência hermenêutica e as mediações da filosofia da linguagem, apostas de que o raciocínio do sapiens opera do mesmo modo lógico-algorítmico que as IAs, só que em escala mais profunda e sofisticada, são muito arriscadas.

No atual estado da arte, é visível que as IAs não possuem todas as condições de interpretação que o humano e isso faz com que, a persistir a mesma lógica de utilização dessa tecnologia no Judiciário, não é adequado que se tornem os principais intérpretes dos fatos, do direito e da imputação das hipóteses normativas ao caso concreto.

A interpretação e a decisão jurídica demandam uma cognição holística e integral, tomada em sua devida complexidade, sob pena de permitir o cometimento de graves injustiças no julgamento dos processos judiciais e de violar alguns dos direitos fundamentais mais importantes no Estado de Direito: o devido processo legal e o do juiz natural.


MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 7 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. p. 80.

Para aprofundamento, conferir: GADAMER, Hans-Georg. Homem e linguagem. Verdade e Método II: Complementos e índice. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes; Universidade São Francisco, 2002. (col. Pensamento humano).

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 25 ed. , trad. Antonio Chelini et all. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 80 e ss.

MARRAFON, Marco Aurélio. O caráter complexo da decisão em matéria constitucional: discursos sobre a verdade, radicalização hermenêutica e fundação ética na práxis jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 117 e ss.

CHRISTIAN, Brian. GRIFFITHS, Tom. Algorithms to live by: the computer science of human decisions. New York: Picador, 2016.

 é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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Relações jurídicas contratuais sob o regime jurídico emergencial

Continua parte 2

3.3.2. Nos contratos de locação de imóvel urbano
Contrato de especial densidade social é o de locação de imóvel urbano. Importante ferramenta de fomento e de proteção da moradia, nas locações residenciais, bem como das atividades econômicas, quando voltado a imóveis não-residenciais, os contratos de locação têm sofrido grande impacto em razão da crise epidêmica.

No caso dos contratos de locação de imóveis urbanos residenciais, diversos locatários têm se visto em dificuldade de pagar os aluguéis, isso porque muitos já perderam seus empregos em razão das dificuldades econômicas que seus empregadores vêm passando, ou mesmo tiveram seus salários reduzidos ou contratos de trabalho suspensos, o que foi autorizado pela Medida Provisória n° 936/2020. Além das pessoas que eram empregadas na iniciativa privada, há, ainda, a situação relativa aos profissionais liberais e autônomos que também vêm sofrendo os efeitos econômicos decorrentes da pandemia da Covid-19 e dos atos das autoridades públicas para a continuidade do exercício de suas atividades.

Já nos contratos de locação de imóveis não-residenciais, a situação se revela ainda mais grave, tendo em vista a adoção de diversas medidas dos governos locais determinando o fechamento de estabelecimentos comerciais de rua e shoppings, trazendo uma impossibilidade absoluta de os locatários auferirem renda com a exploração de sua atividade e, consequentemente, inviabilizando o pagamento dos aluguéis.

Visando dar uma solução para este verdadeiro drama social, o autor do Projeto de Lei 1.179/2020, Senador Antonio Anastasia (PSDB/MG), fez inserir no referido Projeto o art. 10, o qual conferia aos locatários que tiveram a sua condição financeira alterada pela Covid-19, como demissão e redução de salário, o direito potestativo de suspender o pagamento dos aluguéis até 30.10.2020, valores esses que seriam posteriormente pagos de modo parcelado.

A referida disposição, no entanto, após grande repercussão negativa no mercado imobiliário, foi excluída do texto final do Projeto de Lei nº  1.179/2020 aprovado no Senado Federal, tendo sido ponderada também a necessidade de diversos locadores de receberem o aluguel, uma vez que muitos deles têm como sua única fonte de renda esse valor. Além disso, diversos locatários também não tiveram suas condições econômicas alteradas, e o risco de fraude seria grande, mediante a invocação de uma situação inexistente, a qual não seria passível de controle imediato porque o direito à suspensão dos pagamentos se caracterizava inequivocamente como um direito potestativo, e o Poder Judiciário se encontra com algumas atividades suspensas (como, por exemplo, realização de audiências nas varas e sessões nos tribunais fisicamente presenciais), funcionando na grande maioria dos Estados em regime apenas de plantão.

Assim, o art. 10 do PL 1.179/2020 foi retirado do seu texto final, o que parece acertado, deixando-se a cargo dos magistrados a análise casuística das situações que forem apresentadas, permitindo-se a revisão contratual caso presentes os requisitos que a autorizem, não se aplicando a vedação/limitação às revisões prevista no caput do art. 7º do Projeto de Lei nº  1.179/2020, como dispõe o § 1º do próprio art. 7º, no qual se prevê que as regras sobre revisão contratual previstas na Lei 8.245/1991 não se sujeitam ao disposto no caput do mencionado artigo.

3.3.3. Nas relações de consumo
Os efeitos da pandemia também trouxeram grandes impactos sobre as relações de consumo, especialmente aquelas que envolvem prestações continuadas, em que o vínculo das partes se protrai no tempo, de modo que contratos celebrados antes da disseminação da Covid-19, e que continuam vigentes, também foram afetados por seus danosos efeitos.

Dada a existência de uma relação naturalmente desequilibrada, em decorrência da vulnerabilidade fática, técnica ou econômica dos consumidores frente aos fornecedores, o Projeto de Lei nº  1.179/2020, assim como o fez nos contratos de locação de imóvel urbano, previu expressamente que as circunstâncias do seu art. 7º, que impedem a revisão dos contratos, não afastam a aplicação das regras previstas no Código de Defesa do Consumidor que a autorizam.

Assim, permanece incólume, por exemplo, a previsão do art. 6º, V, do CDC que prevê como direito básico do consumidor a revisão dos contratos por fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. No presente caso, não poderia ser diferente a solução dada, e isso porque no referido art. 7º do Projeto de Lei nº  1.179/2020  afirma-se que não se consideram imprevisíveis o aumento da inflação, a variação cambial e a desvalorização ou substituição do padrão monetário. E a impossibilidade de se dar solução diversa decorre do fato de que, a regra que autoriza, no diploma consumerista, a revisão contratual por fato superveniente não exige a imprevisibilidade, tendo dado o legislador de consumo tratamento diverso daquele dado, por exemplo, no art. 478 do Código Civil.

Com efeito, em se tratando de relação de consumo, tais eventos enumerados no art. 7º do Projeto de Lei nº  1.179/2020  podem autorizar a revisão contratual, tutelando-se, desta forma, de modo pleno a parte mais vulnerável da relação.

3.4. Suspensão do direito de arrependimento nas aquisições de bens por “delivery”
Ainda no âmbito dos impactos da Covid-19 sobre as relações de consumo, outro ponto que mereceu regulação da legislação transitória é aquele que diz respeito ao direito de arrependimento previsto no art. 49 do diploma consumerista.

A lei de consumo, em seu art. 49, traz importante ferramenta de proteção dos consumidores nos casos de aquisição de produtos e serviços à distância, isto é, quando não estiverem em contato físico e direto com o bem objeto da compra.

Nestes casos, tem o consumidor o direito de se arrepender da contratação, no prazo de 7 (sete) dias a contar do recebimento do produto ou da prestação do serviço, devolvendo o bem ao fornecedor e recebendo, em contrapartida, o valor pago de volta.

O propósito da norma é proteger o consumidor de publicidades enganosas ou abusivas, que são aquelas que induzem o consumidor a erro, fazendo-o adquirir produto ou serviço que não quer, que não precisa, que não tem as qualidades, características e funcionalidades propagandeadas, ou mesmo que exponham o consumidor a risco.

Assim, por estar o consumidor fisicamente distante do bem, não consegue avaliar adequadamente todos esses aspectos, sujeitando-se a uma compra que, verdadeiramente, não desejava, daí porque se mostra relevante conferir ao adquirente, nessas hipóteses, o direito de arrependimento mediante o recebimento, de volta, do valor pago.

Não obstante, durante o período da pandemia, este direito sofrerá restrições, isso porque, segundo o disposto no art. 8º do Projeto de Lei nº  1.179/2020, fica suspenso, até 30.10.2020, o exercício do direito de arrependimento nos casos de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e medicamentos.

A referida disposição é lógica, e também já merecia reflexão mesmo fora do período de pandemia. Inicialmente, é preciso deixar claro que o direito de arrependimento não foi suprimido ou suspenso durante o período de grande propagação e contágio do vírus. O direito do consumidor subsiste, apenas ficando restrito o seu exercício nas hipóteses excepcionalmente previstas na lei transitória, isto é, apenas nos casos de entrega domiciliar de bens perecíveis de consumo imediato e medicamentos. Nos demais casos de compras à distância, aplica-se plenamente o disposto no CDC.

Justifica-se a limitação imposta no Projeto de Lei nº  1.179/2020 pela própria natureza dos bens enumerados em seu art. 8º. A toda evidência quis o legislador tratar dos gêneros alimentícios, particularmente aqueles para consumo imediato, como refeições e lanches adquiridos à distância por telefone, internet ou aplicativos eletrônicos, e dos medicamentos, os quais, por certo, não podem ser consumidos por terceiros após a devolução.

A norma do art. 49 do CDC tem como propósito a tutela do consumidor, mas sem descuidar do equilíbrio da relação, na medida em que possibilita ao fornecedor, ao receber o produto de volta, recolocá-lo na cadeia de consumo. No caso dos bens perecíveis e de consumo imediato, bem como os medicamentos, após serem experimentados pelo consumidor, ou terem suas embalagens violadas, não podem ser reaproveitados, levando ao seu perecimento, tanto fático, quanto jurídico. Portanto, mesmo fora do período da pandemia, o exercício do direito de arrependimento, nessas hipóteses particulares, merece reflexão, não sendo cabível de modo absoluto e irrestrito.

Mas, durante a pandemia é ainda mais justificável a disposição. Isso porque inúmeros comerciantes vêm sendo obrigados a limitar suas atividades à entrega em domicílio, dada a profusão de leis, medidas provisórias e decretos que têm imposto a proibição da presença física dos consumidores nos salões de restaurantes e lanchonetes. Assim, como medida de sobrevivência do próprio negócio, a única fonte de receita desses fornecedores é a entrega dos bens no domicílio do consumidor.

Desse modo, autorizar que o consumidor, após experimentar ou consumir o alimento, possa se arrepender e devolver a coisa, além de uma possível violação à boa-fé (como no caso de não existir qualquer irregularidade com a coisa adquirida), também poderá trazer consequências econômicas drásticas para os comerciantes.

Por essa razão, recomenda-se que, diante de alguma situação peculiar, como a má-qualidade do produto, devam as partes tentar uma negociação, como, por exemplo, a troca por outro alimento, e não o exercício unilateral do direito potestativo de arrependimento.

3.5. Proibição de concessão de liminares em ação de despejo pelo inadimplemento em contratos de locação de imóvel urbano
Último ponto a ser examinado acerca do regramento que o Projeto de Lei nº  1.179/2020 visa dar aos contratos diz respeito à impossibilidade de concessão liminar de despejo por inadimplemento em contratos de locação de imóvel urbano.

Primeiramente, é preciso destacar que a ação de despejo tem uma peculiar particularidade. Embora se caracterize, na divisão quinaria das decisões (sentenças), como executiva, na medida em que compreende ela própria uma ordem de execução, impondo-se a retirada do locatário do imóvel (inclusive através de medidas coercitivas concretas), tem ela, conjuntamente, inequívoco caráter desconstitutivo, na medida em que promove a rescisão do contrato de locação. Portanto, a ordem de despejo leva à extinção do contrato, daí porque não se exige, para o despejo, que o locador formule pedido de rescisão do vínculo, pois o próprio despejo já o promoverá.

Assim, o despejo liminar nada mais faz do que pôr fim, antecipadamente, ao vínculo jurídico contratual que une o locador ao locatário, em juízo de cognição sumária, isto é, sem que se esgote todo o iter processual no qual se ateste, de modo inequívoco, o inadimplemento das obrigações do contrato que justifique a sua rescisão.

Por essa razão, e durante o período da pandemia, o Projeto de Lei nº  1.179/2020, em seu art. 9º, busca limitar a possibilidade de concessão liminares de despejo em ações propostas pelos locadores em face do locatários, nas hipóteses previstas no art. 59, § , I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei 8.245/1991, até 30.10.2020, tendo em vista a situação de excepcionalidade.

As únicas exceções em que será admitido o despejo liminar são aquelas previstas no art. 59, § 1º, IV e VI da Lei do Inquilinato, em que houver a morte do locatário sem ter deixado herdeiros, bem como para realização de obras emergenciais. Em todos os demais casos, está proibida a concessão de liminar nas ações de despejo, o que se revela admissível, não havendo violação ao exercício constitucional do direito de ação, e tampouco do princípio da inafastabilidade do controle do Poder Judiciário, dada a excepcionalidade das circunstâncias, que visam tutelar interesses outros, de índole existencial, como a própria moradia. O legislador, então, ponderando os diversos interesses, entendeu pela predominância deste último. Cumpre observar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a constitucionalidade de certas leis que proíbem a concessão de liminares, como é o caso da Lei 8.437/1992 que veda a concessão de liminares contra a Fazenda Pública em determinadas hipóteses.[3]

Quanto ao extenso rol previsto no Projeto de Lei nº  1.179/2020  como proibitivo da concessão de liminar, por certo o objetivo principal é proteger os locatários no período da pandemia contra eventual despejo pelo inadimplemento da obrigação de pagar os aluguéis. Os efeitos danosos que as medidas de contenção ao avanço da Covid-19 estão produzindo sobre a economia tem levado inúmeros locatários a já enfrentar problemas para pagamento dos aluguéis, dificuldade essa que, evidentemente, ainda se estenderá por alguns meses.

Com a referida previsão, então, resguarda-se o locatário durante o período da crise, mas também não se deixa de tutelar o locador. Isso porque os aluguéis e demais obrigações contratuais devem continuar a ser cumpridas, haja vista que, como visto anteriormente, foi retirado do texto original do Projeto de Lei a possibilidade de se suspender a exigibilidade dos aluguéis durante o período da pandemia.

Então, o locador continua a poder exigir do locatário o pleno cumprimento do contrato, salvo ajuste consensual, mas apenas não poderá rescindi-lo antecipadamente, através da concessão liminar do despejo, durante o período estabelecido no Projeto de Lei nº  1.179/2020.

Por fim, cumpre também destacar que a referida proibição à concessão da liminar apenas se aplica às ações propostas após o início da crise epidêmica, em que o Projeto de Lei nº  1.179/2020 fixou como marco o dia 20.03.2020, conforme o disposto no parágrafo único do seu art. 9º. A disposição é óbvia: a pandemia não pode servir de salvo-conduto aos locatários que já estavam inadimplentes antes da propagação da Covid-19, por razões que nenhuma relação têm com o atual estado de crise.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[3] BRASIL, STF, Tribunal Pleno, ADC n° 04. Rel. Ministro Sydney Sanches. Redator para o Acórdão Ministro Celso de Mello, DJe 30/10/2014.

Guilherme Calmon Nogueira da Gama é desembargador do TRF da 2ª Região; professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; professor permanente do PPGD da Universidade Estácio de Sá; professor titular de Direito Civil do IBMEC; mestre e doutor em Direito Civil pela UERJ.

Thiago Ferreira Cardoso Neves é advogado, mestre e doutorando em Direito Civil pela UERJ, professor dos cursos de pós-graduação da Emerj, do Ibmec e do CERS, Visitingresearcherno Max Planck Institute for ComparativeandInternational Private Law — Hamburg-ALE — e vice-presidente administrativo da Academia Brasileira de Direito Civil — ABDC.

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Governança estratégica deve nortear reforma do Estado na era digital

Há algum tempo tenho defendido aqui neste espaço o conceito de reengenharia constitucional como a necessária e radical reconfiguração estrutural das instituições oitocentistas do liberalismo democrático que fomentaram a ideia de Estado de Direito.

Tendo em vista o diagnóstico cada dia mais consensual de que existe uma crise nos postulados da democracia liberal e que essa crise pode se tornar um retrocesso civilizatório com o aumento do autoritarismo em escala global, parte-se da ideia de que a superação desse quadro tornou imprescindível a implantação de medidas estruturantes para salvaguardar valores universais como os direitos humanos, o governo democrático, a liberdade, a separação dos poderes e os limites do poder estatal, bem como a redução de desigualdades e a concretização de direitos sociais.

Assim, para preservar esses objetivos da gestão pública e fazer cumprir o papel que se espera do Estado, as formas estruturais pensadas há aproximadamente três séculos não se mostram efetivas atualmente.

Pelo contrário, sua perda de legitimidade é evidente. Na Era Digital, o tempo do Estado burocrático não é o tempo da vida, o que tem gerado forte descrença e rejeição da política, aliado a arroubos autoritários.

Desta feita, é preciso transformar as estruturas e preservar as finalidades públicas, notadamente a concretização dos direitos fundamentais e a busca de vida plena aos cidadãos.

As mesmas reflexões se aplicam ao contexto brasileiro: a fim de assegurar o conteúdo funcional da Constituição de 1988 é preciso reconstruir sua arquitetura estrutural, ou seja, novos meios para realmente alcançar a efetividade dos fins constitucionais.

Nesta oportunidade, ouso enunciar algumas ideias que possam se tornar diretrizes para o futuro do Estado, em uma perspectiva ensaísta e provocativa para que o debate e o tempo amadureçam as reflexões.

A Constituição de 1988, inspirada nos ideais do Estado de Bem-Estar europeu (keynesiano, providencialista) que emergiu após a Segunda Grande Guerra, trouxe consigo fortes preocupações com os sistemas de controle, com a impessoalidade na gestão pública e um arquétipo estatalista que rapidamente se mostrou esgotado ante as demandas do fim do milênio. O grande avanço na salvaguarda dos direitos fundamentais individuais e sociais não veio acompanhado de estruturas sustentáveis fiscalmente e capazes de garantir sua efetividade.

O modelo pensado tinha uma tendência irrefreável para o avanço das corporações e o inchaço da máquina pública, de modo que o excesso de estruturas estatais se tornou obstáculo para a efetividade dos direitos fundamentais, e não meio para concretizá-los.

Sem demoras, vieram as pressões por reformas. Especialmente a partir de 1995, emergiu o Plano Diretor da Reforma do Estado proposto pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), cujo objetivo era operar um câmbio entre o paradigma burocrático-controlador para o gerencial-fiscalista na Administração Pública.

Novos conceitos foram introduzidos. Pregava-se a redução do tamanho do Estado, a descentralização e desconcentração dos serviços públicos, a flexibilização de controles, maior autonomia dos gestores em prol de resultados, maior abertura à sociedade civil, maior relacionamento com o chamado terceiro setor, a necessidade de novos entes gestores sob a tutela técnica e não política (p. ex. agências reguladoras) e um rígido controle das contas públicas.

Veio uma série de concepções empresariais, como a ideia do cidadão-consumidor, o princípio da eficiência em uma perspectiva mercadológica, privatizações e a crença nos mecanismos de mercado como vetores de desenvolvimento. O conceito de eficiência estava atrelado a uma noção rudimentar de Estado-empresário.

Como pano de fundo teórico, o paradigma gerencial-fiscalista se apresentava conectado à concepção de Estado-Regulador.

Em palavras ligeiras, um Estado-Regulador é aquele que ao invés atuar diretamente nas políticas públicas, gastando ele mesmo os recursos auferidos via tributação, estabelece normas e regula as atividades privadas para que elas gerem desenvolvimento a partir de condições de funcionamento eficiente, conforme ensina La Spina e Majone.

Passados alguns anos das reformas estruturantes, cujo marco legal se revela nas emendas constitucionais n. 19 e n. 20 de 1998, inúmeras são as razões que obstacularizaram a implantação desse modelo no Brasil.

Dentre elas, pode-se mencionar a cultura política avessa ao planejamento de longo prazo e ao tratamento técnico de questões públicas até a resistência burocrática a ações orientadas pelo desempenho, especialmente em um ambiente de rigor fiscal.

Contudo, além do plano prático relativo ao contexto brasileiro, novos desafios se impõem ao novo Estado que não podem ser relativizados: i) o advento da era digital e o incrível desenvolvimento das novas tecnologias, ii) as mudanças no mindset dos cidadãos, cada vez mais ansiosos, impacientes e (des)informados, iii) os limites internos e externos à soberania nacional, os quais impõem constrangimentos e condicionantes aos poderes estatais, cerceando o potencial de atuação centralizada do Estado, iv) a necessidade de maior integração com a sociedade civil e atuação em rede, bem como v) a maior participação dos cidadãos na produção normativa, ante o aumento de complexidade na base social e o incremento do pluralismo nas expectativas e modos de vida.

Daí é imprescindível a adoção de uma lógica pós-burocrática radicalmente inovadora, digital e conectada com as demandas contemporâneas, um Estado enquanto centro de inteligência e governança estratégica.

Pautado por uma racionalidade pública e no interesse coletivo, não necessariamente estatal e nem mesmo empresarial, esse modelo prioriza a inteligência de análise e tratamento de dados, as evidências e os mecanismos de governança para o fim maior de concretização dos direitos fundamentais individuais e sociais por meio de políticas públicas. Seu compromisso não é com a estrutura, mas com os resultados.

No olhar proposto, as inovações de governo digital ou govtech não são apenas instrumentos a facilitar as medidas executivas. Elas adquirem forte assento no nível estratégico de decisão.

A primeira característica desse modelo é a prioridade no nível estratégico: ao lado dos mandatários eleitos, um corpo de executivos públicos de alta qualificação e bem preparados formam um conselho de governança no Poder Executivo, cuja missão é analisar dados, avaliar diagnósticos, planejar, definir atribuições táticas e operacionais, estabelecer indicadores e monitorar o cumprimento das metas a serem executadas na própria gestão pública ou por meio de parceiras com a iniciativa privada.

Assegurada a atuação direta do Estado em atividades consideradas essenciais e que demandam garantias igualmente públicas, os demais serviços públicos não necessariamente teriam execução estatal. Tampouco se submeteriam à razão mercadológica.

Para que seja possível o monitoramento na execução das políticas públicas, o controle e fiscalização dos seus agentes, a adoção de políticas de integridade (compliance) e responsabilização de agentes públicos e privados (accountability) o modelo estratégico deve se aliar ao compromisso fortemente regulador.

Regulação e monitoramento são imprescindíveis para bons resultados. Por isso, a prestação de serviços públicos de índole meramente operacional ou direta deve prestigiar a parceria com a iniciativa privada, restando ao Estado maior foco na atividade regulatória em detrimento da prestação direta e ação operacional.

Neste quesito, não há grandes novidades. A inovação é aliar essa regulação com um modelo de governança estratégia e inteligência pública ditando os rumos do futuro e que não se restringe à regulação tradicional. Ele atua também como indutor do desenvolvimento.

Superando as dicotomias da modernidade entre Estado e sociedade civil, o modelo proposto atua dialeticamente com a esfera privada, de modo a promover novos vetores de desenvolvimento a partir da síntese dessas duas forças dialogantes.

Nessa dialética supera-se a leitura desenvolvimentista clássica, que credita ao Estado o papel de motor da história, sem atribuir exclusividade à sociedade civil e aos mecanismos de mercado a missão de fomentar os avanços sociais.

O novo Estado induz, provoca, gera incentivos e estabelece punições. Indica caminhos, constrói meios em conjunto e atua com a sociedade no progresso civilizatório e na promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Por fim, esse modelo há de ser interativo: ante a insuficiência contemporânea da produção normativa puramente estatal, a governança deve interagir com os diferentes atores sociais, de modo a permitir sua participação e adotar mecanismos de construção colaborativa e compartilhada tanto no âmbito da formulação das políticas, quanto de seu arcabouço legal regulatório.

Um exemplo prático e que revela uma tendência é o Comitê Gestor de Internet composto por membros do setor empresarial, acadêmico-científico, empresarial e entidades não governamentais. Sua atribuição principal é a formulação de orientações estratégicas sobre o uso e o desenvolvimento da internet no Brasil, além de promover estudos e pesquisas sobre a temática (conferir: www.cgi.br),

Estratégico, regulador, indutor do desenvolvimento e interativo: eis um conjunto de diretrizes para se pensar o novo Estado e assim orientar as reformas administrativas em prol de resultados, a reelaboração dos marcos regulatórios e a formulação de políticas públicas baseadas em evidências.

Um Estado leve, porém forte, necessário e dotado de lógica pública não necessariamente estatal. Afinal, na Era Digital se tornou urgente que as instituições funcionem e forneçam respostas às necessidades da população, de modo a possibilitar a efetividade dos direitos fundamentais individuais e sociais, resgatar a legitimidade da política e preservar importantes postulados da democracia liberal.


LA SPINA, Antonio. MAJONE, GIANDOMENICO. “Lo Stato Regolatore” Bologna: IlMulino, 2000. p. 24 e ss.

Para aprofundamento, conferir: REZENDE, Flávio da Cunha. Razões da crise de implementação do estadogerencial: desempenho versus ajuste fiscal. In: Revista de Sociologia e Política n. 19: 111-121. Curitiba: Ufpr, 2002. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rsp/article/viewFile/3622/2879 Acesso: 07maio2020.

 é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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Camilla da Silva: A cultura da integridade é fundamental

Falar de integridade é sempre relevante, mesmo em tempos cujo foco mundial é o combate à pandemia que assombra a humanidade. Contudo, é possível vislumbrar como a cultura da integridade empresarial pode mudar a forma de enfrentamento desse cenário, bem como as empresas que adotam posturas éticas como seu grande vetor podem se destacar nesse momento onde quase não se vê luz no fim do túnel.

Pode-se destacar a importância do Código de Ética nesses momentos de crise, o qual vai nortear a empresa para que sejam tomadas decisões sem desviar da sua missão, visão e de seus valores. Isso traz segurança de seus colaboradores e diretoria, bem como a certeza de que a empresa enfrentará seus desafios pautada nos preceitos de ética e moral, o que é conhecido e aceito por toda sua equipe.

Se a empresa não tem um código de ética efetivo, é a oportunidade de repensar, mapear riscos, fazer as devidas análises, planejar treinamentos e outras medidas aplicáveis, com foco em elaborar e colocar em prática um código de ética para orientação da conduta da empresa em todos os momentos, inclusive  em tormentas dão delicadas como esta que vivenciamos.

Com a legislação determinando a implementação de programas de compliance e integridade, não restam dúvidas de que o tema é de grande relevância no meio empresarial e que a implementação de códigos de ética, treinamentos e a introdução de uma cultura de integridade devem conquistar espaço na lista de prioridades das empresas.

Assim, nasce a cultura da integridade, que não se trata de simples cumprimento legal, mas sim de uma mudança de comportamento, da atuação efetiva da conformidade com as normas legais a fim de evitar, detectar e tratar quaisquer desvios que possam ocorrer.

Quando se fala de integridade, remete-se automaticamente ao conceito de ética e moral. Marcelo Zenkner, autor da espetacular obra “Integridade governamental e empresarial: um espectro da repressão e da prevenção à corrupção no Brasil e em Portugal”, hoje Chief Governance and Compliance Executive Officer da Petrobrás, traz um excelente conceito para integridade:

“De um modo mais direto e específico, a integridade implica a exata correspondência entre os relevantes valores morais e a realização  desses valores no momento em que, diante da situações-problemas do dia a dia, uma escolha é reclamada a fim de que uma ação ou uma omissão sejam realizadas. A integridade, já por esse aspecto, se diferencia da ética: enquanto esta traz conotações mais filosóficas e intangíveis, a primeira se preocupa mais com o comportamento diário das pessoas e com o processo de tomadas de decisões” (ZENKNER, Marcelo. Integridade governamental e empresarial: um espectro da repressão e da prevenção à corrupção no Brasil e em Portugal. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p.46.).

Essa conceituação leva a crer que a integridade está muito mais ligada à prática do que à teoria propriamente dita, pois deixa de lado a parte filosófica da ética e determina uma mudança de comportamento em que são levados em consideração os valores que a ética e a moral propõem.

O indivíduo íntegro é aquele que vai agir em conformidade não só com a lei e por medo da punição, mas de acordo com o que é certo, independentemente das circunstâncias, se é um ambiente público, privado, se há pessoas observando ou se está sozinho. E esse comportamento é constante e coerente com os preceitos que o indivíduo acredita, jamais agindo de forma contrária ao valores que ele mesmo cultua.

Os programas de integridade vão muito mais adiante do que a simples implementação de um programa de compliance. Além de cumprir com a determinação legal, prevê a real mudança na cultura da empresa, com a perpetuação de valores éticos como algo essencial e não apenas formal.

É no Decreto nº 8.420/2015, que regulamenta a Lei nº 12.846/2013, que estão contidas as diretrizes para a implementação dos programas de integridade. A intenção é de que os programas não sejam meramente “de fachada”, ou seja, com o intuito de apenas cumprir o que determina a lei, mas, sim, que efetivamente façam a diferença no aculturamento empresarial, o que trará benefícios à empresa e à sociedade como um todo.

Para que o programa de integridade se consolide é necessário envolvimento de todos os colaboradores, além da alta administração. Deve-se focar não apenas em treinamentos e teoria, mas na essência do ser humano envolvido na atividade. Somente com esse novo olhar será possível alcançar o grande objetivo deste mecanismo, que é a mudança de comportamento, o aculturamento.

Além das regras que devem ser observadas e cumpridas, deve existir uma preocupação com valores e a sua introdução no cotidiano não só do funcionário ou gestor, mas do própria atividade empresarial. Segundo André Franco Montoro: “Quanto mais voluntária e espontaneamente empresas e indivíduos adotarem um comportamento ético, menor será a propensão a transgredi (MONTORO, O Valor Econômico do Comportamento Ético. In: CARDOSO, F.H.; MOREIRA, M.M. (Coord). Cultura das Transgressões no Brasil  – Lições da História. 2.ed.São Paulo: Saraiva, 2008, p.12.).

Esses mecanismos de integridade podem ser desenvolvidos dentro da empresa levando-se em consideração não só a norma legal, mas o contexto institucional, social e cultural. Ou seja, cada corporação deve ter um programa de integridade específico e único tendo em vistas ser ímpar.

Parafraseando o CEO da Porsche, Peter Schutz, “contrate caráter, treine habilidades”. Se houver a identificação de valores éticos e morais no indivíduo antes mesmo de ingressar na empresa, será muito mais fácil a absorção dos preceitos de integridade nos quais a empresa se pauta. A probabilidade da transgressão de uma conduta ética com toda certeza é diminuta. Quanto mais funcionários íntegros ou em formação de integridade estiverem realmente dispostos a assimilar o comportamento voltado aos preceitos éticos e morais, menor será a necessidade de regulamentação rígida e fiscalização, conduzindo a empresa à saúde econômica de alta qualidade, pois estará longe de condutas que envolvam corrupção e demais ilícitos.

Sem dúvida alguma o melhor caminho a ser trilhado é aquele que conduz à integridade. A implementação de uma forma efetiva e verdadeiramente vivida dos programas de integridade beneficia a empresa como um ente personificado, seus colaboradores em todas as escalas e toda a sociedade, tendo em vista que a cultura da integridade proporciona a transparência, a verdade, a prática da ética e dos valores morais.

Essa contribuição vem com a mudança nos processos adotados pelas empresas, não em virtude de uma determinação legal visando a não ser punida , mas, sim, de uma ampliação na visão negocial, em que quem ganha é quem faz o correto, é quem age com lealdade, é quem se preocupa com os ser humano que integra seu quadro de colaboradores e com todos os participantes dessa cadeia de trabalho.

A empresa se beneficia por se destacar perante as demais, pois o programa de integridade traz a elevação moral do negócio, previsibilidade de suas ações e confiança para seus colaboradores e com quem se relaciona. Além disso, a sociedade como um todo ganha por ter um empreendimento voltado ao combate a atos ilícitos e de corrupção, que hoje são o “câncer” do mundo.

Quanto mais corporações se envolverem na cultura da integridade, mais os seres humanos serão valorizados e adotarão condutas íntegras como sendo inerente às suas ações, tanto profissionais quanto pessoais.

E nesse momento de crise que o mundo enfrenta, que irá mudar a economia em muitos aspectos, a cultura da integridade traz o diferencial para as empresas, pois o enfrentamento torna-se mais coerente e seguro. A saúde econômica e financeira de empresas que estão inseridas em uma cultura da integridade, baseada em valores éticos sólidos, que tem riscos mapeados, com frentes para gerenciar crises e valores nos quais possa se pautar, irá encarar esse grande desafio de forma mais adequada e lógica, com decisões pautadas em valores éticos levando-se em consideração acima de tudo o ser humano, protagonista nesse palco.

 

Referências bibliográficas
ZENKNER, Marcelo. Integridade governamental e empresarial: um espectro da repressão e da prevenção à corrupção no Brasil e em Portugal. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p.46.

MONTORO, O Valor Econômico do Comportamento Ético. In: CARDOSO, F.H.; MOREIRA, M.M. (Coord). Cultura das Transgressões no Brasil  – Lições da História. 2.ed.São Paulo: Saraiva, 2008, p.12.

 é advogada, sócia do escritório Carreira e Ribas Advogados, especialista em Direito Civil e Empresarial e Master of Business Administration em Compliance e Gestão de Risco.