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Juíza manda Fundação Palmares retirar textos contra Zumbi

Direito à identidade

Juíza manda Fundação Palmares retirar textos contra Zumbi

Sérgio Camargo criticou a decisão e disse que a Fundação Palmares está sob censura
Reprodução/Facebook

A juíza Maria Cândida Carvalho Monteiro de Almeida, da 9ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, determinou que a Fundação Palmares retirasse dos canais de comunicação da instituição os artigos “Zumbi e a Consciência Negra — Existem de Verdade?”, de Luiz Gustavo dos Santos Chrispino, e “A Narrativa Mística de Zumbi dos Palmares”, de Mayalu Felix.  A informação é da jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo.

A decisão da magistrada foi provocada por pedido liminar apresentado pelos deputados federais Benedita da Silva (PT-RJ) e Áurea Carolina (PSol-MG), e deputados Bira do Pindaré (PSB-MA) e Túlio Gadêlha (PDT-PE). A multa por descumprimento da decisão judicial é de R$ 1 mil por dia. 

“Concluo, com base nessas considerações, que a permanência dos artigos questionados no sítio institucional da Fundação Cultural Palmares ameaça o patrimônio histórico-cultural brasileiro e viola o direito à identidade, ação e memória da comunidade negra e a sua garantia a condições adequadas para a preservação, expressão e desenvolvimento de sua identidade”, diz trecho da decisão.

O militante bolsonarista Sérgio Camargo que atualmente comanda a Fundação Palmares afirmou que a instituição está sob censura e disse que irá recorrer da decisão.

Revista Consultor Jurídico, 29 de maio de 2020, 21h44

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Pelo risco ao direito à moradia, TJ-RJ suspende parcelas de imóvel

Crise do coronavírus

Pelo risco ao direito à moradia, TJ-RJ suspende parcelas de compra de imóvel

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Pelo risco ao direito à moradia, o desembargador João Batista Damasceno, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ordenou nesta quinta-feira (28/5) que a construtora MRV suspenda, até o fim do estado de calamidade pública por causa da epidemia do coronavírus, as parcelas de compra de um imóvel financiado por um casal.

Direito à moradia não pode ser ameaçado por crise do coronavírus
Nattawut Thammasak

Os dois firmaram, com a MRV, contrato de promessa de compra e venda do imóvel em que moram, em Parada de Lucas, na zona norte do Rio, pelo valor de R$ 184 mil.

Devido à crise, o casal atrasou a parcela de abril. Para preservar a renda familiar, eles pediram a suspensão das mensalidades enquanto durar a epidemia, mas a construtora negou.

A liminar foi negada em primeira instância, mas o casal recorreu. Damasceno apontou, na decisão, que há probabilidade do direito. Isso porque a epidemia de coronavírus está impactando financeiramente grande parte da população e afetando os contratos.

Além disso, o magistrado disse haver perigo de dano, pois a falta de pagamento pode ferir o direito de moradia do casal. O desembargador ressaltou que eles, como consumidores, têm os direitos de revisão de cláusulas e condições contratuais em razão de fatos que as tornem excessivamente onerosas e de prevenção de danos patrimoniais e morais, como estabelece o artigo 6º, incisos V a VII, do Código de Defesa do Consumidor.

O magistrado também proibiu a MRV de incluir os nomes dos dois em cadastros de proteção ao crédito pela falta de pagamento das parcelas.

Clique aqui para ler a decisão

Processo 0031524-15.2020.8.19.0000

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 28 de maio de 2020, 20h23

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Ausência de nudez não descaracteriza pornografia de vingança

A ausência de nudez total, por si só, não descaracteriza a pornografia de vingança. Isso porque o combate à exposição pornográfica não consentida pode envolver situações distintas e não tão óbvias, mas que geram igualmente dano à personalidade da vítima.

Pornografia de vingança pode envolver situações distintas e não tão óbvias 
123RF

Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reformou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendera não ter havido violação por uma rede social que, instada a retirar do ar material tido como pornográfico, manteve fotos em que a ofendida aparece de biquíni e sem mostrar o rosto.

Segundo a decisão de segundo grau, o conteúdo não deveria ser retirado do ar, sob o fundamento de “inviabilidade de se impor prévia censura”. A retirada deve ser feita, assim, de acordo com o julgado, “de forma voluntária” e que “somente deve ocorrer quando contrariar as regras da comunidade”. Portanto, não se verificou descumprimento de ordem judicial.

Corte especial

O STJ, contudo, teve outro entendimento. “Não há como descaracterizar um material pornográfico apenas pela ausência de nudez total”, apontou a ministra Nancy Andrighi, relatora do caso. Segundo ela, o próprio acórdão reconhece que a vítima se encontra sumariamente vestida nas fotos, em posições de forte apelo sexual tipicamente feitas a quem nutria confiança.

“Ademais, o fato de o rosto da vítima não estar evidenciado nas fotos de maneira flagrante é irrelevante para a configuração dos danos morais na hipótese, uma vez que a mulher vítima da pornografia de vingança sabe que sua intimidade foi indevidamente desrespeitada e, igualmente, sua exposição não autorizada lhe é humilhante e viola flagrantemente seus direitos de personalidade”, complementou.

Na análise da ministra Nancy Andrighi, o caso é exemplo de pornografia de vingança, em que um ex-companheiro expõe a vítima para empreender represália. É dela um dos votos mais significativos sobre o tema, em que a 3ª Turma entendeu que, como medida de urgência, é possível determinar que os provedores de busca retirem determinados conteúdos expressamente indicados.

RE 1.735.712/SP

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TJ-GO suspende embargo de município para obra de condomínio

Considerando que há risco na demora e que o embargo de uma construção poderia causar danos irreversíveis, o desembargador Itamar de Lima, da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, decidiu reformar decisão de primeiro grau e suspendeu a ordem de embargo dada pelo município de Bela Vista de Goiás para a obra de um condomínio de lotes.

Desembargador suspendeu embargo da prefeitura de Bela Vista de Goiás
123RF

No recurso, a empresa dona do empreendimento aponta que o município aprovou a execução de um condomínio de lotes exigindo, com fundamento no artigo 5º, §1º da Lei Municipal nº 1.863/19, a execução de obras correspondentes a 0,5% (meio por cento) da área destinada aos lotes.

A empresa alega que tal exigência é ilegal cita artigo precedente do Órgão Especial do TJ-GO, em situação análoga, de Ação Direta de Inconstitucionalidade que se questionava norma do município de Goiânia.

O advogado da empresa, Arthur Rios Júnior, afirma que “o embargo realizado pelo município atinge, desnecessariamente, a economia municipal, as contas públicas, os compradores do empreendimento, as empresas terceirizadas e os trabalhadores contratados para a execução das obras, importando ainda em violação à lei de liberdade econômica”.

Ao analisar o caso, o relator apontou que o embargo da obra é desproporcional em relação ao suposto descumprimento da obrigação por parte da agravante, já que há cláusula contratual dando ao município 28 terrenos do empreendimento, de forma que é razoável o deferimento da liminar para garantir a continuidade da obra.

“O perigo de demora no provimento final também está demonstrado, na medida em que o embargo da obra traz evidentes prejuízos ao agravante e às pessoas que dependem da concretização do empreendimento”, apontou.

O magistrado também determinou que o município se abstenha de impor embaraços à continuidade da obra, até julgamento final deste recurso, sob pena de medidas coercitivas a serem oportunamente fixadas.

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5226422.19.2020.8.09.0000

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“Estão usando as Forças Armadas como partido”, diz Gilmar

Gilmar Mendes comentou reunião ministerial de 22 de abril

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu na noite desta segunda-feira (25/5) uma entrevista ao colunista da revista Época e da CBN, Guilherme Amado. A conversa aconteceu no perfil do Instagram do jornalista.

Gilmar Mendes, entre outras coisas, analisou a relação entre os três poderes da República durante a epidemia e criticou a postura do presidente Jair Bolsonaro e de seus ministros na reunião de 22 de abril — cuja gravação foi divulgada na última sexta-feira (22/5), por decisão do ministro Celso de Mello.

“Fiquei um pouco triste de um tempo tão precioso de pessoas com tanto poder de decisão ser usado para assuntos de pouca relevância ou agressões a pessoas. Foi um episódio singular. Eu nunca vi nada igual”, disse sobre o vídeo da reunião do presidente Jair Bolsonaro com os seus ministros.

O ministro lembrou que não se falou nada sobre o número de mortos durante a epidemia e comentou que seria interessante saber quais proposições saíram daquela reunião.

Gilmar Mendes também comentou o serviço de informações próprio citado pelo presidente. “Isso foi dito diante do ministro da Defesa e do ministro da Justiça. Estavam o general Ramos e o general Braga Neto. Isso precisa ser explicado. Que tipo de serviço é esse? Temos visto nessas manifestações a bandeira de Israel. Será que existe alguma conexão? Isso é um fato que precisa ser esclarecido”, comenta.

O ministro também chamou atenção sobre as falas do presidente sobre armar a população. “O que significa armar a população para garantir a liberdade? O que é isso? Vamos fornecer armas para quem? Para milicianos? É tudo muito peculiar e as pessoas devem ter uma conduta em que elas possam se olhar no espelho”, disse.

Papel das Forças Armadas
Questionado sobre o papel das Forças Armadas no atual governo, Gilmar Mendes apontou que elas servem ao Estado Brasileiro e não a um partido político. “Quando se diz que vamos fechar o STF usando um soldado e um cabo está se fazendo um vilipêndio. Uma ofensa às Forças Armadas. Está se usando as Forças Armadas como se fossem milícias de um partido político. Isso é indigno. Isso é uma grande ofensa”, comenta.

Gilmar também criticou a leitura que se está fazendo do artigo 142 da Constituição Federal de 1988. “Nada tem a ver com a leitura irresponsável que se vem fazendo. As Forças Armadas devem garantir os poderes constitucionais a requerimento de qualquer deles. Elas não servem para fechar um poder da República”, explica.

Gilmar também comentou a manifestação do ministro-chefe do GSI, General Heleno, para quem, caso houvesse uma busca e apreensão do telefone do presidente, isso poderia ter consequências imprevisíveis. “Tenho a impressão de que estamos vivendo uma grande confusão. E acredito que alguns por entenderem mal esse momento acabam talvez tomando atitudes precipitadas. Não houve qualquer decisão. É da rotina do processo decisório do STF ao receber uma notícia-crime encaminhar à Procuradoria-Geral. O ministro Celso não cogitou e não mandou apreender o telefone do presidente da República. As medidas que tomou foram dentro dos marcos legais”, explica.

O ministro também defendeu o levantamento de sigilo da reunião ministerial. “É impróprio falar em crime de abuso de autoridade. A divulgação do vídeo da reunião ministerial foi absolutamente normal. Não se pode falar em vazamento ou crime”, afirmou. Por fim, Gilmar disse que acredita que o inquérito sobre a suposta interferência do presidente na PF deve ser concluído até novembro.

Sobre a fala do ministro Abraham Weintraub, para quem todos os ministros do STF estariam presos, Gilmar Mendes imaginou o que diria a defesa do ministro no tribunal: “Talvez ele devesse dizer que se trata de um caso de inimputabilidade”, comentou.

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Audiência virtual, só sem produção de provas, diz OAB-RJ

Comunicação com advogado

Se for necessário produzir provas, audiência não pode ser virtual, diz OAB-RJ

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A seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil afirmou à Defensoria Pública que audiências só podem ser feitas por videoconferência quando houver possibilidade — já discutida — de conciliação. Mas não em processos que exijam depoimento, interrogatório de testemunhas e produção de outras provas, pois, para esses atos, é imprescindível a presença das partes e advogados.

TJ-RNDefensoria Pública do Rio questiona no CNJ realização de audiência virtual

A Defensoria Pública do Rio pediu ao Conselho Nacional de Justiça que suspenda as audiências por videoconferência fora das hipóteses legais, estabelecidas pela Corregedoria-Geral de Justiça do estado para pessoas privadas de liberdade e adolescentes em cumprimento da medida socioeducativa de internação provisória.

A Defensoria questionou os artigos 7º e 9º do Provimento 36 da Corregedoria-Geral de Justiça do Rio, que tratam das regras para as audiências virtuais. Para a Defensoria, a norma cria, na verdade, uma espécie de “julgamento à distância, contrariando a legislação penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e até mesmo a Constituição Federal, que prevê a realização desse ato de forma presencial, com a participação das partes, juízes e defensores”.

Em ofício à Defensoria, o procurador-geral da OAB-RJ, Alfredo Hilário de Souza, afirmou que audiências por videoconferência, especialmente em casos penais, violam os princípios do contraditório e ampla defesa. E mais: o direito do réu de se comunicar com seu advogado antes e durante a sessão.

Souza diz que a OAB-RJ apoia audiências virtuais nos casos em que houver possibilidade de conciliação, com manifestação expressa de intenção de acordo, mas não nos que exigirem produção de provas. Nesses processos, é essencial ter a presença física do advogado e da parte, ressaltou.

Clique aqui para ler o ofício

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 19 de maio de 2020, 21h36

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Juiz manda tirar do ar vídeo que acusa governadora de ser traficante

Ao imputar a um governador, figura pública, a prática criminosa, sem qualquer lastro probatório, há abuso do direito de liberdade de expressão, pois ofende à honra e à imagem no meio social.

Com esse entendimento, o juiz Giordano Resende Costa, da 4ª Vara Cível de Brasília, determinou que um homem tire do ar publicações ofensivas à governadora do Rio Grande do Norte Fátima Bezerra.  

O juiz não fixa multa em caso de descumprimento da medida, mas prevê que poderá ser determinado o bloqueio de contas no Facebook e Instagram.

De acordo com o processo, o homem gravou um vídeo em que chama a governadora de traficante, macumbeira e diz que ela faz “vodu contra o presidente Bolsonaro”. Depois, durante manifestação em Brasília no dia 26 de abril, usou um carro de som para atacar os governadores, dentre eles Fátima Bezerra.

Na decisão desta segunda-feira (18/5), o juiz considera que a situação é surreal. “Se não bastasse dizer em voz alta, o requerido ainda conseguiu registrar e divulgar as informações por meio das redes sociais”, pontua o magistrado.

Ele aponta ainda que embora a censura seja proibida, se notícias ou opiniões veiculadas forem “inexatas ou falsas”, agindo com dolo ou culpa, deverão estar submetidas a sanções previstas na Constituição e a reparação civil.

“O ato não se trata de censura, mas que lutar pelas suas ideias também não significa ausência de limites e a possibilidade de sair afrontando e desrespeitando a todos, e que o excesso/abuso de direito é algo que deve ser combatido para que outros direitos não sejam lesados em nome de uma liberdade de expressão que desconhece limites”, afirma.

A governadora foi representada pelo escritório Aragão e Ferraro Advogados.

Clique aqui para ler a sentença

0714358-56.2020.8.07.0001

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Responsabilidade civil do dentista é de meio, como a do médico

Mary Otto é médica e jornalista norte-americana, autora da obra The Tooth Divide: Beauty, Class and the Story of Dentristy, publicado pela The New Press em 2017. Além de trazer uma análise sobre como a desigualdade entre classes pode aparecer de forma menos convencional,[1] a autora pondera que, mais do que uma falha no cuidado com a higiene bucal, a queda de um dente pode indicar uma falha do próprio sistema de saúde.[2]

Em entrevista ao The Atlantic, Otto pondera que um dos cenários mais dramáticos da falha acima mencionada é que mais de um milhão de pessoas, por ano, busca os prontos socorros dos Estados Unidos com emergências dentais, mas não recebem o tratamento adequado porque, geralmente, os hospitais não contam com dentistas em suas unidades de pronto atendimento.[3]

Medicados, estes pacientes são orientados a buscar um dentista, sendo que muitas destas pessoas sequer têm um.[4] Neste ponto, Mary Otto relembra que a saúde bucal é parte da saúde geral.[5] Ainda assim, ao menos no Brasil, a odontologia, e tudo que orbita este campo, recebe tratamento diferenciado do conferido à medicina, inclusive juridicamente. O que se está a dizer é que a saúde bucal e a saúde geral seguem em vias diferentes (quando não deveriam).

Em alguns países europeus, a odontologia é considerada uma especialidade da medicina. Em Portugal, por exemplo, para se tornar um dentista, é necessária formação em medicina dentária, com a posterior inscrição na Ordem dos Médicos Dentistas.

Regulamentada pela Lei 5.081/1996, no Brasil, a odontologia é tomada como uma profissão autônoma e desvinculada da medicina. Isso não significa que a atuação do dentista seja menos complexa que a de um médico. É por isso que o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás (Cremego) defende a transformação da odontologia em uma especialidade da medicina:
Em muitos países a odontologia é uma especialidade da medicina, e no nosso entendimento o Brasil deveria passar por essa transformação, pois, assim como o médico, o cirurgião-dentista faz diagnóstico de doenças, faz prescrição terapêutica e tratamentos, então ele se enquadra na caracterização do exercício profissional da medicina.[6]

Aliás, o curso de odontologia só foi separado da medicina, no Brasil, em 1911. Ainda que tal mudança tenha se dado há pouco mais de 100 anos, o que parece ser bastante tempo, é bom considerar que Hipócrates, ao construir os primeiros pilares da medicina científica, tratava também dos aspectos odontológicos, em seus estudos. É possível afirmar que, sob a bênção de Asclépio, concebeu-se medicina e odontologia como uma só coisa.[7]

Para se ter uma ideia da complexidade da atuação do profissional de odontologia, alguns males, como o câncer de boca, podem ser identificados em uma cadeira de dentista. No caso desta doença, o diagnóstico precoce pode aumentar a chance de cura em 80%. São inúmeras as patologias que se relacionam com a saúde bucal, manifestando-se por sinais identificáveis pelo profissional de odontologia, dentre elas a sífilis, leucemia, anemia, bulimia, diabetes, cirrose hepática e doenças autoimunes.

Por isso, a atuação do odontologista deve ser visualizada sob o prisma da integração da boca ao restante do corpo (por mais óbvio que isto soe). Segundo Salomão Filho, “o tratamento de uma região, ou órgão específico, influencia todo o sistema”. Para o especialista, “mesmo tratando da região mastigatória, quando o dentista prescreve um medicamento, como um antibiótico ou um anti-inflamatório, por exemplo, ele está interferindo em todo o funcionamento do organismo”.[8]

Se a literatura especializada reconhece a complexidade do trabalho do profissional de odontologia, o ordenamento jurídico deve fazer o mesmo, mirando a atuação do dentista pelas lentes da responsabilidade subjetiva.

O contrário seria admitir que um complexo tratamento odontológico (e todo tratamento odontológico guarda complexidade) pode ser equiparado à compra de um eletrodoméstico qualquer em uma loja — cenário em que o fornecedor e/ou comerciante responderia objetivamente por eventual defeito no produto. A hipótese anterior, a propósito, apenas valida a falha no sistema de saúde, ao ignorar que a saúde bocal importa totalmente à saúde geral.

Não obstante, a jurisprudência pátria vem admitindo que a obrigação do dentista é, em regra, de resultado. O ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do REsp 1.238.746/MS, já destacou que “nos procedimentos odontológicos, mormente os ortodônticos, os profissionais da saúde especializados nessa ciência, em regra, comprometem-se pelo resultado, visto que os objetivos relativos aos tratamentos, de cunho estético e funcional, podem ser atingidos com previsibilidade”.

No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul admite que a obrigação assumida pelo cirurgião dentista é, principalmente, de resultado, recaindo sobre o profissional, o ônus de provar que não agiu com culpa.[9]

O cenário acima destacado foi bem explorado por Maria da Conceição Almeida Lyra, que conduziu um estudo que levantou, em números, ações judiciais em diversos tribunais estaduais, que apuraram a responsabilidade de cirurgiões-dentistas, apontando-se em quais destas ações foi aplicado o entendimento de que a obrigação destes profissionais é de meio. Foram selecionadas 167 ações judiciais dos estados da Amazônia, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, no ano de 2017.[10]

Destes 167 julgados, 87 não faziam referência à obrigação de meio ou de resultado. Dos que fizeram referência, contudo, de acordo com o estudo, a maioria dos tribunais considerou a obrigação como de resultado (64). Deste número, 44 resultaram em condenação.[11] Fica claro, portanto, que o entendimento do STJ acerca da obrigação de resultado, quanto à atuação dos odontologistas, está norteando os entendimentos dos tribunais do país.

No que diz respeito ao Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade do profissional liberal, categoria na qual os odontologistas se enquadram é expressamente tratada no artigo 14, parágrafo 4º, senão vejamos: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.

Dependendo de verificação de culpa, a responsabilidade é subjetiva — e aqui se chama atenção ao fato de que, se há um tratamento diferenciado entre odontologistas e médicos, perante os órgãos de classe, diante do CDC, a análise da responsabilidade civil dos dentistas situa-se no mesmo campo dos médicos.[12]

Com relação aos médicos, já se sabe, a obrigação é eminentemente de meio. O celebrado jurista Caio Mário da Silva Pereira destaca a harmonia deste entendimento, tanto na jurisprudência pátria como na estrangeira: “Ele não assume o compromisso de curar o doente (o que seria contra a lógica dos fatos) mas de prestar-lhe assistência, cuidados, não quaisquer cuidados, porém conscienciosos e adequados ao seu estado”.[13] Doutrina mais recente não se desviou deste entendimento. Ensina Miguel Kfouri Neto:
(…) o fato de considerar como contratual a responsabilidade médica não tem, ao contrário do que poderia parecer, o resultado de presumir a culpa. O médico não se compromete a curar mas a proceder de acordo com as regras e os métodos da profissão.[14]

Sendo a atuação do profissional de odontologia tão complexa quanto a do profissional em medicina e estando ambos enquadrados como profissionais liberais, no mesmo campo de análise da responsabilidade civil, o resultado lógico da articulação destas proposições só pode levar à conclusão de que a responsabilidade do odontologista é, também, de meio, ao contrário da tendência jurisprudencial. Aliás, Matilde Conti ensina que
Não se pode deixar de reconhecer que o dentista compromete-se a atuar usando toda técnica e conhecimento disponíveis na tentativa da cura, significando que, no exercício profissional, o dentista tem obrigação de meio. Ele tem compromisso com a cura, mas não tem obrigação de curar, impondo-lhe sim, a obrigação de ser diligente.[15]

Já foi dito que em alguns países da Europa o dentista é médico, para todos os efeitos, mas apenas para melhor ilustrar o tratamento jurídico conferido aos odontologistas, transcreve-se a ementa do acórdão no Processo 67/2001.P1, do Tribunal da Relação de Porto, de relatoria de Filipe Caroço:
II — Estando em causa actos médicos contratados entre o médico e o paciente, pelos quais são prestados serviços clínicos, existe um contrato de prestação de serviços a que se aplicam as regras próprias do mandato, já que a lei não regula a contratação daqueles serviços de modo especial.
III — Não obstante essa qualificação, o resultado a que alude o art.º 1154.º do Código Civil deve considerar-se não a cura, mas os cuidados de saúde, por se tratar de uma obrigação de meios.
(…)
VII — Não age com culpa o médico dentista que, após diagnosticar a causa da dor e a necessidade de extracção, extrai um dente do siso, tendo pata tal administrado uma anestesia regional, seguida de duas anestesias locais, por se manter a sensibilidade à dor, apesar de, durante a prática desse acto, ter ocorrido a fractura da correspondente mandíbula, que, por si só, não significa violação da leges artis.[16]

Observe-se o mesmo cenário, de equiparação do odontologista ao médico, no acórdão no Processo 1889/15.4T8CSC.L1-7, do Tribunal da Relação de Lisboa, de relatoria de Carlos Oliveira:
O ato médico de extração de um dente a um paciente, por implicar uma ação invasiva, com necessária e inevitável lesão do corpo de uma pessoa, mesmo que no caso concreto fosse tecnicamente adequado a solucionar o problema de saúde do doente e a melhorar o seu bem-estar, é ilícito se não for realizado com o consentimento do lesado (Art.s 70.º e 340.º do CC e Art. 156.º do CP).[17]

É de se notar, de forma cristalina, que a atuação do odontologista é médica, sob a ótica jurídica, em Portugal. Sendo ato médico, a obrigação é de meio. No Brasil, Silvio Venosa já aponta que em determinados casos, a obrigação do cirurgião-dentista é de meio e não há dissenção a respeito disto. Trata-se da atuação nas áreas de traumatologia buco-maxilo-facial, endodontia, periodontia, ortopediatria e ortodontia.[18] A discussão sobre se a obrigação é de meio ou de resultado cinge-se à atuação dos odontologistas em procedimentos que teriam a chamada “finalidade estética”.

Parte desta discussão perpassa pela alegação de que a obrigação do cirurgião plástico, justamente pela finalidade estética de sua atuação, seria de resultado. Novamente, ignora-se a complexidade e a unicidade do corpo, cuja abordagem e manipulação não é precisa.

Não à toa, a Resolução 1.621/2001, do Conselho Nacional de Medicina, expressamente dispõe a prática do ato médico na cirurgia plástica como “obrigação de meio e não de fim ou resultado”, ao mesmo tempo em que informa que a finalidade da cirurgia plástica é trazer benefício à saúde do paciente — benesse esta que pode ser física, psicológica ou social.

Alguém dirá que a resolução pretendia tratar das cirurgias plásticas reparadoras, porque, em tese, a responsabilidade do profissional de saúde, nestes casos, seria de resultado, mas também a cirurgia plástica puramente estética visa ao benefício à saúde do paciente, ainda que psicológica e, admita-se, não deixa de ser um procedimento sujeito aos mesmos riscos e patologias que qualquer outro. Aliás, neste mesmo passo, Carlos Alberto Menezes já ensinava:
A responsabilidade civil do médico não pode ser analisada sob o ângulo exclusivamente técnico, uma vez que sempre se deve levar em consideração as circunstâncias peculiares ao exercício da profissão. (…) Por isso, é que se pede ter sempre a consideração de que o médico não pode assumir, em nenhuma circunstância, a responsabilidade objetiva. Daí, ao meu ver, por exemplo, a impertinência de se identificar a cirurgia plástica embelezadora como de resultado, pois ela não é diferente de qualquer outro tipo de cirurgia, estando subordinada aos mesmos riscos e às mesmas patologias.[19]

A obrigação do profissional de odontologia, portanto, seja de qual ramificação for, assim como a dos médicos, é de meio e não de resultado, considerando-se que são complexas as inúmeras manifestações orgânicas, nem sempre afetas ao controle do odontologista ou do médico. Também não se pode, portanto, admitir que o “fim estético” dos procedimentos odontológicos direcionem, necessariamente, a obrigação do odontologista para o resultado, já que, a exemplo dos profissionais de medicina, também os procedimentos dentais guardam sua complexidade e risco. E mais, mesmo no caso da odontologia estética, o dentista “não está obrigado a obter um resultado, mas sim, a empregar todas as técnicas e meios adequados, conforme o estado atual da ciência, para obter o melhor possível, sem prejuízo do equilíbrio funcional e estético”.[20]

É de se destacar que, na esteira do que ensina Matilde Condi, independentemente da natureza da relação do vínculo entre o dentista e o seu cliente, na obrigação de meio, o ônus de provar que a obrigação de meio foi infringida recairá sobre o prejudicado, razão pela qual a alegação de inadimplemento contratual também seria afastada.

Portanto, a análise da responsabilidade do dentista não pode deixar de considerar a culpa, nos termos do que preconiza o CDC, quando trata da responsabilização do profissional liberal, sendo a obrigação do dentista, de meio, tal como do médico, posto que não é possível exigir precisão sobre a manipulação do corpo (do qual a boca faz parte), já que tal manipulação é “sempre aleatória”.[21]

JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

 


[14]KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 7. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 74-5.

Abner Brandão Carvalho é advogado, sócio do escritório Conde Advogados.

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Suicídio de preso em delegacia não gera responsabilidade do Estado

Filho de preso que cometeu suicídio em delegacia ajuizou ação por danos morais
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O juízo da 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal negou, por unanimidade, provimento ao recurso do autor e manteve a decisão da 5ª Vara da Fazenda Pública que julgou improcedentes os pedidos de danos morais e materiais por conta de suicídio de preso em uma delegacia de polícia no Distrito Federal.

Na ação, o autor alega que seu pai se envolveu em um acidente de trânsito com um veículo de um policial militar. Ele (pai do autor) estava alcoolizado e foi preso em flagrante. Segundo a inicial, os policiais, mesmo tendo constatado a situação de desespero do pai  — que temia perder o emprego de motorista —, o deixaram sozinho em uma cela.

Os desembargadores da 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, por unanimidade, negaram provimento ao recurso do autor e mantiveram decisão da 5ª Vara da Fazenda Pública, que julgou improcedentes os pedidos de danos morais e materiais, decorrentes de suicídio de preso em cela de delegacia da polícia do DF, uma vez que configurado fato imprevisível.

Enquanto aguardava o pagamento da fiança, o pai do autor da ação acabou cometendo suicídio. Em razão disso, o filho ajuizou pedido de indenização por falha do estado em garantir a segurança e a integridade física do seu pai enquanto estava preso.

Na 1ª instância, o juízo apontou que, no caso, a responsabilidade do Estado restou afastada em razão da imprevisibilidade do ato extremo de suicídio. “No caso em apreço, conforme as provas colacionadas aos autos, não há previsibilidade de que o preso praticaria o autoextermínio. O evento deve ser previsível para que o Poder Público possa adotar medidas para evitar o dano e, dessa forma, configurar a omissão estatal.”

Ao analisar o recurso, os desembargadores ratificaram a decisão de 1ª instância e mantiveram a sentença. “No caso em apreço, conforme as provas colacionadas aos autos, não há previsibilidade de que o preso praticaria o autoextermínio. O evento deve ser previsível para que o Poder Público possa adotar medidas para evitar o dano e, dessa forma, configurar a omissão estatal.”.

0708913-74.2018.8.07.0018

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Direitos fundamentais em tempos de pandemia IV

Considerando a verdadeira avalanche de casos levados ao Supremo Tribunal Federal e decididos desde a decretação do estado de calamidade em nível nacional, bem como a miríade de temas discutidos, resulta absolutamente impossível tratar de todos, inclusive daqueles que envolvem diretamente a proteção de direitos e garantias fundamentais, em especial, contudo, quando se trata de avaliar a legitimidade constitucional de intervenções restritivas pelo poder público, seja por ação, seja mesmo por omissão.

Outro aspecto a ser levado em conta – e já são muitas as manifestações, também na ConJur, a respeito do tema – e que exerce significativo impacto também no tocante ao problema da restrição a direitos na pendência de um estado de anormalidade, como o atualmente vivenciado em todo o planeta, e, entre nós, em ritmo de galopante aceleração, é que no caso brasileiro (embora não só no Brasil) o contexto é ainda mais complexo e, na mesma medida, mais desafiante para as instituições de um modo geral e para o sistema judiciário, em particular.

É que, paralelamente à calamidade pública da pandemia e as imensas dificuldades no tocante à sua contenção e superação, o Brasil passa por uma crise política e econômica altamente explosiva, que, embora tenha iniciado há alguns anos, alcançou níveis praticamente sem precedentes equiparáveis desde os primeiros anos da década de 1990. A gravidade, contudo, do quadro atual, é maior e mais preocupante, visto que nos anos mais difíceis de instabilidade econômica e em parte também política (agudizada na breve Era Collor e sua implosão) referidos, não se verificaram, em termos quantitativos e em intensidade, tantas manifestações contra as instituições democráticas, e, em especial, em prol de uma intervenção militar.

Mas, como se já não bastasse que segmentos da sociedade civil protagonizem tais manifestações, essas são, não raras vezes, acompanhadas diretamente, em termos de presença física, ademais de legitimidades indiretamente, por integrantes da cúpula governamental, o que, aliás, tem sido diuturnamente debatido em todos os foros e também já chegou ao STF.

Nesse contexto, a pergunta elementar que se tem posto em causa é precisamente, se e em que medida, reuniões e manifestações públicas e mesmo, em termos gerais, o exercício da liberdade de expressão, pode ser utilizadas para ataca frontalmente a instituição que é, numa democracia representativa, o seu órgão mais importante, e mesmo a instituição que exerce, igualmente legitimada pela ordem constitucional, a função de garantir as próprias regras do jogo democrático (devido processo legislativo, direitos políticos etc.) e os direitos e garantias fundamentais em geral, sem os quais, por sua vez, inexiste um Estado Democrático de Direito que possa ostentar esse rótulo.

Tornando a questão ventilada mais concreta e inserida no contexto atual, é de se invocar aqui, dentre outros, o inquérito – cuja abertura foi requerida pela Procuradoria-Geral da República – autorizado pelo ministro Alexandre de Moraes, no bojo do qual se investiga atos em favor do AI-5 e do fechamento das instituições, republicanas, destaque para a verificação da existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia.

Note-se que na fundamentação da decisão foi apontado que a Constituição proíbe o financiamento e a propagação de ideais contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático (artigos 5º, XLIV; 34, III e IV), tampouco permitindo a realização de manifestações objetivando a destruição do Estado de Direito, mediante a superação de limites materiais ao poder de reforma constitucional, que constituem o núcleo substancial do dos princípios democrático e republicano, como é o caso do voto direto, secreto, universal e periódico, da separação de poderes e dos direitos e garantias fundamentais (Constituição, artigo 60, parágrafo 4º), ainda mais quando com isso se pretende ainda sustentar a instauração de um regime autoritário.

Além disso, a decisão referiu serem inconstitucionais, por não cobertas pelo manto protetor da liberdade de expressão, condutas e manifestações destinadas à aniquilação do pensamento crítico essencial a uma ordem democrática, assim como àquelas que pregam a violência, o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais.

À vista do inquérito que tramita na Suprema Corte brasileira, e como (pelo menos aparente) contraponto e mesmo contradição, assume ainda maior relevo a medida cautelar na petição 8.830, formulada pelo líder do PT na Câmara dos Deputados, decidida pelo ministro Celso de Mello, em 7 de maio de 2020, onde se buscava a interdição de carreata/manifestação em Brasília marcada para o dia 8 de maio.

De acordo com o autor da petição, cujo conteúdo aqui se transcreve em parte, extraído do relatório do prolator da decisão:

Com efeito, circula nas redes sociais do autodenominado ‘Comandante Paulo’, uma convocação de todo o povo brasileiro para estarem presentes em Brasília, no dia 8 de maio de 2020 (amanhã), com previsão de arregimentação de 300 caminhões e respectivos ocupantes, além de militares da reserva, civis, homens, mulheres e crianças. Segundo o vídeo de convocação divulgado, o objetivo do comboio e dos manifestantes será o de ‘dar cabo a essa patifaria estabelecida no País e representada (a patifaria) por aquela casa maldita do Supremo Tribunal Federal – STF, com seus 11 ‘gângsteres’, que têm destruído a Nação’. Trata-se de fato gravíssimo e que vem se somar às condutas, reiteradas já há alguns anos e com mais ênfase nos últimos meses, de um bando de celerados e acéfalos, reunidos em grupos de iguais, que estão promovendo, em todo o País e em Brasília (como as ações antidemocráticas investigadas em Inquérito da relatoria de Vossa Excelência), uma série de atos e ações inconstitucionais que objetivam, numa toada de aniquilação de Poderes (Legislativo e Judiciário) e supressão de garantias fundamentais, anular as conquistas democráticas tornadas realidades com a Constituição Federal cidadã, promulgada em 1988.

Pese o conteúdo das manifestações narradas e a existência do inquérito acima referido, o pleito não foi conhecido, dada a incompetência da Suprema Corte para examinar a matéria, pelo fato de não se referir a investigação solicitada a qualquer pessoa ou autoridade com prerrogativa de foro perante o STF.

O que aqui se impõe seja destacado, e por isso a relevância da decisão, é que embora pudesse ter o seu prolator, ministro Celso de Mello, se limitado ao não conhecimento, foram tecidas considerações importantes sobre o mérito do pleito, deixando claro que caso fosse conhecido e julgado, o resultado seria o seu rechaço, por frontal violação da liberdades de reunião e de manifestação e expressão consagradas na Constituição (artigo 5º, incisos XVI, IV e IX, respectivamente) e no direito internacional dos direitos humanos, designadamente na Declaração Universal da ONU, de 1948 (artigos XIX e XX), no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigos 19 e 21) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigos 13 e 15).

Dentre os argumentos invocados no seu voto, o ministro decano da Suprema Corte brasileira, além de invocar importantes precedentes, anotou:

…Vê-se, portanto, que o direito de crítica e o direito ao dissenso – desde que não resvalem, abusivamente, quanto ao seu exercício, para o campo do direito penal, vindo a concretizar, em virtude de conduta desviante, qualquer dos delitos contra a honra (calúnia, difamação ou injúria) –, encontram suporte legitimador em nosso ordenamento jurídico, mesmo que de sua prática possam resultar posições, opiniões ou ideias que não reflitam o pensamento eventualmente prevalecente em dado meio social ou que, até mesmo, hostilizem severamente, por efeito de seu conteúdo argumentativo, a corrente majoritária de pensamento em determinada coletividade (…) O pluralismo político (que legitima a livre circulação de ideias e que, por isso mesmo, estimula a prática da tolerância) exprime, por tal razão, um dos fundamentos estruturantes do Estado democrático de Direito! É o que expressamente proclama, em seu artigo 1º, inciso V, a própria Constituição da República. É por isso que se mostra frontalmente inconstitucional qualquer medida que implique a inaceitável “proibição estatal do dissenso” ou a livre manifestação do pensamento.

No tocante à posição adotada pelo ministro Celso de Mello – que aqui saudamos como correta e serena, ainda mais dadas as circunstâncias! -, esta não chega a surpreender, porquanto a despeito da intensidade das palavras direcionadas ao STF e seus integrantes, que no mínimo, em parte, permitiriam um enquadramento, em tese, na figura típica da injúria (a ser investigada e processada no foro próprio), o mais antigo magistrado em atividade na Suprema Corte, se manteve fiel a seus próprios precedentes, incluindo o multicitado caso da “marcha da maconha”, assegurando, em regra, posição preferencial às liberdades de reunião e expressão.

Tal entendimento, por sua vez, guarda estreita sintonia com a jurisprudência dominante formada pelo STF, em especial desde o julgamento da ADP 130, relatada pelo então ainda ministro Carlos Britto, que considerou não recepcionada pela Constituição a antiga lei de imprensa editada sob a égide do regime militar, do que dão conta, na sequência, outros julgamentos como o desnecessidade de prévia autorização do biografado em vida, da classificação etária apenas indicativa para a assistência de espetáculos, filmes etc., da liberação do humor (mas proscrição das assim chamadas fake news) na campanha eleitoral e mesmo, nesses últimos dias, da confirmação da decisão tomada em 2018, por ocasião do processo eleitoral, no sentido da ilegitimidade constitucional do ingresso por força policial em estabelecimentos de ensino para conter protestos e promover buscas e apreensões.

Da mesma forma, é este é um dos pontos a serem aqui sublinhados, não existe contradição (pelo menos por ora) entre a decisão do ministro Alexandre de Moraes, no Inquérito já referido, e a do ministro Celso de Mello, visto que no primeiro caso o que está em causa é a investigação da existência de atos diretamente atentatórios à própria democracia, caracterizados (a título de justificação adequada para a decisão) pelo apelo à intervenção militar, apoio ao AI-5, um dos mais autoritários (se não o mais violento) tomados pelo regime militar na sua pendência contra as instituições democráticas, para além do golpe de 1964 em si e outros desdobramentos.

O mesmo, contudo, não se verifica no julgado sobre a liberdade de reunião mais recente, ora anotado, pois o caso concreto que deu ensejo à petição não conhecida pelo STF, ainda que alinhado, no pedido, a outras como as investigadas no inquérito, não teve por objeto manifestação específica e diretamente voltada à reinstalação de uma ditadura militar, nem, neste caso, ao fechamento do Congresso Nacional, embora o tom mesmo beligerante assacado contra a Suprema Corte.

É claro, outrossim, que não se pode, como igualmente referido, ter como insustentável uma exegese que vislumbre também no caso decidido pelo ministro Celso de Mello uma afronta – ademais de uma possível injúria contra as pessoas dos ministros – a uma instituição que, independentemente da crítica que se possa querer proferir contra o seu modo de operar, suas decisões individualmente consideradas, etc., consiste no esteio institucional destinado a assegurar a garantia efetiva do cumprimento da constituição e da efetividade dos direitos fundamentais.

Embora essa é apenas uma leitura possível, de tal sorte que, à vista de diversas alternativas de interpretação do conteúdo do discurso impugnado e das circunstâncias, há de prevalecer aquela mais favorável e garantidora das liberdades comunicativas tão caras e essenciais à própria existência, em termos materiais, da democracia, o que, por sua vez, corresponde ao postulado da posição preferencial (embora não absoluta, como bem referido no próprio voto do ministro Celso de Mello) da liberdade de expressão e o da interpretação restritiva de eventuais restrições.

 é professor, desembargador aposentado do TJ-RS e advogado.