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Alessandro Leite: A procuradoria municipal na crise

Historicamente, o primeiro registro da advocacia pública no Brasil remonta ao 1º Foral de Olinda, datado de 1537, que trouxe a figura do procurador do Conselho da Villa de Olinda. Quase meio milênio depois, verifica-se que o déficit de procuradores municipais no cenário jurídico pátrio ainda é extremamente preocupante, o que não deixa de ser um grande paradoxo, tendo em vista que, apesar de sermos os primogênitos da advocacia pública brasileira, seremos, certamente, os últimos a ser instituídos na integralidade.

Indispensável pontuar nesse contexto o papel da Associação Nacional de Procuradores Municipais (ANPM), que vem há mais de duas décadas fomentando a instituição e o fortalecimento das Procuradorias Municipais no país, atendendo, desta forma, ao pórtico do artigo 132 da Carta Magna, que prevê a advocacia pública como função essencial à Justiça.

Há 17 anos, tramita no Congresso Nacional a PEC que constitucionaliza expressamente a carreira dos procuradores municipais. Aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados, atualmente a PEC encontra-se no Senado Federal, esperando pauta para votação. Nesse longo período de tempo, várias foram as tratativas e articulações no meio político. A aprovação ainda não veio, é bem verdade, mas ainda assim os avanços continuam e são inegáveis.

Em 2019, tivemos uma grande vitória no Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do RE 663696. impetrado pelos destemidos colegas da Procuradoria de Belo Horizonte. Nos autos, discutia-se o teto remuneratório dos procuradores municipais. No mérito, obtivemos a confirmação, por meio da Egrégia Corte, em sede de repercussão geral, de que estávamos insertos no seleto rol das funções essenciais à Justiça previstas no Capítulo IV, Título IV, da Constituição Federal.

Com efeito, tem a ANPM buscado a criação de procuradorias nos 5.570 municípios brasileiros. São abnegados colegas, figurando ora como delegados, ora na diretoria, ou mesmo integrando o Conselho Deliberativo através da presidência das várias associações locais, além de contar com voluntários que se espalham pelo país em busca do fortalecimento das procuradorias e das carreiras de procurador municipal.

Na Paraíba, por exemplo, avançou-se muito nos últimos dois anos com a celebração de cerca de 185 termos de ajustamento de conduta pelo Ministério Público Estadual, fato que propiciará a realização de mais de cem concursos para procurador municipal no Estado. O caso foi tão exitoso e teve tamanha repercussão que foi apresentado no último Congresso Nacional de Procuradores Municipais, realizado em Brasília, em outubro de 2019, culminando com a promessa de que a experiência seria replicada pelos colegas em outras regiões do país.

Com a decretação da Pandemia da Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde no mês de março do ano corrente, a situação jurídico- institucional dos entes federados e de seus respectivos servidores foi profundamente modificada. O advento do teletrabalho como regra, a edição quase que diária de atos normativos para disciplinar o período extraordinário, a intensa litigiosidade entre os entes… Além disso, outros grandes debates emergiram. Costuma-se dizer que o Direito está sendo literalmente reescrito nos dias atuais.

Nesse passo, entre as discussões acima mencionadas, destaca-se no contexto associativo da ANPM a que trata da viabilidade ou não da realização das eleições municipais neste ano. Há várias correntes de pensamento sobre o tema, bem como PECs tramitando no Congresso Nacional para tratar do assunto, dada a relevância e urgência da matéria.

Desta feita, em apertada síntese, três possibilidades surgiram:

I ) Realização do pleito em outubro, como normalmente ocorre;

II) Adiamento do pleito para dezembro;

III) Cancelamento do pleito e, consequentemente, a unificação dos mandatos e das eleições para todos os cargos eletivos em 2022.

Tem ganhado corpo no mundo político/jurídico e tem sido defendida, inclusive, pelo presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, a tese estabelecendo que as eleições municipais devem ser realizadas neste ano, sendo adiadas para o mês de dezembro. Segundo essa possibilidade, teríamos o chamado primeiro turno no primeiro domingo de dezembro e o segundo no terceiro domingo, às vésperas do Natal. No tocante aos novos mandatos, não teríamos mudanças, eles iniciariam em 1º janeiro de 2021.

Ressalte-se, por oportuno, que nos municípios brasileiros temos eleições bastante acirradas, com envolvimento direto dos munícipes nos pleitos. É preciso lembrar ao leitor, também, o caráter extremamente heterogêneo dos municípios brasileiros. Enquanto temos de um lado cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, com alguns milhões de habitantes, temos também Araguainha, Borá e Serra da Saudade, que não completam sequer o primeiro milhar de habitantes, de acordo com os dados oficiais.

É prática comum nos municípios brasileiros a não efetivação da chamada transição democrática entre antecessores e sucessores. Não obstante o aperfeiçoamento e o fortalecimento dos órgãos de controle, bem como das recomendações dos Tribunais de Contas e do monitoramento dos Ministérios Públicos Estaduais, o que se vê é a sonegação desenfreada de informações, a exclusão de dados em sistemas, o sumiço de materiais e equipamentos, entre outras atitudes capazes de inviabilizar a futura gestão.

Isso num cenário em que os “novos gestores” tinham 60 ou 80 dias para se inteirar da realidade que encontrariam no primeiro dia de mandato. Imagine em um cenário de 10 dias de transição, com as festividades de fim de ano entre eles.

Nessa difícil, mas provável, conjuntura que se avizinha, emerge a importância cada vez maior da figura do procurador municipal de carreira, nomeado após concurso público de provas e títulos. Detentor de parte da memória jurídica do município, ele certamente facilitará os primeiros dias da gestão, propiciando que esta possa ter conhecimento da realidade “intra muros”, permitindo o compartilhamento de informações e auxiliando o novo gestor nos primeiros passos do mandato.

É pelos procuradores municipais que o novo gestor saberá quais os programas estão sendo executados e não poderão sofrer interrupções, mormente em razão da sucessão do gestor. Além disso, a PGM vai instruir, juridicamente, os primeiros atos do governante, como elaboração de leis decretos, portarias, etc. Importante lembrar que o município poderá estar sujeito a alguma obrigação imposta pelo Judiciário e, neste caso, somente o procurador poderá informar como o novo prefeito deverá proceder diante de uma sentença judicial.

O escolhido nas eleições não pode ter ciência de todos esses fatores apenas depois do início do seu mandado. Esse conhecimento deve acontecer antes da sua posse, mesmo porque alguma informação poderá e deverá influir nos primeiros atos da nova gestão. Nesse ponto, ressalta-se a importância de uma transição de mandatários clara, amistosa e em sintonia com os melhores interesses dos administrados, o que resta prejudicado com a sensível diminuição do período desta passagem, mas o que se tornaria impraticável sem a iluminação jurídica emanada dos essenciais procuradores municipais, os quais preexistem a qualquer governante e permanecem na Administração após o término do mandato.

Não se sugere no presente que o procurador seja a panaceia para os tempos de tormenta a serem enfrentados pelo gestor, mas certamente dividir o fardo com uma procuradoria instituída e qualificada facilitará a travessia.

É tempo de fortalecer as instituições, elas são o fundamento do Estado democrático de Direito e esse é o porto seguro para efetivação de valores fundamentais previstos na Constituição Cidadã.

 é procurador do município de Campina Grande (PB) e diretor da ANPM.

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Ney Bello: 30 anos de Marco Aurélio

Em “Avatares da Tartaruga”, Jorge Luis Borges nos lembra do paradoxo de Zenão: “Aquiles corre dez vezes mais rápido que a tartaruga e lhe dá uma vantagem de dez metros. Aquiles corre esses dez metros, a tartaruga corre um; Aquiles corre esse metro, a tartaruga corre um decímetro; Aquiles corre esse centímetro, a tartaruga um milímetro; Aquiles pés-ligeiros o milímetro, a tartaruga um décimo de milímetro, e assim infinitamente, sem alcançá-la…”.

A tartaruga nunca é vencida. Está sempre à frente do seu tempo. Sempre adiante da retumbante força de Aquiles. É um paradoxo que seja menor, mais lenta, menos punjante e ao mesmo tempo esteja sempre ali… Na dianteira do tempo e do espaço, renitente e sempre presente… Jamais vencida, quando o olhar se desloca para além do tempo presente.

Nas Cortes Constitucionais, a voz da maioria tem a força e a velocidade do herói da guerra de Troia. Formada a maioria, ela conduz, define e decide, mesmo que seja possível observar a racionalidade e a solidez sob o casco da tartaruga de Zenão de Eléia.

Ser a voz da minoria é desafiar os pés ligeiros de quem corre como o vento, na poética de Homero; é compreender o seu afazer judicante como a necessária voz dos que pensam dissonantemente e precisam ser ouvidos no Supremo Tribunal Federal.

Nos tempos que correm, vivemos embates que refletem a necessidade da tolerância, a urgência da pluralidade, a premência da discordância e a maturidade da dialética da argumentação. Precisamos, com o literato Borges e com o filósofo Zenão, acreditar que a tartaruga da racionalidade, a tartaruga da minoria, a tartaruga da discordância jamais será vencida, ainda que Aquiles seja festejado pela força grega em toda Troia.

Neste dia 13 de junho de 2020, Marco Aurélio Mendes de Farias Mello completa 30 anos de magistratura no Supremo Tribunal Federal.

Antes de laudar 30 anos de judicatura no Pretório Excelso, o que mais importa é aplaudir a divergência, festejar a discordância e comemorar a existência na corte de quem obstinadamente não se incomoda em ser voz destoante e naquele momento se ver vencido, ainda que a história venha a lhe dar razão.

Sua posse ocorreu em 1990, quando ainda vivíamos o clima festivo da entrada em vigor da nova Constituição Federal. Após a promulgação da constituição cidadã, Marco Aurélio chegava ao Supremo levando consigo suas marcas indeléveis: o gosto por duvidar de tudo que aos outros pudesse parecer óbvio; o não aceitar respostas prontas ou argumentos de autoridade; o não ter compromissos com ideias alheias, apenas com a sua própria compreensão acerca de uma questão jurídica; e o de ser intransigente com seus próprios pressupostos.

Sua postura, percebida algumas vezes como heterodoxa, valeu-lhe em muitos anos a posição minoritária, ao ponto de ganhar o honroso apelido de “senhor voto vencido”! O caminhar da história, fazendo o Supremo evoluir para posições mais modernas e conectadas com a sociedade brasileira, permitiram ao Ministro Marco Aurélio tornar-se o condutor em seus votos de diversas questões relevantes, confirmando muitos dos acertos de outrora, quando lhe era natural a posição de minoria.

A análise da jurisprudência construída pelo aniversariante permite caracterizá-lo também como um liberal que reconhece as mutações da sociedade e se opõe ao frio congelamento dos fatos que o arcadismo do Direito sempre impõe. Não é por acaso que um dos seus posicionamentos mais relevantes tenha começado com uma citação de Padre Antônio Vieira, para quem o tempo não tem consistência e não se pode parar o momento, pois é resolução universal e insuperável o tempo passar… E sempre.

Passa o tempo, mas não passam as decisões. É inexorável!

Convém lembrar que já em 1998 ele compreendia e fazia a Corte Suprema entender que em face dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e da interpretação constitucionalmente adequada do artigo 5˚ da Constituição vigente, a prisão civil do depositário infiel violava o princípio da proporcionalidade. Posteriormente, em 2008, com a clara ofensa ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San José da Costa Rica, o STF acolheu a posição liberal que já se mostrava correta dez anos antes.

A compreensão do Ministro Marco Aurélio, segundo a qual o depósito cível era uma ficção e a prisão, desproporcional e, posteriormente, ofensiva aos Tratados Internacionais —, foi reconhecida historicamente, e demonstrou a sina da tartaruga que não é jamais alcançada pelos pés ligeiros de Aquiles: a história transformava o senhor voto vencido em vencedor!

Em 2012, o liberalismo necessário e a vetorização do pensamento da minoria menos conservadora volta a brilhar em memorável voto. No dia 13 de abril, chegava ao fim o julgamento que reconheceu o direito das grávidas de fetos anencefálicos de optar pelo aborto, com assistência médica. O julgamento da ADPF 54 foi um marco na corte por superar o tom clássico e conservador do discurso jurídico para assenhorar a decisão judicial da racionalidade, tão cara à modernidade. Talvez Nelson Rodrigues dissesse do voto do Ministro Marco Aurélio que, em fim, observou-se no Supremo “a vida como ela é”.

De tantas questões que demostraram a relevância do Supremo Tribunal Federal, é necessário também destacar a firme defesa feita pelo ministro da posição contrária à prisão após decisão condenatória em segunda instância.

Com sólidos argumentos que logo depois se tornaram majoritários, Marco Aurélio sempre defendeu a inconstitucionalidade da posição punitivista. Sempre sustentou que não era possível, na ordem vigente, compreender que o pressuposto da culpa necessário à aplicação da pena pudesse surgir de decisão pendente de recurso. Em outra Constituição, em outro país, em outro sistema… Quem sabe! No modelo promulgado em 1988, jamais!

Em todas estas decisões que se espraiam por três décadas, é possível perceber um traço marcante da personalidade do magistrado: a tranquilidade com que rotineira e renitentemente não se incomoda em ser minoria, não se amofina em ser vencido e não se ofende com ser contrariado pela maioria.

É mesmo admirável que após 30 anos esta característica não tenha se modificado e cedido espaço ao cômodo acompanhamento da força de Aquiles.

Voltando a Borges e a Zenão, pode-se dizer que a tartaruga tem o casco duro.

E não menos admiráveis são a pontualidade e assiduidade, e a total ranhetice vamos chamar assim com que trata dias de sessões e seus horários, como que a acreditar que a liturgia e o compromisso judicante sejam primordiais e prioritários.

Os 30 anos chegam, e olhar para trás permite ver que o tempo passou. Mas os seus votos, agora gravados em mídia digital graças à TV Justiça, obra administrativa sua de extrema relevância quando da presidência da casa, eternizam a magistratura da minoria, a magistratura das vozes não ouvidas e a elegia da divergência. Permitem ver que a judicatura não passará.

Em tempos de tantas vozes roucas que mais uma vez, como ciclicamente sói acontecer, verberam contra a democracia e contra a independência entre os poderes, é hora de festejar a divergência e a discordância democráticas.

Era hora de dizer: Parabéns, “senhor voto vencido”!

 é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

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Bruno Caires: Vivemos tempos de terraplanismo jurídico

Em tempos em que temos a sensação de que o século XXI ainda não floresceu sobre nossa sociedade e o velho insiste em querer governar, não é raro nos depararmos com situações que de tão absurdas são relegadas ao risível. Porém, tal qual o paradoxo da tolerância, no qual ser tolerante até as últimas consequências efetiva a intolerância, fazer troça do absurdo parece legitimá-lo. Há situações nas quais as circunstâncias não possibilitam ignorar o óbvio, se há fantasmas, temos a obrigação de espantá-los, sejam eles reais ou não.

Por isso, não custa retomar certos conceitos sobre Teoria da Constituição e sua construção, passível de ser definida, entre outros, como uma teoria sobre a legitimidade do poder para atribuir reconhecimento às instituições políticas criadas quando se toma a decisão política fundamental de instituir um Estado Novo. A ideia que normalmente se associa à figura do poder constituinte originário consiste em caracterizar esse poder como uma força capaz de criar, a partir de uma ruptura com o poder político vigente, uma ordem jurídica, política e social, sem qualquer limitação a conteúdos jurídicos anteriores.

Por vezes passa despercebido uma sutil, porém fundamental, distinção conceitual promovida por Canotilho, que define em três verbos diferentes experiências constituintes: os ingleses compreendem o poder constituinte como um processo histórico de revelação da “constituição da Inglaterra”; os americanos dizem num texto escrito, produzido por um poder constituinte, “the fundamental and Paramount law of the nation”; os franceses criam uma nova ordem político-jurídica através da “destruição” do antigo e da “construção’ do novo, traçando a arquitetura da nova “cidade política” num texto escrito. Assim, “revelar’, “dizer” e “criar” são os modi operandi de diferentes experiências constituintes. São de sobremaneira importantes estas distinções colocadas, pois criam tradições constitucionais bem distintas.

Na lógica da teologia política da Europa na Revolução Francesa, o povo, instituído como ator político capaz de derrubar o regime e cortar as cabeças da monarquia, vê-se em um momento de elevada consciência política e de apropriação do espaço público. Esse instante de crise gerado pela efervescência revolucionária produz um momento histórico singular, que permite a criação de uma nova ordem política por meio de uma constituição.

Por certo, nosso movimento político que consubstanciou na Constituição de 88, embora despido de efervescência revolucionária, foi produto de uma ação do povo (Diretas Já, greves gerais) instituído como ator político que derrubou o regime vigente. A consciência política e a apropriação do espaço público por esse povo organizado possibilitaram a derrubada da ditadura militar e a criação de uma nova ordem política descrita na Constituição, o que, intuitivamente, por si só, demonstra o tamanho da contradição em pretender extrair a possibilidade de tutela militar de quaisquer uns de seus artigos.

Aventar atribuir alguma função política aos militares para além daquelas adstritas à defesa inexoravelmente ignora a essência da Constituição, que, conforme as lições de Schmitt, não está contida numa lei ou numa norma, porque toda normatização reside de uma decisão política do titular do poder constituinte, o povo como ator político organizado na democracia. Esta essência, ou “fenômeno originário”, é a aclamação, o grito de “aprovação ou de recusa da massa reunida”. Portanto, antes que seja forjada a Constituição, é imprescindível que seja feita uma pergunta fundamental, capaz de atribuir legitimidade à decisão política fundamental através da organização dos desejos esparsos na sociedade.

É evidente e, se de outro modo fosse, não existiria razão para criar uma nova ordem constitucional, que a pergunta oferecida à sociedade brasileira consistia em superar ou não o regime ditatorial e recebeu como resposta um uníssono coro sinalizando uma transcendente vontade de construir um futuro democrático. Assim, a razão de ser de nossa Constituição é, precisamente, a construção de um futuro democrático e é justamente nessa ideia de Direito que reside sua força normativa.

Nessa perspectiva, a Constituição nada mais é senão a resposta que a sociedade dá à crise política vivida no momento constituinte e as ideias (utopias) que exprime como norte a ser buscado pelo Estado que pretende instituir. Do ponto de vista da legitimidade política, e aqui fazendo uma abstração do conceito jurídico normativo, a ser indagado sobre para que serve uma Constituição, a resposta do corpo social poderia ser dada parafraseando Eduardo Galeano: a Constituição está lá no horizonte e serve para caminharmos em direção à superação da crise. A sociedade se aproxima dois passos, ela se afasta dois passos. Caminha dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que caminhemos, jamais alcançaremos. Para que serve a Constituição? Serve para isto: para que não deixemos de caminhar em direção ao Estado idealizado em um instante político revolucionário.

Esse Estado brasileiro criado tal qual a tradição francesa destrói a ordem política anterior em movimento característico de ruptura. Tal alinhamento teórico é demonstrável na medida em que a própria Constituição insiste em regular diversas minúcias da vida cotidiana, em clara preocupação de constitucionalizar temas ordinários como medida afirmativa dessa transgressão. Se do ponto de vista jurídico esse processo é claramente demonstrável em virtude da própria necessidade de se promulgar uma nova Constituição, também é fato que as forças reais de poder impediram, no caso brasileiro, o “corte das cabeças” dos ditadores, salvos pela Lei da Anistia.

Como presumível, o fato de terem mantido intacto os pescoços apenas reforça o argumento de que perderam o protagonismo. Se o presidente Bolsonaro outrora bradava para forças de esquerda no congresso: “Perderam em 64, perderam em 2016”, não há dúvidas de que os militares perderam em 88, com a singularidade que dessa derrota resultou uma nova ordem constitucional, construída sobre os conceitos de Estado e sociedade daquela quebra de ordem. Esses conceitos, ao serem fixados por meio de uma expressão de linguagem que como tal um texto escrito —, carrega uma forte carga axiológica em sua semântica, não autoriza nenhuma possibilidade de interpretação que permita o país viver sobre qualquer tutela militar.

Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, no discurso de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, dizia que ela havia sido escrita com “sopro de gente”, com “ódio e nojo à ditadura” e que “a nação quer mudar. A nação deve mudar. A nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança”. A mudança ao qual se referia era, acima de todas as outras coisas, uma mudança para o regime democrático e toda sua bagagem de respeito aos direitos humanos e fundamentais.

Temos por claro que a ordem constitucional não se restringe à literal manifestação do poder constituinte. A construção da ordem constitucional pertence à sua comunidade política e inicia-se no momento da promulgação da constituição. Conforme precisamente delimitado por Häberle, a Constituição não se limita a ser um conjunto de normas jurídicas, mas é expressão de desenvolvimento cultural e político de todo um povo que fundamenta nela suas esperanças e desejos. A Constituição, enquanto documento escrito, dotado de legitimidade democrática, de rigidez e supremacia normativa, é ponto de partida do processo de vivência constitucional, que apenas se inicia com o apagar das luzes do trabalho constituinte, carregando consigo uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado.

As barreiras do texto impõem ao intérprete apenas duas posturas possíveis, conforme lecionado por Canotilho: a primeira, adotada por aqueles que conscientemente aderem a concepções ideológicas e políticas distintas da mensagem ideológica consagrada no texto, utilizando-se de fundamentos interpretativos que lhes permitam amesquinhar a estrutura normativa da Constituição. Foi a orientação seguida à risca pelos nazistas, perante a Constituição de Weimar, por aqueles que, combatendo o caráter progressista, liberal e democrático do texto, acabaram por sobrecarregar a Constituição real, banalizando seu caráter normativo. Há, contudo, uma posição que guarda sintonia com os princípios fundamentais atinentes à conformação política e jurídica da sociedade, ao qual caracteriza por ser um “prudente positivismo”, indispensável à manutenção da obrigatoriedade normativa do texto constitucional.

Por esta razão, também o texto é um limite ideológico que estabelece o ponto de partida para a interpretação. A ideologia constitucionalmente adotada é perfeitamente determinável e definível no bojo do discurso constitucional, vinculando o interprete na medida em que repudia a postura assumida por quantos optam por concepções ideológicas dela diferentes. Assim, ideologias que não se conformem com o Estado democrático de Direito, como essa impertinente insistência em atribuir protagonismo político às Forças Armadas, resultariam em interpretações inconstitucionais e destoariam do compreendido como limites à atuação política dentro da sociedade brasileira. É justamente o caso daqueles que buscam extrair do artigo 142 da Constituição Federal algum tipo de autorização para as Forças Armadas intervirem em algum conflito entre os poderes. Desnecessário anuir que a Constituição repele qualquer tipo de intervenção militar constitucional. Trata-se do mais claro oxímoro já produzido no debate público brasileiro.

Bruno César de Caires é sócio do escritório Caires, Marques e Mazzaro Advogados, mestrando em Direito Constitucional na Universidade de Lisboa e professor assistente de Direito Constitucional na PUC de São Paulo.

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ONG feminista ajudará mulheres vítimas da violência no RS

As mulheres vítimas de violência doméstica e familiar no município de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, acabam de ganhar o apoio das chamadas promotoras legais populares (PLPs). Durante a epidemia da Covid-19, elas é que farão o monitoramento e o encaminhamento de informações ao Juizado da Violência Doméstica e Familiar da comarca sobre a situação das mulheres que conseguiram medidas protetivas de urgência.

ONG irá proteger vítimas de violência doméstica no Rio Grande do Sul
Reprodução

Trata-se de uma parceria firmada entre o Poder Judiciário local e a organização não governamental Themis, responsável pela formação das PLPs, para criar uma rede de proteção individual às vítimas que já possuem medidas protetivas.

A ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos foi criada em 1993 por um grupo de advogadas e cientistas sociais feministas com o objetivo de enfrentar a discriminação contra mulheres no sistema de justiça.

Modus operandi

Segundo o Tribunal de Justiça gaúcho, a Themis fará a distribuição dos casos às PLPs, sistematizará as informações, prestará assessoria às Promotoras e, por fim, repassará ao Judiciário os dados relacionados ao monitoramento. Com estes dados em mãos, os magistrados poderão decidir se deferem, prorrogam ou revogam as medidas protetivas de urgência ou adotam outras providências que se fizerem necessárias.

As PLPs são mulheres da comunidade que recebem formação sobre questões culturais e jurídicas relativas à violência doméstica e de gênero. Em Canoas, elas estão distribuídas em diversos bairros e serão responsáveis pela formação de uma rede de proteção individualizada das vítimas em situação de violência encaminhadas pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar da cidade. As informações a respeito dos casos tratados são sigilosas.

O monitoramento será realizado por telefone, em razão da necessidade de distanciamento social. Em casos especiais, que requererem a presença, elas encaminharão a demanda aos serviços da rede que seguem prestando atendimento emergencial (Brigada Militar, Patrulha Maria da Penha, postos de saúde e hospitais).

Parceria contra a violência

Ao justificar a proposta, a juíza Fabiana Pagel da Silva, titular do Juizado da Violência Doméstica e Familiar de Canoas, considera que a parceria fortalece o sistema de atendimento e proteção à vítima, previsto pela Lei Maria da Penha.

‘‘Diante da ampliação da convivência familiar em razão do isolamento social imposto pela pandemia, padrões de gênero e seus conflitos afloram e devem ser enfrentados pelo Judiciário, o que significa que a Lei vem novamente nos pedir criatividade para sua efetividade, exigindo o fortalecimento das redes de enfrentamento, de forma a alcançar mulheres em situação de violência doméstica sem que para tanto se exija que coloque sua saúde e de seus familiares ao deixar suas residências para procurar socorro’’, destaca a juíza. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-RS

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Tratamentos normativos da morte para famílias em luto

Tem sido afirmado que a morte é um tema que nos ocupa uma vida inteira, porque sempre se tenta entendê-la embora todos a saibamos inevitável. Menciona Voltaire que “a raça humana é a única que sabe que há de morrer e só o sabe pela experiência”. Entre perdas e lutos, enquanto se vive, agimos, porém, como se eternos fossemo-nos, em um paradoxo inexplicável e mais ostensivo pelos soberbos.

Fato, afinal, é que somos finitos e essa finitude humana tem sido dolosamente vivenciada pelas famílias em luto, diante das vidas que têm sido delas subtraídas; prematuramente, em todos os casos, pela Covid-19. A certeza da finitude, por certo, nos fará mais solidários com o próximo, em solidariedade fundante, dentro da pandemia, de uma nova alvorada da consciência humanista da mortalidade.

Dirá Fernando Pessoa: “Morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada” (1932), enquanto Sigmund Freud, de seu sofá, escreveu “Luto e Melancolia” (1917). As famílias em luto também agonizam, pelo súbito choque humanitário jamais experenciado, com a vivência progressiva da morte que a Covid coloca nas horas de cada dia, e a dor de cada um é a nossa dor.

Allan Kellehear, em “Uma História Social do morrer” aponta: “Estamos presenciando a ascensão de formas indignas de morrer. Não são as doenças e as ciências médicas que apresentam os maiores testes morais ao morrer moderno, mas a pobreza, a velhice e a exclusão social” (1). De fato, morrer de vulnerabilidades sociais, de frágeis ancianidades ou de serviços débeis de saúde pública, criam o nascimento das mortes indignas e incômodas.

A atual pandemia, diante de seus resultados trágicos, tem reclamado nova consciência social e novos tratamentos normativos da morte, a regular circunstâncias incomuns, que minimizem a desolação dos sobreviventes.

(i) Orfandade dupla — O primeiro deles, “de lege ferenda”, diz respeito “à orfandade dupla”. Inúmeras famílias têm perdido não apenas um de seus membros, mas dois ou três, em sucessivas perdas. Designadamente, morrem os pais provedores, deixando os filhos em orfandade dupla.

Não custa lembrar a Lei nº 7.070/1982, que constituiu pensão especial previdenciária às vítimas do medicamento Cotegan-Talidomina, cujo uso provocou a deformação de fetos e o nascimento de crianças com sérias deficiências (02). 

Em primoroso estudo tratando dos danos hedônicos, Marcelo Lannes sublinha: “(…) Historicamente o Estado Brasileiro já reconheceu a sua falha na prestação de serviços e como consequência o dano causado na vida de milhares de pessoas; tendo-se em exemplo as pensões especiais pagas às vítimas da Síndrome de Talidomida (Lei no 7.070/82), aos familiares das vítimas fatais da hemodiálise de Caruaru (Lei no 9.422/96), às vítimas do acidente Césio-137 em Goiânia (Lei no 9.425/96) e aos atingidos pela hanseníase submetidos à internação e tratamento compulsórios (Lei no 11.520/07) além da pensão mensal, vitalícia e intransferível às crianças com microcefalia decorrente do vírus Zika (MP 894/2019)”. (03)

Pois bem: em objetivação legal, à luz do solidarismo social, novo paradigma ressarcitório deve contemplar situações que tais, pelo que de logo se propõe, que aos filhos menores, em orfandade dupla, possam terem garantido por lei, uma pensão especial para uma subsistência mais digna.

Por certo, a figura jurídica do tutor (art. 1.728, I, do Código Civil), será empregada com sua nomeação, seja testamentário, legitimo ou por escolha judicial (art. 1.732, Código Civil), podendo, a tanto, nesse último caso, por idoneidade da opção, avocarem-se ao “múnus” qualificado, as denominadas “mães sociais”, em suas funções primordiais de amparo aos órfãos. Estas, nos termos da lei, são as que “dedicando-se à assistência ao menor abandonado, exerça o encargo em nível social, dentro do sistema de casas-lares” (Lei nº 7.6441/87, de 18 de dezembro).

De efeito, impende urgente atualização da reportada lei, a contemplar a figura da mãe social, excepcionalmente fora do sistema dos abrigos, no objetivo de atender os órfãos da pandemia; redimensionando-se, a tanto, essa importante atividade social. Bem de ver que a Lei nº 7.644/87 aguarda há dezesseis anos a sua alteração (PL nº 2971/2004), quando ali se estende a atividade ao “pai-social”, em garantia constitucional de igualdade de gênero.

A morte tem sua vida no direito, e nessa perspectiva, v.g., no direito de família, encontramos a viúva, o pai póstumo, o órfão e o nascituro órfão, o casado noncupativo (“in extremis”), o adotado “post mortem”, o curador do morto-vivo. Na bioética (que com ele guarda intimidade), estão questões como a ortotanásia, em termos de suspensão artificial da vida, o testamento vital como diretivas antecipadas ao processo de dignidade da morte, o paciente moribundo e a autonomia da vontade e, ainda, os prontuários médicos.

Com a pandemia, novos institutos jurídicos, por certo, serão agregados ao direito de família, a exemplo da “orfandade dupla” e da “magnitude do luto familiar” (04)

(ii) A cerimônia do cadáver — Agora, novos normativos regem a morte sob os influxos da pandemia, na administração mortuária de questões imediatas, sem mais burocracias desmedidas. A morte tem pressa diante de uma ordem jurídica atrasada para as situações dramáticas de exceção.

O principal normativo, em sua essencialidade, está na Portaria Conjunta nº 02/2020, da CNJ/Min. da Saúde, de 28 de abril, que dimensiona a cerimônia do cadáver. Ficam estabelecidos procedimentos excepcionais para os sepultamentos de corpos nas hipóteses de ausência de familiares, de pessoa não identificada, de ausência de pessoas conhecidas do obituado, e em razão de exigência de saúde pública (05).

Em todos os casos, obrigam-se os serviços funerários manter identificação precisa das sepulturas, com informação de fácil cruzamento de dados com o registro de sepultamentos (art. 4º, III); certo, ainda, que os restos mortais devem ser enterrados com etiqueta de identificação à prova d’água afixada ao cadáver e a um envoltório do cadáver, que deve seguir acompanhado de suas roupas e bens portáteis que carregava quando do óbito (art. 4º, I).

A proteção do cadáver sempre teve os seus rituais, para além de uma disciplina jurídica. Bastante lembrar:

a) A reverência da rainha Artemísia II, de Cária ao corpo do marido (352 a.C.). Ela determinou construção funerária (43m. de altura) sobre a sepultura onde inumado o corpo do Rei Mausolo, do império persa (Halicarnasso, atual Bodrum, na Turquia). Segue-se, daí, a palavra mausoléu.

b) A providência do patriarca Abraão. Ele, por morte de Sara, sua mulher, adquiriu a Efron, o hitita, o seu campo para ali sepultá-la em caverna. (Gênesis 23, 1 – 20).

Prepondera o direito à sepultura (jus sepulchri), como um direito personalíssimo potestativo do morto. Esse direito se irradia ao dever jurídico conferido aos parentes, o de poder sepultá-lo, a estes constituindo um direito-dever pelos liames da afeição. São atributos, de ordem moral, inclusive. Aliás, o sepultamento sempre foi um ato religioso. Este novel normativo vem acrescentar, em momento oportuno, mais um capítulo descritivo de direito fundamental.

Nesse contexto, a reparação civil por ofensa ao juz sepulchri pode operar-se diante de diversas infringências ao direito de sepultar: (a) em face da demora da entrega do cadáver, impondo aos familiares maior sofrimento; (b) pela demora injustificada na não identificação do cadáver e c) pela errônea identificação do corpo, com entrega de outrem aos não familiares, em caixão lacrado. O mesmo sucederá quanto ao direito de permanecer sepultado, diante da eventual perda ou extravio dos despojos mortais.

(iii) As cremações — A incineração (cremação) do cadáver foi, antes de tudo, na sua remota origem, uma prática de respeito ao cadáver. Temia-se, em tempos de guerra, que corpos fossem desenterrados pelos inimigos, como o fez o general e estadista romano Lúcio Cornélio Sula (138 a.C.-78 a.C), com o cadáver de Caio Mario.

A cremação (a substituir a inumação) foi introduzida no direito português (artigo 340, Código Civil/1932), e está referida em nossa Lei dos Registros Públicos (parágrafo 2o do art. 77, introduzido pela Lei n. 6.216, de 30.06.75), quando já então, desde muito, regulada em São Paulo (Lei n. 7.017, de 19.04.1967). A esse modo, as cinzas humanas são guardadas em urnas cinerárias, então constituindo o depósito sepulcral do corpo cremado. Sepultamento atípico, sem quebra, porém, das doutrinas religiosas e da dignidade do corpo.

A cremação tornou-se uma prática permitida pela Igreja Católica, a partir de 1963, depois que difundida em muitos países católicos, quando se pretendeu ajustá-la aos acordos de fé. E a conservação das cinzas daqueles que são cremados tem sido um dos pontos mais discutidos segundo as normas da Igreja (06).

A reportada Portaria nº 02/2020-CNJ/MS traz consigo valioso tratamento expresso sobre as cremações. Os restos mortais de pessoas não identificadas ou que, identificadas, não tiverem seus corpos reclamados por familiares, não deverão ser levados à cremação, mas sepultados, o que possibilitará a exumação para eventual posterior confirmação de identidade (art. 1º, § 7º) e, de consequência, o direito do morto ao túmulo de culto familiar.

(iv) Os testamentos simplificados – A seu turno, o direito sucessório se flexibiliza no trato de mortes anunciadas. Assim, as questões testamentárias ganham relevo jurídico, assumindo modernidade tecnológica com os testamentos simplificados e/ou virtuais.

O testamento particular de emergência ou hológrafo simplificado em tempos de pandemia, segundo Flávio Tartuce, resulta da aplicação do art. 1.789 do Código Civil, considerando-se circunstância excepcional a pandemia da Covid19 (07). Lado outro, Rodrigo Pereira da Cunha defende os “vídeos testamentos”, expressando: “Nada mais autêntico do que a voz e a imagem para alguém expressar sua real e verdadeira vontade. Em tempos de coronavírus, no mínimo, o vídeo testamento reforçaria a autenticidade do testamento hológrafo” (08).

(v)  A cerimônia do adeus. As ritualizações dos velórios e dos sepultamentos sempre cerimonializaram o adeus.

Funerais proibidos em diversas partes do mundo, quando as vítimas tiveram de ser sepultadas com roupas hospitalares, velórios sumários de até dez minutos, sepultamentos reduzidos a poucos presentes e caixões lacrados, a não se permitir a colocação ali de “objetos de valor sentimental” ou uma visão última do ente querido, rompem o paradigma cerimonial das despedidas familiares nos rituais de passagem (9). Circunstâncias que devem ser reguladas, com maior sensibilização, não obstante o colapso dos serviços funerários nas grandes cidades e os problemas de contágio. Enterros sem ritos, corpos em sacos plásticos, a perda de gestão social de elaboração do luto, o estresse pós-traumático, enfermam mais a sociedade.

Noutro giro, o Provimento 93/2020 da CNJ, de 23 de março, autorizando os sepultamentos, mediante comunicações eletrônicas dos hospitais diretas ao registro civil competente, para a lavratura imediata do registro de óbito, sem maiores formalidades, com a regularização e eventual complementação do assento e retirada da respectiva certidão, em data posterior (08), constitui normativo de valioso sentido humanitário. Um normativo desburocratizante, de respeito ao luto das famílias.

(vi) Os seguros de vida — Os contratos de seguros de pessoa, onde são excluídos da cobertura os casos de epidemias e pandemias, terão em face das apólices vigentes, por liberalidade das seguradoras do ramo vida, conforme assinalou a Superintendência de Seguros Privados (Susep), as coberturas dos eventos morte decorrente do coronavírus.

Essa postura, a nosso sentir, valoriza a função social do contrato, prevista no art. 421 do Código Civil. No mais, o seguro de vida que cobre a morte, com sua validade admitida, circunstancialmente, à atual pandemia, constitui, decerto, o solidarismo social tão necessário em meio aos infortúnios que a morte acarreta às famílias em luto.

Dir-se-á, afinal, que as coisas não estão mais postas onde deveriam estar: pais precocemente póstumos, os muitos nascituros órfãos, os que nascem sem a sobrevivência de suas mães, famílias fragmentadas por perdas imensas de seus entes queridos, estão todos, estranhamente, nos pergaminhos estatísticos de realidades trágicas.

Por certo, porém, em tudo o que nos lutos da atual pandemia o amor tutela, repete-se com o argentino Jorge Luis Borges:

“só que o que está morto é nosso, só é nosso o que perdemos.”

Anotações:

(01) KELLEHEAR, Allan. Uma história social do morrer. Trad. Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: Editora Unesp, 2016, 539 p.

(02) Alterada pela Lei nº 12.190/2010, regulamentada pelo Decreto nº 7.235/2010 garantindo indenizações por danos morais e materiais, incluindo a pensão mensal.

(03) LANNES, Marcelo. Uma nova Previdência Social Indenizatória em virtude da negativa de Direitos Fundamentais. Danos Hedônicos (01.03.2020) Web: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-previdenciario/uma-nova-previdencia-social-indenizatoria-em-virtude-da-negativa-de-direitos-fundamentais-danos-hedonicos/

(04) ALVES, Jones Figueiredo. A família pede guarda provisória da lei em proteção urgencial. Web: https://www.conjur.com.br/2020-mai-03/processo-familiara-familia-guarda-provisoria-lei-protecao-urgencial

(05) Web: https://www.conjur.com.br/dl/portaria-conjunta-28-abril-2020-cnj.pdf

(06) O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal alemão Gerhard Ludwig Muller, anunciou (10.2016) que as cinzas devem ser mantidas em um cemitério ou em um local sagrado, não sendo permitida a conservação delas no recinto do lar, a “dispersão das cinzas no ar, na terra ou na agua” ou, ainda, a sua conversão em “recordações, joias e outros objetos”. A distribuição das cinzas entre diversos parentes também é proibida pela Igreja, não se confundindo com as chamadas relíquias dos santos.

(07) TARTUCE, Flávio. O testamento particular de emergência ou hológrafo simplificado em tempos de pandemia.

Web: http://professorflaviotartuce.blogspot.com/2020/04/

(08) CUNHA, Rodrigo Pereira da. Descomplicando o Direito de Família e Sucessões em tempo de pandemia. Testamento hológrafo e o fetiche das formalidades. Web: http://www.ibdfam.org.br/artigos/1421/Descomplicando+o+Direito+de+Fam%C3%ADlia+e+Sucess%C3%B5es+em+tempo+de+pandemia.+Testamento+hol%C3%B3grafo+e+o+fetiche+das+formalidades

(09) Prorrogada a regularização do ato por até quinze dias, após a decretação do fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), estabelecida pela Portaria n. 188/GM/MS, de 04.02.2020

 é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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Streck e Giannakos: Pode o juiz dispensar prova para reduzir aluguel?

No dia 30 de abril de 2020, foi publicado artigo sobre a importância “cumprir a letra da lei”. Neste, sustenta-se que quando o judiciário se nega a cumprir um claro texto e não o declara inconstitucional, simplesmente lhe nega a validade. Como se fosse nulo, írrito, nenhum o texto da lei”.

Em outro texto publicado, em 26 de março de 2020, faz-se menção à decisão do juiz do Rio de Janeiro que permitiu os cultos da igreja de Silas Malafaia, mesmo no meio do estado de calamidade provocado pelo coronavírus.

Em momentos crise e extrema dificuldade (como o que vivemos), o Direito deve ser utilizado justamente para nos auxiliar a vencer a crise e não ser desvirtuado para criar ainda mais problemas.

Ou seja, não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.

Para não esquecer: Foram criados os artigos 489, §1º e 926, ambos do CPC/2015. No caso do primeiro, o legislador teve como intuito criar parâmetros para a decisão judicial e requisitos para que deveriam constar na decisão tomada pelo julgador. No caso do segundo, para exigir dos Tribunais e dos juízes a uniformização da sua jurisprudência mantendo-a estável, íntegra e coerente.

A integridade é a exigência de que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, em uma perspectiva de ajuste de substância. A integridade impede que o judiciário use dois pesos e duas medidas.

A coerência, por sua vez, é a necessidade de, em casos semelhantes, deve-se proporcionar a garantia da isonômica aplicação principiológica. Da mesma forma, haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mais do que isso, estará assegurada integridade do direito a partir da força normativa da Constituição. A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte do Poder Judiciário.

O julgador não poderá utilizar-se de argumentos que não estejam coerentemente sustentados, o que inclui, como pode de partida, uma autovinculação com aquilo que antes se decidiu.

Neste sentido, pode-se dizer que no CPC/2015 não há espaço para decisões personalistas com que estivesse criando o direito a partir de um grau zero. O “livre convencimento” (que foi retirado do texto do CPC) não é o mesmo que decisão fundamentada. A segurança jurídica e a proteção da confiança e da isonomia somente fazem sentido se as decisões obedecerem à coerência e à integridade.

No entanto, é muito comum vermos na prática ambos os artigos serem negligenciados pelo julgador. O resultado disso é as diversas decisões sobre a mesma temática com resultados distintos.

Em pesquisa realizada recentemente ao analisar os volumes de processos ajuizados no Tribunal de Justiça de São Paulo entre janeiro e março de 2019 e no mesmo período de 2020, verificou-se o aumento em 20% no ajuizamento de ações judiciais na quinzena que imediatamente antecedeu o fechamento dos tribunais, indicando, já naquele momento, que o cenário de pandemia incitaria o maior volume de processos. Passada a fase inicial de isolamento absoluto, ou, com mais razão, prolongado o isolamento por mais dias, dilatando, em igual proporção, os efeitos nefastos à economia, os números voltam a crescer de modo absolutamente preocupante.

Em decisão recente proferida em comarca localizada na Serra Gaúcha, o juízo reconheceu que a pandemia instalada no país, com curva acentuada de contaminação em razão da Covid-19, teria desequilibrado contrato de locação comercial firmado em agosto de 2019, viabilizado a redução do locativo mediante via judicial.

Em sua conclusão, determinou que o valor locatício fosse reduzido de R$ 5.250 para R$ 1.100 pelo período de 05 meses. Uma redução temporária para 20,95% do valor locativo inicial.

Na sua fundamentação, o juízo sustentou a aplicação do art. 374, I do CPC, em que o autor seria dispensado do ônus probatório diante da notoriedade da COVID-19.

Em outras decisões judiciais já veiculadas pela mídia, por sua vez, o Poder Judiciário tem concedido reduções dos locativos nos mais diversos percentuais, como 60%, 50% e 70%. Em outros, em que os locatários requereram a isenção do pagamento, a justiça paulista negou o pedido. O TJ/SP já se manifestou sobre a temática, revertendo decisão que havia indeferido pedido de tutela de urgência em primeiro grau e concedendo a redução de 50% do locativo em segundo grau.

Mas, por qual motivo um juiz determina uma redução quase 80% de um aluguel? Qual é a prognose? Qual é a diferença deste caso para o outro em que houve uma redução de 50%? Ou uma redução de 60%?

Será que com a aplicação do art. 374, I do CPC, em que o autor seria dispensado do ônus probatório diante da notoriedade da COVID-19, por si só, justificaria o arbitramento da redução sem a produção de prova específica do prejuízo? Como o juízo deve estipular o percentual de redução? Tira de que lugar esse percentual? De seu subjetivismo?

Dito de outra forma, no momento em que o juiz arbitra um percentual de redução do locativo, sem a realização de prova específica pelo autor, ele não estaria agindo de forma discricionária-arbitrária? A resposta é (deveria) ser óbvia.

O juiz pode fazer coisas, mas não pode tudo. E as que pode, deve fundamentar. E essa fundamentação não pode ser qualquer uma. Ou nenhuma. Aliás, aqui basta que invoquemos os três primeiros incisos do artigo 489, parágrafo 1º. do CPC:

Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

Isto para começar!

Seguimos. Que a incidência do coronavírus nas relações contratuais não possui precedentes é indiscutível. Porém, o ponto crucial é em que medida e a profundidade em que o juiz pode modificar a relação contratual já existente e pré-estabelecida entre as próprias partes.

A racionalidade jurídica vem sendo substituída por “racionalidades instrumentais”, constituída de opiniões e juízos morais. Ou seja, quais os parâmetros para estabelecer o percentual? Seria o caso de ocorrência do famoso “decido conforme a minha consciência”?

No momento em que a coerência e integridade são ignorados, os incentivos judiciais tornam-se protagonistas.

Neste ponto, o que se propõe é a possível contribuição da AED (Análise Econômica do Direito) para com a CHD (Crítica Hermenêutica do Direito).

Este debate ocorreu, em 2015, entre os Professores Lenio Streck, Alexandre Moras da Rosa e Aury Lopes Junior.

Do ponto de vista econômico, no momento em as decisões judiciais veiculam a possibilidade de repactuação dos contratos de locação comerciais, ainda mais, sem critérios definidos, incentivam que boa parte dos locatários busquem este benefício mesmo que a sua situação fática específica não exija (“comportamento oportunista”). Do ponto de vista econômico, tais notícias dificultam justamente a cooperação pré-existente entre os envolvidos.

O que se cria na prática é uma reação em cadeia. Os locatários, incentivados pela ausência de coerência e integridade nas decisões judiciais, ajuízam ações revisionais dos contratos de locação com intuito de terem o mesmo benefício, mesmo que, em certos casos, o locatário sequer necessite da revisão. O Direito, que deveria pacificar e regular, acaba, por uma de suas pontas, incentivando o contrário.

O resultado de tudo isto é uma descrença no Judiciário. Alguns exemplos recentes demonstrar a concretização deste sintoma: i) um apelo à utilização da inteligência artificial nos processos judiciais, considerando, inclusive, a hipótese da substituição do juiz pela máquina; ii) a criação da figura dos negócios jurídicos processuais (art. 190, CPC).

Quanto ao primeiro, podemos trazer como exemplo os casos das ferramentas criadas pelos Tribunais de Justiça e Superiores, como o Radar (TJ/MG), que recentemente julgou um grande número de recursos de segundos; o Victor (STF), que ainda está em fase de aprimoramento; e o Poti (TJ/PE) que realizar bloqueios judiciais das contas de devedores em ações de execuções fiscais.

Quanto ao segundo, originário da experiência positiva tida pelas partes e advogados na arbitragem, possibilita uma maior participação das partes no processo, resultando numa comparticipação dos sujeitos processuais na construção da decisão que deva solucionar determinada ação judicial. A ideia é que as partes possam customizar o processo e readequá-lo para a maior adequação dos seus interesses. É possibilitado às partes estipulares mudanças no procedimento e convencionarem sobre seus ônus, poderes, faculdades, calendário processual, direito material e deveres processuais. O art. 190, parágrafo único, do CPC dispõe sobre as três hipóteses taxativas para impedir a validade dos negócios jurídicos processuais.

Portanto, a confiança no Judiciário já vem abalada. A legislação moderna já tem apresentado este sintoma e, pelo que se identifica na prática, a situação tende a piorar.

A solução: a volta dos juízes à fundamentação jurídica, ao Direito, à necessidade de uniformizar a sua jurisprudência (coerência e integridade viram para isso!!!), sob pena de, conforme dito no início do texto, negar validade à lei simplesmente pelo seu desuso proposital.


https://www.conjur.com.br/2020-abr-30/senso-incomum-tao-dificil-cumprir-letra-lei-art-212-cpp acessado no dia 10/05/2020.

https://www.conjur.com.br/2020-mar-26/senso-incomum-cada-cabeca-sentenca-tese-espantalho acessado no dia 10/05/2020.

STRECK, Lenio Luiz. Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2014, p. 158.

https://www.conjur.com.br/2020-mai-11/leonardo-costa-achatemos-curva-acoes-judiciais

https://www.espacovital.com.br/noticia-37903-reducao-no-aluguel-valor-mensal-passa-r-5250-para-1100 acessado no dia 10/05/2020.

https://www.conjur.com.br/2020-abr-27/juizes-proibem-reabertura-lojas-concedem-reducao-aluguel acessado em 10/05/2020

https://www.conjur.com.br/2020-abr-24/interrupcao-atividades-nao-autoriza-suspensao-alugueis acessado em 10/05/2020

https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/liminar-permite-reducao-aluguel-pago-restaurante-epidemia

https://www.conjur.com.br/2020-abr-22/interrupcao-atividade-nao-desobriga-empresa-pagar-aluguel?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook acessado em 10/05/2020

https://m.migalhas.com.br/quentes/326373/e-razoavel-reducao-de-50-no-aluguel-de-imovel-comercial-em-razao-da-pandemia acessado em 10/05/2020.

Oliver Williamson define-o utilizando uma célebre formulação: “By opportunism I mean self-interest seeking with guile”. O mesmo autor, ao conceituar o oportunismo, dispõe: “More generally, opportunism refers to the incomplete or distorted disclosure of information, especially to calculated efforts to mislead, distort, disguise, obfuscate, or otherwise confuse”. (WILLIAMSON, Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism: firms, markets, relational contracting. The Free Press, a Division of Macmillan Inc, 1985, p. 47).

https://www.conjur.com.br/2020-mai-01/santolim-giannakos-tomada-decisoes-momentos-crise

https://www.migalhas.com.br/depeso/319005/inteligencia-artificial-e-o-direito-uma-realidade-inevitavel

GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Negócios jurídicos processuais e análise econômica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 71.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

 é advogado, mestre e doutorando em Direito pela Unisinos. Sócio do escritório Giannakos Advogados Associados.

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Ana Prudente: Sobre as eleições municipais de 2020

Vivemos hoje um momento de um profundo paradoxo: no mundo todo, estamos vivendo um distanciamento social que transformou drasticamente nossa rotina, ao mesmo tempo muitas necessidades humanas estão mais latentes, de maneira pouco vista antes. A mudança de estilo de vida fez com que precisemos mais nos comunicar e nos conectar com pessoas. Um exemplo concreto são os pais que trabalhavam fora e cujos filhos estudavam presencialmente na escola. Neste momento em que estão aprendendo a auxiliar os filhos nas atividades escolares virtuais e lidando com o home office, além dos cuidados com a casa, eles acabam por criar redes de contato para dividir seus dilemas. Muitas vezes, conversa-se até com desconhecidos para encontrar soluções e compartilhar problemas em comum. Conectados, esses pequenos grupos acabam também por debater outras questões sociais conjuntamente.

Há, portanto, uma maior união entre as pessoas que vivem em condições semelhantes, mesmo com o distanciamento, um fenômeno que surgiu por conta da pandemia. Acredito que uma das grandes virtudes humanas é saber colaborar com estranhos, os seres humanos criaram a reciprocidade e carregam um grande senso de cooperação com o próximo. Nossa vida corrida nos distanciou dessa vertente, mas este momento de crise fez com que descobríssemos novamente esse aspecto. A reciprocidade para com aquele que vive uma condição semelhante e o compartilhamento de soluções é cada vez mais urgente agora. Trata-se de ser empático com o próximo, uma qualidade que envolve perceber o seu próximo também como um eu.

Richard Swift, estudioso da economia, diz que sem reciprocidade a sociedade não poderia mais existir. Em momentos adversos como os que estamos enfrentando, o egoísmo não pode mais prevalecer sobre o coletivo. Essa articulação entre as pessoas agora tem também impactado o cenário político brasileiro, já que novos grupos sociais estão florescendo, em busca de soluções ou formulando críticas à sociedade juntos.

Assim, sairá na frente pela disputa política o candidato que melhor conseguir mapear os diversos grupos que vêm surgindo e entender suas necessidades. Aquele que souber dialogar com essas pessoas e criar pautas específicas que atendem às suas demandas. Pautas políticas amplas não serão mais suficientes para as próximas eleições.

Sabemos que a democracia pressupõe que a maior parte possível dos cidadãos seja representada politicamente e que todos possam atuar, dialogando para construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Nesse contexto, o Brasil enfrenta um grande desafio democrático por ser um país extremamente plural, com grandes dimensões continentais, muito populoso e com uma diversidade enorme. Como fazer então para que essa diversidade seja representada e tenha voz?

Nossa estrutura político-partidária conta com muitos partidos que, mesmo similares e com pautas parecidas, têm suas peculiaridades. Ainda assim, até hoje os partidos não deram conta de atender todos os grupos sociais. A crise provocada pela Covid-19 chega num período delicado, de eleições municipais importantíssimas porque são os governos municipais os mais próximos da população, seus feitos, acertos e erros são mais visíveis para ela. Portanto, num ambiente caótico de isolamento social necessário como se darão as próximas eleições, visto que há um grande risco de contágio da população com a votação presencial?  Há dois pontos que estão sendo debatidos: 1) devem ou não acontecer as eleições neste ano?; e 2) a crise de representação política no país.

Já não é de hoje que muitos grupos não se sentem plenamente representados, mesmo dentro de partidos que abrem espaço, de certa maneira, para a diversidade. Há diversos coletivos e redes que não encontram apoio político da forma como gostariam. Alguns exemplos são: o empreendedorismo feminino, cuja rede de mulheres em todas as regiões brasileiras cresce e é cada vez mais forte; grupos com foco na economia criativa, cuja visão da economia e de diversos aspectos sociais é mais moderna ou diferente; educadores embora a educação seja uma pauta reconhecida, ainda são poucas as lideranças políticas que de fato a priorizam ou têm uma relação mais estreita com seus agentes; grupos que defendem a agricultura sustentável ainda que contemos no Brasil com uma forte bancada ruralista, os temas da sustentabilidade são pouco ou quase nada debatidos.

Soma-se a isso a grande crise política provocada pela última eleição presidencial que polarizou nossa sociedade de forma violenta, rachando o país, sem deixar espaços para o diálogo. Ainda que a polarização tenha mascarado essa crise de identidade já existente, fez também com que esses grupos se fortalecessem em busca de soluções não encontradas. Agora, diante da pandemia, esse gap ficou ainda mais evidente, voltando às mesas de debates.

Por isso, quem pensa em se eleger daqui para a frente terá que se aproximar e dialogar com essa diversidade, incorporar e envolver as minorias, trazer essas pessoas para perto. É uma oportunidade para candidatos que buscam ampliar seu eleitorado. E a internet é um ponto comum onde o diálogo eleitoral e o diálogo de grupos mais ou menos organizados – acontece (ou deveria acontecer) de maneira mais atuante.

Muitos desses grupos não representados usam a internet como ponto de encontro. O empreendedorismo feminino, hoje, pode ser uma espécie de grupo político, que se utilizou da internet e das redes sociais para se articular e criar sororidade entre seus diversos coletivos regionais. Uma das justificativas para um possível adiamento das eleições é que os candidatos não poderiam fazer campanhas presenciais, mas já há muito tempo as redes sociais têm sido um espaço de articulação política de candidatos. Portanto, já está mais do que na hora de virtualizar as eleições, com votação online. Se podemos movimentar a economia virtualmente, pedir auxílio emergencial pela internet, se é possível realizar audiências de forma virtual, entre outras tantas atividades, precisamos amadurecer o processo eleitoral online. Essa mudança será inevitável no futuro.

Voltando às novas formações de grupos na sociedade atual, embora haja um pequeno grau de organização entre eles, muitas redes ainda estão pulverizadas, com diversos núcleos regionais e sem uma única liderança forte (há diversos expoentes importantes, mas não uma figura única que os represente). Ainda que bastante articulados, muitos desses coletivos estão em processo de amadurecimento político. Alguns procuram respaldo em partidos políticos já existentes, mas começam a se organizar para se tornar partidos independentes. Muitos, que se consideram apartidários, como os grupos do setor filantrópico, acabam tendo afinidade com algumas ideologias políticas, mesmo não tendo filiação, e assim construindo demandas sociais específicas. Outros grupos, que sustentam pautas suprapartidárias como a questão ambiental, têm a tendência de se tornarem partidos políticos ou a se juntarem a algum partido ou candidato que melhor dê voz às suas demandas.

No entanto, é preciso lembrar que a formação de agremiações políticas no Brasil é bastante complexa e leva em média três anos e meio; envolve também diversas etapas: elaboração de um programa e estatuto com assinaturas de mais de cem fundadores, registro em cartório, publicação do estatuto no Diário Oficial da União, entre outras. Além disso, a criação de um partido político no país exige uma grande articulação nacional e para redes e grupos locais pulverizados esse movimento é quase impossível.

A formação de um grande partido de mulheres empreendedoras, por exemplo, seria, portanto, fruto de uma união de várias redes de empreendedoras. Essa atitude precisa de um amadurecimento político que poucos grupos por enquanto possuem, seja por contar com atuação de muitos jovens ou de minorias ainda muito discriminadas e marginalizadas. Mas a existência de organizações políticas oriundas desses grupos é inevitável no futuro: não há um retrocesso nesse ponto, porque a articulação dessas pessoas tende a crescer, cada vez mais. Seu surgimento está atrelado à falta de sensibilidade dos partidos políticos atuais em lidar com a sua própria diversidade e à falta de uma gestão empática para as minorias. No caso das mulheres já inseridas numa sigla, é difícil se desenvolver porque o machismo estrutural está presente e se manifesta na rotina política, assim como para os negros e para os cidadãos LGBT, que enfrentam muitos preconceitos. É preciso que se incluam representantes desses coletivos na cena política.

Assim, com ou sem eleição, o cenário político, daqui para frente, sofrerá muito mais pressão por parte dessas novas organizações sociais que estão sendo mais fortemente impactadas pela pandemia ou que têm novos olhares para a construção de um estado de bem-estar social. Há uma conexão muito maior entre essas redes e um contexto muito favorável para se criar uma unidade e uma formação mais sólida como voz social.

Por isso, acredito que nesse momento é precoce falar de adiamento de eleições. Estamos num momento de instabilidade nunca vista antes. O caos social é tanto que não sabemos como estaremos daqui a uma semana. Recentemente, vimos que em algumas localidades, como Blumenau (SC), houve o afrouxamento da quarentena e, por consequência, um novo pico da doença na região — próxima a triplicar os casos da Covid-19 depois da reabertura do comércio. Como as eleições em nosso país ainda significam deslocamento e aglomeração, essa discussão deve ser adiada para que nosso foco seja a preservação de vidas. Nesse momento, seria mais produtivo pensar no uso do fundo eleitoral, pauta que deveria ser prioridade para veículos de comunicação e para os próprios partidos. É hora de se debater como e porque usá-lo, deve-se ter cautela nas decisões em relação às eleições para priorizar a saúde de todos cidadãos, incluindo líderes políticos e figuras públicas.

Ana Beatriz Prudente é gestora de Economia Criativa, educadora de mulheres empreendedoras, membro da Comissão Permanente de Combate à Covid-19 da Faculdade de Educação da USP e da Comissão de Cooperação Internacional da FEUSP e multiplicadora de Sustentabilidade Ambiental.

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Lenio Streck: Operar uma unha não exige anistia geral!

Resumo: Fazendo uma ironia, diria que o Estado de defesa ou de sítio são necessários somente se for com o objetivo de combater os fascistas que querem fechar o STF e o Congresso e que acampam na frente do STF. Mas nem para isso — com sarcasmo ou sem sarcasmo — essas medidas de exceção são necessárias. Basta um grito e eles saem correndo.

O jornalista Sergio Rodas produziu bela matéria sobre lockdown aqui na Conjur. Necessitamos de Estado de Defesa ou de Sitio para limitar atividades e restringir direitos de ir e vir?

No lockdown, em regra, as pessoas só podem ir à rua para fazer compras em supermercados e farmácias ou trabalhar em atividades essenciais. O primeiro caso ocorreu no Maranhão. A Justiça ordenou, em 30 de abril, que o estado e o município de São Luís implementassem o lockdown na região metropolitana da capital. Isso porque as medidas de isolamento social têm sido insuficientes para conter a propagação do coronavírus. Houve outras decretações.

O constitucionalista Pedro Serrano disse: Embora a Constituição só autorize expressamente a restrição dos direitos de ir e vir e de reunião nos estados de defesa e de sítio, não é necessário decretar um deles para instituir o lockdown, porque tais regimes excepcionais se aplicam melhor a situações de violência e comprometimento da ordem pública, e não são necessários em crises sanitárias.

Na visão dele, mecanismos como os estados de emergência e de calamidade pública — instituído pelo Congresso — são suficientes para combater o coronavírus. Serrano diferencia um momento de legalidade extraordinária — como o que vivemos devido à epidemia — de um estado de exceção. A legalidade extraordinária é a forma como o Estado Democrático de Direito reage a uma situação emergencial. Mas não há anomia (ausência ou suspensão de leis e direitos), como no estado de exceção. Na legalidade extraordinária, o Estado segue submisso à legislação e deve criar o mínimo possível de novas leis.

A ideia, pois, é solucionar os problemas com base no ordenamento jurídico em vigor. Concordam com Serrano os professores Gustavo Binebojm, Carolina Fidalgo. E eu também.

Não vejo a necessidade de tomarmos medidas drásticas como Estado de Defesa ou de Sítio, quando podemos resolver o problema com medidas menos rigorosas. Devemos reagir à emergência sanitária com, no máximo, aquilo que Pedro Serrano e eu estamos chamando de legalidade extraordinária.

Estado de Defesa e de Sítio são para outro tipo de situação. A ordem ou a paz social está em jogo no Brasil? Claro que não. Fazendo uma ironia, diria que o Estado de defesa ou de sítio são necessários somente se for com o objetivo de combater os fascistas que querem fechar o STF e o Congresso e que acampam na frente do STF. Mas nem para isso com sarcasmo ou sem sarcasmo essas medidas de exceção são necessárias. Basta um grito e eles saem correndo.

Ora, restrições a direitos são próprias e comuns das e nas democracias. Liberdades de ir e vir são a todo momento restringidas. Eventos cívicos, desportivos e coisas do gênero fazem com que as pessoas possam ser impedidas de circular por determinados lugares. Portanto, não parece difícil sustentar a tese da decretação de lockdown nos moldes em que vem sendo feito no Brasil. Ninguém pode ser compelido a fazer algo a não ser em virtude lei quer dizer também “por decreto”. De lockdown. Sim.

Adotar medidas drásticas sempre é arriscado. Vai que alguns aprendizes de ditador gostem… Portanto, o bicho não é tão feio quanto parece. Uma unha do pé, para ser arrancada ou tratada, por vezes nem necessita de anestesia, Por vezes, pequena anestesia local resolve. Não parece adequado arriscar a vida do paciente com uma anestesia geral quando meios alternativos de evitar a dor do paciente se apresentem suficientes dentro do protocolo.

O engraçado ou bizarro é que, muita gente que defende autoritarismo ou até mesmo AI5 — em que a liberdade é quase-nada (nula, nenhuma) — colocam-se, na discussão do lockdown, contra a sua decretação sem o Estado de Defesa ou de Sitio. Dizem, muitos, que isso é “totalitarismo”. Alguns dizem que é coisa de comunista. Ou seja, se for decretado Estado de Sítio, pode. Aí não tem problema de as liberdades serem restringidas. O ruim é restringir, em uma pandemia, o direito de as pessoas saírem na rua para se contaminarem. Talvez muita gente defenda um direito fundamental à contaminação.

Numa palavra: Em termos legais-constitucionais, não há qualquer exigência de Estado de sítio ou de defesa para restringir o direito de ir e vir. Todos os dias essas restrições são feitas até por portaria. Aeroportos restringem, estádios, ruas etc. Leis restringem liberdades. Então, qual seria o problema de, em meio a uma pandemia, via legalidade extraordinária, restringir direitos para salvar vidas? Aliás, decretar Estado de Sítio ou de Defesa seria desproporcional. No sentido mais cru da palavra “proporcionalidade” (lá do Código Prussiano).

Cartas para a redação.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

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Marcello Miller: Notas sobre o caso Moro x Bolsonaro

Ao discorrer publicamente sobre os motivos por que pediria exoneração do cargo de ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro atribuiu ao presidente da República condutas que, se provadas, tendem a constituir múltiplos crimes, em especial os de falsidade ideológica e prevaricação ou embaraço à investigação de organização criminosa.

O primeiro teria consistido em fazer publicar no Diário Oficial da União ato de exoneração do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal com falso referendo do ministro da Justiça e falsa informação de que o ato se dera a pedido do exonerado. O segundo, em substituir o diretor-geral para que o novo nomeado pudesse ser contraparte de interação direta do presidente da República para fins de colheita de informações e por preocupação com inquéritos sob supervisão do Supremo Tribunal Federal.

O procurador-geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal que determinasse a instauração de inquérito para apurar o que chamou de supostos fatos noticiados. Destaca-se o seguinte parágrafo do requerimento:

“A dimensão dos episódios narrados, especialmente os trechos destacados, revela a declaração de ministro de Estado de atos que revelariam a prática de ilícitos, imputando a sua prática ao presidente da República o que, de outra sorte, poderia caracterizar igualmente o crime de denunciação caluniosa”.

O esforço de cautela é evidente (“A dimensão… revela a declaração… de atos que revelariam…”), embora desnecessário: a narrativa de um relato não traduz, por si só, fé em seu conteúdo, tanto mais em requerimento de instauração de investigação criminal.

O aspecto mais controvertido do requerimento está na parte final desse parágrafo: “…o que, de outra sorte, poderia caracterizar igualmente o crime de denunciação caluniosa”. Esse segmento provocou discussão sobre o escopo do inquérito a ser instaurado, em especial sobre se abrangia a conduta de Sergio Moro em sua fala final como ministro de Estado.

O procurador-geral da República declarou à imprensa que “o inquérito apura fatos” e que “vai apurar fatos relativos a ambos”. Esse é, com efeito, o discurso mais frequente das autoridades de persecução penal a propósito do objeto das investigações criminais que elas investigam fatos, e não pessoas.

O presente trabalho pretende examinar, contra o pano de fundo desse pedido de instauração de inquérito, três questões:

I  Qual é o escopo jurídico de uma investigação criminal?

II — O que é necessário para a instauração de uma investigação criminal a partir de uma notícia-crime?

III — A investigação criminal pode ser bifronte, com apuração simultânea dos fatos noticiados e de possível crime contra a administração da Justiça do noticiante ao efetuar a notícia?

Não há, no presente trabalho, viés de opinião sobre os personagens envolvidos e suas hipóteses de conduta. Ele pretende apenas examinar questões jurídicas pouco debatidas, mas  postas em evidência pelo caso.

O escopo jurídico das investigações criminais
O bordão segundo o qual “o inquérito apura fatos” não resiste à análise da casuística. Perante o próprio Supremo Tribunal Federal, é comum que o procurador-geral da República requeira a instauração de inquérito cujo balizamento não é apurar quem praticou determinado fato ou elucidar todas as circunstâncias da prática desse fato, e, sim, investigar o que exatamente determinada pessoa fez, a partir de elemento inicial que aponta para essa pessoa como autora de fatos incertos ou ilícitos ainda por elucidar.

Ainda que a linguagem comporte contorcionismos diversos, o escopo da investigação é, na segunda hipótese, claramente subjetivo: a investigação partirá da pessoa para os fatos. Se a descrição tivesse de ser binária, faria mais sentido dizer e é o que normalmente ocorre que a pessoa apontada será investigada.

Mas o dilema que opõe pessoas a fatos a propósito do escopo das investigações criminais é falso. Investigações criminais não têm por objeto nem pessoas, ao menos não no Estado Democrático do Direito, nem fatos, cujos contornos e dimensões a princípio não se conhecem os fatos podem, inclusive, nem ter ocorrido. O componente inicial de toda investigação criminal é uma suspeita, isto é, uma percepção inicial, geralmente incompleta, que remete a uma hipótese de infração penal.

Os contornos iniciais da suspeita podem ser predominantemente objetivos ou predominantemente subjetivos conforme as circunstâncias. O encontro de cadáver com sinais de morte violenta criará suspeita em torno do fato e ensejará investigação concentrada em apurar a autoria de provável homicídio. A visão de pessoa ensanguentada, mas não ferida, com faca na mão, criará suspeita em torno da pessoa e ensejará investigação da materialidade de provável crime violento.

O Estado Democrático de Direito acomoda sem dificuldades investigações criminais originadas por suspeitas predominantemente subjetivas. Há clara distinção entre investigar uma suspeita, ainda que ancorada em uma pessoa, e investigar uma pessoa. A questão-chave é a viabilidade jurídica da suspeita, o que remete à segunda questão

II  Standard probatório para a instauração de investigação criminal

Chama-se de notícia-crime a transmissão formal à autoridade de persecução penal da suspeita de um ilícito penal
ainda que o grau de convicção do noticiante seja mais elevado, a autoridade não deve, ao receber a notícia-crime, ir além de um juízo de suspeita. Como é intuitivo, não é qualquer suspeita nem qualquer notícia-crime que determinará a instauração de investigação criminal. Por um lado, uma notícia-crime aparelhada, isto é, acompanhada de elementos de convicção, pode abreviar ou até tornar dispensável a investigação criminal, conforme a solidez e o potencial de elucidação de seus  elementos. Por outro lado, haverá notícias-crime tão vagas ou tão improváveis que a instauração de investigação criminal não será cabível.

A viabilidade jurídica da suspeita dependerá de plausibilidade fática, objetividade perceptiva e concretude narrativa. A plausibilidade fática exige contraste do conteúdo da suspeita com a realidade sensível a notícia de um grande complô, com ramificações internacionais, que empreende perseguição implacável de pessoa comum, embora não seja impossível, não tem plausibilidade fática, ou seja, não faz sentido à luz da normalidade. A objetividade perceptiva remete à origem intelectual da suspeita ela deve basear-se em apreensão racional e racionalmente explicável de fato, dado, elemento ou informação; sonhos e palpites não autorizam atuação estatal investigativa. A concretude narrativa mensura a proximidade contextual entre sujeito e objeto da suspeita noticiar que “há corrupção no governo” ou que “a milícia matou Marielle” pode até fazer sentido e decorrer de apreensão intelectual da informação, mas a distância contextual entre o noticiante e o possível fato tende a ser tamanha que seu relato é demasiado vago para autorizar a atuação estatal investigativa.

Deve ser afastada a noção de que a instauração de investigação criminal exige justa causa. A menos que a expressão esteja aí empregada em sentido próprio e específico, o sistema de Justiça criminal estaria incorrendo em autofagia procedimental se impusesse standard probatório para instaurar investigação criminal idêntico ao que impõe para avaliar a viabilidade probatória de ação penal.

III — Investigação criminal bifronte?

A investigação criminal parte, como visto, de uma suspeita, que precisa ser plausível quanto à hipótese fática, objetiva quanto à percepção e concreta quanto à narrativa. Como se trata de juízo inicial e precário sobre o que possa ter acontecido, admite-se razoável fluidez de seus contornos e mesmo alguma grau de alternatividade de hipóteses. A título de exemplo, a descoberta de grande quantidade de moeda estrangeira oculta no interior de uma parede pode ser o fio da meada de variadas modelagens penalmente relevantes ou até de nenhuma, sem que haja obrigação de apostar, já de início, em uma única hipótese.

Mas a flexão da suspeita inicial encontra limites, determinados pelo próprio conceito de suspeita e pelo imperativo de racionalizar o acionamento do aparato estatal investigatório. A suspeita não pode ser, ao mesmo tempo, uma coisa e seu contrário, sob pena, inclusive, de não se poder considerar existente e criar situação hamletiana para o investigador criminal.

Não é de se excluir que surja, na formação da suspeita, dúvida sobre a veracidade da notícia, tanto mais quando resulta apenas ou essencialmente de um relato trata-se de suspeitar da própria suspeita. Mas, para a autoridade instaurar a investigação criminal, a soma vetorial dessas duas suspeitas a de que houve o ilícito penal noticiado e a de que a notícia seja deliberadamente falsa não pode ser zero; se for, a autoridade não terá, a rigor, formado juízo de suspeita algum.

A hipótese mais frequente é, contudo, a de que uma das suspeitas seja mais densa. Deverá ser ela, então, a nortear o escopo da investigação. A suspeita menos densa só pode tornar-se o norte da investigação se a suspeita antes tida por mais densa se revelar, com alguma nitidez, falsa. Deve haver consecutividade, e não concomitância, não só a bem da lógica, como ainda para fazer uso mais eficiente do aparato investigatório.

IV — O caso concreto
O ex-ministro Sergio Moro fez relato capaz de ensejar juízo de suspeita de clara viabilidade jurídica o que ele relatou era plausível diante das circunstâncias; ele articulou racionalmente o relato, indicando como e onde e quando teria apreendido os fatos; e ele tinha inteira proximidade contextual com os fatos. Ademais, ele apresentou elementos de corroboração em princípio críveis.

Os fatores que poderiam respaldar a hipótese de que o relato de Sergio Moro constitua denunciação caluniosa são pouco densos. A mágoa e o vezo de prejudicar o presidente da República, caso existam, não parecem capazes de ensejar relato tão extenso e detalhado, com tão clara ancoragem contextual. Os elementos de corroboração apresentados pelo ex-ministro, bem como a já comprovada inexistência de assinatura dele no ato de exoneração do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal e de pedido deste de exoneração, tornam a hipótese de denunciação caluniosa ainda mais remota.

A suspeita de que Sergio Moro tenha cometido denunciação caluniosa só pode ganhar corpo, portanto, caso a suspeita em torno do presidente da República se revele, ao menos indiciariamente, falsa. A investigação só terá condições práticas de avançar se puder nortear-se, ao menos em seus primeiro movimentos, por apenas uma dessas suspeitas.

Não há sentido processual, de resto, em que a hipótese de denunciação caluniosa por Sergio Moro seja investigada em inquérito supervisionado pelo STF. A competência do foro especial para supervisionar investigação de  não-titular de prerrogativa de foro é estreita: limita-se às hipóteses de conexão ou continência e, mesmo assim, conforme jurisprudência do próprio STF, desde que haja alto grau de imbricação entre as condutas do titular e do não titular de prerrogativa de foro, a ponto de recomendar, a bem da coerência das decisões judiciais, a reunião das investigações.

Mas não há como falar em conexão ou continência entre as condutas atribuídas ao presidente da República e a hipótese de denunciação caluniosa de Sergio Moro, pois o delineio das suspeitas não comporta a ideia de que um e outro possam ter cometido crimes se o presidente da República tiver delinquido, Moro não o terá feito, e vice-versa. Por isso, a investigação só pode passar a apurar a suspeita de denunciação caluniosa do ex-ministro se ficar demonstrado, com alguma nitidez, que os crimes que ele atribuiu ao presidente da República não ocorreram.

V — Conclusões
Investigações criminais apuram, antes de tudo, suspeitas. Para respaldar a instauração de investigação, a suspeita deve ser plausível, objetiva e concreta. A suspeita contra o presidente da República, conforme levantada por Sergio Moro, assim se afigura; a suspeita contra Sergio Moro, não.

Pode ser que o procurador-geral da República tenha pretendido apenas externar cautela e imparcialidade com a ressalva da possibilidade de denunciação caluniosa de Sergio Moro. Nesse caso, contudo, a ressalva terá sido redundante: esse crime sempre é possível em tese quando alguém dá causa à instauração de investigação criminal.

Caso a intenção tenha sido a de impor ao aparato investigatório apuração simultânea da conduta de Sergio Moro, a imposição é inexequível. Múltiplos passos investigatórios em torno da outra suspeita têm de ser cumpridos antes que a suspeita de denunciação caluniosa ganhe corpo, porque esta depende da demonstração, ainda que por indícios, de que aquela é falsa.

À questão da inexequibilidade, soma-se a da competência: o STF não seria competente para supervisionar a investigação criminal relativamente a Sergio Moro, pois, se ele tiver cometido crime, o presidente da República necessariamente não o terá, não havendo de se falar em conexão ou continência, e, sim, em alternatividade mutuamente excludente de hipóteses delitivas.

Marcelo Miller é procurador da República no Rio de Janeiro.

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Interpretações equivocadas sobre intervenção militar

Já havia criticado o jornalista Vladimir Safatle (ver aqui) há dois anos, quando este, em artigo na Folha de S.Paulo, errou na interpretação do artigo 142 da CF que trata da “intervenção das forças armadas”, assunto que voltou agora pela pena de Ives Gandra Martins (ver aqui), quem igualmente comete perigoso erro hermenêutico, só que não pelas mesmas razões de Safatle.

Safatle remete o leitor ao artigo 48 da Constituição de Weimar, e ao seguir no sentido do reforço das narrativas históricas daquelas mesmas pessoas que se voltaram contra a república alemã nos anos 30, chega a uma interpretação absurda do artigo 142 da Constituição brasileira.

De todo modo, a critica que aqui faço vale para as duas posições: a de Gandra soa quase que como uma ameaça ao STF, porque escrita logo após a decisão do ministro Alexandre Moraes no caso Ramagem. Vejamos com cuidado:

Não entro no mérito de quem tem razão (Bolsonaro ou Moro), mas no perigo que tal decisão traz à harmonia e independência dos poderes (artigo 2º da CF), a possibilidade de uma decisão ser desobedecida pelo Legislativo que deve zelar por sua competência normativa (artigo 49, inciso XI) ou de ser levada a questão — o que ninguém desejaria, mas está na Constituição — às Forças Armadas, para que reponham a lei e a ordem, como está determinado no artigo 142 da Lei Suprema”.

Com todo o carinho e respeito que merece o professor Ives Gandra, digo: se o artigo 142 pudesse ser lido desse modo, a democracia estaria em risco a cada decisão do STF e bastaria uma desobediência de um dos demais poderes. A democracia dependeria dos militares e não do poder civil. Explicarei isso na sequência.

No referido artigo que publiquei na Folha, critiquei fortemente a posição de Safatle, a qual, além de descabida, é estranha porque parte de um campo oposto ao da direita política. No específico, Safatle ignora o que seja interpretação sistemática. Faz um olhar textualista, algo sem sentido no Direito.

Ao tomar para si mesmo que o artigo autoriza intervenção militar interpretação essa que é feita pelos próprios setores a quem ele crítica —, Safatle contribui ele mesmo para essa verdadeira fraude à Constituição, que é fazer desse dispositivo uma espécie de “bomba relógio” ou botão de autodestruição. Sim, o texto de Safatle dá aos intérpretes, por ele criticados, foros de plausibilidade. No fundo, concorda com Gandra.

Bem, espero que Safatle tenha mudado de opinião. Com certeza, já o fez. De todo modo, a crítica que aqui faço vale, como disse, para toda e qualquer interpretação desviante que é feita ao artigo 142 da CF. À época, Safatle fez uma espécie de recuperação ideológica do que quis criticar.

Não, o artigo 142 da Constituição não autoriza que quaisquer poderes constitucionais possam requerer diretamente às Forças Armadas o seu emprego para “garantia da lei e da ordem” (sic), de tal modo que “o que virá depois” estaria “legalizado” de acordo com a própria Constituição. Essa leitura é rasa e errada.

O que diz o artigo 142?

“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Assim, há de se ver que:

Primeiro, o artigo 142 determina que é o presidente da República a autoridade suprema sob a qual estão submetidas as Forças Armadas, consagrando o poder civil. Sim, poder civil.

Segundo, a lei e a ordem a serem garantidas são as das próprias instituições democráticas (Título V da CF). Esse é o ponto chave. As FAs não são o fiel da democracia. Ou seja, elas não podem intervir a qualquer momento. Uma leitura dessas é totalmente inconstitucional e antirrepublicana.

Terceiro, o parágrafo único do artigo 142 prevê que lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas no emprego das Forças Armadas (a LC nº 97, artigo 15), que não apenas submete esse emprego a uma cadeia de comando, civil no seu topo, assim como estabelece um procedimento a ser estritamente cumprido para isso e, por fim, determina o caráter somente subsidiário desse emprego, para a garantia da segurança pública, termos em que “lei e ordem” devem ser corretamente interpretadas. “Lei e ordem” não significam “autorização para intervenção golpista”.

Por fim, todos sabemos que, em uma democracia, não há de se falar em autonomia da parte de quem porta armas, como polícias e forças armadas. Por essa razão é que somente um poder eleito poderá dispor da palavra final, como Constituição e lei aqui determinam.

Ou seja, as interpretações simplificadoras do artigo 142 devem ser abortadas ab ovo. Por isso a minha crítica a Safatle. A solicitação dos poderes é feita sempre ao presidente da República, que é o comandante das Forças Armadas e que deve determinar a atuação, nos casos e nos termos do previsto constitucionalmente para o estado de defesa e do estado de sítio e de acordo com a lei complementar. O fato de, circunstancialmente, o Poder Executivo estar ocupado por alguém que tenha simpatia por AI-5 e quejandos, não pode, nem de longe, dar azo a uma hermenêutica do retrocesso democrático.

Ainda à época em que Safatle escreveu o texto, os professores Marcelo Cattoni, Emilio Meyer e Tomas Bustamante produziram um alentado artigo para esta ConJur, intitulado “A Constituição protege o sistema político contra qualquer intervenção militar“, quando disseram, inclusive, que o texto de Safatle era um tiro no próprio pé.

Também o professor Bruno Galindo produziu certeiro texto ao dizer que, se observarmos pelo aspecto hermenêutico-jurídico, simplesmente não existe qualquer possibilidade de intervenção militar “constitucional” nos moldes que têm sido defendidos. O próprio teor literal se assim se quiser tomar um textualismo do artigo 142 afasta a possibilidade de ação autônoma das Forças Armadas sem a subordinação a um poder civil. Mas consideremos outros elementos hermenêutico-constitucionais. O princípio da unidade da Constituição e o elemento sistemático permitem ver na Constituição outros dispositivos como aqueles que estabelecem as regras da intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio (artigos 34, 36, 136 a 141), bem como a existência de conselhos como o da República e o de Defesa Nacional (artigos 89 a 91), tendo os comandantes das FAs e o ministro de Estado da Defesa assento permanente neste último, mas função opinativa, cabendo a decisão superior ao presidente da República. Assim, por todos os ângulos, uma interpretação do artigo 142 que autorize uma intervenção militar é um arrematado absurdo (ver aqui).

Ao fim e ao cabo, resta alertar que artigos como o de Safatle, Ives Gandra e Jorge Zaverucha (aqui) dão azo às lendas urbanas. Já ouvi um general, radialistas e gente de TV dizendo a mesma coisa: a de que as Forças Armadas têm autorização para intervir “no caos”.

Pois é. Lendas se formam assim. Alimentemo-las e lá vem bomba.

 é jurista, professor de Direito Constitucional, titular da Unisinos (RS) da Unesa (RJ).