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Lenio Streck: Operar uma unha não exige anistia geral!

Resumo: Fazendo uma ironia, diria que o Estado de defesa ou de sítio são necessários somente se for com o objetivo de combater os fascistas que querem fechar o STF e o Congresso e que acampam na frente do STF. Mas nem para isso — com sarcasmo ou sem sarcasmo — essas medidas de exceção são necessárias. Basta um grito e eles saem correndo.

O jornalista Sergio Rodas produziu bela matéria sobre lockdown aqui na Conjur. Necessitamos de Estado de Defesa ou de Sitio para limitar atividades e restringir direitos de ir e vir?

No lockdown, em regra, as pessoas só podem ir à rua para fazer compras em supermercados e farmácias ou trabalhar em atividades essenciais. O primeiro caso ocorreu no Maranhão. A Justiça ordenou, em 30 de abril, que o estado e o município de São Luís implementassem o lockdown na região metropolitana da capital. Isso porque as medidas de isolamento social têm sido insuficientes para conter a propagação do coronavírus. Houve outras decretações.

O constitucionalista Pedro Serrano disse: Embora a Constituição só autorize expressamente a restrição dos direitos de ir e vir e de reunião nos estados de defesa e de sítio, não é necessário decretar um deles para instituir o lockdown, porque tais regimes excepcionais se aplicam melhor a situações de violência e comprometimento da ordem pública, e não são necessários em crises sanitárias.

Na visão dele, mecanismos como os estados de emergência e de calamidade pública — instituído pelo Congresso — são suficientes para combater o coronavírus. Serrano diferencia um momento de legalidade extraordinária — como o que vivemos devido à epidemia — de um estado de exceção. A legalidade extraordinária é a forma como o Estado Democrático de Direito reage a uma situação emergencial. Mas não há anomia (ausência ou suspensão de leis e direitos), como no estado de exceção. Na legalidade extraordinária, o Estado segue submisso à legislação e deve criar o mínimo possível de novas leis.

A ideia, pois, é solucionar os problemas com base no ordenamento jurídico em vigor. Concordam com Serrano os professores Gustavo Binebojm, Carolina Fidalgo. E eu também.

Não vejo a necessidade de tomarmos medidas drásticas como Estado de Defesa ou de Sítio, quando podemos resolver o problema com medidas menos rigorosas. Devemos reagir à emergência sanitária com, no máximo, aquilo que Pedro Serrano e eu estamos chamando de legalidade extraordinária.

Estado de Defesa e de Sítio são para outro tipo de situação. A ordem ou a paz social está em jogo no Brasil? Claro que não. Fazendo uma ironia, diria que o Estado de defesa ou de sítio são necessários somente se for com o objetivo de combater os fascistas que querem fechar o STF e o Congresso e que acampam na frente do STF. Mas nem para isso com sarcasmo ou sem sarcasmo essas medidas de exceção são necessárias. Basta um grito e eles saem correndo.

Ora, restrições a direitos são próprias e comuns das e nas democracias. Liberdades de ir e vir são a todo momento restringidas. Eventos cívicos, desportivos e coisas do gênero fazem com que as pessoas possam ser impedidas de circular por determinados lugares. Portanto, não parece difícil sustentar a tese da decretação de lockdown nos moldes em que vem sendo feito no Brasil. Ninguém pode ser compelido a fazer algo a não ser em virtude lei quer dizer também “por decreto”. De lockdown. Sim.

Adotar medidas drásticas sempre é arriscado. Vai que alguns aprendizes de ditador gostem… Portanto, o bicho não é tão feio quanto parece. Uma unha do pé, para ser arrancada ou tratada, por vezes nem necessita de anestesia, Por vezes, pequena anestesia local resolve. Não parece adequado arriscar a vida do paciente com uma anestesia geral quando meios alternativos de evitar a dor do paciente se apresentem suficientes dentro do protocolo.

O engraçado ou bizarro é que, muita gente que defende autoritarismo ou até mesmo AI5 — em que a liberdade é quase-nada (nula, nenhuma) — colocam-se, na discussão do lockdown, contra a sua decretação sem o Estado de Defesa ou de Sitio. Dizem, muitos, que isso é “totalitarismo”. Alguns dizem que é coisa de comunista. Ou seja, se for decretado Estado de Sítio, pode. Aí não tem problema de as liberdades serem restringidas. O ruim é restringir, em uma pandemia, o direito de as pessoas saírem na rua para se contaminarem. Talvez muita gente defenda um direito fundamental à contaminação.

Numa palavra: Em termos legais-constitucionais, não há qualquer exigência de Estado de sítio ou de defesa para restringir o direito de ir e vir. Todos os dias essas restrições são feitas até por portaria. Aeroportos restringem, estádios, ruas etc. Leis restringem liberdades. Então, qual seria o problema de, em meio a uma pandemia, via legalidade extraordinária, restringir direitos para salvar vidas? Aliás, decretar Estado de Sítio ou de Defesa seria desproporcional. No sentido mais cru da palavra “proporcionalidade” (lá do Código Prussiano).

Cartas para a redação.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

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Ex-candidatas têm auxílio negado; advogadas questionam TSE

Erro no sistema

TSE é questionado sobre negativa de auxílio emergencial a ex-candidatas

Por 

A Associação Visibilidade Feminina foi ao Tribunal Superior Eleitoral questionar o motivo de ex-candidatas terem negados seus pedidos para receber o auxílio emergencial e saber se há algum convênio de compartilhamento de dados com a Receita Federal ou outro órgão para a concessão do auxílio.

ReproduçãoAdvogadas pedem ao TSE explicações sobre negativa de auxílio emergencial a ex-candidatas

De acordo com a petição, ex-candidatas estão tendo o benefício de auxílio emergencial do Governo Federal, de R$ 600, negado sob alegação de que exercem mandato eletivo e estarem vinculadas ao Regime Próprio de Previdência Social. 

Na petição, há o exemplo de duas ex-candidatas que concorreram nas eleições de 2016 e 2018 como vereadora e deputada estadual, respectivamente.

A associação afirma que está identificando vários casos parecidos, em que a maioria aparece na condição de suplente. O perfil seria o seguinte: “tratam-se de mulheres que se candidataram nas eleições municipais de 2016 e gerais de 2018, mas não ocupam mandatos eletivos. São suplentes e não recebem remuneração, de forma que nos causou grande estranheza constatar que a simples condição de suplência possa ter impedido o acesso ao benefício do Auxílio Emergencial”.

No pedido, a associação sustenta que as mulheres estão em grupo de fragilidade social do ponto de vista econômico, de responsabilidade familiar e pela sub-representação política.

Por fim, pede ao TSE que adote providências para esclarecer e dar ampla divulgação ao fato de que a mera condição de candidato em eleições anteriores não permite aferir exercício atual de mandato eletivo e de atividade remunerada. Conforme mostrou reportagem do UOL, a negativa também abrange diversos ex-candidatos homens e o motivo seria um erro no sistema.

A ação foi ajuizada pelas advogadas Carolina Lobo, Paula Bernardelli, Nicole Gondim Porcaro e Jéssica Holl, e será relatada pelo ministro Tarcisio Vieira de Carvalho Neto.

Clique aqui para ler o pedido

0600481-07.2020.6.00.0000

 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 10 de maio de 2020, 16h21

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Marcello Miller: Notas sobre o caso Moro x Bolsonaro

Ao discorrer publicamente sobre os motivos por que pediria exoneração do cargo de ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro atribuiu ao presidente da República condutas que, se provadas, tendem a constituir múltiplos crimes, em especial os de falsidade ideológica e prevaricação ou embaraço à investigação de organização criminosa.

O primeiro teria consistido em fazer publicar no Diário Oficial da União ato de exoneração do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal com falso referendo do ministro da Justiça e falsa informação de que o ato se dera a pedido do exonerado. O segundo, em substituir o diretor-geral para que o novo nomeado pudesse ser contraparte de interação direta do presidente da República para fins de colheita de informações e por preocupação com inquéritos sob supervisão do Supremo Tribunal Federal.

O procurador-geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal que determinasse a instauração de inquérito para apurar o que chamou de supostos fatos noticiados. Destaca-se o seguinte parágrafo do requerimento:

“A dimensão dos episódios narrados, especialmente os trechos destacados, revela a declaração de ministro de Estado de atos que revelariam a prática de ilícitos, imputando a sua prática ao presidente da República o que, de outra sorte, poderia caracterizar igualmente o crime de denunciação caluniosa”.

O esforço de cautela é evidente (“A dimensão… revela a declaração… de atos que revelariam…”), embora desnecessário: a narrativa de um relato não traduz, por si só, fé em seu conteúdo, tanto mais em requerimento de instauração de investigação criminal.

O aspecto mais controvertido do requerimento está na parte final desse parágrafo: “…o que, de outra sorte, poderia caracterizar igualmente o crime de denunciação caluniosa”. Esse segmento provocou discussão sobre o escopo do inquérito a ser instaurado, em especial sobre se abrangia a conduta de Sergio Moro em sua fala final como ministro de Estado.

O procurador-geral da República declarou à imprensa que “o inquérito apura fatos” e que “vai apurar fatos relativos a ambos”. Esse é, com efeito, o discurso mais frequente das autoridades de persecução penal a propósito do objeto das investigações criminais que elas investigam fatos, e não pessoas.

O presente trabalho pretende examinar, contra o pano de fundo desse pedido de instauração de inquérito, três questões:

I  Qual é o escopo jurídico de uma investigação criminal?

II — O que é necessário para a instauração de uma investigação criminal a partir de uma notícia-crime?

III — A investigação criminal pode ser bifronte, com apuração simultânea dos fatos noticiados e de possível crime contra a administração da Justiça do noticiante ao efetuar a notícia?

Não há, no presente trabalho, viés de opinião sobre os personagens envolvidos e suas hipóteses de conduta. Ele pretende apenas examinar questões jurídicas pouco debatidas, mas  postas em evidência pelo caso.

O escopo jurídico das investigações criminais
O bordão segundo o qual “o inquérito apura fatos” não resiste à análise da casuística. Perante o próprio Supremo Tribunal Federal, é comum que o procurador-geral da República requeira a instauração de inquérito cujo balizamento não é apurar quem praticou determinado fato ou elucidar todas as circunstâncias da prática desse fato, e, sim, investigar o que exatamente determinada pessoa fez, a partir de elemento inicial que aponta para essa pessoa como autora de fatos incertos ou ilícitos ainda por elucidar.

Ainda que a linguagem comporte contorcionismos diversos, o escopo da investigação é, na segunda hipótese, claramente subjetivo: a investigação partirá da pessoa para os fatos. Se a descrição tivesse de ser binária, faria mais sentido dizer e é o que normalmente ocorre que a pessoa apontada será investigada.

Mas o dilema que opõe pessoas a fatos a propósito do escopo das investigações criminais é falso. Investigações criminais não têm por objeto nem pessoas, ao menos não no Estado Democrático do Direito, nem fatos, cujos contornos e dimensões a princípio não se conhecem os fatos podem, inclusive, nem ter ocorrido. O componente inicial de toda investigação criminal é uma suspeita, isto é, uma percepção inicial, geralmente incompleta, que remete a uma hipótese de infração penal.

Os contornos iniciais da suspeita podem ser predominantemente objetivos ou predominantemente subjetivos conforme as circunstâncias. O encontro de cadáver com sinais de morte violenta criará suspeita em torno do fato e ensejará investigação concentrada em apurar a autoria de provável homicídio. A visão de pessoa ensanguentada, mas não ferida, com faca na mão, criará suspeita em torno da pessoa e ensejará investigação da materialidade de provável crime violento.

O Estado Democrático de Direito acomoda sem dificuldades investigações criminais originadas por suspeitas predominantemente subjetivas. Há clara distinção entre investigar uma suspeita, ainda que ancorada em uma pessoa, e investigar uma pessoa. A questão-chave é a viabilidade jurídica da suspeita, o que remete à segunda questão

II  Standard probatório para a instauração de investigação criminal

Chama-se de notícia-crime a transmissão formal à autoridade de persecução penal da suspeita de um ilícito penal
ainda que o grau de convicção do noticiante seja mais elevado, a autoridade não deve, ao receber a notícia-crime, ir além de um juízo de suspeita. Como é intuitivo, não é qualquer suspeita nem qualquer notícia-crime que determinará a instauração de investigação criminal. Por um lado, uma notícia-crime aparelhada, isto é, acompanhada de elementos de convicção, pode abreviar ou até tornar dispensável a investigação criminal, conforme a solidez e o potencial de elucidação de seus  elementos. Por outro lado, haverá notícias-crime tão vagas ou tão improváveis que a instauração de investigação criminal não será cabível.

A viabilidade jurídica da suspeita dependerá de plausibilidade fática, objetividade perceptiva e concretude narrativa. A plausibilidade fática exige contraste do conteúdo da suspeita com a realidade sensível a notícia de um grande complô, com ramificações internacionais, que empreende perseguição implacável de pessoa comum, embora não seja impossível, não tem plausibilidade fática, ou seja, não faz sentido à luz da normalidade. A objetividade perceptiva remete à origem intelectual da suspeita ela deve basear-se em apreensão racional e racionalmente explicável de fato, dado, elemento ou informação; sonhos e palpites não autorizam atuação estatal investigativa. A concretude narrativa mensura a proximidade contextual entre sujeito e objeto da suspeita noticiar que “há corrupção no governo” ou que “a milícia matou Marielle” pode até fazer sentido e decorrer de apreensão intelectual da informação, mas a distância contextual entre o noticiante e o possível fato tende a ser tamanha que seu relato é demasiado vago para autorizar a atuação estatal investigativa.

Deve ser afastada a noção de que a instauração de investigação criminal exige justa causa. A menos que a expressão esteja aí empregada em sentido próprio e específico, o sistema de Justiça criminal estaria incorrendo em autofagia procedimental se impusesse standard probatório para instaurar investigação criminal idêntico ao que impõe para avaliar a viabilidade probatória de ação penal.

III — Investigação criminal bifronte?

A investigação criminal parte, como visto, de uma suspeita, que precisa ser plausível quanto à hipótese fática, objetiva quanto à percepção e concreta quanto à narrativa. Como se trata de juízo inicial e precário sobre o que possa ter acontecido, admite-se razoável fluidez de seus contornos e mesmo alguma grau de alternatividade de hipóteses. A título de exemplo, a descoberta de grande quantidade de moeda estrangeira oculta no interior de uma parede pode ser o fio da meada de variadas modelagens penalmente relevantes ou até de nenhuma, sem que haja obrigação de apostar, já de início, em uma única hipótese.

Mas a flexão da suspeita inicial encontra limites, determinados pelo próprio conceito de suspeita e pelo imperativo de racionalizar o acionamento do aparato estatal investigatório. A suspeita não pode ser, ao mesmo tempo, uma coisa e seu contrário, sob pena, inclusive, de não se poder considerar existente e criar situação hamletiana para o investigador criminal.

Não é de se excluir que surja, na formação da suspeita, dúvida sobre a veracidade da notícia, tanto mais quando resulta apenas ou essencialmente de um relato trata-se de suspeitar da própria suspeita. Mas, para a autoridade instaurar a investigação criminal, a soma vetorial dessas duas suspeitas a de que houve o ilícito penal noticiado e a de que a notícia seja deliberadamente falsa não pode ser zero; se for, a autoridade não terá, a rigor, formado juízo de suspeita algum.

A hipótese mais frequente é, contudo, a de que uma das suspeitas seja mais densa. Deverá ser ela, então, a nortear o escopo da investigação. A suspeita menos densa só pode tornar-se o norte da investigação se a suspeita antes tida por mais densa se revelar, com alguma nitidez, falsa. Deve haver consecutividade, e não concomitância, não só a bem da lógica, como ainda para fazer uso mais eficiente do aparato investigatório.

IV — O caso concreto
O ex-ministro Sergio Moro fez relato capaz de ensejar juízo de suspeita de clara viabilidade jurídica o que ele relatou era plausível diante das circunstâncias; ele articulou racionalmente o relato, indicando como e onde e quando teria apreendido os fatos; e ele tinha inteira proximidade contextual com os fatos. Ademais, ele apresentou elementos de corroboração em princípio críveis.

Os fatores que poderiam respaldar a hipótese de que o relato de Sergio Moro constitua denunciação caluniosa são pouco densos. A mágoa e o vezo de prejudicar o presidente da República, caso existam, não parecem capazes de ensejar relato tão extenso e detalhado, com tão clara ancoragem contextual. Os elementos de corroboração apresentados pelo ex-ministro, bem como a já comprovada inexistência de assinatura dele no ato de exoneração do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal e de pedido deste de exoneração, tornam a hipótese de denunciação caluniosa ainda mais remota.

A suspeita de que Sergio Moro tenha cometido denunciação caluniosa só pode ganhar corpo, portanto, caso a suspeita em torno do presidente da República se revele, ao menos indiciariamente, falsa. A investigação só terá condições práticas de avançar se puder nortear-se, ao menos em seus primeiro movimentos, por apenas uma dessas suspeitas.

Não há sentido processual, de resto, em que a hipótese de denunciação caluniosa por Sergio Moro seja investigada em inquérito supervisionado pelo STF. A competência do foro especial para supervisionar investigação de  não-titular de prerrogativa de foro é estreita: limita-se às hipóteses de conexão ou continência e, mesmo assim, conforme jurisprudência do próprio STF, desde que haja alto grau de imbricação entre as condutas do titular e do não titular de prerrogativa de foro, a ponto de recomendar, a bem da coerência das decisões judiciais, a reunião das investigações.

Mas não há como falar em conexão ou continência entre as condutas atribuídas ao presidente da República e a hipótese de denunciação caluniosa de Sergio Moro, pois o delineio das suspeitas não comporta a ideia de que um e outro possam ter cometido crimes se o presidente da República tiver delinquido, Moro não o terá feito, e vice-versa. Por isso, a investigação só pode passar a apurar a suspeita de denunciação caluniosa do ex-ministro se ficar demonstrado, com alguma nitidez, que os crimes que ele atribuiu ao presidente da República não ocorreram.

V — Conclusões
Investigações criminais apuram, antes de tudo, suspeitas. Para respaldar a instauração de investigação, a suspeita deve ser plausível, objetiva e concreta. A suspeita contra o presidente da República, conforme levantada por Sergio Moro, assim se afigura; a suspeita contra Sergio Moro, não.

Pode ser que o procurador-geral da República tenha pretendido apenas externar cautela e imparcialidade com a ressalva da possibilidade de denunciação caluniosa de Sergio Moro. Nesse caso, contudo, a ressalva terá sido redundante: esse crime sempre é possível em tese quando alguém dá causa à instauração de investigação criminal.

Caso a intenção tenha sido a de impor ao aparato investigatório apuração simultânea da conduta de Sergio Moro, a imposição é inexequível. Múltiplos passos investigatórios em torno da outra suspeita têm de ser cumpridos antes que a suspeita de denunciação caluniosa ganhe corpo, porque esta depende da demonstração, ainda que por indícios, de que aquela é falsa.

À questão da inexequibilidade, soma-se a da competência: o STF não seria competente para supervisionar a investigação criminal relativamente a Sergio Moro, pois, se ele tiver cometido crime, o presidente da República necessariamente não o terá, não havendo de se falar em conexão ou continência, e, sim, em alternatividade mutuamente excludente de hipóteses delitivas.

Marcelo Miller é procurador da República no Rio de Janeiro.

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Restrições do lockdown não dependem de estado de sítio

Ainda que restrinja os direitos de ir e vir e de reunião, o bloqueio total de atividades (lockdown) pode ser implementado sem que haja estado de defesa ou de necessidade. E por mais que a crise do coronavírus venha se aprofundando, o Estado tem mecanismos para enfrentar a epidemia sem aderir a esses regimes de exceção.

Combate ao coronavírus justifica a restrição de direitos fundamentais
Kateryna Kon

No lockdown, em regra, as pessoas só podem ir à rua para fazer compras em supermercados e farmácias ou trabalhar em atividades essenciais.

O primeiro caso ocorreu no Maranhão. A Justiça estadual ordenou, em 30 de abril, que o Maranhão e o município de São Luís implementassem o lockdown na região metropolitana da capital. Isso porque as medidas de isolamento social têm sido insuficientes para conter a propagação do coronavírus.

Depois disso, foi decretado lockdown em Belém e mais nove cidades do Pará, em Fortaleza, Salvador, Niterói e partes da capital fluminense. No entanto, a Justiça negou pedidos para instaurar o bloqueio total no Amazonas e em Pernambuco.

Nesse regime, há limitação de alguns direitos fundamentais. Especialmente os de ir e vir e de reunião. Por isso, tem quem questione a constitucionalidade da medida — como o juiz que a decretou em São Luís.

A Constituição permite a restrição desses direitos fundamentais pelos estados de defesa ou de sítio — o Brasil não decretou nenhum deles, e sim o estado de calamidade pública. O estado de defesa pode ser instituído para preservar ou restabelecer a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. Tal situação pode limitar os direitos de reunião e de sigilo de correspondência e comunicação telefônica.

Mais rigoroso, o estado de sítio pode ser decretado nos casos de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; ou declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Nesse regime, o poder público pode obrigar pessoas a permanecer em um certo local; deter indivíduos; restringir a inviolabilidade da correspondência, o sigilo das comunicações, a prestação de informações e a liberdade de imprensa; suspender a liberdade de reunião; promover buscas e apreensões em domicílios; intervir em empresas de serviços públicos e requisitar bens.

Tanto o estado de defesa quanto o de sítio devem ser propostos pelo presidente da República, dependendo de aval do Congresso. O primeiro deve durar 30 dias, podendo ser prorrogado uma vez. Já o segundo não pode ultrapassar um mês, salvo em caso guerra.

Embora a Constituição só autorize expressamente a restrição dos direitos de ir e vir e de reunião nos estados de defesa e de sítio, não é necessário decretar um deles para instituir o lockdown. Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, afirma que tais regimes excepcionais se aplicam melhor a situações de violência e de ordem pública, e não são necessários em crises de saúde pública. Na visão dele, mecanismos como os estados de emergência e de calamidade pública — instituído pelo Congresso — são suficientes para combater o coronavírus.

Serrano diferencia um momento de legalidade extraordinário — como o que vivemos devido à epidemia — de um estado de exceção. Aquela é a forma como o Estado Democrático de Direito reage a uma situação emergencial. Mas não há anomia (ausência ou suspensão de leis e direitos), como neste tipo de regime. Na legalidade extraordinária, o Estado segue submisso à legislação e deve criar o mínimo possível de novas leis. A ideia é solucionar os problemas com base no ordenamento jurídico em vigor.

“Vale ressaltar que esse período de legalidade extraordinária pode ser interpretado como um momento em que o Executivo e o Estado em geral têm mais poderes. Mas, na realidade, eles têm mais deveres. Autoridades públicas têm limitações às suas prerrogativas, tanto ou mais do que os cidadãos têm restrições aos seus direitos. E elas têm que agir muito mais por dever do que por poder nesse período”, destaca.

O professor de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Gustavo Binenbojm diz que a imposição do lockdown sem decretação de estado de defesa ou sítio não é inconstitucional porque estabelece medidas menos agressivas aos direitos fundamentais do que as que ocorreriam nestes regimes. “Sendo menos gravosas, essas medidas são preferíveis do ponto de vista da proporcionalidade, por serem menos limitadores de direitos fundamentais.”

Além disso, ressalta o professor, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que estados e municípios têm competência para adotar providências de polícia administrativa sanitária em defesa da saúde pública. Ou seja: os entes podem restringir a circulação de pessoas, mas não no nível dos regimes de exceção previstos na Constituição.

Nem o direito de ir e ir nem o direito de reunião são absolutos, lembra Binenbojm. E eles podem ser limitados em prol da saúde pública. Dessa maneira, se a circulação ou aglomeração de pessoas ameaça o bem-estar da população, o Estado pode usar o poder de polícia para impedir o exercício desses direitos, analisa.

E não é só nesses estados de exceção que tais direitos sofrem restrições, declara Carolina Fidalgo, professora de Direito Público da pós-graduação da Uerj. Bem ou mal, as necessidades de se obter habilitação para dirigir, de se observar as regras de trânsito e de se respeitar barreiras de locomoção de pessoas e veículos em dias de grandes exemplos são limitações a essas garantias. Assim como as prisões, desde que decretadas com base nos requisitos legais.

A Lei 13.979/2020, que reconheceu a situação de emergência na saúde pública, também mitigou tais direitos ao autorizar a adoção de medidas como quarentena, isolamento e restrição de locomoção, afirma Carolina.

“A situação de emergência em questão impõe a adoção de medidas adequadas e necessárias para conter o espalhamento da doença e colapso das redes pública e privada de saúde, inclusive com restrições justificadas ao direito de ir e vir. Se é discutível a necessidade de prévia decretação de estado de sítio ou de defesa, é certo que tais medidas devem ser fundamentadas em lei (e aí se pode discutir se a Lei 13.979/2020 já é suficiente para isso) e devem ser justificadas diante da situação específica de cada município”, opina.

Sem necessidade

Ainda que a crise do coronavírus venha se agravando no país — até esta sexta-feira (8/5), já havia 145.328 infectados e 9.897 mortos em decorrência da Covid-19 —, não é necessário decretar estado de defesa ou sítio para enfrentar a epidemia, avaliam os professores.

Gustavo Binenbojm diz que Estado pode aplicar multa a quem descumprir lockdown

Na visão de Binenbojm, não há circunstâncias objetivas que autorizem a implementação desses regimes excepcionais. Segundo ele, há medidas de polícia administrativa sanitária que podem ser tomadas pelos governos federal, estaduais e municipais para combater a epidemia. Apenas se elas foram insuficientes é que se deve cogitar providências mais duras.

Por sua vez, Serrano acredita não ser preciso suspender tantos direitos para enfrentar o coronavírus. E os estados de defesa e sítio abririam oportunidade para disputas políticas, como a perseguição de adversários e a implementação de limitações abusivas.

Punições cabíveis

Também há controvérsia sobre as punições que podem ser impostas a quem descumprir o lockdown. Leis estaduais e municipais podem prever multa para a pessoa que circular pelas ruas sem justificativa, aponta Binenbojm. Caso o sujeito não pague, poderá sofrer execução fiscal.

Agentes públicos também podem conduzir coercitivamente os infratores a suas residências ou recolhê-las em abrigos, ressalta o professor da Uerj. Isso para que essas pessoas não descumpram as normas de restrição à ocupação de espaços públicos e de aglomeração, que afetam o direito coletivo à saúde.

Porém, as multas administrativas devem ter valores proporcionais às violações, argumenta Carolina Fidalgo. Ela diz que as penalidades têm que ser estabelecidas na norma que instituir o lockdown.

Não há consenso, entretanto, sobre a prisão em flagrante e acusação penal daquele que desrespeitar o bloqueio total. Binenbojm entende que só isso só seria possível se houvesse previsão em lei federal.

Por outro lado, Serrano avalia ser aplicável o crime de epidemia. O delito, estabelecido pelo artigo 267 do Código Penal, consiste em “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”.

Mas Serrano crê ser injusto punir – criminalmente ou administrativamente — os pobres. “O governo não conseguiu até agora viabilizar auxilio-econômico para as pessoas ficarem em casa. Assim, não é possível puni-las quando elas vão para a rua para trabalhar — nesse cenário, estão em estado de necessidade. Só é possível cobrar os pobres quando o Estado der condições para os pobres ficarem em casa.”

A seu ver, as multas deveriam ser aplicadas a quem tem um certo padrão social — proprietários de veículos ou detentores de uma determinada renda. O professor da PUC-SP ainda destaca que as sanções administrativas são mais eficazes em coibir comportamentos do que as criminais. Como exemplo, cita a proibição de dirigir embriagado. A medida só obteve mais adesão da população quando o valor da penalidade foi consideravelmente aumentado, indica.

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

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Moro pede que STF tenha acesso à íntegra de reunião presidencial

A defesa do ex-ministro da Justiça Sergio Moro pediu nesta quinta-feira (7/5) que o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, mantenha decisão tomada na terça-feira (5/5) e acesse a íntegra da reunião que ocorreu entre o presidente Jair Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão e alguns ministros, em 22/4. 

Defesa de Moro pede que íntegra da gravação seja enviada em até 72 horas
Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

A petição foi protocolada depois que a Advocacia-Geral da União solicitou que apenas uma parte da gravação seja entregue. Pediu, ainda, que o ministro reconsidere o prazo de 72 horas para o encaminhamento do material. 

A AGU argumenta que durante a conversa “foram tratados assuntos potencialmente sensíveis e reservados de Estado, inclusive de Relações Exteriores, entre outros”. 

Para a defesa de Moro, no entanto, “destacar trechos que são ou não importantes para a investigação é tarefa que não pode ficar a cargo exclusivo do investigado, mormente porque tal expediente não garante a integridade do elemento de prova fornecido”. 

Ainda segundo a petição, uma gama de assuntos essenciais para o futuro do inquérito aberto pelo STF foram tratados na reunião. Isso porque, durante a conversa, Bolsonaro teria expressado o desejo de que houvesse uma “troca na Direção Geral da Polícia Federal, do Superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro e inclusive do próprio Ministério da Justiça, além da intenção de obter relatórios de inteligência junto a referidos órgãos policiais”. 

O documento foi assinado pelos advogados Rodrigo Sánchez Rios, Vitor Augusto Sprada Rossetim, Luiz Gustavo Pujol, Guilherme Siqueira Vieira e Carlos Eduardo Treglia

Em nota, Sánchez afirmou ser necessário que “a decisão do ministro Celso de Mello seja cumprida, com o Palácio do Planalto enviando ao STF a íntegra da gravação da reunião interministerial”. 

Ainda de acordo com o advogado, “não são motivos para impedir o repasse do material solicitado pelo STF o fato de a reunião ter tratado de temas de relevância nacional ou a possibilidade de conter falas constrangedoras”. 

Inquérito

A instauração do inquérito (4.831) para apurar as condutas do presidente Jair Bolsonaro e as declarações de Moro foi autorizada por Celso no último dia 30.

A decisão foi tomada levando em conta razões de urgência apontadas em petição enviada por três parlamentares: o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e os deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES).

Clique aqui para ler a petição

Inquérito Policial 4.831

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Jornal da Cidade Online é condenado a indenizar presidente da OAB

Ao se deparar com um caso concreto em que dois princípios constitucionais colidem, a solução para o impasse é encontrada no equilíbrio entre os valores em questão, de modo que a prevalência de um princípio, considerando as circunstâncias e peculiaridades da hipótese, não importe na invalidade ou exclusão do outro.

Agência BrasilSite deve indenizar Santa Cruz por reportagens consideradas ofensivas

Com base nesse entendimento, a juíza Sylvia Therezinha Hausen de Area Leão, da 44ª Vara Cível do Rio de Janeiro, condenou o site de notícias Jornal da Cidade Online a indenizar em R$ 150 mil o presidente da OAB Nacional Felipe Santa Cruz pela publicação de reportagens consideradas ofensivas. Os donos do site deverão retirar os textos do ar e ainda publicar a íntegra da sentença e uma retratação em até 48 horas, sob pena de multa diária de R$ 1,5 mil.

Na sentença, a magistrada destacou que o caso em análise versa sobre a colisão entre os direitos fundamentais relativos à honra do presidente da OAB e o direito à liberdade de imprensa. “Trata-se de conflito entre dois direitos fundamentais previstos na Carta Magna de 1988, e como tal deve ser resolvido pela ponderação dos valores constitucionais conflitantes, prevalecendo aquele que se mostrar mais suscetível a um perigo de lesão”, disse.

De acordo com Sylvia, a liberdade de imprensa, apesar de ser um dos pilares da democracia, deve ser relativizada quando estiver em conflito com outros direitos fundamentais, considerados invioláveis pela Constituição Federal. Ela afirmou ainda que a liberdade de expressão do pensamento é incompatível com a censura, independentemente de autorização prévia, “mas pode ensejar a responsabilização posterior do autor em caso de violação à dignidade humana”.

Assim, surge o dever de indenizar quando, “descumprindo-se o dever de bem informar, viola-se o direito à honra e à imagem dos indivíduos, tendo em vista que a liberdade de imprensa não confere àqueles a que se incube a missão de informar, o direito de exceder os limites estabelecidos constitucionalmente de proteção à dignidade humana”.

É a hipótese dos autos, no entendimento da magistrada. Para ela, reportagens do Jornal Cidade Online ferem a honra e a imagem de Santa Cruz, sendo que algumas têm “caráter indubitavelmente ofensivo e injurioso”. “Se observa que os réus divulgaram diversas matérias que não se prestam a informar a população, em verdade, verifica-se apenas a intenção de atacar o autor e a instituição presidida por ele”, completou.

Sylvia classificou as reportagens de “sensacionalistas” e disse que a conduta do site é “irresponsável”, pois não atinge apenas a honra de Santa Cruz, mas também reverbera em toda a OAB, “uma vez que gera na população um sentimento de vulnerabilidade e descrença para com toda classe de advogados, o que torna ainda mais danosa e de incalculáveis proporções a conduta dos réus”.

Clique aqui para ler a sentença

0178390-23.2019.8.19.0001

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Fachin suspende tramitação de processos sobre áreas indígenas

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, determinou a suspensão nacional de todos os processos e recursos judiciais que tratem de demarcação de áreas indígenas até o final da pandemia da Covid-19 ou até o julgamento final de recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.031).

Antonio Cruz/Agência Brasil

O recurso discute a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena. Nele, a Fundação Nacional do Índio (Funai) questiona decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que julgou procedente ação de reintegração de posse de área em Santa Catarina. A área, declarada administrativamente como de ocupação tradicional dos índios Xokleng, está localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás.

O recurso teve repercussão geral reconhecida em fevereiro de 2019. No final de março de 2020, com a pandemia instalada, a comunidade indígena Xokleng da Terra Indígena Ibirama La Klaño e diversas partes interessadas admitidas pelo relator no recurso pediram a suspensão nacional dos processos que tratam do mesmo tema. A medida está prevista no artigo 1035, parágrafo 5º, do Código de Processo Civil.

Isolamento social

Ao deferir a suspensão, o relator salientou que, em razão da pandemia, que não tem prazo para acabar, a Organização Mundial de Saúde (OMS) vem orientando governos e populações a adotar o isolamento social, entre outras medidas, a fim de impedir a disseminação da infecção. Fachin frisou que os indígenas sofrem há séculos com doenças que muitas vezes são responsáveis por dizimar etnias inteiras pelo interior do país, diante da falta de preparo do seu sistema imunológico.

Para o relator, a manutenção da tramitação de processos, com o risco de determinações de reintegrações de posse, agrava a situação dos indígenas, “que podem se ver, repentinamente, aglomerados em beiras de rodovias, desassistidos e sem condições mínimas de higiene e isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo coronavírus”.

No seu entendimento, deve incidir o princípio constitucional da precaução, que exige do Poder Público que atue para reduzir os riscos socioambientais, em defesa da manutenção da vida e da saúde.

A suspensão nacional abrange, entre outros casos, ações possessórias, anulatórias de processos administrativos de demarcação e recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas, até o término da pandemia da Covid-19 ou do julgamento final recurso, o que ocorrer por último. Com informações da assessoria de imprensa do STF.

RE 1.017.365

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Opinião: Os impactos da pandemia nas relações contratuais

Afinal, qual seria o limite da interferência do Estado nas relações contratuais privadas durante um período de pandemia?

Pode-se dizer que a indagação acima é revestida de imensa complexidade e encontra-se em discussão, atualmente, nos mais diversificados ramos do Direito, sendo possível constatar seus impactos em toda a sociedade, com efeitos, por exemplo, nas relações de trabalho, nas relações de consumo, em contratos imobiliários, enfim, em todas as relações bilaterais que ensejam direitos e obrigações para ambas as Partes, terminando por atingir certeiramente a ordem econômica e social do País.

Com base nesta premissa uníssona, pode-se afirmar que os primeiros reflexos da pandemia, Covid-19, no universo do Direito, advirão da Jurisprudência. Essa fonte do Direito secundária, pois sua emanação está vinculada à Lei, será a primeira a instruir o longo e sinuoso caminho que o Direito, em sua mais ampla magnitude, deve percorrer na devida resposta social que o momento exige.

Entretanto, será um intenso desafio a ser alcançado por parte do Poder Judiciário e que exigirá a contribuição dos Poderes Legislativo e Executivo em busca de um equilíbrio na elaboração de normas que poderão colidir contra o já sedimentado entendimento jurisprudencial, a fim de se propiciar o enfrentamento da crise por toda a sociedade. Trata-se da concepção moderna da Jurisprudência por uma tendência à supremacia da Função Social do Contrato em detrimento do pacta sunt servanda.

É o que já é visto, por exemplo, nos contratos de consumo em que o princípio do pacta sunt servanda não é aplicável de maneira absoluta, já que não se pressupõe autonomia plena de vontade. Todavia, nada obstante a remansosa compreensão da vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo, é nítido que o equilíbrio almejado nesta pandemia também trará consequências inversas à orientação jurisprudencial, simplesmente pela proteção do fornecedor com a finalidade específica de evitar um colapso nos setores mais castigados pela crise.

É o que é possível observar da adoção da Medida Provisória nº 948, de 8 de abril de 2020, a qual dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (Covid-19).

A adoção desta Medida Provisória certamente esbarra nos mais elementares princípios do Código de Defesa do Consumidor, mas sua criação está condicionada justamente ao estado de calamidade pública reconhecido pelo mencionado Decreto Legislativo, de modo que a revisão dos contratos relacionados a esta matéria pelo Poder Judiciário poderá ser contrária aos interesses tutelados pelo Código de Defesa do Consumidor.

Por outro lado, nas relações trabalhistas, a Medida Provisória nº 927, instituída em 23 de março de 2020, teve a sua eficácia limitada por liminar do Supremo Tribunal Federal, diante da polêmica envolvendo o seu artigo 18, acerca da possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, sem assistência sindical obrigatória. Diante das incertezas jurídicas e do aumento da crise, em 1º de abril de 2020, o Governo publicou a Medida Provisória nº 936, que regulamenta de forma muito mais ampla a intervenção da Lei nas relações trabalhistas e empresariais, visando consagrar a manutenção do emprego.

Conforme se observa na exposição de motivos da MP nº 936, a situação de emergência de saúde pública e as primeiras diretrizes jurídicas para enfrentamento da pandemia já haviam sido positivadas na Lei nº 13.979/20.

Porém, para que o reequilíbrio nas relações contratuais privadas não seja palco para retumbantes injustiças, faz-se imprescindível um olhar subjetivo em cada situação. Primeiro, pelas próprias Partes e seus advogados e, em última análise, mediante arbitramento Judicial.

Neste contexto, oportuna a citação das sábias palavras do jurista José Roberto de Castro Neves[1], que diz: “O Direito serve ao homem, e não o homem ao Direito.”

Não parece razoável tratar todos os casos de forma unitária, em função de imposição legal, sem que sejam consideradas as peculiaridades de cada caso que levaram à revisão de uma situação antes acordada em contrato.

Neste ínterim, destaca-se que apesar da força vinculante dos contratos, em hipóteses de imprevisibilidade ou situação extraordinária que alterem demasiadamente o equilíbrio do contrato, há a possibilidade de que a parte que se considera lesada busque a guarida do Poder Judiciário para requerer o seu reequilíbrio, como vem ocorrendo em demasia nos Tribunais pátrios.

A exemplo da assertiva acima, traz-se ao presente texto recente decisão proferida em 02 de abril pelo MM. Juízo da 22ª Vara Cível do Foro Central da Capital de São Paulo, na qual foi deferida liminar, nos autos do processo nº 1026645-41.2020.8.26.0100, para reduzir em 70% (setenta por cento) o valor locativo de um restaurante, durante o período de pandemia. Ao deferir a tutela, o Magistrado não se absteve de aferir o binômio necessidade/possibilidade, buscando repartir de forma isonômica as perdas inevitáveis de cada Parte, tendo como fundamento legal a função social do contrato.

Situações como essa se replicaram pelo Tribunal Bandeirante, e não tardou a ser proferida a primeira decisão de segunda instância, ressonando uniformidade e segurança nas interpretações congêneres “a quo”. Nos autos do processo nº 2065372-61.2020.8.26.0000, a Desembargadora Daise Fajardo Nogueira Jacot, da 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, indeferiu o pedido de efeito suspensivo em agravo de instrumento e manteve a liminar concedida pelo r. Juízo a quo que “optou pela solução intermediária de redução de cinquenta por cento (50%) do locativo mensal, repartindo entre a locadora e a locatária o esforço necessário para garantir a continuidade da relação jurídica”, em razão da crise pandêmica.

Em todas essas situações, o que vislumbra como fator primordial a autorizar a intervenção Judiciária no pacto particular é a relação dos contratantes com a sociedade, atados pela Função Social do Contrato. A relativização da autonomia de vontade das Partes se faz imperativa, para repelir injustas resistências à manutenção de atividades geradoras de empregos.

Sendo preceito Constitucional, recepcionado pelo Código Civil, em seu artigo 421, a Função Social do contrato engloba as repercussões da relação contratual no âmbito social. Reduzir uma obrigação contratual locativa, para ajudar a evitar a quebra de um restaurante, que faria cessar suas atividades e ocasionaria a perda do emprego de garçons, cozinheiros, manobristas, além da cessação de toda a engrenagem paralela movida pela atividade, como aquisição de insumos, demais fornecedores, contadores, gás, água, energia elétrica etc., atende à Função Social do contrato de locação que o estabelecimento celebrou.

Entretanto, esse elo entre a autonomia das Partes e a sociedade é único em cada relação. Mantenhamos como exemplo um restaurante. Há Partes Locadoras que detém vários imóveis, e cuja dependência econômica perante o aluguel é mínima. Certamente há casos em que a Parte Locadora é uma viúva, idosa e que depende exclusivamente da renda daquele imóvel para sua própria subsistência. Há de se ponderar a redução dos prejuízos mediante vendas por “delivery”, bem como a importância da sobrevivência da atividade para a sociedade como um todo. Enfim, não há como o Judiciário se furtar a um olhar subjetivo para cada situação de conflito de interesses não solucionado amigavelmente pelas Partes.

A particularidade das demandas judiciais desta natureza é tamanha, que o juiz deverá analisá-las não somente à luz dos artigos 393 e 422, ambos do Código Civil, que tratam, respectivamente, dos casos de força maior e do consagrado princípio da boa-fé objetiva, mas com vistas a evitar oportunismos, haja vista a linha tênue que segrega a abissal diferença entre a “dificuldade temporária para o cumprimento de uma obrigação contratual” da “impossibilidade de cumpri-la”. Ou seja, tratam-se de termos e situações cujas consequências são completamente distintas.

De grande valia a lição de Anísio José de Oliveira[2], ao tratar da cláusula rebus sic stantibus, ao concluir que “Nunca se deve embarcar, em face de casos concretos, na caravela do unilateralismo!…”

A importância das céleres e bem fundamentadas decisões jurisprudenciais é palpável. Nos casos em que as Partes não logram um acordo, as decisões norteiam as notificações preliminares, encaminhadas por advogados, demonstrando à outra Parte que a resistência injustificada à renegociação encontra defesa legal, e assim “encorajando” um maior número de rearranjos extrajudiciais.

Ainda no tocante a esses princípios, de celeridade e economia processuais, convém lembrar e exaltar a importância dos advogados para a administração da Justiça, ao relembrar a célebre frase do jurista italiano Francesco Carnelutti, posteriormente corroborada pelo jurista Sobral Pinto, de que “o advogado deve ser o primeiro juiz da causa”. Nesse sentido, o primeiro olhar para dentro de cada situação conflituosa deve ser do causídico, que deve ponderar as circunstâncias de cada contrato, em consonância com suas particularidades e com base na jurisprudência atinente à hipótese, contribuindo para uma menor judicialização das repartições dos danos carreados a todos pela pandemia.

Gilberto Morelli de Andrade é advogado e sócio do escritório Andrade, Juliani e Costa — Sociedade de Advogados.

Vinicius Tadeu Juliani é advogado e sócio do escritório Andrade, Juliani e Costa — Sociedade de Advogados.

Kleber Miguel da Costa é advogado e sócio do escritório Andrade, Juliani e Costa — Sociedade de Advogados.

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TRF-4 mantém pena de Lula no caso sítio de Atibaia

A 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região negou nesta quarta-feira (6/5) recurso apresentado pela defesa do ex-presidente Lula e manteve a pena de 17 anos, 1 mês e 10 dias de prisão no caso do sítio de Atibaia (SP). 

TRF-4 manteve pena de 17 anos de prisão
Ricardo Stuckert

O petista foi condenado pela corte de segunda instância em novembro do ano passado pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. O ex-presidente é acusado de receber propina de construtoras, que teriam reformado e decorado um sítio no interior de São Paulo.

Em primeira instância, Lula foi condenado pela juíza Gabriela Hardt, da 13ª Vara Federal de Curitiba. A denúncia foi aceita em 2017 pelo então juiz Sergio Moro, que deixou o cargo para assumir o Ministério da Justiça.

O caso não tem relação com o do tríplex do Guarujá, que levou Lula à prisão em 2018. Como o STF derrubou execução antecipada da pena, o ex-presidente não será preso por conta da decisão desta quarta.

Suspensão negada

Nesta terça-feira (5/5), a defesa de Lula pediu que o julgamento virtual dos embargos de declaração fosse suspenso. De acordo com os advogados, as declarações feitas recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro e por Moro reforçam a suspeita de que o ex-juiz não era isento para julgar Lula.

“Há diversos fatos que mostram a suspeição do ex-juiz Sergio Moro e consequentemente comprometimento de toda a instrução deste processo. Dentre os apontamentos, está o fato do ex-juiz ter passado a integrar o governo do presidente Jair Bolsonaro com o afirmado compromisso para assumir uma cadeira no Supremo Tribunal Federal”, afirma o requerimento, assinado pelos advogados Cristiano Zanin, Valeska Teixeira Martins, Maria de Lourdes Lopes e Eliakin dos Santos

A fala dos advogados faz referência a uma declaração feita por Bolsonaro no dia 24 de abril, depois que Moro saiu do Ministério da Justiça. Na ocasião, o presidente disse que o ex-juiz pretendia ser indicado ao STF. 

“Injusto e arbitrário”

Em nota, Zanin e Valeska disseram que a decisão foi arbitrária e injusta. “É sintomático que o TRF-4, após ter julgado o recurso anterior (apelação) com transmissão ao vivo e grande espetáculo, tenha realizado esse novo julgamento, contraditoriamente, pelo meio virtual, que sequer permite que os advogados de defesa participem do ato”, afirma.

Leia nota na íntegra:
Em relação ao julgamento virtual finalizado hoje (06/05/2020) pela 8ª. Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região (“embargos de declaração” — Autos nº 5021365-32.2017.4.04.7000/PR), reforçamos o caráter injusto e arbitrário da decisão que manteve a condenação do ex-presidente Lula, originariamente imposta por sentença proferida por “aproveitamento” de outra sentença proferida pelo ex-juiz Sergio Moro — que também foi o responsável pela instrução do processo com a parcialidade que sempre norteou sua atuação em relação a Lula, como sempre demonstramos e como foi reforçado pelo escândalo da Vaza Jato. Esclarecemos ainda que:

1 – É sintomático que o TRF-4, após ter julgado o recurso anterior (apelação) com transmissão ao vivo e grande espetáculo, tenha realizado esse novo julgamento, contraditoriamente, pelo meio virtual, que sequer permite que os advogados de defesa participem do ato e, se o caso, possam fazer as intervenções previstas em lei (Estatuto do Advogado) para esclarecimento de fatos ou para formulação de questões de ordem. Essa situação, por si só, configura violação à garantia constitucional da ampla defesa e violação às prerrogativas dos advogados. 

2 – Com a rejeição do recurso, diversas omissões, contradições e obscuridades apontadas em recurso de 318 laudas e que dizem respeito a aspectos essenciais do processo e do mérito do caso deixaram de ser sanadas — inclusive o fato de Lula ter sido condenado nessa ação com base na afirmação de que “seria o principal articulador e avalista de um esquema de corrupção que assolou a Petrobras”, em manifesta contradição com sentença definitiva que foi proferida pela 12ª Vara Federal de Brasília, que absolveu o ex-presidente dessa condenação com a concordância do Ministério Público Federal (Ação Criminal nº 1026137-89.2018.5.01.3400 — caso conhecido como “Quadrilhão”). Nesta decisão proferida pela Justiça Federal de Brasília, o juiz federal prolator, Dr. Marcos Vinicius Reis Bastos, fez consignar com precisão e de forma inconciliável com as decisões proferidas no processo em referência, que “a utilização distorcida da responsabilização penal, como no caso dos autos de imputação de organização criminosa sem os elementos do tipo objetivo e subjetivo, provoca efeitos nocivos à democracia, dentre elas a grave crise de credibilidade e de legitimação do poder político como um todo”.

3 – Mesmo com todo o cerceamento de defesa imposto ao longo da fase de instrução pelo então juiz Sergio Moro, conseguimos comprovar, por perícia, a partir da análise da suposta cópia dos sistemas da Odebrecht que estão na posse da Polícia Federal, que os R$ 700 mil que o MPF acusou Lula de ter recebido em suposta reforma no sítio de Atibaia, foram, em verdade, sacados em favor de um alto executivo da própria Odebrecht. A prova, no entanto, foi simplesmente desprezada pela sentença e também pelo TRF-4. O que foi levado em consideração foram apenas depoimentos de delatores que foram beneficiados para acusar Lula — inclusive o de Marcelo Odebrecht, que em depoimento posterior, prestado em ação penal que tramita perante a Justiça Federal de Brasília, reconheceu que “é tremendamente injusto fazer uma condenação de Lula sem que esclareça as contradições dos depoimentos de meu pai e Palocci”.

4 – Assim que os votos proferidos no julgamento virtual forem disponibilizados na plataforma do TRF-4 definiremos o recurso que será interposto para reverter essa absurda condenação.

5021365-32.2017.4.04.7000

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Lula pede que TRF-4 suspenda julgamento do sítio de Atibaia

A defesa do ex-presidente Lula apresentou nesta terça-feira (5/5) requerimento para que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região suspenda julgamento de embargos pendentes sobre o sítio de Atibaia. 

Defesa de Lula pede que julgamento do sítio de Atibaia seja suspenso
Ricardo Stuckert

Segundo os advogados do petista, as declarações feitas pelo presidente Jair Bolsonaro e por Sergio Moro reforçam a suspeita de que o ex-juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba não era isento para julgar Lula. Foi Moro que, em 2017, aceitou a denúncia contra o ex-presidente.

“Há diversos fatos que mostram a suspeição do ex-juiz Sergio Moro e consequentemente comprometimento de toda a instrução deste processo. Dentre os apontamentos, está o fato do ex-juiz ter passado a integrar o governo do presidente Jair Bolsonaro com o afirmado compromisso para assumir uma cadeira no Supremo Tribunal Federal”, afirma o requerimento, assinado pelos advogados Cristiano Zanin, Valeska Teixeira Martins, Maria de Lourdes Lopes e Eliakin dos Santos

O trecho faz referência a uma declaração feita por Bolsonaro no dia 24 de abril, enquanto buscava rebater acusações feitas por Moro horas antes. 

“Mais de uma vez, o senhor Sergio Moro disse para mim: ‘você pode trocar o Valeixo, sim, mas em novembro, depois que o senhor me indicar para o Supremo Tribunal Federal’. Me desculpe, mas não é por aí, reconheço as suas qualidades. Em chegando lá, se um dia chegar, pode fazer um bom trabalho, mas eu não troco”, afirmou Bolsonaro na ocasião. 

A defesa de Lula diz ainda que o próprio Moro admitiu, em conversa com a deputada Carla Zambelli, as suspeitas envolvendo a possibilidade de um posto no STF. A troca de mensagens foi enviada pelo próprio Moro ao Jornal Nacional.

“Tal diálogo evidencia a forma natural em que tal questão era constantemente memorada ao ex-juiz no conduzir de suas atividades. Um prêmio por ter retirado o então candidato [Lula] que estava em primeiro lugar nas pesquisas presidenciais de 2018?”, questionam os advogados. 

Os advogados pedem que o TRF-4 aguarde as conclusões do inquérito aberto pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, para apurar as declarações de Moro — inquérito 4.831. O caso do sítio será julgado virtualmente e sua conclusão está marcada para esta quarta-feira (6/5).

À ConJur, Zanin disse não achar prudente que o TRF-4 desconsidere os novos fatos e que eles devem ser mais bem elucidados nas investigações em curso no STF. 

“Podemos ter ainda mais elementos para reforçar o lawfare praticado contra o ex-presidente Lula e a nulidade de todos os processos que foram julgados ou conduzidos pelo ex-juiz Sergio Moro”, afirma. 

Clique aqui para ler o requerimento

5021365-32.2017.4.04.7000